0000-0003-3600-1497 Tarcízio Macedo.[1][2]
La batalla de muchos, el glamour de pocos:esports, materialidades y gambiarra en Free Fire
The battle of many, the glamour of few:esports, materialities, and gambiarra in Free Fire
Como efeito das sucessivas crises capitalistas, a pandemia de covid-19 ajudou a acentuar os processos de concentração de mercados e a ampliação da mercantilização sobre o jogo. A indústria de videogames, embora afetada, aproveitou a crise global para se reinventar, obter legitimidade social e mostrar sua resiliência frente a um cenário pandêmico incerto. As gigantes da indústria dos esportes eletrônicos (esports)1 também prosperaram naquele momento. Em particular, os esports desfrutaram de uma chance única de autoafirmação social durante a pandemia (Macedo e Fragoso, 2023).
Dentro desse contexto, inclusive no Brasil, Free Fire (FF), um jogo para dispositivos móveis produzido e publicado pela desenvolvedora Garena, de Singapura, obteve amplo destaque. Com protagonismo crescente, ele se expandiu para um fenômeno global com repercussões locais variadas, levando à ascensão no país de equipes profissionais e aspirantes e mobilizando uma quantidade significativa de atores envolvidos nesse processo, desde jogadores entusiastas e profissionais (chamados de pro-players) até competições, espectadores e organizadores de torneios. Todos eles, além de muitos outros, compõem aquilo que chamo, ao longo deste artigo, de movimento competitivo.2
O título da Garena foi rapidamente apropriado pelos jogadores brasileiros, em especial aqueles com menor poder aquisitivo, graças a duas características principais: a gratuidade e a relativa flexibilidade do acesso a sua experiência. Com esse conjunto particular de circunstâncias, FF logo se tornou um jogo compatível para diversos tipos de aparelhos mais baratos desde seu lançamento, em 2017. A repercussão desse cenário levou à formação de um amplo movimento3 comunitário que hoje está presente em grande parte do território brasileiro com acesso à internet, sinal telefônico e aparelhos smartphones, tanto em zonas urbanas quanto rurais.
Durante tempo considerável, os esports costumavam ser restritos apenas às interações de jogadores com computadores e consoles. No entanto, as transformações tecnológicas e na indústria de videogames permitiram com que nos últimos sete anos, em especial, os esports migrassem com sucesso também às plataformas móveis. A literatura sobre esse fenômeno, porém, é muito nova. Ainda que isso seja consequência de uma mudança recente, há também uma invisibilidade sobre o tema, à medida que dialoga, sobretudo, com o contexto do Sul Global.
Para construir esta pesquisa, desenvolvi uma etnografia a partir de experiências vividas de junho de 2020 a janeiro de 2023, num diálogo com e entre diferentes atores que compõem o cenário de FF no Brasil. O trabalho de campo iniciou no estado do Pará, na região Norte, e se expandiu para o circuito competitivo da Taça das Favelas Free Fire (TFFF) em outros estados e regiões do país. O período abrange desde a criação deste campeonato e foi selecionado em função da profunda transformação global, e reordenamento sociocultural e competitivo, experimentado durante a pandemia. Com base nisso, as materialidades do jogo, num sentido mais amplo que apenas a influência dos smartphones, são descritas e discutidas com profundidade teórica, sem deixar de lado o compromisso com o campo.
O objetivo deste artigo, portanto, é discutir algumas das pressões que os equipamentos (smartphones) e o ritmo do jogo infligem sobre esse movimento comunitário. Frente a esse contexto, busco entender as práticas postas em ação pelos jogadores para permanecer em movimento (suas mediações locais). Especificamente, há uma tensão entre dois atributos ou elementos característicos dessa experiência: a influência do aparelho - o smartphone - e as condições precárias do Sul Global como um todo.
Ao descrever a relevância desses artefatos para a atividade dos jogadores, definindo-os etnograficamente (Henare, Holbraad e Wastell, 2007; Biondi, 2014), procuro considerar o smartphone no movimento comunitário de FF como um conceito que mostra as formas, os usos e os meios pelos quais os jogadores pensam e jogam mediante esses aparelhos. Contudo, mais do que isso, o que documento aqui, de forma ampliada, é um conjunto de vetores que incide sobre a prática de jogo no Sul Global como um todo e como os jogadores acionam seus corpos para lidar com determinadas dificuldades adicionais.
Nos últimos anos, pesquisadores no âmbito dos game studies têm se preocupado em desenvolver uma re-imaginação dos jogos digitais a partir de suas condições e contextos materiais de existência. Essa mudança de eixo na literatura do campo, construída por escalas e registros que contemplam as dimensões maquínicas, corpóreas e situacionais do jogo (Apperley e Jayemane, 2017), reflete, de maneira mais ampla, uma retomada de fôlego em torno das materialidades nas Ciências Humanas e Sociais (Kittler, 1999; Latour, 2005; Miller, 2005, 2013; Ardèvol e Lanzeni, 2014).
Diferentemente do que costuma professar o discurso comum, os bens da cultura digital e das mídias digitais não são destituídos de matéria. Pelo contrário, são objetos que impulsionam múltiplas materialidades e, desta maneira, põem em movimento uma ampla gama de agências, como mostram, a título de exemplo, os estudos de Giddings (2009), Taylor (2009) e Ardèvol e Lanzeni (2014). A própria viabilidade da comunicação móvel sem fio - independentemente dos aplicativos ou plataformas que ela possa acomodar - é inseparável da infraestrutura e dos recursos materiais necessários para apoiá-la (Ingraham e Grandinetti, 2023). Afinal, os smartphones dependem, entre outras coisas, de infraestruturas materiais que tornam possível sua mobilidade sem fio.
Mobilizando a discussão em direção aos game studies, o trabalho de Pallitt, Venter e Koloko (2019), ao estudar as práticas de jogo na Cidade do Cabo, na África do Sul, incentiva os pesquisadores de videogames a considerarem como o jogo é “infraestruturado” e o papel do lugar em seus usos. Eles sugerem que “aqueles que estudam as práticas de jogos no hemisfério Sul poderiam se beneficiar da articulação de como várias dimensões materiais são infraestruturais para o jogo - isso inclui espaços, configurações, corpos, hardware e software, bem como os próprios jogos” (p. 281).
Um título como FF, por exemplo, é caracterizado pela preservação de inúmeras forças, atores e instâncias materiais para existir no mundo. É preciso que os servidores da Garena estejam em completo funcionamento, e que os dispositivos celulares dos jogadores suportem a versão mais atualizada do software e obtenham acesso à internet. A experiência também se transforma a depender do suporte e do ambiente em que se decide jogar: FF é jogável em dispositivos móveis, em telas maiores de computadores (via emuladores), de modo espontâneo no transporte público, numa praça, num shopping center, na sala de casa ou numa lan house (cybercafé), por exemplo.
A rotina de jogadores de FF ainda é atravessada pela busca incessante e atenta por novas estratégias, táticas e manobras de jogo em fóruns de discussão on-line, assim como pelo acompanhamento de streamers, pro-players populares e canais especializados em plataformas como Twitch ou YouTube. Essas práticas não apenas resultam de FF, mas são estruturantes do modo como o fenômeno do jogo competitivo e dos esports é percebido e experimentado hoje. Entendo que a gama de domínios reproduzidos acima figura como materialidades que integram FF. Desde o servidor de um jogo até a sua instalação no aparelho de um jogador, múltiplas camadas materiais se sobrepõem para constituir o aparato em jogos.
As primeiras aproximações aos videogames por diferentes disciplinas, porém, já ofereciam atenção aos contextos materiais pelos quais os jogos se movem, a partir de circuitos comerciais, sociais, lúdicos e nacionais (Apperley e Jayemane, 2017). No intuito de oferecer uma visão geral sobre a “virada material” na literatura sobre jogos, e a forma como ela tem ajudado a desenvolver este campo interdisciplinar, Apperley e Jayemane (2017) identificaram três abordagens metodológicas pelas quais se poderia observá-la: “estudos etnográficos”, “platform e software studies” e “estudos críticos do trabalho digital”.
Em geral, as três abordagens compartilham uma “crescente preocupação com os contextos, usos e qualidades materiais das tecnologias de jogos, por um lado, e a atenção à análise situada do jogo e dos jogadores, por outro” (Apperley e Jayemane, 2017, p. 3). Elas inserem a experiência dos jogos digitais como parte de um conjunto de cenários materiais, propondo perspectivas para estudar o meio que não reproduz, à primeira vista, a ideia de que os jogos são experiências estéticas virtuais. Fragoso (2017) aponta, contudo, que mesmo partindo da materialidade em um sentido mais delimitado, as pesquisas desenvolvidas nas três grandes vertentes facilmente se afastam dos problemas relacionados à dimensão material para retornar questões que privilegiam certos operadores.
Parece, assim, ser relativamente fácil escapar da materialidade e recair em outros domínios da existência (culturais, econômicos e estruturais, por exemplo). Esta pesquisa, porém, engaja-se com as materialidades a partir de uma etnografia atenta às suas implicações, detalhando diferentes aspectos materiais do uso de smartphones para a execução da ação no jogo. Apesar das limitações, a virada material nos game studies abre caminho para interpretar os jogos digitais como artefatos e objetos que, a despeito da celebração de sua virtualidade digital, existem no mundo e são produzidos de modo significativamente visceral (Apperley e Jayemane, 2017).
Em vez de pensarmos os jogos e as pesquisas nesta mídia como espaços claramente delimitados, Taylor (2022) sugere que podemos considerar a bricolagem e os fluxos de coconstituição desses ambientes e do trabalho de campo. Embora seja comum concentrar nossa atenção no jogo como um centro imaginado, na prática, a experiência de jogar em qualquer um dos seus momentos é resultado de uma combinação complexa de diversos atores e locais interconectados de forma profundamente situada (Taylor, 2009, 2022). Isso envolve artefatos materiais como computadores, monitores, cadeiras e periféricos, por exemplo, locais (como fóruns, sites, plataformas de comunicação, grupos presenciais de jogadores, dentre outros), redes (de tecnologia, de pessoas e de organizações), bem como políticas, governança e leis que influenciam cada experiência de jogo em diferentes níveis e escalas (Taylor, 2009, 2022).
A literatura existente sobre etnografia e jogos digitais é abundante, incluindo contribuições da comunicação, da sociologia, da antropologia e dos game studies. Para mim e para muitos outros que pesquisam, a etnografia tem sido uma metodologia fundamental para investigar a cultura gamer e os ambientes on-line, porque permite compreender a abundância e diversidade dos espaços digitais (Boellstorff, 2006; Giddings, 2009; Taylor, 2009, 2022; Winocur, 2009; Ardèvol e Lanzeni, 2014; Taylor, 2015; Macedo e Fragoso, 2019). Os etnógrafos que atuam nesse campo da mídia, ao habitarem ativamente e jogarem com os participantes, forneceram uma rica e abrangente análise que engloba desde a presença on-line até diferentes formas de ação coletiva. Adotando técnicas etnográficas bem estabelecidas, eles ofereceram perspectivas relevantes sobre a vida nos ambientes digitais, enriquecendo nosso entendimento sobre vários fenômenos e contextos (Taylor, 2022).
Ainda assim, nossos locais de campo etnográfico, em especial àqueles que trabalham on-line, são formados por fronteiras porosas. Taylor (2022), em referência ao texto seminal de Marcus (1995), defende que “muitos de nós [pesquisadores de videogames] reconhecem que a etnografia multissituada é simplesmente um componente constante de nossa pesquisa” (Taylor, 2022, p. 40). De fato, ainda que não seja a mesma abordagem, o exercício de etnografia que produzi aponta para esta direção, à medida que aceitei que meu tema e meu campo se movem e criam, a todo tempo, novas direções.
A prática de conduzir estudos baseados em etnografias em diferentes locais não é, porém, algo recente (Biondi, 2014). Mesmo assim, ao reunir um conjunto de empreendimentos etnográficos sob uma denominação comum, o trabalho de Marcus (1995) constitui um antecedente inevitável e crucial, porque descreve as características do que se pretendia ser uma emergente modalidade de pesquisa (Biondi, 2014). Por outro lado, Biondi (2014) observa que muitos pesquisadores que buscam engrossar as fileiras dos adeptos desse método fazem adaptações da proposta original (Marcus, 1995), levando em consideração principalmente as características empíricas particulares de seus campos de pesquisa.
É o que faz, por exemplo, o estudo pioneiro sobre etnografia digital na América Latina de Grillo (2019), voltado às formas de fazer política dos ativistas mapuches na Argentina e no Chile. Seu trabalho demonstra como, mesmo sem muitas referências prévias na área de estudo, foi construída uma etnografia que seguiu os atores, suas metáforas e conflitos, em suas múltiplas práticas tanto “dentro” quanto “fora” da rede - ali entendida como “parte do mundo”.
Mas minhas tentativas de acompanhar a cena de FF e aproveitar o que os encontros proporcionavam me afastavam de diversas estratégias tradicionais de trabalho de campo, assim como de várias modalidades de etnografia desenvolvidas nas últimas décadas. Mesmo que o cenário experimentado seja heterodoxo e por mais inovadora que a saída que conduzi possa ser, minhas referências antropológicas permaneciam vigentes e, por outro lado, eram vitalizadas com leituras complementares que o trabalho de campo me direcionava.
Biondi (2014), Latour (2005) e Grillo (2019) se atêm ao que é crucial: que o pesquisador siga os próprios atores, independentemente onde isso possa levá-lo. Desse ponto de vista, não é relevante debater se a pesquisa que conduzi pode ou não ser definida como uma “etnografia multissituada”. Tampouco sugiro que desenvolvi uma etnografia segundo este aporte sem antes o prever, mas o “fracasso” das propostas anteriores de trabalho de campo, na realidade, abriram caminhos que me conduziram a uma exploração mais abrangente do cenário brasileiro de FF que certamente encontra apoio nesta tradição.
Minha experiência revela como muitos pesquisadores precisam lidar com desafios adicionais no estudo de culturas de videogames. As indústrias e as comunidades de esports, por exemplo, são marcadas por uma constante dinâmica e instabilidade e os círculos dedicados ao jogo competitivo costumam ser, em geral, fechados e de difícil acesso. O rico trabalho documental de pesquisadores dos game studies (Taylor, 2009, 2012; Taylor, 2015; Macedo e Fragoso, 2019) revela o quanto a rotatividade de jogadores, jogos, organizações e torneios é alta nos esports. “O jogo competitivo é um objeto em constante movimento para os pesquisadores”, comenta Taylor (2015, p. 2), que completa: “muitas vezes, no momento em que uma determinada comunidade, torneio ou organização é relatada, ela não existe mais da mesma forma, se é que existe”. Essas condições, atreladas a mediações socioculturais, políticas, econômicas, espaciais e infraestruturais específicas, tornam o cenário de esports em um país da dimensão do Brasil um alvo móvel para pesquisadores.
Desnecessário argumentar que conduzir um mapeamento ou radiografia de um movimento competitivo deste tamanho é praticamente inviável, senão impossível. Os desafios adicionais de estudar uma cultura de jogadores particular no país, agravados em meio a uma pandemia, exigiram que eu recorresse a uma “inventividade metodológica” como uma estratégia para criar perspectivas adaptadas de estudo (Estalella e Criado, 2023). Nas linhas a seguir, buscarei torná-la explícita, dando conta das etapas e decisões tomadas na construção do campo.
Para contornar as circunstâncias e dificuldades de conduzir uma etnografia num cenário de extensão nacional, meu primeiro passo foi adotar a abordagem mais convencional da antropologia (Biondi, 2014) e, ao mesmo tempo, a opção mais viável naquele contexto: participar de uma comunidade específica e observar atentamente o que ocorria dentro daquele movimento. A ideia de um lugar familiar, que oferecesse menos resistência à minha entrada, logo se mostrou interessante. A opção mais óbvia também não tardou a se revelar: a comunidade de FF no Pará, e sobretudo em Belém, lugares onde tenho um histórico de participação competitiva. Estava convencido de que “uma vida em estado de campo” (Biondi, 2011) com comunidades de esports facilitaria minha entrada.
Essa alternativa, porém, situava o trabalho de campo a um espaço e limitava a observação do cenário de FF ao que por ali passava. A ela adicionei, com o tempo, uma outra estratégia: acompanhar os jogadores e, dessa forma, soltar-me dos lugares para tentar conduzir seus rumos. Isso implicava assumir que a cena do jogo também é posta em movimento (ou feita movimento) por jogadores, o que vinculava a pesquisa de campo a eles. A ideia, então, era seguir seus rumos em direção a outras cenas produzidas pela diversidade de atores de FF no país, na tentativa de melhor entendê-las. Defini esse dispositivo de pesquisa, inspirado na própria estratégia metodológica utilizada pelos jogadores para habitar e transitar pelas suas comunidades, como uma etnografia que se move (Marcus, 1995; Biondi, 2014; Grillo, 2019).
Ao seguir etnograficamente o cenário comunitário de FF no Pará, por meio de torneios, jogadores, equipes e eventos; e o cenário profissional no Brasil, a partir da Liga Brasileira de Free Fire (LBFF),4pro-players e organizações, fui levado ao encontro de um campeonato organizado pela Cufa, uma organização não governamental (ONG) brasileira fundada em 1999 por jovens de várias favelas do país. A ONG, desde 2012, realiza a Taça das Favelas, um campeonato de futebol de campo entre favelas. Com a pandemia, o torneio, assim como várias atividades competitivas no mundo, foi cancelado. Impossibilitada de organizá-lo nos campos, a Cufa inspirou-se nos gramados para realizar a TFFF. Seguindo os preceitos da edição voltada ao futebol, o torneio procurava dar visibilidade a futuros jogadores de esports. A primeira edição congregou mais de mil times de 12 estados e distribuiu 30 mil reais em premiações. Desde então, a competição é realizada anualmente em todo país entre outubro e dezembro.
O acesso inicial a esses jogadores na capital do Pará, em Belém, ocorreu a partir de uma etnografia pelos espaços digitais do circuito local, principalmente pelo Instagram, a plataforma mais usada pelos jogadores. A ausência de competições presenciais durante a realização do meu campo me levou a rastrear e acompanhar alguns grupos, perfis de eventos, equipes e jogadores específicos espalhados on-line, a partir dos quais busquei estabelecer contato. Durante essa experiência, fui conduzido ao encontro da TFFF. Iniciei este percurso em Belém, mas ao seguir as conexões e os movimentos em torno do campeonato, aos poucos, cheguei a Porto Alegre, Pendências, Campo Grande, Paranaguá, Aracaju, Rio de Janeiro, São Paulo e Boa Vista, cidades brasileiras que compõem a TFFF/Cufa e locais onde residem os jogadores com quem conversei. O acesso a eles se deu com base na localização manual das equipes que avançaram às etapas nacionais da competição, cujos nomes foram divulgados no Instagram oficial do campeonato.
Isso me leva a outra característica fundamental da etnografia que conduzi: a adoção de uma postura que Biondi (2011) denominou de “uma vida em estado de campo”. Além de me manter em contato com as comunidades, as equipes e os jogadores, realizando constantes “visitas” aos seus perfis em plataformas digitais e me informando sobre o que ocorria por lá, permaneci atento e à disposição para receber quaisquer mensagens, áudios, chamadas e convites para partidas ou eventos de meus interlocutores. Essa “manutenção da pesquisa” (Biondi, 2014, p. 53) tornou possível acompanhar a forma como o ritmo do jogo (imputado, em geral, pela Garena) interferia no ritmo (afastamentos e retornos às suas comunidades) de muitos dos jogadores com quem conversei ao longo do trabalho de campo. Como implica um rearranjo da configuração local de FF, um novo ritmo que a Garena produzisse ao cenário competitivo ou uma mudança que trouxesse ao jogo poderia resultar em transformações tanto aos jogadores quanto à minha pesquisa.
A introdução no cenário paraense e belenense de FF me colocou em contato com uma amostra da diversidade configuracional dos esports no Brasil. Ela também deu a tônica dos tipos de encontros que me aguardavam em outras partes do país, a partir da entrada no circuito que envolve a TFFF em 2021. Com o passar dos meses e dos contatos estabelecidos pelas comunidades de FF e pelos seus ambientes digitais circundantes, entrei em diferentes movimentos no interior do jogo e da competição da Cufa. No decorrer de minhas atividades costumava ter muitas interações com a diversidade de pessoas encontradas em espaços deste tipo.
Ao todo, conversei com 42 jogadores de equipes participantes da TFFF de todas as regiões do Brasil, entre campeões estaduais e vencedores nacionais das duas primeiras edições realizadas em 2020 e 2021. Era comum que entre eles houvesse aqueles que se conheciam pela atuação e presença no cenário. Mobilidade talvez seja a palavra mais adequada às relações e encontros estabelecidos entre meus interlocutores. Um jogador indicava um outro com quem deveria conversar, e assim sucessivamente. Em certas equipes, talvez por vergonha, alguns deles eram apontados (ou autorizados) pelo grupo a falar - em geral, jogadores que assumiam a função de capitães de seus coletivos.
Esse trabalho, de forma ampla, envolveu notas detalhadas em um caderno de campo, registro de conversas regulares (gravação de áudio e tela), diálogos com jogadores, coachs (técnicos) e organizadores do cenário de FF, recursos comunitários em rede e participação em partidas, eventos on-line e canais de comunicação das comunidades. Assim, durante quase três anos de trabalho de campo, me movi, com alguma periodicidade, entre torneios e atividades competitivas do cenário de FF no Brasil, entre o circuito profissional (a LBFF) e o comunitário.
A sistematização e tratamento dos conhecimentos produzidos pelos jogadores, em diálogo comigo, incluindo a decupagem ou transcrição (numa travessia de linguagens), é parte significativa do trabalho. No computador, organizei o conjunto de experiências, desde a etnografia inicial pelos espaços digitais da comunidade de FF em Belém até outros movimentos e interações com os jogadores que acompanhei. Criei pastas que buscavam ordenar o tipo de material a que tive acesso (capturas de tela, vídeos, fotos, mensagens de voz, gravações de áudio, documentos, links) e a data em que ele havia sido efetivado.
Antes disso, porém, numa etapa documental anterior, já havia registrado uma série de documentos e vestígios midiáticos sobre as edições de 2020 e 2021 da TFFF e da LBFF, incluindo notícias, regulamentos, imagens, capturas de sites e outros elementos contextuais. Durante o trabalho de campo pelas plataformas digitais também construí algumas pastas extras em meu próprio perfil pessoal no Instagram, a partir do momento em que se mostravam necessárias ao estudo: uma, em particular, estruturava informações disponíveis no perfil da TFFF, dos jogadores e das equipes para consulta.
O percurso analítico, inspirado na ruptura metodológica decolonial para o estudo da cultura digital e dos algoritmos de Gómez-Cruz, Ricaurte e Siles (2023), mobiliza a escuta ativa das falas e diálogos com os jogadores, numa passagem entre mundos; a transcrição dessas histórias e memórias, numa travessia de linguagens; e a tradução ou (re)montagem feita de forma articulada e diária, tanto por meio do registro de notas em um caderno de campo, quanto pela releitura e organização dos conteúdos em categorias interpretativas, a partir da análise de conteúdo etnográfico (Altheide, 1987). Esta etapa, aliás, vale-se de maneira recorrente dos métodos etnográficos de descrição e narrativa, cruzando, de um lado, as informações derivadas do campo e, de outro, a leitura dos significados e sentidos dos diálogos a partir de comentários interpretativos (meus e dos interlocutores). Para os objetivos deste artigo, selecionei apenas o material referente às mediações materiais na prática dos jogadores.
Durante o processo de análise, seguindo as recomendações e preocupações com relação à validade semântica da análise de conteúdo etnográfico (Altheide, 1987), engajei-me em esforços para garantir que minhas interpretações respeitassem o que os jogadores me disseram em relação às suas histórias, experiências e práticas de jogo. Para isso, contei com a opinião dos meus interlocutores que puderam aferir e autenticar se seus conhecimentos estavam ali representados de maneira adequada.5
Das duas estratégias adotadas - me fixar em uma comunidade e acompanhar os jogadores pelas comunidades -, estreitei relações com dez deles (Quadro 1) com os quais joguei e conversei entre 2021 e 2023. Nossos encontros seguiam a metodologia em movimento dos próprios interlocutores: ora eram realizados pelos meios de comunicação mais familiarizados em seus cotidianos (Discord, WhatsApp, Instagram e o próprio jogo), ora pela plataforma Zoom.
Por fim, é importante reforçar que o projeto de pesquisa que originou este artigo foi registrado sob nº 42755 junto à Comissão de Pesquisa (Compesq) da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Fabico, UFRGS). Em seguida, foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da UFRGS e à Plataforma Brasil, sob registro de Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) nº P60820822.9.0000.5347. Nestas duas instâncias, a pesquisa foi aprovada quanto ao mérito, recebendo parecer favorável consubstanciado nº 5.622.288 do CEP/UFRGS. Essas certificações informam a chancela da instituição e a garantia de que este estudo segue os mais altos níveis de exigência, em seus aspectos éticos e metodológicos, no que diz respeito à pesquisa envolvendo seres humanos.
Dentro do movimento, os smartphones estão tão presentes que é raro encontrar um jogador que não possua ao menos um aparelho. Afinal, dispensável dizer, são esses artefatos que também dão vida ao cenário e o fazem fluir. Todos eles são amplamente utilizados; chega a ser difícil passar algum tempo em companhia de um jogador sem presenciar o uso de seus dispositivos. Não é por acaso que os smartphones ocupam uma posição destacada em minha etnografia sobre FF.
No seu sentido mais óbvio, eles não apenas atuam como um meio para operacionalizar a prática competitiva ou para facilitar as discussões relacionadas ao movimento, mas também agem como um elemento vital da oralidade e textualidade em torno das quais o tecido social é construído e as conexões são feitas. Além disso, atuam como promotor de uma certa porosidade do ambiente de jogo, como facilitador da gestão do movimento (de seus torneios, treinos e demais atividades), como meio para reafirmar laços de amizade e camaradagem entre organizações e atores ou como o que possibilita conexões entre diferentes cenas locais. De fato, os smartphones se sobressaem por sua ampla presença, mas também desempenham um papel crucial nos esports móveis e no cenário competitivo.
Várias etnografias abordando temas próximos ao meu enfatizaram a importância de objetos que desempenharam um papel de destaque em suas descrições (Vicentin, 2008; Taylor, 2009, 2012; Winocur, 2009; Giddings, 2009; Miller, 2013; Biondi, 2014). Pesquisadores como Miller (2013) e Latour (2005), por exemplo, debruçaram grande parte de seus esforços na observação de que as coisas fazem as pessoas tanto quanto as pessoas fazem as coisas. Essa compreensão da materialidade como um fator significativo na construção das relações entre pessoas e coisas tem sido uma fonte de inspiração para uma série de estudos ao longo dos últimos anos, incluindo no próprio campo dos game studies (Giddings, 2009; Taylor, 2009, 2012, 2022; Fragoso, 2017; Macedo e Fragoso, 2019, 2023; Messias, Amaral e Oliveira, 2019; Pallitt et al., 2019; Messias, 2020).
Para Winocur (2009), que procura compreender o processo que transformou o aparelho celular em um “novo cordão umbilical” da sociedade, esse dispositivo é usado na vida cotidiana não apenas para fazer ligações, mas principalmente para lidar com a incerteza e o medo. Goggin (2009), de maneira similar, ao analisar especificamente o iPhone em relação à ideia de associação (assemblage), montagem ou composição (Latour, 2005), aponta que a questão central é explorar a crescente relevância dos smartphones na cultura em geral.
Isso envolve, de um lado, investigar como “[as] comunicações móveis fazem parte de uma reconfiguração das relações entre diferentes mídias, seus gêneros e as práticas de mídia dos usuários” (Goggin, 2009, p. 153) e, de outro, o papel desses dispositivos na composição do social como atores que desestabilizam certas relações sociais, enquanto, ao mesmo tempo, estabilizam e promovem outras.
A rápida disseminação e aceitação de smartphones transformou a maneira como desenvolvedores de software, usuários e acadêmicos encaram a relação entre mobilidade, cultura, hardware tecnológico e internet (Goggin, 2009; Winocur, 2009). Além disso, a expansão dos recursos dos aparelhos introduziu elementos significativos que ampliaram os usos “padrões” das tecnologias móveis, que hoje incluem assistir, gravar e jogar, por exemplo. É nesse contexto em que pessoas interagem com coisas pessoalizadas que minha reflexão encontra espaço.
Os dispositivos celulares, conforme Vicentin (2008) explica, são objetos versáteis e mutáveis, centros de convergência tecnológica que oferecem diversas possibilidades, graças a variedade de usos e funções que eles permitem. O consumo dessas capacidades favorece um aumento tanto quantitativo quanto qualitativo de suas funcionalidades, em um processo evolutivo contínuo, como observa o autor. Assim, é relevante abordar e definir esses aparelhos de forma etnográfica, como recomendam Henare et al. (2007) e Biondi (2014). Afinal, a atração dos meus interlocutores por esses dispositivos está centrada na capacidade de combinar comunicação e movimento (Vicentin, 2008; Winocur, 2009; Biondi, 2014), “algo constitutivo do universo que envolve o telefone celular” (Vicentin, 2008, p. 36).
Esse interesse pelos smartphones se reflete mais adequadamente nas propriedades materiais dos aparelhos que são importantes para os jogadores: são aquelas presentes desde os primórdios da rede celular, como é o caso da capacidade de se comunicar com pessoas e lugares distantes, até outras mais recentes, como o acesso a experiências e espaços de lazer e socialização a um baixo custo, especialmente considerando o déficit de investimento público nas periferias dos grandes centros urbanos - e, por isso mesmo, pretende a superação das condições socioeconômicas, espaciais e precárias enquanto obstáculo. Por último, há um interesse na capacidade de articular jogo, esporte, lazer, comunicação, trabalho e movimento, principalmente durante a pandemia.
Por esses motivos, os jogadores optam pelo uso dos smartphones ao invés de computadores para experimentar os esports, já que estes últimos dispositivos limitam o acesso ao acrescentarem camadas materiais - e financeiras - que são necessárias a determinadas atividades de jogo (Macedo e Fragoso, 2019). Adicionalmente, os smartphones permitem a alguns jogadores a troca regular de aparelhos sempre que possível, geralmente no sentido de upgrade (Quadro 2).
Aqueles que não possuem condições financeiras para empreender esses movimentos - ou quando a troca de aparelho, ainda assim, não foi suficiente -, acionam outras estratégias e modos de fazer-FF. Com base em mediações locais, intervenções desviantes e metodologias próprias, os jogadores promovem uma forma de improviso e resiliência frente às mudanças na fruição (ritmo) do jogo e às condições sociais precárias para a prática. Ignorar de minhas descrições os aparelhos smartphones, as aplicações acionadas por eles e tudo o que proporcionam, ativam e conduzem significaria descontinuar a descrição e eliminar toda a complexidade que esses artefatos permitem.
No entanto, acompanhar seus usos durante o período em que os jogadores estiveram no cenário comunitário me ajuda a pensar no esport como uma associação (Latour, 2005; Taylor, 2009), na qual muitos atores e processos de desdobramento compõem o local e a ação. Essa associação envolve não apenas a tecnologia, mas as práticas emergentes das comunidades, as estruturas institucionais e legais que dão forma ao esport e ao jogar, suas dimensões socioculturais, o mundo material e espacial que o atravessa, e assim por diante (Taylor, 2009, 2022).
Há muitos movimentos que se organizam ao redor de FF, a maioria deles operando às margens da indústria, das estruturas institucionais oferecidas pela Garena e, consequentemente, da sua cena profissional. Esses movimentos mantêm um circuito paralelo onde diferentes competições são realizadas, assim como empreendem outros modos de apropriação do jogo. Nessas comunidades identifiquei uma precariedade latente nos dispositivos tecnológicos essenciais a uma adequada fruição do jogo e para participar dessas disputas, o que ressoa com os argumentos de Messias (2020) sobre o conceito de “gambiarra”.6
Para competir, os jogadores “faziam de tudo”, dizia J4, bicampeão da TFFF no estado do Pará (PA). O superaquecimento de aparelhos, por exemplo, era um dos problemas mais comuns com os quais os jogadores lidavam cotidianamente. Fruto da combinação do uso do dispositivo até o limite, das suas restrições técnicas e até mesmo das próprias condições climáticas, isso significava, em termos práticos, principalmente na queda da taxa de FPS7 e no ping8 do jogo (cf. Macedo e Fragoso, 2019). “Se ele esquentar, começa a travar”, dizia J7, campeão nacional da TFFF. Se ficar “quente, meu amigo, cai FPS, cai ping, cai tudo”, reforçava, por outro lado, J4.
Para evitar o superaquecimento, tudo era permitido. Durante o jogo, as soluções improvisadas e inventivas para lidar com esse cenário envolviam, desde o uso do ventilador ou freezer próximo ao smartphone, até o resfriamento da capa ou do próprio aparelho dentro do congelador. A descrição de J4 dá uma dimensão da preocupação que isso significa aos jogadores: “numa final [de alguma competição], que é algo muito disputado, quando ele [o aparelho] começa a esquentar eu já pego o ventilador, boto no três e, olha, vai sair torando. Ou, como eu fazia antes, eu pegava a capinha, botava no congelador e colocava atrás do meu celular, depois eu fazia, tipo, um cooler”. Sua ideia, com isso, era que conseguisse “congelar [...] o processador” do aparelho, “a GPU dele”. No auge da sua atividade no movimento, no período em que disputava a TFFF, fazia muito calor em Belém. “Então, a gente geralmente fazia isso”, explicava. “Tem gente que pegava o celular e ficava na porta do congelador jogando, aí ficava só o freezer batendo. Os cara faz tudo isso. Cada um com as suas gambiarras”, comentou certa vez.
Embora não houvesse feito nenhum upgrade em seu aparelho durante a permanência no movimento, J9, campeão da TFFF pelo estado de Roraima (RR), jogava com seu Xiaomi Redmi Note 9S, às vezes, no máximo em frente ao ventilador. “Mas era bem difícil” fazê-lo, dizia, “o meu, sobre questão de resfriamento, não tinha tanto problema”. Atribuía ao sistema de resfriamento líquido do seu smartphone a ausência deste percalço. J5, bicampeão da TFFF no estado do Rio de Janeiro (RJ), porém, era um dos jogadores que agia da mesma forma que J4 para lidar com o superaquecimento do seu dispositivo. Seu relato dá a ver os efeitos desse problema e as estratégias movimentadas para fazer frente a ele.
O meu J7 era um celular meio duro. Sensibilidade9 dele era horrível; pra me movimentar no mapa era complicado. O meu [iPhone] 7 Plus esquentava muito, até porque aqui no Rio de Janeiro faz muito sol. E quando esquentava o jogo começava a travar, a minha voz não saía mais no jogo e eu tinha que botar ele dentro do congelador pra jogar. Eu abria o congelador, enfiava na minha cara e ficava jogando dentro do congelador. [...] Aí acontecia na call [chamada] o cara falar assim: “tua voz tá começando a ficar robotizada! Vai pra dentro do congelador logo!”. Ficavam zoando por jogar no congelador. Aí aparecia a minha mãe: “Fecha essa porta, você vai descongelar tudo!”
As estratégias acionadas para evitar o superaquecimento dos aparelhos são comuns nas comunidades de FF, como dito por vários de meus interlocutores. J1, campeão da TFFF pelo estado do Rio Grande do Norte (RN), por exemplo, lembrou que colocar a capa do aparelho para gelar era algo que “geral fazia”. Em seu caso, quando trocou para um smartphone melhor, bastava jogar “colado no ventilador” - a prática surtia o efeito desejado. J7, quando trocou seu Xiaomi 9T Pro por um iPhone 8 Plus, passou a sofrer com o mesmo problema de aquecimento que era ausente em seu aparelho anterior. “Nossa, iPhone esquentava muito! O meu era só no congelador e na frente do ventilador”, dizia.
Um pouco mais radical do que outros, ele deixava o próprio celular dentro do freezer até começar a partida. Quando ouvia o sinal sonoro indicando seu início, retirava o dispositivo do refrigerador e jogava. Embora fosse comum deixar a capa do smartphone no congelador entre membros do movimento, J7 nunca chegou a fazê-lo - não gostava da sensação de jogar de capa, alegando que o atrapalhava. J8, outro campeão nacional da TFFF e que seguia uma abordagem similar, relatou como procedia:
No Xiaomi esquentava muito o celular. Assim, era um calor, [por]que aqui faz muito calor, então, eu tirava do fone. Aí, lógico, eu parava de mexer um pouco nele. Esperava ele esfriar um pouco e jogava no congelador. Deixava uns quinze segundos, pegava, tirava, aí já tava friozinho e jogava de novo, só que não pode. Eu fazia e eu nem imaginava o perigo que eu tava correndo. [...] Eu não fazia no meio da partida, mas [quando] dava um intervalo e eu ia lá. Só que eu ia escondido da minha mãe também, porque ela uma vez pegou. Foi aí que eu nunca mais fiz, mas eu já tinha feito muitas vezes. Também jogava muito na frente do ventilador, salvava muito. A capinha pra gelar eu nunca fiz.
J3, campeão da TFFF no estado do Paraná (PR), cujas configurações do seu aparelho eram as melhores entre todos aqueles com quem conversei, disse nunca ter vivenciado qualquer problema com o aquecimento do seu dispositivo. Os amigos com quem jogava, no entanto, não dispunham de iguais condições financeiras, assim como vários daqueles que acompanhei. Eles tinham, portanto, que se sujeitar aos “problemas com o celular e ficavam enfrentando ventilador ou, muitas das vezes, quem tinha, jogava com o ar-condicionado ligado, naquele frio”. Mesmo em temperaturas mais amenas, o celular superaquecia. “Tinham alguns que jogavam com o ar e com o ventilador sempre”, lembrou J3 em um de nossos últimos encontros, em 2023.
Em dias quentes de São Paulo (SP), quando o smartphone aquecia muito e, consequentemente, dava sinais de travamentos constantes, J10, bicampeão da TFFF por este estado, utilizava uma estratégia um pouco diferente dos demais. Optava pelo uso de uma bolsa térmica, mantida no freezer de sua geladeira, em volta de um pano para, assim, evitar que o degelo molhasse seu aparelho. Em seguida, colocava o dispositivo em cima da bolsa, em momentos de pausa e menor intensidade dentro do jogo, quando ele e sua equipe paravam para fazer uma marcação. Às vezes, jogava em frente ao ventilador, mas, em suas palavras, “não adianta[va] muito [...], acho que essa bolsa de gelo funciona mais, [por]que ele não esquenta”. As condições climáticas são tão prejudiciais aos jogadores de FF que J7, por exemplo, contou-me o seguinte relato:
A única coisa que atrapalha mesmo é o calor, [...] mas tirando o calor eu acho que não existe dificuldade não, nesse termo, de morar em outro estado, morar no Paraná e a galera e as coisas [estarem] lá em São Paulo. Acho que não vejo dificuldade nisso. [...] Eu acho que o calor é o que mais atrapalha um jogador de FF, é muito ruim que a mão começa a suar, aquele calor, aquela agonia que você, às vezes, deita no chão pra jogar, encosta numa parede gelada pra jogar, muito calor. Fora que esquenta. Quanto mais esquenta o celular, principalmente iPhone, mais trava. Eu acho que a única dificuldade de um jogador de FF é o calor, só. [...]. E não tem lugar que não faça um calorzinho, às vezes, que soa a mão.
Antes de avançarmos na discussão, convém esclarecer que nem todos na cena comunitária de FF concordam com o argumento de que o lugar onde se joga não produz qualquer influência em quem joga. Alguns discordam em diferentes graus de escala, como J1, J2, J4, J6, J8, J9 e J10. Para determinados jogadores, a concentração de campeonatos presenciais no Sudeste é o principal problema; para outros, a questão é muito mais abrangente, envolve condições materiais (acesso à internet de qualidade e equipamentos baratos), oportunidades, investimento e visibilidade (Macedo e Fragoso, 2019).
Ainda assim, o movimento rejeita hierarquias, dada a circulação de seus membros com diferentes estilos de jogo. Não há, nesses termos, uma classificação no interior do cenário comunitário que estabeleça a região Sudeste com um “celeiro de craques” em FF. No entanto, alguns jogadores reconhecem os privilégios daqueles que se encontram nessa porção do território brasileiro, graças às repercussões da concentração do movimento profissional neste espaço. Isso inclui, por exemplo, o acesso a competições presenciais ou a melhores condições infraestruturais, como internet, aparelhos mais baratos, contatos a atores estratégicos, dentre outros. J9, um jogador da Amazônia ocidental, produz um pensamento crítico que articula de forma perspicaz essas mediações tecnológicas e espaciais. Seu relato deixa evidente a relação apontada acima:
Em questão de gameplay e igualdade, eu acho que sim. Como eu te falei, têm muitos jogadores bons aqui. A gente sabe o tanto que a gente joga, porém, nessas condições, a gente se sente um pouquinho inferior por conta disso: em questão de equipamento, em questão de internet, a gente se sente frustrado sim, todos aqui se sentem.
J1, de uma cidade do interior do RN, percebia de maneira similar a incidência das mediações tecnológicas e espaciais em suas práticas de jogo. Em uma de nossas conversas, numa tarde de domingo, articulou com clareza o que tentei argumentar nas linhas anteriores. Na oportunidade, também introduziu uma estratégia criada por alguns dos jogadores do movimento para lidar com os reveses da conexão:
A internet aqui ela é muito, muito desprovida mesmo. Ela chega muito fraca nos cantos. [...] Aqui no meu time a gente tem duas lines. Uma é da periferia do Passo da Pátria, uma favela mesmo, onde os caras têm vez que preferem jogar nos dados [móveis]. Eles lá compram um “chip bomba”,10 [...] um chip que vem hackeado. Você comprar ele e vem com um mês de internet infinita. A internet topada. Aí depois você perde o chip, para de funcionar. Eles compram esse chip bomba e ao invés de internet [banda larga] eles usam ele, porque às vezes a internet lá chega tão num nível que não dá pra jogar.
A geografia da internet no Brasil é baseada em um padrão multifacetado que acompanha a distribuição de poder político, riqueza material, étnico-racial, gênero, classe e localização (Fragoso, 2004). As discrepâncias na qualidade da conexão evidenciam as desigualdades socioeconômicas entre as diferentes regiões do país, com uma hiperconcentração do acesso às redes de comunicação digital no eixo Sul-Sudeste (Motta, 2013; Girardi, 2015) em detrimento de outras partes do território nacional. Para J3 e J7, moradores de uma cidade no litoral paranaense, a internet e a geografia nunca foram um problema. Muito diferente deles, J2, outro vencedor nacional da TFFF, comenta:
É mais difícil pra gente entrar no competitivo. Onde eu moro dificulta muito, muito mesmo, por falta de oportunidade, falta de quem investir no nosso jogo. Vou dar um exemplo que dei na nossa última conversa. Primeiro o pessoal de São Paulo [equipe de J10 por onde também passou J7]: eles foram campeões duas vezes no estadual, da primeira e da segunda edição da TFFF, sendo que da primeira eles foram pra final e na segunda eles foram até a semifinal. Veio um empresário e comprou uma vaga pra eles na série B do campeonato brasileiro [LBFF]. A gente foi duas vezes campeão estadual aqui em Mato Grosso do Sul e foi campeão nacional e não chegou nenhuma oportunidade dessa pra gente. Então sim, creio que dificulta muito a região que nós estamos. Tudo isso torna tudo mais difícil. Não basta ser da quebrada, tem que ser da quebrada e do lugar certo, regiões polarizadas.
Esses relatos, exemplos de uma base muito ampla, revelam como “os espaços e contextos mais abrangentes em que o jogo está situado [...] [são] sujeitos às tecnologias disponíveis, às regras dos poderosos, às políticas, às economias morais, aos recursos materiais, como tempo de antena e eletricidade, e a outras restrições”, como argumentaram anteriormente Pallitt et al. (2019, p. 281). Eles também evidenciam como a infraestrutura para jogos e esports influencia as interações e molda os futuros possíveis de jogadores competitivos. Dado que a atividade depende da qualidade da conexão, essas informações indicam que a localização geográfica tem um impacto direto nas condições de jogadores periféricos, bem como em suas capacidades de progressão competitiva (Taylor, 2012; Macedo e Fragoso, 2019). Isso torna o jogo mais difícil para alguns jogadores do que para outros, já que nos jogos on-line a quantidade de tempo necessária para que as máquinas se comuniquem com o servidor é fundamental para que o jogo seja justo (Taylor, 2012).
Retornando ao debate das estratégias para se manter no movimento, J5 definiu essas ações práticas - que alguns chamavam de “gambiarras”, “marmotas” ou “macetes” - como “técnicas”. Incluiu, ainda, uma outra tática frequentemente acionada pelos membros desse cenário, desta vez para lidar com a falta de sensibilidade de alguns dispositivos, a forma como alguns jogadores ajustam a responsividade dos comandos na tela para se adequar ao estilo de jogo, preferências pessoais ou limitações de seus dispositivos. Enquanto jogadores com condições financeiras mais favoráveis preferem investir em luvas profissionais para os polegares, as técnicas criadas pelos integrantes do movimento comunitário lançam mão de outras práticas. Do uso de óleo de cozinha e creme hidrante, passando pela aplicação de maisena e talco até a oleosidade do próprio rosto, tudo era permitido para garantir uma maior sensibilidade no tato com a tela dos smartphones e, assim, conseguir uma resposta em um curto período. Afinal, tempo é indispensável para aqueles que jogam competitivamente.
Passar o dedo, assim, no rosto pra pegar oleosidade, pra conseguir jogar melhor, pra não ficar travando a tela. [...] Todo mundo falava: “oh, antes de jogar campeonato, importante: não pode tomar banho”. Você tomava banho e limpava o rosto todo, não tinha óleozinho pra passar no dedo. Tem todas essas artimanhazinhas pra jogar. Passar talco, um pouquinho no dedo [...], pra dar aquela.... escorregar um pouquinho melhor na tela, pra não ficar grudando. Você já percebeu [que] quando você toma banho, às vezes vai mexer o celular e pensa que tá meio agarrando o dedo? [Isso] atrapalha muito na hora do jogo. Aí muita das vezes o que acontecia? Tomou banho pra jogar, o dedo tá travando a tela? Botava o dedão no óleo de cozinha e passava na roupa, pra tirar o excesso, pra conseguir deixar o dedo deslizar melhor na tela. Tem todas essas técnicaszinhas. Depois, a tela ficava horrível, mas era o que tinha pro momento.
O relato de J5 é semelhante ao de outros jogadores, como J8, que narra uma experiência similar com aquilo que chamou de “marmotas” - e que diferentes participantes do movimento definem a partir de outros termos.
Você tem que arrastar o dedo pra cima, pra dar “capa”,11 pra dar headshot. Então, muitas das vezes, quando você toma um banho ou lava o rosto, você fica sem oleosidade. Aí o dedo fica grudento, trava na tela. Tem que ter um pouco de oleosidade pra tela ficar deslizando adequadamente. Por isso que fazia essas marmotas aí. [...] É cada marmota, cara.
Para J5, no período em que usava o Samsung Galaxy J7, era preciso de “alguma maneira pra fazer funcionar” o jogo. Não havia jeito, acreditava. Mesmo após a troca e o upgrade de aparelho (de um iPhone 7 Plus para um iPhone 11), “o macetinho12 do dedo não podia tirar mais”, dizia convicto. Já de posse de um novo smartphone, avaliava que tudo fluía melhor. Quando seu dispositivo dava sinais de superaquecimento, bastava parar um pouco na frente do ventilador - era suficiente. Antes, no Galaxy J7, precisava jogar por aproximadamente 20 minutos de dentro do congelador, tempo máximo que a autonomia da bateria do seu aparelho suportava longe da fonte de energia. “Era uma correria tremenda”, lembrava, “esquentava muito!”.
J6, campeão da TFFF pelo estado de Sergipe (SE), que jogou grande parte do seu tempo no movimento em um iPhone XR, colocava o aparelho abaixo do ventilador no primeiro sinal de aumento da temperatura. “Quando acaba travando, o ideal era fechar tudo e ligar o ventilador, pra dar uma resfriada”, dizia. Como a maioria dos meus interlocutores, ele também fazia uso da oleosidade do rosto para melhorar seu desempenho e superar as limitações técnicas do seu aparelho, mesmo quando de posse de um modelo mais recente: “eu passava [o dedo no rosto] e passo até hoje. É clássico”, comentou. Isso “melhora na sensibilidade e também na movimentação do jogo; do personagem no jogo, no caso”. Chegou a passar talco na tela - uma alternativa frente aos problemas de baixa sensibilidade -, mas desistiu em favor do uso da própria oleosidade do corpo. “[Com] o óleo do rosto você consegue passar por uma boa parte da tela, já o talco eu não acho tão bom pra estar passando, porque tem que passar no dedo [e] no botão do jogo”, explicou.
Além de J5, J6 e J8, outros jogadores que faziam o mesmo eram J2, J7, J9 e J10. J7, por exemplo, usava “o suor, o óleo natural da testa ou em cima do nariz”, num sinal de que há poucos limites às técnicas aplicadas pelos jogadores frente à obsolescência programada de seus aparelhos e à imposição de novos ritmos (atualizações) pela Garena. “Sempre fiz. Tem gente que usa também maisena, que coloca a maisena nos dedos, passa na lateral. Fica melhor”, avaliava.
[J7] Eu já fiz [uso] de óleo de cozinha também, passava um pouquinho no dedão pra deslizar melhor. [...] Tem creme que você passa no corpo; passa um pouquinho no dedo, fica melhor também de deslizar. [...] Tem gente que faz de vários jeitos.
J3, cujas configurações do seu smartphone, como dito, figuravam entre as melhores, era um dos que utilizava um creme para passar no dedo, “pra deslizar bem ali na tela”. Alguns de seus companheiros, por outro lado, “passavam um óleo depois também, na pontinha do dedo, pra deslizar melhor”. Outros jogadores, no lugar da oleosidade, faziam uso do talco para atender a mesma função: facilitar a sensibilidade, o movimento e o deslizar dos dedos pela tela. J8, por exemplo, explicava que alguns jogadores “pegava[m] um pouco de talco, jogava[m] na mão e um pouquinho por cima das telas”. Ele, porém, nunca foi adepto da prática, embora acreditasse que a tela ficaria mais lisa. “Só que se jogar o talco e suar ferraria com tudo. Por isso que a oleosidade eu acho que sempre foi o melhor”, avaliava. J10, depois de testar essa mesma técnica, desistiu de utilizá-la. Em suas palavras, “faz[ia] uma sujeira danada”.
Outros membros do movimento, contudo, usavam o talco com frequência em suas práticas competitivas. É o caso de J9: “eu e um menino aqui, principalmente, que jogava com a gente, usamos. Ele sempre teve o costume de usar talco. Ele levava um potinho de talco, quando era campeonato presencial. Passava no dedo e passava na tela, [por]que ficava bem lisinho”, descreveu. Por vezes, J9 fazia uso de alguma solução oleosa ou da própria oleosidade do rosto. Falava sobre essas experiências com tranquilidade, reforçando a normalidade dessas práticas, assim como muitos daqueles que acompanhei: “todo mundo que já jogou já fez”.
J10, como a maioria dos jogadores, preferia o óleo do próprio corpo: “eu passo [o dedo] no rosto, assim mesmo, pra pegar um ólinho natural”. Seu objetivo, com isso, tal como tantos outros, era melhorar o toque na tela, facilitar a gesticulação dos seus dedos e, consequentemente, sua gameplay. “Fica mais solto”, defendia. A partir de uma percepção mais específica sobre sensibilidade enquanto ajuste disponível no jogo, discordava de outros jogadores, acreditando que a configuração não era afetada pelos métodos improvisados: “o que vai mudar é você conseguir passar o dedo na tela do seu celular mais rápido. Isso aí muda”, explicava J10.
Por outro lado, a luva, considerada por J7 “meio que uma gambiarra”, é vista pelo movimento como um acessório que melhora a experiência e o desempenho de um jogador, dispensando o uso das técnicas informais mencionadas anteriormente em relação à sensibilidade. Sua definição como “gambiarra”, no entanto, é controversa - e talvez a presença do adjetivo “meio” em sua fala demarque esse aspecto. Interlocutores como J4 descrevem esse aparato como um acessório profissional voltado para gamers, um componente “específico, bom pra jogar mesmo”, voltado para a melhoria da sensibilidade. Com a luva, dizia J7, o “dedo desliza melhor, não sua o dedão também”.
J4 costumava usar este acessório, às vezes, para evitar o suor nas mãos. Antes, utilizava um saco plástico para melhorar a responsividade da tela ao toque e para evitar a transpiração excessiva: “pegava, cortava o saco e fazia que nem uma luvinha”, dizia ele. Era assim que prevenia o suor na tela, “pra não ficar áspero e pra sensibilidade do toque tá tranquila [...], pra não travar nada”. J7 também chegou a empregar esta mesma técnica por algum tempo, até que um dia a sacola plástica que utilizava rasgou. J9 foi outro jogador que se valeu do acessório durante certo período, mas não se adaptou bem. J8, contudo, nunca testou a luva. J10, de maneira semelhante, passou grande parte de sua estadia no movimento sem nunca ter experimentado o utensílio. Testou por um curto período, durante a TFFF, mas também não se adaptou.
A relação corpo-tecnologia e o uso de fluídos corporais e outras materialidades (blusas, panos e outros produtos) para aperfeiçoar a fruição da experiência em jogos, fazendo com que equipamentos funcionem melhor, é uma velha conhecida das comunidades de jogadores e da história do meio. Prova disto é que esses diálogos, não raro, direcionavam nossas conversas até experiências semelhantes com fitas e controles de videogames. J4 recordou, por exemplo, de sua experiência com o console PlayStation 2 e o uso da blusa para realizar combos e habilidades em jogos de luta. Tudo isso era “muito bom”, dizia J5, outro jogador. J8 também mostrava igual entusiasmo: “[é] cada marmota, cara, que você faz, assim... é foda!”. A dimensão dessas experiências ressoa com a noção de embodiment (traduzida livremente como “encarnação”, “corporificação” ou “incorporação”), que enfatiza como os corpos são mediadores fundamentais na experiência de jogo. Estudos como os de Giddings (2009) sugerem que a interação com dispositivos tecnológicos não é apenas funcional, mas transforma percepções corporais e práticas sociais.
De fato, a relação entre corpo e tecnologia, especialmente no contexto dos videogames e dos esports, vai além de uma simples interação funcional entre jogador e dispositivo. Ela envolve uma imbricação entre o corpo humano e os meios tecnológicos, na qual o corpo não é visto apenas como uma contraparte passiva ou reativa, mas como elemento integrante de um campo dinâmico que se adapta, modifica e até potencializa o uso dos dispositivos. Essa materialidade híbrida entre o corpo e a tecnologia tem sido explorada de diferentes maneiras, especialmente por comunidades brasileiras de FF que buscam otimizar a experiência de jogo a partir de fluídos corporais, vestuários, acessórios e estratégias pouco convencionais.
Em muitos casos, o uso da oleosidade corporal ou o emprego de acessórios e substâncias na tela para modificar a interação com o aparelho é um tipo de gambiarra que não apenas revela a engenhosidade dos jogadores, mas também como a tecnologia, no seu formato mais bruto, é modelada pela necessidade humana - e vice-versa. O que era inicialmente visto como uma limitação técnica (como a falta de resposta adequada da tela do smartphone ou o superaquecimento de aparelhos) transforma-se em um ponto de contato entre corpo e máquina, onde o primeiro interage com o segundo de forma a superar determinadas limitações. Além disso, esse processo também molda reflexivamente as práticas sociais dentro do movimento. O compartilhamento dessas técnicas e estratégias de adaptação entre jogadores cria uma cultura onde a técnica se mistura com a subjetividade do jogador, e na qual as práticas sociais e os recursos tecnológicos se tornam indissociáveis.
Como argumenta Fragoso (2017), a escala menos enfatizada em todas as abordagens da “virada material” dos game studies é a humana. Apperley e Jayemane (2017) reconhecem que os impactos das materialidades dos jogos nos corpos individuais e coletivos é um tópico ainda pouco explorado e uma área potencial no campo, cujas preocupações materiais podem se desenvolver. Fragoso (2017) aponta que as ausências são manifestas na presença física dos aparelhos usados para jogar, no contexto imediato onde o jogo é praticado e nos corpos dos jogadores.
Essa discussão aborda uma importante lacuna nos game studies ao enfatizar que a dimensão humana frequentemente é relegada a segundo plano na análise das materialidades dos jogos. Isso implica numa subvalorização dos impactos físicos e contextuais que os jogos produzem nos corpos dos jogadores e nos espaços onde ocorrem as práticas lúdicas. Uma análise que complemente essa perspectiva pode explorar como as materialidades afetam a experiência dos jogadores em diferentes escalas e níveis micro e macro. No nível micro, é crucial examinar como os dispositivos moldam diretamente a interação física e emocional dos jogadores, seja por meio da ergonomia de um controle, dos impactos sensoriais de tecnologias imersivas como a realidade virtual ou, a exemplo deste artigo, do uso de práticas e técnicas táteis em interfaces móveis que exigem interação humano-máquina por toque, conhecidas como touchscreen.
No nível macro, os contextos em que o jogo é praticado - como lan houses, eventos de esports ou mesmo os espaços domésticos - influenciam as dinâmicas sociais e a formação de identidades dos jogadores. Esses ambientes não apenas acomodam o jogo, mas também reconfiguram interações sociais e acessos materiais, muitas vezes mediados por desigualdades socioeconômicas e culturais. Tal perspectiva permite conectar os impactos das materialidades (digitais) do jogo às estruturas sociais mais amplas, alinhando-se ao esforço de Fragoso (2017) em destacar as ausências na análise da materialidade do meio.
Por fim, incorporar a escala humana ao estudo das materialidades dos esports pode revelar como os jogos não só respondem às condições materiais e socioculturais, mas também intervêm ativamente sobre elas. Isso amplia o campo dos game studies, colocando-o em diálogo com disciplinas que investigam o corpo, o espaço e a materialidade de forma integrada, como a antropologia e os estudos de mídia.
Troca de aparelhos e emprego de diferentes gambiarras, marmotas, técnicas ou macetes, para usar o vocabulário característico das cenas comunitárias de FF, fazem parte do rol de estratégias adotadas por alguns jogadores para se adaptarem às condições precárias de seus artefatos, às alterações de ritmo determinadas pela Garena e para se manterem presentes e ativos no movimento - indicando, portanto, alguns dos seus modos de fazer-FF. A descrição dos aspectos materiais relevantes da experiência de jogadores com dispositivos digitais de comunicação e informação revela formas como, em alguma medida, esses artefatos materializam a experiência de jogar em cenários específicos. Essas competições, aliás, são de interesse antropológico, porque são performativas, instâncias esportivas na maioria das vezes espetacularizadas e monetarizadas, tornando-se também um campo de aspiração para parte da juventude contemporânea.
Como apontam Messias et al. (2019, p. 84), “mais uma vez, as estratégias para contornar a precariedade trazem novas iniciativas e um certo grau de aptidão tecnológica e métodos em circunstâncias sociopolíticas e econômicas não muito ideais”. Logo, se as características materiais dos smartphones, no movimento comunitário em FF, estão associadas à integração da comunicação com movimento, práticas esportivas, de lazer e de renda, se a capacidade de superar suas barreiras socioeconômicas e espaciais como obstáculo é o que os jogadores extraem desses artefatos, é possível afirmar que sua materialidade está na capacidade de superar outras materialidades.
De fato, vejo na combinação dos smartphones com o cenário comunitário de FF uma relação altamente sinérgica. No interior de um movimento, os objetos destinados à finalidade de mover têm o poder de intensificá-lo e ampliar sua existência. Eles não são, portanto, dispositivos que induzem movimentos em meio a um contexto inativo, mas sim artefatos que, quando integrados ao movimento, torna-o mais poderoso, tanto em termos de alcance quanto de velocidade (Biondi, 2014). À primeira vista, o uso dos smartphones pelos jogadores parece não se distinguir em nada da visão convencional acerca desses aparelhos: são objetos que estão à serviço do uso humano. O que meu esforço etnográfico demonstra, no entanto, é algo diferente: que as distintas materialidades envolvidas colaboram para produzir um “humano” que, por definição, é atravessado por “coisas”, como nos lembram as análises de Giddings (2009), Miller (2005, 2013), Latour (2005) e Taylor (2009, 2012, 2022). Isso abrange desde a infraestrutura de comunicação e distribuição da rede nas diferentes regiões do Brasil até a oleosidade dos corpos implicados dos jogadores. Além disso, a particularidade desses dispositivos nos esports reside no apoio que oferecem aos cenários competitivos locais.
É fundamental lembrar que, estejam os jogadores restritos em algum aspecto, em razão de alguma mediação espacial, tecnológica ou sob a constante ameaça dessas mediações, suas capacidades de mobilidade pelos espaços físicos são limitadas, principalmente durante uma pandemia. Os smartphones, por outro lado, dão condições a uma maneira distinta de ocupar territórios (Winocur, 2009), de participar e ser membro de um cenário competitivo brasileiro que não mais depende de proximidade espacial ou de ilhas de comunicação. Ao me concentrar na relação entre jogadores, competição e dispositivos, trouxe à tona, embora brevemente devido à extensão do trabalho, a estrutura competitiva na qual essas práticas ocorrem. Também mostrei o quanto esses aparelhos permitem uma ampliação significativa do alcance e da presença de várias cenas comunitárias, bem como as participações que são facilitadas graças ao potencial que eles possuem.
Ao serem considerados objetos no mundo, meu trabalho etnográfico evidencia o quanto os jogos digitais passam a se conectar a diversas instâncias de relevância global (Apperley e Jayemane, 2017), incluindo o impacto das questões ambientais, em especial as mudanças climáticas, nas materialidades, na performance dos objetos técnicos e na fruição das experiências de jogo. Por outro lado, a substituição de teclas e botões analógicos pelas possibilidades de exploração do contato da tecnologia com o corpo, por meio de práticas e técnicas táteis em interfaces móveis sensíveis ao toque, traz à superfície um debate sobre materialidades digitais que amplia as complexidades e especificidades em torno dos videogames, dos esports e da forma como eles são jogados em dispositivos móveis, sobretudo em contextos não muito ideais. Aliado a isso, os atravessamentos de classe, étnico-raciais e espaciais, por exemplo, adicionam outras camadas na percepção das experiências nos esports. Esses aspectos constituem pontos cruciais para futuros estudos no intuito de entender a construção de um cenário de esport local, regional e periférico, assim como a forma como essas mediações exercem um impacto direto nas tentativas de profissionalização dentro dessas comunidades.
Espero que meu enfoque possa proporcionar provocações e pontos de entrada produtivos para pesquisadores de jogos que estejam investigando cenários e comunidades em espaços em que as infraestruturas e práticas não correspondam perfeitamente aos estudos provenientes ou focados no Norte Global. Afinal, podemos experimentar o mundo do jogo de forma bastante diferente daqueles que não compartilham nossas mesmas configurações sociotécnicas e privilégios sociais.
Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelos financiamentos concedidos para o desenvolvimento desta pesquisa.
[1] É uma forma abreviada da expressão inglesa “electronic sport”, comumente empregada para descrever o processo de esportivização e profissionalização dos jogos digitais.
[2] Um movimento competitivo é aqui definido como um grupo de jogadores formado com o objetivo de promover práticas de competição esportiva em videogames. A palavra “movimento”, grifado em itálico e com inicial minúscula, é uma expressão móvel que uso para caracterizar a configuração comunitária brasileira de FF.
[3] Poucas foram as vezes nas quais ouvi meus interlocutores chamarem a cena de FF de movimento. Contudo, essas menções esparsas foram as brechas que encontrei para trabalhar, teórica e metodologicamente, um campo em movimento.
[5] No artigo, os nomes dos jogadores são substituídos por códigos (Jogador 1 como J1, e assim por diante) para preservar suas identidades. Além disso, os diálogos apresentados aqui não representam a totalidade dos 42 jogadores com os quais conversei, mas sim aqueles que se envolveram em discussões comigo durante maior tempo e até o final da pesquisa.
[6] No Brasil, o significado convencional da expressão “gambiarra” geralmente envolve construções improvisadas e desviantes. A origem etimológica do termo deriva da palavra italiana “gamba”, que se traduz como “perna” (Messias, 2020).
[7] FPS é uma abreviação derivada do inglês frames per second, isto é, “quadro por segundo”. Em jogos, isso se refere à frequência com que uma imagem é atualizada na tela em um segundo. Quanto maior o FPS, mais suave e fluída será a experiência de jogo. Manter um FPS estável é fundamental para evitar atrasos e interrupções em jogos on-line, principalmente quando consideramos que nos esports jogadores precisam ver as animações e reagir em frações de segundos.
[8] A expressão ping é uma contração inglês de Packet Internet Network Grouper, um termo utilizado com frequência nos jogos on-line para se referir a latência da conexão.
[9] Em jogos para dispositivos móveis, a sensibilidade é um termo que se refere à configuração que ajusta o grau de resposta dos controles na tela ou do movimento do cursor em relação às interações do jogador. Ela afeta a velocidade da câmera ou mira, a resposta dos botões virtuais e o toque na tela, variando de acordo com o estilo de jogo, preferências pessoais ou limitações de dispositivos. A sensibilidade é especialmente importante em jogos competitivos, nos quais a precisão dos toques e movimentos no display pode determinar o desempenho. A maioria dos jogos permite o controle e a modificação dessas configurações, mas alguns jogadores ajustam essa sensibilidade com métodos improvisados para melhorar o contato entre o dedo e a tela, reduzindo deslizes ou falhas. Em FF, por exemplo, a sensibilidade influencia na precisão dos tiros e facilita a técnica de eliminar oponentes com tiros na cabeça (headshot) de forma mais rápida, a partir da rapidez da mira dentro do jogo.
[10] É uma prática baseada na clonagem ou na compra de um chip no nome de terceiros. Do ponto de vista jurídico, é uma atividade considerada ilegal e enquadrada no artigo 171 do Código Penal Brasileiro. Da perspectiva de jogadores na periferia dos esports, é a única opção para ser incluído dentro de uma experiência esportiva em videogames.