0000-0002-2091-6839 Danielli Vieira[1][2][*]
O presente trabalho tem por base discussões presentes na tese da autora acerca da experiência de adolescentes na vida do crime (Vieira, 2014).1 Os interlocutores da pesquisa foram meninas e meninos que viviam em uma Casa de Semiliberdade - uma das medidas de responsabilização nos casos de infrações penais cometidas por menores de 18 anos e previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990). A partir da pesquisa de campo, centrada na escuta de narrativas, analisou-se a diversidade de processos, de linhas de subjetivação que perpassam tal experiência.
As narrativas constituem um meio de falar sobre eventos anteriores em que necessariamente aparece a dimensão moral (percepções, valorações), bem como um ponto de vista ou um “sujeito em mudança”, que se constrói na narrativização. De acordo com Renato Rosaldo (1993), que tece seus comentários com base na concepção de Ricoeur, as narrativas modulam as experiências temporais, e estas, por sua vez, dão corpo às narrativas. Nelas há um agenciamento retrospectivo da experiência, uma seleção e uma interpretação pautadas por um ponto de vista localizado no presente. Assim, as narrativas não são tanto representações da experiência, mas são constitutivas dela, modulam-na (Bruner, 1986; Rosaldo, 1993). É a partir dessas considerações que se pode falar em termos de um sujeito (ou de posições de sujeito) que emerge(m) ao narrar, que se constitui(em) nesse processo. Nesse sentido, as narrativas podem ser um valioso meio para o acesso aos sentidos que as pessoas dão às suas experiências, bem como às suas visões de mundo e às suas avaliações morais. A partir desse tipo de relato, é possível, também, identificar figuras de sujeito que emergem no processo de contar uma história, de contar sua história, bem como algumas das linhas de subjetivação que atravessam os narradores.
Na análise da “experiência” de jovens no crime, perspectivou-se crime como categoria nativa que expressa um modo de vida e experiência como noção que articula discursos de saber, normatividades e formas de subjetividade. Buscou-se, assim, ultrapassar o enquadramento da questão jovens/crime como problema social em si e que resulta em teorias exógenas nas quais predomina a definição dos jovens a partir da ideia da transgressão à lei e à norma bem como por rever as articulações entre as categorias sujeito e violência.
Seguindo os marcos teóricos (Rifiotis, 2006) que têm norteado as pesquisas no âmbito do Laboratório de Estudos das Violências/UFSC, marcou-se um afastamento em relação a perspectivas que pressupõem o sujeito bem como o que seria violência. Além disso, a pesquisa que informa o presente artigo, situa-se em um quadro de etnografias sobre a “vida no crime” no Brasil (Feltran, 2008; Marques, 2009; Biondi, 2010; Damasceno de Sá, 2010; Lyra, 2013; Rifiotis, Vieira, Dassi, 2016) que comungam a preocupação em evidenciar os sentidos que os próprios sujeitos dão às suas experiências. Nossa pesquisa (Vieira, 2014) centrou-se nos processos de subjetivação dos adolescentes em pauta, nas suas linhas de incorporação (abolição) e de resistência (fuga) (Foucault, 2009a; Deleuze, 2005),2 articulando moral, subjetivação e crime.
Para os fins deste artigo, são trazidas as reflexões em torno das ações estatais centradas na vigilância, no controle e na punição dos chamados “adolescentes em conflito com a lei”. Pensa-se a dimensão moral e política que atravessa os discursos e práticas sobre tais sujeitos, na gerência do Estado sobre eles via processos de judicialização, institucionalização, “ortopedias morais”. Também são discutidos os efeitos desses processos na produção de subjetividades bem como as resistências dessas meninas e meninos.
A história das crianças e jovens pobres no Brasil é marcada por dispositivos de controle e de tutela, de repressão, de vigilância e até mesmo de extermínio (Vicentin, 2005; Lyra, 2013). A regulação normativa das condições de vida da população infanto-juvenil é relativamente recente no país. Até meados do século XIX, o atendimento era de cunho filantrópico-caritativo. Em 1830, foi instituída a Doutrina do Direito Penal do Menor, que tratava das situações de delinquências praticadas por menores de idade. Data de 1927 o Código de Menores. Na época da ditadura militar (anos 60, 70), a Doutrina do Menor em Situação Irregular, que, como nas outras legislações, regulava as exceções e apresentava um caráter essencialmente punitivo (Veronese e Vieira, 2006).
Mais recentemente, nos anos 90, a Doutrina da Proteção Integral, presente tanto na normativa internacional -Convenção dos direitos da Criança, ONU/1989- quanto na nacional -Constituição Federal de 88 e Estatuto da Criança e do Adolescente-, dirige-se a todas as crianças e adolescentes e perspectiva essa população como “sujeitos de direito” (Rifiotis, 2012). De acordo com esta Doutrina, as crianças e os adolescentes, pelo “estado peculiar de desenvolvimento”, devem ter prioridade absoluta na garantia e efetivação de seus direitos.
No que toca às infrações, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Nº 8069/1990) propõe medidas de responsabilização de caráter socioeducativo para as pessoas com menos de 18 anos (então, penalmente inimputáveis). Estabelece, por exemplo, que as diferentes medidas são aplicadas de acordo com a capacidade de cumprí-las, as circunstâncias e a gravidade da infração; que a medida de internação deve dar-se em estabelecimento educacional e que, durante o cumprimento de tal medida, serão obrigatórias atividades pedagógicas.
Em relação ao ECA, como desenvolve Claudia Fonseca (2004), é importante ressaltar que embora resulte de muitos diálogos com movimentos da sociedade civil, o documento é também fruto de uma forte influência do exterior e dos fóruns de debates internacionais. Além disso, em nossos pesquisas foi possível perceber que há uma série de elementos no Estatuto, no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, bem como nas práticas dos que atuam nesse último, que diminuem a responsabilidade do Estado e a deslocam, especialmente, para a família e para os próprios sujeitos (crianças/adolescentes).3
Na prática, mesmo após o Estatuto da Criança e do Adolescente, a estrutura dos Centros de Internação permaneceu sob os moldes prisionais, bem como persistem as práticas punitivas.
A pesquisa para a minha dissertação foi realizada em instituições de internação -locais em que viviam longos períodos de isolamento e privados de liberdade. Nesse contexto, chamou a atenção uma acentuação da dimensão de estar no veneno e da narração como possibilidade de desabafar, de colocar para fora o que eles chamavam de veneno, de tudo que é ruim, que é acumulado dentro da pessoa e pode fazê-la sofrer. Em contrapartida, eles ressaltavam que o “veneno fortalece” (Vieira, 2009, pp. 100-102).
Os adolescentes frisaram, ainda, a condição de sofrimento que prevalecia quando internados. Contudo, não relataram diretamente situações de torturas, castigos extremos sofridos no interior das instituições. Anos depois, durante o campo para tese, na Casa de Semiliberdade, despontou uma série de relatos sobre torturas, violações, castigos vivenciados no interior das instituições de internação e na rua.4
Seguem alguns relatos das meninas e meninos sobre humilhações, torturas, espancamentos, castigos que, de acordo com eles, ocorreram dentro de unidades de internação (provisória ou definitiva) para cumprimento de medida socioeducativa e na rua, levados a cabo por “monitores” e monitoras ou por agentes policiais. São relatos que falam de uma presença estatal que deixa marcas visíveis no corpo e com efeitos mais difíceis de descrever no que toca aos aspectos da “alma” -psicológicos, psíquicos, subjetivos (Vieira, 2014).
Passei veneno naquele lugar, foi horrível, acho que foi a pior parte da minha vida. Ficar presa. [...] Algumas (monitoras),5 sabe, elas humilhavam a gente, sabe? Elas pisavam na gente (choro), elas faziam o que queriam com nós. Eu chamava alguém e pedia para me ajudar. O seu (gerente da instituição), coitado, tentava, não podia. (Mayara Patrícia, Casa de Semiliberdade, junho de 2011).
Essa menina, de acordo com seu relato, entrou depois num estado de depressão, machucava o próprio corpo e continuava a ser agredida pelas monitoras. Começaram a medicá-la de modo que ficava, em suas palavras, “praticamente anestesiada”:
Elas diziam que eu era louca, aqui (mostra as mãos) elas apertavam na mesa com a unha, sabe? E deixaram tudo marcado.... ô, cara... Eu tava com as pernas todas rochas, sabe? Eu tenho marcas, assim, até hoje. Não sei de dá de ver. Tem uma aqui, ó ( mostra marca na perna), até hoje. Elas te deixavam com as pernas presas? Eu ficava, olha só como eu ficava, vou mostrar (pernas e mãos atadas). Mas o dia inteiro? É, uma vez eu fiquei das oito horas até as dez da noite. Elas diziam que era pra eu não me machucar. Mas não era pra eu não me machucar, era pra eu não chutar a porta e pro gerente não vir, sabe? Pra ele não ver eu toda machucada. Quando o gerente chegou e me viu toda machucada... Lá não podia ter unha grande, sabe? Foi por isso que o gerente se ligou. [...] Daí, ele viu eu toda machucada. E eu tava com um lençol na boca. Elas botaram um lençol na minha boca pra eu não berrar e chamar ele. (Mayara Patrícia, Casa de Semiliberdade, junho de 2011).
Cabe ressaltar aqui a questão da medicalização como forma de controle e mesmo de punição, bem como a acusação de “loucura” para a legitimação daquele tipo de tratamento em relação à menina.
Seguem relatos de dois meninos acerca de uma situação que parece ser corriqueira, de acordo com vários interlocutores. No momento em que são apreendidos por policiais, antes de serem levados às Delegacias de Polícia, levam surras, choques, etc.
Os policial da BOPE, quando me pegaram, quase me mataram. Deram um monte de choque, quase me mataram. Tive que fingir que tava quase morrendo pra eles parar de bater. Antes de chegar na DP...Eles levam pra algum lugar? Me levaram lá no (...) desativado. Me levaram lá, quase me mataram. E, quando chega na DP nesse estado, o delegado não pergunta nada? Pergunta, mas nem adiantava nada. O delegado lá perguntou, né, se tinham me batido, pá. Daí o policial pegou assim no meu pescoço, que era pra falar que não tinha acontecido nada. Mas não fica marca? Eles batem no corpo? Aqui, ó, foi do dia que eles me pegaram (mostra cicatrizes). Esse machucado aqui foi do dia que a polícia me pegou. Cada vez que prendia, eles me batiam. Ou me catavam na rua. Quando eu tava foragido daí eu nunca, não tinha deixado eles me catar. (Erik, Casa de Semiliberdade, 2011)
Uma vez, também, nós fizemos outro assalto. Aí nós corremos pra nossa casa [...] aí, nós dentro de casa. [...] Daí eles vieram pedir o dinheiro. E nós não tinha, não tinha dinheiro a mais junto com nós, né? Nós falava que não tinha dinheiro e que não foi nós. Daí os policiais chegaram, me cataram e jogaram... Nós tinha bebida de álcool dentro da casa... Tacaram a bebida de álcool em mim e queimaram a minha perna aqui. Tacaram fogo aí? Não, com a maquininha de choque. Foi maquininha de choque. E, quando você tava machucado, você foi pra um hospital? Não. O machucado ficou... Ficou em carne viva. Só a minha mãe que trazia as coisas pra mim sarar. (Luis Paulo, Casa de Semiliberdade, 2011).
Os trechos a seguir referem-se a situações que ocorreram, segundo os interlocutores, no interior de instituições para o cumprimento de medidas socioeducativas de internação.
Paguei castigo, fiquei um mês de castigo. Como é que era esse mês? Ficava trancado..?. Trancado. Só dentro do quarto, só dentro do quarto, dentro da jega - um quartinho pequeninho. Um mês, sem pegar sol, sem nada. (Jonas, Casa de Semiliberdade, 2011). [...] Dormi uma semana, também, de algema e marca-passo, sem colchão. Sem tomar banho, sem nada? Sem nada. Uma semana de algema... na perna também? No chão? No chão. E nessa semana o que você ficava pensando? Eu ficava só sentado. E pensando nas coisas... Mas e comida? Daí a comida eles só passavam na ruelinha, daí eu pegava e comia de algema. (Jonas, Casa de Semiliberdade, 2011).
[...]. Aí eles entravam no CIP lá, e só eu apanhava. E a dona deixava eu apanhar. Ela ligava pra fazer revista, eles já entravam lá dando tiro, bala de borracha, na parede, não tem? Só pra assustar nós. A gente ficava pelado, botavam spray de pimenta no nosso rosto, nas nossas partes, não tem? Daí ali uma vez eu pensei em fugir, né? Daí eu vi, “Vou aguentar, né? Se eu fugir, vão me matar, a mesma coisa; eles querem me pegar”. Eu pensei na minha mãe, aí fiquei. Fazer o quê? (Jeferson, Casa de Semiliberdade, 2011).
Em uma conversa com um dos meninos após uma palestra que fiz para os “socioeducadores” e técnicas de instituições de internação, ele me perguntou se eu tinha falado que seria melhor se eles não batessem mais nos internos, etc. Defendeu que deveriam colocar câmeras internas em toda a instituição: “assim ia dá pra ver se a gente fez pra merecer ou não”. Eu disse que assim eles seriam vigiados o tempo todo, e ele disse que não fazia mal: o ruim era apanhar injustamente. Entre os castigos arbitrários e a vigilância, ele preferia esta última. O “ser visto” a todo tempo parece melhor do que o “ser pego e castigado” a qualquer tempo.
Os relatos podem ser lidos de diversas maneiras. Constituem por eles próprios a denúncia de um sistema que se pretende socioeducativo. Essas narrativas falam da prevalência de práticas punitivas pautadas pelo suplício, pelo castigo e pela tortura em tempos de regime democrático e aplicadas justamente ao público ao qual foi preconizada uma condição diferenciada no que tange ao sistema penal.
Mas aqui é lugar de procurarmos ir além da denúncia e da indignação, do mal estar e da tristeza que sentimos ao ler cada relato; de fortalecermo-nos com o “veneno” assim como esses meninos e meninas se fortalecem e procurar compreender o que tais situações produzem além de abuso e de vitimização.
Uma leitura mais analítica dessas situações poderia estar na elucidação de como a tortura, as violências em relação ao corpo e à mente são significadas por esses sujeitos e como atuam em suas constituições subjetivas. Acerca desse aspecto, remeto ao belo trabalho de David Le Breton (2010) no qual ele analisa, dentre outras “experiências da dor”, a tortura como “fratura de si”. Na análise de Le Breton sobre pessoas que sofreram torturas -no contexto de situações de guerra e de governos ditatoriais-, predomina a ideia de “implosão do sentimento de identidade”, de “fratura da personalidade”. Não creio ser esse o caso nas experiências dos adolescentes contatados. Eles relatavam as situações de tortura e dos castigos recebidos sem bloqueios. As marcas, as cicatrizes entre eles não são escondidas, não são motivo de vergonha - ao menos em nossa interação e entre eles -, mas são apresentadas como um sinal de força, de sobrevivência, de caráter/ética, como no caso de resistir e não delatar os companheiros. Como aprendi com eles, na constituição de seus corpos e mentes o “veneno fortalece”. A passagem por essas situações compõe a “vida no crime”, é uma de suas faces de sofrimento, mas é encarada como uma parte mais ou menos esperada, assim como “hospital, cadeia, caixão”.
Essa questão da normalidade, da não interpretação das situações em termos de “trauma” e de sua ressignificação em termos de “fortalecimento” nos leva a pensar sobre quais são os intoleráveis, os abusos para esses jovens; o que para eles extrapola, o que para eles é violência. No caso dos meninos e meninas que passam por diversas situações de violência nesse contexto, dos que vivem um profundo “envolvimento com o crime” e que afirmam ter consciência das consequências, inclusive uma possível morte violenta - “caixão”, tenho a impressão de que vão constituindo um corpo e uma “mente” resistentes a toda forma de violência dirigida a eles próprios. Para a maioria desses, a “vida longa, segura” não é um valor central, e a dignidade de uma pessoa parece concentrar-se no “respeito” e na “consideração” que ela atribui a outrem e que a ela são atribuídos. O sacro, o intocável podem ser, por exemplo, figuras como as mães, as avós e mesmo os objetos que remetem a elas. Vale mais morrer como “sujeito homem” do que viver o resto dos dias como delator, “traíra”, “verme”. Um tapa na “cara” pode ser pior do que um espancamento. Algo próximo pode ser encontrado no trabalho de Claudia Briones y Marcela Tomás (2013) sobre “Sentidos y territorios vivenciales de violencias y violentamientos en situaciones de encierro.” Em relação às violações descritas pelas autoras, o que internos consideravam abuso se relacionava à ideia de desrespeito, especialmente no que toca a situações que repercutiam de alguma forma em pessoas pelas quais eles tinham afeto.
É importante lembrar que a consciência da possibilidade de morte violenta - seja em confrontos, seja por “pisadas” - e o foco na intensidade das experiências e não em sua extensão não devem ser tomados como desleixo com a vida. Há uma vontade de vida nessas vidas que se sabem breves. Essa vontade se manifesta nos agenciamentos, nas contra-sujeições que estão presentes em momentos tão limítrofes.6
Uma das maneiras encontradas pelos adolescentes para resistir e para fazer algo diante das violações no interior das instituições é a rebelião. Alinho-me aos argumentos de Maria Cristina Vicentin (2005), que perspectiva as rebeliões como “acontecimentos-resistência”, como “linhas de fuga” ante os aparatos de repressão, vigilância e extermínio. Durante um dos dias da pesquisa na Casa, chegaram alguns adolescentes “novos” após uma rebelião em um Centro de internação. Eles me perguntaram se eu sabia do acontecido: “Quebramo tudo”. Relataram que estavam apanhando frequentemente dos monitores. De acordo com os jovens, eles - dois, três ou mais -, entravam nas celas, batiam, davam chutes e choques. O diretor da instituição teria mesmo demonstrado pena em certa ocasião diante do estado em que estava um dos internos, contudo fez “vista grossa”. Segundo os adolescentes, a gota d’água foi um tapa no rosto de um dos internos. Aí vale lembrar o que discuti acima sobre o limite do tolerável, que, nesse caso, parece ser mais moral do que físico -a “humilhação” é o que não se admitiu. Contaram, ainda, que, no dia em que se rebelaram, foram destruindo tudo com chutes e que, com as pedras de concreto das coisas quebradas, acertavam o resto. A Polícia Militar foi chamada. Antes de ser algemado, um deles ainda bateu em um dos monitores. Foram para o pátio com as mãos para cima e deviam também tirar a roupa, ficando apenas com a roupa de baixo. Quem estava sem cueca ficou sem nada mesmo. Ainda, segundo o relato, ficaram de joelhos em frente aos policiais e começaram a cantar uma música cuja letra dizia: “Matar os polícia é a nossa meta” (Apologia, MC Daleste). Perguntei se eles não tinham medo, e eles disseram que não: “os caras” não podiam matar eles ali; e, se matassem, “fazer o quê? Essa vida é isso mesmo. O cara sabe que vai morrer”. Resistir, mesmo ou principalmente diante da possibilidade da morte, é uma maneira de tornar-se sujeito, de não ser apagado, subsumido, violado.
No próximo item, passar-se-á à descrição e à discussão das experiências vividas na Casa de Semiliberdade e no Serviço que aplicava a medida de Liberdade Assistida. Nesses dois contextos, não observei e nem ouvi relatos de práticas de espancamentos, torturas, castigos corporais, etc. Eram locais em que predominava a ideia de socioeducação; as práticas iam no sentido não da punição, mas da “responsabilização”, da “ressocialização” via procedimentos de formação, de educação formal e informal, de atendimentos com as técnicas, de convívio com educadores, etc. Contudo, os dados etnográficos nos fazem concordar com Foucault quando ele aponta que, nas revoltas nas prisões à época em que escreveu Vigiar e Punir (2009a), o que estava em questão não era o quadro rude demais ou ascético demais. Tratava-se de protestos contra o próprio corpo da prisão, questionava-se sua materialidade enquanto instrumento e vetor de poder: “era toda essa tecnologia do poder sobre o corpo, que a tecnologia da “alma” -a dos educadores, dos psicólogos e dos psiquiatras- não consegue mascarar nem compensar, pela boa razão de que não passa de um de seus instrumentos” (Foucault, 2009a, p. 33).
Em vários discursos e práticas que acompanhei nas pesquisas na Casa de Semiliberdade e no Serviço da Liberdade Assistida apareceram avaliações, julgamentos, inferências sobre a falta ou a precariedade moral desses jovens, de suas famílias, de sua classe social, de seu mundo. Junto com os julgamentos repreensivos e depreciativos, vinham sempre os conselhos, as proposições, os ensinamentos acerca da boa “fôrma”, do processo de socialização bem realizado, das maneiras apropriadas de pensar e de se estar no mundo, da “cultura” ideal.
Esse tipo de atitude não é exclusiva do sistema socioeducativo catarinense. Maria Cristina G. Vicentin (2005), por exemplo, fala do aparato institucional brasileiro destinado ao controle e gestão da infância marcado de um lado por práticas violentas e de outro por modalidades de sujeição - para a autora, igualmente violentas. Dentre essas últimas, estariam as “modelagens psicossociais”: “[...] a imposição de regras e normas que contrastam com os modos de ser e de estar de seus tutelados” (Vicentin, 2005, p. 28).
Também Sara R. Munhoz (2013), em etnografia sobre o atendimento em um núcleo de medidas socioeducativas em meio aberto, revela que as ações voltavam-se às áreas consideradas condicionantes para a formação cidadã dos meninos: escolarização, documentação, relacionamento familiar adequado, profissionalização. Assim, no cotidiano dos atendimentos os técnicos visitam as casas dos adolescentes, elaboram pareceres sobre a “dinâmica familiar”, orientam sobre “como se comportar/vestir em entrevistas de emprego”, visitam as escolas quando os meninos apresentam problemas disciplinares, controlam o número de passes de ônibus e metrô que cada um pega de forma a restringi-los ao número necessário para frequentar o local de atendimento , evitando “financiar seu vício” com os vales-transportes oferecidos.
Além disso, não se trata, ao que parece, de uma particularidade das políticas contemporâneas de controle e institucionalização da juventude pobre. Veja-se, por exemplo, a descrição que Foucault (2009) faz acerca da prisão para crianças e jovens aberta em 1840. É tal prisão, para Foucault, que marca o período em que se completa a formação do sistema carcerário. Ela é “a forma disciplinar no estado mais intenso, o modelo em que concentram todas as tecnologias coercitivas do comportamento” (Foucault, 2009, p. 278). Nela há uma superposição de modelos (da família, do exército, da oficina, da escola e do judiciário) que permite determinar a função de “adestramento” em sua especificidade:
Os chefes e subchefes em Mettray não devem ser exatamente nem juízes, nem professores, nem contramestres, nem suboficiais, nem “pais”, mas um pouco de tudo isso e num modo de intervenção que é específico. São de certo modo técnicos do comportamento: engenheiros da conduta, ortopedistas da individualidade. (Foucault, 2009, p. 279, grifos nossos).
Em Vigiar e Punir (2009), é possível encontrar outro trecho muito instigante no que toca às relações de tutela e de penalização dos pequenos. Trata-se do momento em que Foucault discorre sobre a função dos noticiários policiais na produção da delinquência. Cita também alguns “contranoticiários” que, por sua vez, questionavam a justiça penal, como o La Phalange. Um dos personagens desse último foi Béasse, menino de 13 anos, sem domicílio nem família, acusado de vadiagem e condenado a dois anos de correção. Segundo Foucault, essa criança teria passado despercebida caso “não tivesse oposto ao discurso da lei que a tornava delinquente (mais em nome das disciplinas que em termos do código) o discurso de uma ilegalidade que permanecia rebelde a essas coerções” (Foucault, 2009, p. 275). De um lado, consta a ironia com que o juiz tenta envolver a indisciplina na majestade da lei, e de outro a insolência com que Béasse reinscreve a indisciplina nos direitos fundamentais: “ [...] Todas as ilegalidades que o tribunal codifica como infrações, o acusado reformulou como afirmação de uma força viva: a ausência de habitat em vadiagem, a ausência de patrão em autonomia, ausência de trabalho em liberdade, a ausência de horário em plenitude dos dias e das noites” (Foucault, 2009, p. 275).
Aqui aparece a ideia de que a técnica punitiva não incide sobre os crimes, sobre as infrações cometidas, mas sobre as vidas dos “infratores”, sobre seus corpos, seus gostos, seus valores. No tocante ao nosso trabalho de campo vale ressaltar, nesse sentido, uma fala do promotor de justiça sobre a necessidade da família de um adolescente se estabelecer em um domicílio fixo, pois “ele deve estudar” bem como a postura de alguns operadores do sistema socioeducativo e suas assertivas sobre trabalho, estudos, comportamento.
Cerca de 170 anos depois do embate entre Béasse e o juiz francês, os “nossos” jovens “delinquentes” escutam o seguinte discurso de juízes, promotores, socioeducadores: “Você deve parar de se vestir assim, de falar desse modo. Você deve cuidar da sua saúde, precisa tomar esses medicamentos, e não pode esquecer de tomar a injeção de anticoncepcional. Você é muito novo para se casar e ter filhos, você deve voltar a estudar e deve fazer cursos. Você deve conhecer outro tipo de música, deve aprender a gostar de ler e deve ver outros tipos de filmes. Você tem que arrumar um emprego decente, precisa mudar de vida”.
Deve-se atentar para a questão de que o modelo de referência para a “integração” é o modelo que vigora como “dever ser” entre os que estão incluídos, entre os cidadãos bem sucedidos das classes sociais mais abastadas. Sabe-se que no processo de produção da delinquência produzem-se, ao mesmo tempo, a pobreza e os tipos de infração mais comumente realizados por pessoas dessa camada como criminalizáveis (Foucault, 2009; Baratta, 2011). E, por extensão, há a produção de processos de cunho moralizante que também acionam critérios ligados à estratificação social para criar normas e desvios, para separar, distinguir e controlar.
Contudo, onde há relações de poder, há também resistência. Assim como Béasse, os meninos e meninas de hoje resistem às fôrmas, às ortopedias morais, como na situação em que uma das adolescentes disse à psicóloga que para ela era normal estar “presa”, pois não havia o que fazer, deixando a profissional, dessa forma, perplexa e incomodada. Os vários interlocutores, em sua afirmação de que cadeia é “veneno” mas “fortalece”, lembram-nos a ideia do menino do século XIX de que “dois anos nunca serão mais do que 24 meses”. Nos discursos dos interlocutores de que não são mais “do crime”, mas o respeitam. Nos casos em que constituem família -com alegria e orgulho- aos 16 anos. Nos momentos em que se orgulham de suas tatuagens e cicatrizes. Quando “pagam direitinho” para poder sair logo e, também, quando, prostrados, sem roupas, algemados e levando coices de policiais, cantam na cara deles: “matar os polícia é a nossa meta”. Nas evasões, nas fugas. Resistem aos moldes e expectativas sociais inclusive quando brincam, quando são simplesmente “meninos”. Por um determinado ângulo, também escapam aos enquadramentos ao viverem, paradoxalmente, sob o domínio de diversas regras e limites enquanto se diz que é justamente isso que lhes falta.
Se existem especificidades em relação às ortopedias no mundo contemporâneo, creio que os trabalhos de Didier Fassin acerca das noções foucaultianas de governo e governamentalidade (2004) e sobre economias morais (2009, 2010) podem ser um dos caminhos para pensá-las.
Fassin e Memmi (2004) identificam dois grandes processos em obra nas tecnologias governamentais e que também interessam à nossa análise. O primeiro concerne às formas de vigilância em torno do corpo e das condutas corporais. O segundo processo se refere à gestão das situações com as quais são confrontados aqueles que intervêm sobre os corpos em nome dos poderes públicos. Ao lado da regulação das populações via programas de educação para a saúde e de prevenção de riscos, desenvolve-se um tratamento dos indivíduos que se pretende adaptar às particularidades de cada um, de cada história, de cada problemática. O conhecimento das situações pessoais que autoriza essa abordagem individual tem por corolário uma atenção maior ao sofrimento e à angústia.
Esse tipo de abordagem é muito presente no sistema socioeducativo, basta atentar para a centralidade dos “estudos de caso”, nos quais cada “caso” é pensado pela equipe, especialmente os casos “problema”, bem como para a centralidade dos verdadeiros “dossiês” -chamados de prontuários-, que, mais do que fichas, são um conjunto de documentos que reúne desde os ofícios, despachos legais (Boletins de Ocorrência, representações, etc.), até as avaliações, descrições e relatórios das técnicas sobre a biografia dos adolescentes, suas trajetórias no que concerne às práticas infracionais, o andamento do cumprimento das medidas, o Plano Individual de Atendimento, as evoluções dos atendimentos, os encaminhamentos, entre outros. De acordo com Fassin e Memmi, então, a individualização e a psicologização passam a complementar as formas tradicionais de ação que envolvem racionalidades burocráticas. Acredito que esse quadro geral nos ajuda a entender também o direcionamento da responsabilização pelas condutas dos jovens para suas famílias e para eles próprios, como se tudo pudesse ser reduzido a escolhas individuais, a opções de vida. Além disso, todo o foco do “trabalho socioeducativo”, da “ressocialização” volta-se ao indivíduo, à construção de projetos de vida individuais. Prevalece a ideia de que “ressocializar” é produzir transformações no indivíduo, em seu modo de ser e de pensar, em seu querer. É um governo dos corpos e das almas, das condutas e das convicções.
É preciso, contudo, considerar que há matizes, que os discursos dos operadores dos sistema socioeducativo (desde os técnicos que convivem cotidianamente com os adolescentes até os promotores, juízes) não podem ser interpretados de forma homogeneizante e nem como mera tradução da norma, do Estado, de técnicas de governo. Trabalhos como o de Silvia Guemureman (2011), em sua cartografia moral das práticas judiciais nos Tribunais de Menores, suscitam a reflexão sobre a contingência e a multiplicidade de modos em que se expressam e incidem a moral nas práticas em questão. Já as contribuições de María Florencia Graziano (2017) sobre as intervenções de uma Secretaria Tutelar em um Juizado de Menores em Buenos Aires, nos alerta que no trabalho das delegadas, mesmo havendo um discurso sobre a necessidade de “mudança de vida”, de comportamento, de hábitos dos jovens , existia também uma lógica de gerenciamento de uma população em sua situação judicial. Uma lógica de cooperação, em que elas desempenhavam um papel de mediadoras entre o mundo dos jovens e o saber jurídico. Nesse contexto, o tom era menos tutelar ou moralizante, mas de construção de um plano estratégico de ação que exigia a colaboração do jovem e em que ele “assumisse a culpa”, demonstrasse arrependimento e vontade de mudança, pois isso era bom para “a causa”.
As situações que acompanhamos, contudo, estavam mais marcadas pelo tom moralizante, pelos aconselhamentos, por aquilo que tratamos em termos de ortopedias morais. Isso pode se dever ao fato de predominar esse tipo de lógica entre os operadores das medidas socioeducativas no contexto estudado (marcado por desigualdade social, racismo e preconceito em relação à classe social). Além disso, o foco foi o convívio com os adolescentes e não com os operadores de medidas socioeducativas e, nesse sentido, as performances e discursos desses operadores diante da situação de pesquisa pode ter se modulado àquilo que eles entendiam que a pesquisadora esperava ouvir/ver.
De todo modo, nossas e outras pesquisas junto aos chamados “adolescentes em conflito com a lei” no Brasil (Vicentin, 2005; Lyra, 2013; Munhoz, 2013) sobressaiu o tom ortopédico e de extensão da precariedade social dos adolescentes e suas famílias para julgamentos de precariedade moral.
Fassin (2009) discorre que o momento compassional, em que predomina a “razão humanitária”, se fez fortemente presente na história ocidental contemporânea, especialmente na década de 90. Já os anos 2000 aparecem como um momento “securitário”. O interessante é que esse último não anula a configuração precedente, mas a assimila. No que se refere ao nosso “caso”, entendo que, no sistema socioeducativo e especificamente nas ortopedias morais, há sempre uma oscilação entre discursos e práticas de caráter mais securitário (mais punitivo, mais estigmatizante) e de caráter mais compassional (ideias de vitimização, de vulnerabilidade, de compaixão e de necessidade de “ajudar” esses adolescentes).
As políticas da “razão humanitária” se dirigem, aos pobres, aos doentes, às mulheres, a todos os “vulneráveis”. Assim, a ideia de vulnerabilidade é central nas biopolíticas contemporâneas, nas ortopedias morais.
Sobre a noção de vulnerabilidade, cabe destacar uma dupla extensão que a permeia: do campo teórico para o da intervenção e do campo semântico para o da moral. É muito comum que as teorias sobre “Sociedade do risco”, por exemplo, quando transferidas para o campo da intervenção social, levem a discursos e atitudes que defendem a “salvação”, o “resgate” das populações que estariam em risco. Esse tom, mesmo que não acionado de modo consciente e reflexivo, está presente de maneira muito forte nos discursos dos que trabalham nas medidas socioeducativas, nas medidas em prol da “ressocialização”. Essa defesa de que os vulneráveis devem ser tirados do risco e trazidos para uma situação de segurança, de que os excluídos devem ser postos para “dentro”, em geral não se restringe à luta por inserções no campo da redistribuição material e das garantias no campo dos direitos. Estão por ali também ideias de inserção, de normalização, de “ortopedia moral”, pois as avaliações ultrapassam os atos (infracionais), versam sobre toda a vida dos sujeitos em questão.
Um processo semelhante parece acontecer com o conceito de “vulnerabilidade social”. Tal conceito ganhou força nas ciências humanas ao ultrapassar alguns dos limites da categoria de “exclusão social” nos estudos dos países em desenvolvimento. Entretanto, é perceptível que, em alguns lugares no campo teórico e no da intervenção, há uma espécie de extensão de sentido da ideia de vulnerabilidade social, econômica, para uma ideia de fragilidade, vulnerabilidade, precariedade moral (Zaluar, 1985, 1995; Souza, 2006). No domínio teórico, há uma série de categorias, discursos, argumentos e mesmo teorias que, de algum modo, dão base a essa extensão: anomia; desorganização; desestrutura; patologia; socialização falha; processo civilizatório; habitus precário; subcidadania; afrouxamento, esgarçamento, rompimento dos laços sociais; dentre outros. No cotidiano da intervenção social, por sua vez, ouve-se falar em: família desestruturada, problemática; promiscuidade; falta de limites; imoralidade/amoralidade; ignorância; falta de “cultura”, de educação; etc.
Creio que é preciso reconhecer a parte de responsabilidade que nos cabe enquanto cientistas sociais na produção dos discursos que desembocam na ideia de precariedade moral. É muito fácil criticar as práticas do Serviço Social ou as ideias “limitadas” dos discursos psicologizantes. É preciso atentar, contudo, para o fato de que muitos dos fundamentos dessas ideias foram e têm sido constituídos no âmbito das Ciências Sociais No Brasil, por exemplo, como bem sublinha Diogo Lyra (2013), a literatura antropológica e sociológica sobre “jovens e crime” tem insistido na tese da precariedade material e moral.
É preciso sempre ter claro que discursos, categorias, enquanto ideias-valor produzem efeitos reais, encarnados. Efeitos que se materializam em práticas divisórias, em corpos, em processos de subjetivação. Na experiência desses jovens, a seletividade penal, o preconceito, a desigualdade social, a criminalização da pobreza, a marginalidade não são conceitos, mas processos inscritos em seus corpos/almas e vivenciados em termos de veneno, de hospital, cadeia, caixão. Manifestam-se via marcas de balas e de cicatrizes de torturas; mas também como uma vida intensa, curta e louca que valha ser vivida; como agenciamento (se virar); como forma de pensar, de se relacionar, de estar e de “proceder” (Marques, 2009) no mundo. Não é simples determinar o que desses itens é assujeitamento e o que é resistência. A questão é que há a produção de corpos, de subjetividades, de modos de vida.
Como dito na apresentação, uma série de etnografias sobre a vida no crime no Brasil tem mostrado que vida há ali para além da “vida nua”; que condutas, que ética para além do “ethos guerreiro” (Zaluar, 1995); que modos de subjetivação se processam ali e que não se restringem ou mesmo que divergem de descrições clássicas na área. Veja-se, por exemplo, os trabalhos que compõem o Dossiê “Jovens em conflito com a lei” (Biondi e Marques, 2011), dentre os quais está uma de nossas pesquisas. Em sua apresentação, Gabriel de Santis Feltran (2011) destaca que nas cinco etnografias em questão o foco não está na pergunta de como resolver ou administrar o problema do “menor infrator”; e a fratura que interessa compreender na vida dos jovens estudados não está fundada no desvio em relação à lei oficial. Isso porque, para os autores, a insistência na citada pergunta quase sempre oculta o fato de que tal “problema” não existe autonomamente, nem da mesma forma para os nele implicados ou nas diferentes esferas da vida em que aparece. Além disso, acrescenta que, ao inverterem a pergunta inicial, os autores puderam perceber que os adolescentes em “medida socioeducativa” não estão suspensos no vazio, à espera de vínculos, ou mesmo alijados do Estado ou do mundo social. Pelo contrário, suas vidas são constitutivas do centro do problema social contemporâneo e estão vinculadas por dinâmicas assistenciais, familiares, mercantis e de trabalho que, em boa parte dos casos, se inscrevem no chamado “mundo do crime”. Traz, ainda, que essa inversão no modo de conceber o “jovem em conflito com a lei” provoca questões como o fato de emanarem desses “meninos foras da lei” incontáveis princípios, códigos de conduta, regras, normas morais e juízos capilarizados no tecido urbano.
Quando se pergunta aos sujeitos o que significa ser do crime, as respostas se encaminham para a questão do “ser, proceder pelo certo”. Mas penso que não é apenas isso que define o crime e a vida no crime. Nossas pesquisas com os adolescentes abriram mais aspectos importantes: crime como modo de se virar, de obter bens materiais e simbólicos; crime também como modo de se divertir, de se aventurar, de experimentar sensações fortes, como a adrenalina, e como maneira de dar gosto e sentido à vida. Além disso, na medida em que o crime constitui sujeitos e, especialmente, um modelo de sujeito ético pautado nos valores respeito e humildade, ele produz também reconhecimento.
Não é possível, ainda, pensar ou definir o crime, a experiência nele, sem levar em consideração que o chamado “mundo do crime” tem suas condições de produção e de manutenção na sociedade englobante: nas relações de etiquetagem e de seletividade penal, nas instituições legais e de controle. Os processos de subjetivação e os diversos regimes de verdade e de moralidade disponíveis e que atravessam essas pessoas se configuram também a partir das relações com uma série de instituições sociais, de mundos.
Mas, são vidas em que se produz, a partir de um processo de problematização moral, de subjetivação, um sujeito ético -e, nessa produção, uma linha de resistência, quem sabe um “contradispositivo”. Ser do crime é correr pelo certo, que, por sua vez, está sempre associado a ideias-valores-posturas de humildade, de respeito e de consideração. Além disso, trata-se também de não “pisar”, de não desrespeitar regras/condutas/valores, como não delatar, não estuprar, não matar inocentes. Se muitas dessas ideias-valor podem ser compartilhadas com outros mundos, a peculiaridade é a maneira intensa como são vivenciadas, de modo que os deslizes, por exemplo -a partir da avaliação dos pares-, podem levar à desconsideração, ao ostracismo e, no limite, à morte.
Dessa forma, no caso dos adolescentes, acredito que um modo particular de existir esteja não apenas na subjetivação via correr pelo certo, mas também na vida tensa, intensa, loka: na vida “matável” (dentro e fora do crime), cheia de altos e baixos, com a adrenalina e o veneno correndo nas veias. Vive-se tudo ao extremo, cobra-se tudo ao extremo. E, desse modo, a vida que pensamos fora da ordem, fora da norma, fora da lei é uma vida cheia de controles, cheia de normas, cheia de valores, cheia de limites. No entanto, a proximidade com a morte não leva a um deixar correr de qualquer modo a vida, mas a cerca de constrangimentos, de cuidados, pois o chão da vida loka tá sempre liso.
Esses adolescentes vão-se constituindo a partir de lugares opostos e de “entre-lugares”: nas relações com o Estado e seus agentes (policiais, juízes, técnicas do sistema socioeducativo, educadores) são percebidos e tratados ora como sujeitos de direitos e como adolescentes em situação de risco e de vulnerabilidade social, ora como infratores, como criminosos, como bandidos que devem ser punidos (e mesmo torturados, supliciados). O próprio texto legal (ECA) os coloca nesses diferentes polos: são adolescentes, pessoas em “fase peculiar de desenvolvimento”; porém, enquanto “em conflito com a lei”, devem ser responsabilizados de forma “socioeducativa”, mas equiparada aos adultos. Como se disse, na socioeducação há uma oscilação constante entre as lógicas securitárias e as humanitárias.
Nesse processo tais adolescentes vão constituindo corpos e mentes resistentes em que o veneno e o sofrimento fortalecem, bem como um caminho que seguem a despeito de o ponto de chegada ser hospital, cadeia, caixão. Aderem a discursos explicativos para a sua entrada nesse “caminho torto”. Mas falam sobre dimensões que não parecem encaixar-se nessas explicações, como, por exemplo, a diversão, a adrenalina, a aventura que marca suas experiências no crime. Falam, também, sobre as virtudes necessárias para percorrer tal caminho e para ser considerado um sujeito-homem. Mesmo procurando explicar sua entrada, a grande maioria não se colocou como vítima e evidenciou que ninguém “vai lá e mete uma máquina (arma) na tua cabeça pra você entrar”. Além disso, se ficarmos atentos à maneira como as narrativas se desenrolam, há a descrição de um cenário de perdas, de faltas, de sofrimento, mas quase sempre a entrada no crime é uma maneira de sair dessa situação, de transformá-la. Trata-se de um agenciamento, de uma não sujeição a esse quadro. E é significativo que haja uma ideia de movimento; o se virar é começar a fazer as correrias: seja para ajudar a mãe e para ter as suas coisas; seja para sobreviver sozinho depois de sair de casa; seja para ter experiências divertidas e que dão adrenalina; seja para se integrar ao grupo de pares (essas coisas separadas ou várias delas ao mesmo tempo).
Em suma, economias morais humanitárias e securitárias, configurações de sujeito polarizadas entre a figura da vítima e do transgressor fazem parte dos sentidos compartilhados pelos interlocutores, bem como os constituem. Tem-se aí um dos elementos do que denomino de “comensurabilidade entre mundos” (Vieira, 2009, 2011), no sentido de que o universo de valores, as economias morais, as configurações de sujeito de uma dada época, de uma dada sociedade são referências também para aqueles dos quais se diz que fazem parte de outro mundo (no caso, do mundo do crime). Porém, a maneira como tais configurações são acionadas, as relações entre elas e outros componentes da experiência dos sujeitos produzem sentidos que se repetem e outros que se diferenciam (Rifiotis et al., 2016).
Ser do crime é viver todas as dimensões descritas (institucionalização/criminalização, veneno, intensidade), é estar atravessado por uma série de assujeitamentos; mas é também constituir, para além deles, um espaço de gerenciamento de si e de mútuo reconhecimento.
Biondi, K. e Marques, A. (Orgs.) (2011). Dossiê: Jovens em conflito com a lei. R@U Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS - UFSCar, 3, 315-330. Recuperado de: http://sites.google.com/site/raufscar/
Rifiotis, T., Vieira, D. y Dassi, T. (2016). Judicialização das relações sociais e configurações de sujeito entre jovens cumprindo medidas socioeducativas em Santa Catarina. Anuário Antropológico, 41(1), 35-55. Recuperado de: https://periodicos.unb.br/index.php/anuarioantropologico/issue/view/647
Vieira, D. (2011). Histórias sobre homicídios entre jovens: ‘Mundo do crime’ e comensurabilidade. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, 4, 281-308. Recuperado de: http://revistadil.dominiotemporario.com/doc/Dilemas4-2Art4.pdf
Vieira, D. (2014). Correndo pelo certo, vivendo no crime: moral, subjetivação e comensurabilidade na experiência de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas (tese de doutorado). PPGAS. Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis, Brasil.
[1] . Cabe ressaltar que a categoria crime e expressões relacionadas: no/do crime, na/da vida loka, no/do mundo do crime, aparecerão grafadas em itálico pois são utilizadas em sua acepção nativa e não jurídica. Nesse sentido, crime não é sinônimo de infração à lei, mas expressa um modo de vida, um lugar de sentido, uma instância de subjetivação.
[2] . Em “O Sujeito e o Poder” Foucault (2009b) esclarece que o que constitui o tema geral de sua pesquisa não é o poder, mas o sujeito. De acordo com o autor, para “criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos” trabalhou com três modos de objetivação: o modo da investigação - do sujeito do discurso, do sujeito produtivo e do sujeito biológico; o das práticas divisórias - divisão do sujeito em seu interior e em relação aos outros (doente e sadio,criminoso e “bom menino”) e o modo pela qual um ser humano torna-se sujeito (por exemplo, via domínio da sexualidade). O sujeito humano é colocado em relações de produção, de significação e de poder. É neste último campo que Foucault direcionou seu trabalho, procurando estender as dimensões de uma definição de poder para além dos modelos legais e institucionais a fim de estudar a objetivação do sujeito. Para isso era preciso partir das formas de resistência contra as diferentes formas de poder. Mais do que analisar a racionalidade interna do poder, analisar as relações de poder através do antagonismo das estratégias.
[3] . Em um contexto mais amplo, sobre as mudanças de perspectiva desde a Convenção dos Direitos das Crianças em 1989, vale ressaltar as importantes ponderações de Carla Villalta (2013) acerca da influência do paradigma legalista em produções das ciências sociais que, ao discorrerem sobre as doutrinas antagônicas, sobre a tutela estatal e ao denunciarem as arbitrariedades no campo da justiça de menores, acabaram encobrindo a explicação de como as coisas acontecem efetivamente.
[4] . Interessante notar que em outros contextos em que também existe legislação pautada no caráter socioeducativo há relatos da persistência de práticas de punição, castigos, isolamento, maus-tratos como traz o Informe Especial Adolescentes: Vulnerabilidad y Violencia da Comisión Nacional de Derechos Humanos do México (CNDH, 2017).
[5] . Nos trechos das falas dos/das interlocutores/ras as minhas intervenções aparecerão em itálico. Todos os nomes são fictícios e foram escolhidos pelos adolescentes.
[6] . Outra possibilidade de análise de tais narrativas, a ser melhor aprofundada, é a articulação entre corpo, sujeito, política, violência e Estado. Neste sentido, é elucidativo o trabalho de Feldman (1991) acerca da politização do corpo nos conflitos da Irlanda do Norte. Para ele, em períodos de conflito que envolvem instâncias hegemônicas, o corpo é convertido em instituição política através da violência e da função performativa da representação dessa violência. E, assim sendo, a agência política não é inata ao sujeito, mas emerge como resultado de narrativas e práticas situadas com as quais os sujeitos se defrontam.