O matriarcado africano na diáspora
brasileira e
suas contribuições
para interpretação do espaço urbano


Simone Antunes Ferreira

Núcleo de Estudo e Pesquisa em Geografia Regional da África e da Diáspora
Faculdade Formação de Professores, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil.

Recibido: 22 de agosto de 2022. Aceptado: 29 de diciembre de 2022.

Resumo

Entendendo que o processo de colonização intensificou não só o racismo, mas também práticas patriarcais como elemento estruturante das sociedades modernas, o sentido (significado e direção) que a diferenciação e hierarquização de gênero feita pelas populações europeias desencadeou no fortalecimento do patriarcado exercido como dominação. Entretanto, as diferentes formas de matriarcado existentes e praticadas no continente africano foram recriadas na diáspora brasileira através de relações econômicas, políticas, culturais e religiosas a partir de ações comunitárias agenciadas por mulheres pretas. Nesse sentido, o objetivo deste estudo é trazer os valores Afro-civilizatórios sintetizados por Azoilda Loretto da Trindade somados a elementos básicos do pensamento afrocentrado de Cheikh Anta Diop, Molefi Kete Asante, Ama Mazama e Marimba Ani e do matriarcado africano sob a ótica de Ifi Amadiume e Oyèrónké Oyewùmí para compreendermos a centralidade, não homogênea, da figura feminina no continente africano e como essa forma de ser, estar, agir e pensar no mundo está ainda hoje inscrita nas paisagens urbanas brasileiras. Para isso se faz necessário despir-se de preconceitos normalizados dentro das ciências modernas e compreender a relevância das diferentes formas pelas quais as mulheres, usaram, se apropriaram do espaço urbano e forjaram cidades ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX.

Palavras-chave: diáspora. matriarcado. espaço urbano. memória.

The African Matriarchy in the Brazilian Diaspora and Its Contributions to the Interpretation of Urban Space

Abstract

Understanding that the colonization process intensified not only racism but also patriarchal practices as a structuring element of modern societies, the meaning (significance and direction) that the differentiation and hierarchy of gender made by European populations triggered in the strengthening of patriarchy exercised as domination. However, the different forms of matriarchy in existence and practiced on the African continent were recreated in the Brazilian diaspora through economic, political, cultural and religious relations through community actions brokered by black women. By Bringing the Afro-civilization values synthesized by Azoilda Loretto da Trindade, in addition to basic elements of Cheikh Anta Diop, Molefi Kete Asante, Ama Mazama and Marimba Ani’s Afrocentric thought of and Ifi Amadiume and Oyèrónké Oyewùmí perspective to the African matriarchy, we aim to understand the non-homogeneous centrality of the female figure on the African continent and how this way of being, being, acting and thinking in the world is still inscribed in Brazilian urban landscapes. In order to achieve this, it is necessary to get rid of preconceptions normalized within modern sciences and to understand the relevance of the different ways in which women used, appropriated urban space and forged cities throughout the 18th, 19th and 20th centuries.

Keywords: diaspora. matriarchy. urban space. memory.

palabras clave: Diáspora. Matriarcado. Espacio urbano. Memoria.

Este ensaio é a tentativa de reunir alguns autores e autoras africanas e afrodiaspóricas, de diferentes áreas do conhecimento, que caminham em direção contrária ao pensamento colonial, em todas suas esferas, para construir um pensamento mais plural e versátil. Por destacar elementos fundamentais que reconfiguram personagens, acontecimentos e lugares, esta pesquisa reconhece-se como um pontapé inicial para ampliarmos nossas possibilidades de metodologia de pesquisa no campo da Geografia Urbana.

Ao delinear as origens do racismo a partir da diferenciação fenotípica, Cheikh Anta Diop (1974, 1991) e Carlos Moore (2012) nos trazem narrativas que ampliam nossas interpretações sobre personagens, acontecimentos e lugares antes invisibilizados na ciência geográfica.

Cheikh Anta Diop, um egiptólogo de origem senegalesa, foi um intelectual e cientista multidisciplinar que defendia comprovadamente que a África era o berço da humanidade, e consequentemente, toda a sua fundamentação/contribuição teórico-prático nas áreas tecnológica, científica e cultural, além de suas organizações e estruturas sociais, comerciais e político-administrativas (impérios e estados). Diop contribuiu significativamente para a construção de outro eixo narrativo da história da Humanidade, cujo foco era o legado que as populações pretas, sobretudo de Kemet, deixaram como referência.

Defendia também, numa perspectiva macro, a existência de um sistema matriarcal (matrilinearidade/matricentralidade) no continente africano, ou seja, de sociedades organizadas tendo a mulher como uma agente social participativa e com reconhecimento, tendo responsabilidade sobre o poder (político-econômico-religioso) de decisão, a economia (comércio) e a manutenção/continuidade da sociedade. Paralelamente, a coexistência do patriarcado se dava no sentido da complementaridade e não como imposição hierárquica de gênero. Esta epistemologia foi interrompida com o domínio árabe e europeu.

Nosso objetivo no estudo é destacar características básicas do matriarcado africano e as semelhanças encontradas nas organizações sociais e espaciais de mulheres pretas ao longo da diáspora no Brasil. Pautamos aqui algumas das funções do matriarcado desenvolvido na África para compreendermos o papel fundamental da mulher preta no desenvolvimento das cidades afrodiaspóricas, seja ela no âmbito social, seja no âmbito econômico, cultural, religioso ou político.

O modelo patriarcal ocidental moderno usou a ciência e a igreja para elaborar justificativas que garantissem a diferença de gênero como algo que, biologicamente, determinasse a subordinação das mulheres. Essa forma de pensar e agir constituiu as sociedades coloniais (re)criando um sistema binário de oposição que legitima a dominação e exploração da mulher pelo homem.

Em outras palavras, o patriarcado ocidental (e a distinção de gênero) reconfigurou a dinâmica socioespacial da diáspora implementando assimetrias e antagonismos nas relações entre homens e mulheres, tanto nas relações familiares, domésticas, nas relações afetivas e sexuais, quanto nas relações de trabalho.

Entendendo isso, nosso objetivo aqui é enfatizarmos a centralidade de África, nos debruçando sobre a urgência do reposicionamento do africano do continente e em diáspora como um ser consciente de sua história, cultura e como um agente ativo na sociedade, capaz de interpretar e estabelecer criticidade, de acordo com Molefi Kete Asante (2009). Partindo de valores e ideias africanas de respeito à natureza, à espiritualidade, à ancestralidade e à identidade, como nos alerta Ama Mazama (2009) e Marimba Ani (1994), duas intelectuais que apresentam a afrocentricidade como um caminho possível em busca de metodologias não homogêneas cuja dinâmica social, histórica, psicológica, cultural traduza as experiências dos povos africanos.

O intuito principal é trazer elementos básicos para a construção de uma compreensão sobre o matriarcado afrocêntrico e como as mulheres pretas recriaram suas próprias dinâmicas no processo diaspórico. Para isso, construímos nosso diálogo com as contribuições das intelectuais nigerianas Ifi Amadiume (1987) e Oyèrónké Oyewùmí (2019) para a compreensão do matriarcado nas sociedades de tradição Yorubás, uma forma de estruturação e organização socioespacial não ocidental que se reconfigurou nas Américas com a diáspora. A percepção de linhagem, maternidade e do papel social exercido pela mulher Yorubá no ambiente doméstico e familiar, sobretudo, na dinâmica econômico-social e cultural, muda completamente a noção de família, de continuidade, de redes de solidariedade, comunidade e sociedade que a colonização europeia construiu.

Ifi Amadiume (1987) e Oyèrónké Oyewùmí (2019) defendem que o matriarcado está relacionado à unidade matricêntrica. O poder de continuidade da família (e seus bens/valores) e o poder de decisão estavam sob domínio das mulheres; logo, parte-se da compreensão sobre interesses comuns nascidos de uma experiência compartilhada (Oyewùmí , 2019) e não apenas de laços consanguíneos. A função e atuação social das mulheres aconteciam diante da presença ou não do marido-pai. O papel da mulher yorubá era manter o vínculo comunitário com a ancestralidade através da matrifocalidade, matrilateralidade e/ou de associações e irmandades de mulheres pretas (cujo raio de ação estendia-se a toda população preta, não era restrito às mulheres).

As mulheres detinham forte controle sobre o espaço doméstico, sobre as decisões políticas e o comércio, sendo grandes comerciantes e negociadoras no circuito de trocas, não necessariamente monetária, mas também de serviços. Destacavam-se pela autonomia e mobilidade desde cedo, o que lhes dava a percepção corporal exigida pelo ofício, passado de geração em geração. Essa é uma das características que aqui também se refez e ganhou força para construir caminhos de emancipação política e financeira de populações pretas. Essa forma de se organizar, como é facilmente perceptível, supera a noção de família nuclear encravada pela Europa.

De acordo com Oyewùmí (2019), a expansão e imposição da cultura eurocêntrica como hegemônica e universal traz a família nuclear como forma única de organização social e espacial, cuja estrutura tem no centro a esposa dependente do marido e as crianças, apontando a distinção de gênero e o controle sobre o corpo da mulher como pilar da família, bem como a manutenção da hierarquia e da opressão. A percepção de família nuclear não é universal, porém tende a ser universalizante, uma vez que o eurocentrismo destituiu as mulheres de suas funções sociais, culturais e de outras experiências de sexualidade e de família. A família Yorubá, por exemplo, organiza-se a partir das idades cronológicas, ou seja, o princípio da senioridade, como lembra Oyewùmí, e não pelo gênero.

O matriarcado na cidade

Ao longo dos séculos o processo de urbanização exigiu um novo contingente feminino, e essa demanda pode ser analisada através dos anúncios de jornais, onde pretas livres ou escravas de ganho e de aluguel passaram a ganhar visibilidade enquanto mão de obra destinada ao serviço doméstico, principalmente. Todavia, nem todas as escravizadas conviviam em ambiente doméstico. Muitas delas eram reservadas “ao ganho”, lançando-se como vendedora nas ruas e mercados das cidades. Essa relação produzia lucro aos proprietários, que determinavam uma quantia em troca de certa “autonomia” dessas mulheres. Uma parte do seu dinheiro era destinado à sua liberdade, de seus filhos, irmãos e de seus companheiros. O cotidiano das ganhadeiras era a oportunidade para estar distante da vigilância de seu proprietário e longe dos castigos.

Oriundas da costa do Benin, chamadas de negra mina ou de Yorubás, foram as protagonistas nas feiras ainda em África. Para a cultura Yorubá, a troca, a comunicação e a circulação são elementos que fundam os mercados e as feiras, conduzidas pelo Òrìsà Esù. Esù representa caminho, comunicação, e era por meio dessa energia que elas se tornavam importantes negociadoras. Em relação as pretas ganhadeiras, nos apoiamos na historiadora, contadora de história e curadora cultural Nathália Grilo Cipriano (2020), que inicia seus estudos a partir de itans yorubás e entende que o mercado e a arte de mercar é destaque em muitos deles. Dentro dos mercados aconteciam os eventos sociais marcados pela oralidade, musicalidade, corporalidade, ancestralidade, religiosidade (Trindade, 2005), garantindo o constante movimento de troca, comunicação, encontro, conhecimento, circulação, criação e negociação. As mulheres estabeleciam associações de acordo com seus ofícios, objetivando captar fundos para atender as demandas internas.

A busca pela liberdade no espaço urbano teceu redes entre a população preta, e foi nesse contexto que se destacaram os capoeiras como significativo símbolo da reinvenção cultural urbana na diáspora, compreendida aqui como uma forma de luta e organização social e espacial. Fundamenta-se na desenvoltura entre movimentos corporais, cantigas, instrumentos e ritmo (dança/luta) que conduzem o jogo com destreza e mandinga. As maltas (grupo de capoeiras) também disputavam o espaço urbano, defendendo suas freguesias. De acordo com Pires e Soares (2018: 138), as maltas encontravam-se, muitas vezes, nas praças que continham fontes de água (onde disputavam a água), em dias de festa.

Companheiras cotidianas dos capoeiras, as mulheres pretas livres e escravas de ganho que circulavam pelas ruas também aprenderam a cultura da capoeira como estratégia de sobrevivência, defesa e agilidade, aprendendo até mesmo a usar navalha para uso caso se envolvessem em alguma confusão. Além de inspirar cantigas, as mulheres pretas participavam das rodas e das tramas entre os grupos rivais, auxiliando a esconder as armas e repassá-las no momento dos grandes confrontos.

Como já citamos aqui, a noção de família, principalmente entre os de nação mina, segundo Pires (2012), fora construída a partir de laços de “família”, mesmo que informais ou improvisados. O papel da mulher na constituição desse parentesco foi fundamental para a transmissão de valores, costumes e crenças de uma comunidade preta que emergia, além de organizar e estruturar redes de apoio e solidariedade.

A falta de moradias populares, ou, muitas vezes, a precariedade das mesmas, é um problema social urbano histórico do Rio de Janeiro. No contexto em análise, cortiços e casas de zungu surgiram e ganharam visibilidade, configurando espaços possíveis de abrigo, sociabilidade, construção e manutenção da identidade e cultura preta. Os cortiços eram antigos casarões pertencentes outrora à elite carioca, que se transformaram em habitações populares ocupadas pela população pobre. Por se localizarem no centro comercial da cidade e possuírem muitos cômodos, as habitações coletivas abrigavam, além dos trabalhadores livres, os escravos de ganho que conseguiam um lugar para dormir com preço acessível e com facilidade para se deslocar para trabalhar.

Os cortiços não eram bem-vistos pela saúde pública que associava a aglomeração de muitas pessoas no mesmo espaço, sem necessariamente os devidos cuidados e higiene à insegurança da população. Isso chamava a atenção da polícia e da elite, que no final do século XIX providenciou um plano sanitarista para o espaço urbano:

As reformas atendiam às evidentes exigências da ordem produtiva, definida em termos econômicos puros e simples, mas também às exigências ideológicas, pois importava politicamente ao dirigente inscreverem-se como classe vitoriosa no espaço físico. Isso queria dizer: entronizar aparências brancas (europeias) e defender-se da infiltração de migrantes nordestinos e de antigos escravos. A reforma da cidade, ao mesmo tempo que teatralizaria na suntuosidade dos prédios o imaginário burguês nativo e prepararia a cidade para novos tipos de comunicações e transportes (bonde elétrico, automóvel, trem), forneceria também baluartes contra as infiltrações negro-populares (Sodré, 2019:45).

Disfarçado de reforma urbana, e fundamental para compreendermos as transformações ocorridas nas cidades no início do século XX, o plano de modernização ficou à disposição de banqueiros, industriais, comerciantes e de suas relações com a cidade que, segundo Sodré (2019 :41), estavam diretamente relacionadas ao controle social, ao combate à insalubridade habitacional e à manutenção da ordem pública.

Sobre as casas de zungu e seu grande potencial como espaço de (re)criação identitária e cultural, Moreira et al. (2006) destacaram que

O significado de zungu na época era um tipo de moradia, para onde convergiam homens e mulheres negras. E igualmente constituía um espaço de invenção de práticas culturais prontamente reprimidas se praticadas à luz da lua. Um esconderijo, um reduto bem protegido na imensidão de corredores e becos dos labirintos urbanos. Para onde convergiam silenciosamente centenas de africanos, escravos, pardos, mulatos, libertos, crioulos e pretos. Em busca de amigos, festas, deuses, esperanças... (Moreira et al. 2006 :84).

Apesar da sua riqueza cultural, as casas de zungu eram perseguidas, pois divergiam com as posturas municipais e a noção de ordem e controle socioespacial que as autoridades da época prezavam. Muitas pretas foram citadas nos registros na casa de detenção como donas ou responsáveis pelas casas de zungu/casa de dar fortuna/batuque, alegando muitas vezes envolvimento com feitiçarias ou até mesmo prostituição. As quitandeiras e quituteiras1 se destacavam também pela forte relação religiosa com as vendas. Essa mesma mulher livre ou de ganho viveu múltiplas facetas da vida social urbana, integrando diferentes aspectos da vida em busca de liberdade.

Referimo-nos aqui também das rezadeiras e benzedeiras, mulheres que através das forças ancestrais e da energia das ervas, raízes e pedras entoavam cânticos e palavras de poder com a finalidade de afastar negatividades, aliviar mal-estar, curar problemas de saúde, dentre outros. Tanto a espiritualidade quanto a religiosidade foram elos muito fortes de conexão entre diferentes grupos africanos em diáspora, tendo as mulheres como força motriz deste movimento.

Já nas primeiras décadas do século XIX, as diferentes religiões recriadas e readaptadas à realidade das populações africanas, bem como as novas feições de acordo com suas especificidades para cada região, época e situação, ganhariam maior visibilidade (Moreira et al., 2006:126).

As casas de candomblé surgem na Bahia, com os Nagôs-Yorubá (vindouros do oeste africano) numa exitosa tentativa de manter algumas tradições de cultos aos deuses africanos denominados Orixás.

No livro intitulado O terreiro e a cidade, Muniz Sodré (2019) fala sobre a reelaboração das regras originais do culto nagô com o objetivo de preservar a matriz fundadora, apesar dos sincretismos com rituais oriundos de outras etnias africanas, americanas e europeias. Nas celebrações mantiveram-se os sacrifícios de animais como forma de oferenda aos deuses, e os rituais movidos por tambores, agogôs, ganzás, cânticos e danças que conduziam ao transe espiritual.

No Rio de Janeiro, enquanto aumentavam as acusações contra feiticeiras (os) e curandeiras (os), o candomblé se encontrava com a realidade socioespacial da capital do Brasil. Nesse processo, ganham visibilidade Gamboa, Santo Cristo e Saúde, regiões onde nasceram as primeiras casas de candomblé, assim como o samba, onde mais uma vez o protagonismo feminino negro aparece como elemento estruturante da cidade negra.

Avaliando o corpo como a menor escala de território, um corpo candomblecista trazia suas marcas, sobretudo, nas vestimentas e fios de conta. Abaixo podemos apreciar a elegância de Tia Ciata e Tia Josefa, sacerdotisas pioneiras na manutenção da tradição afro-brasileira em Salvador, mas que anos depois chegaria na cidade do Rio de Janeiro.


Figura 1. Fotografia de Tia Ciata e Tia Josefa. Fonte: Schumaher&Brazil (2007:205).

Vindas da Bahia na década de 1870, Tia Ciata e Tia Josefa destacaram-se no que diz respeito à resistência cultural através das manifestações culturais afrodiaspórica. Eram praticantes do candomblé e incentivadoras dos movimentos culturais da área central denominada por Heitor dos Prazeres de “Pequena África”, área essa cuja extensão contempla da Praça XV até a Cidade Nova, e que concentrava grande volume de população preta.

Tia Ciata vendia quitutes em seu tabuleiro pelas ruas da cidade e promovia reuniões político-culturais em sua casa, local considerado um grande canal de comunicação entre diferentes grupos sociais. Em sua casa eram constituídas por relações familiares, religiosas e culturais, além de conter a dimensão do trabalho e do lazer. Sua atuação ativa na sociedade se dava em diferentes esferas, o que indicava sua forte influência em espaços de decisão e poder, inclusive no sentido de ser resistência diante das repressões que afligiam a capital no pré-abolição.

Já as irmandades católicas destacavam-se especialmente no que diz respeito à autonomia dos associados, que a despeito do alto valor cobrado, tinha um grande número. Elas se reuniam de forma mais ou menos autônoma redefinido suas identidades, estreitando relações e criando vínculos de confiança em eventos como festas, procissões assembleias, missas e auxílio mútuo. As Irmandades Negras estavam espalhadas por todo Brasil, tendo como padroeiro ou padroeira alguns santos e santas como São Benedito dos Pretos, Nossa Senhora do Rosário, São Elesbão, São Domingos, Nossa Senhora dos Remédios, Nossa Senhora das Mercês, Santa Efigênia, São Gonçalo, Santo Antônio da Mouraria, Nossa Senhora dos Homens Pretos, Nossa Senhora da Boa Hora, Nossa Senhora da Lampadosa e Nossa Senhora da Boa Morte.

Composta exclusivamente por mulheres, a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte presente no Recôncavo Baiano ainda é ativa na atualidade. Essas mulheres ocuparam grandes cargos eclesiásticos dentro de suas irmandades (entre as suas funções estavam a arrecadação de dinheiro, ajudar aos irmãos que precisavam, reuniões políticas, missas etc.) também foram responsáveis pela fundação do candomblé, mantendo o culto às ancestralidades africanas. Em diferentes esferas da vida social, profissional, pessoal, religiosa, as mulheres pretas aparecem como fio condutor das africanidades, guardiãs da memória cultural e da sabedoria política e econômica.

Para além da estrutura hierárquica e organização interna que envolvem as dimensões políticas e econômicas das irmandades, ingressar em uma representava reconhecimento social, possibilidade de novos contatos e redes de apoio. A participação em diferentes irmandades era comum entre as mulheres, levando a construção de pontes de ligação entre elas, que proporcionariam ocupar cargos hierárquicos importantes dentro e fora da comunidade preta.

A percepção do espaço urbano e da cidade pela população preta livre ou não, gerou diferentes tipos de (re)ações, tanto de subserviência/simulação (pelo medo dos castigos), quanto de revolta e fuga (estratégias de liberdade) construindo o espaço vivido (Lefebvre, 2011). Dessa forma, a cidade do Rio de Janeiro deve ser interpretada como uma cidade africana em permanente reinvenção, que se fez labirinto (Moreira et al., 2006) com outras formas de linguagem (corporal, gestual, religiosa etc.) e de redefinições de identidades “africanas” forjadas nas outras diversas experiências disponíveis na cidade.

Lélia Gonzalez (2018 [1988]) denominou de amefricanidades ao conjunto dessas experiências afrodiásporicas (corpo-mente-espírito) que caracterizaram e grafaram as cidades do século XIX , nos permitindo cartografar, de certa forma, a dinâmica social e cultural preta no espaço. A amefricanidade sugerida pela autora nos convoca a considerar (e no caso da Geografia, a espacializar/territorializar) as singularidades dessa população que há tempos é maioria nesse país. Através da análise apurada de documentos históricos, associações e irmandades religiosas que (re)produziram rugosidades (Santos, 2004) presentes ainda hoje nas paisagens urbanas, conseguimos construir uma leitura racializada das cidades.

O cotidiano tende a nos revelar de que maneira negras e negros livres ou não se apropriavam e usavam esse espaço urbano. É através das relações com o lugar que as experiências se manifestam, reinventando sentidos e significados múltiplos. No livro Cidades negras cidades: africanos, crioulos e espaços urbanos no Brasil escravista do século XIX, de Carlos Eduardo de Araújo Moreira, Juliana Barreto Farias, Flávio dos Santos Gomes, Carlos Eugênio Líbano Soares apresentam um espaço urbano sendo usado por e a partir de critérios raciais, ressaltando o protagonismo negro no espaço urbano.

[...] as cidades negras não eram só em números. Tinham suas próprias identidades, reinventadas cotidianamente. Africanos e crioulos não eram necessariamente uma multidão ou massa escrava nos centros urbanos. Os recém-chegados produziam identidades diversas, articulando as denominações do tráfico, aquelas senhoriais e a sua própria invenção em determinados cenários (Moreira et al., 2006:13).

Na cidade labirinto, como defendem Moreira et al. (2006), as fugas não eram nem o meio nem o fim, mas fundamentalmente conformavam o próprio labirinto, promovendo vivências de uma cidade esconderijo dependendo da situação e clandestinidade do(a) negro(a). As marcas produzidas por essas experiências são lidas pelos autores através do cotidiano da mobilidade urbana (ou a busca por certa liberdade) nas fugas e formação de quilombos, cartas de alforria, chafarizes, casas de zungu/angu/batuque/fazer dinheiro/de comércio, portos, irmandades religiosas, parentescos, tabernas, maltas de capoeira, corte de cabelo, culinária, entre outras práticas sociais e culturais que reinventavam o espaço urbano na tentativa de subverter a lógica de controle social.

Para Beatriz Nascimento (2018), o corpo e o território se materializaram como espaços de resistência da cultura africana diante da diáspora da colonização/escravização. Para a autora, o corpo negro se constitui e se redefine no quilombo enquanto sujeito livre, autônomo e coletivo, valorizando a cultura e a produção identidades que se materializam (ou não) no espaço.

Para Andrelino Campos (2005), a compreensão sobre quilombo (espaço apropriado) passa por analisar o contexto de expansão urbana na cidade do Rio de Janeiro no século XIX. Ele pensa o quilombo como uma estrutura possível de desenvolvimento da territorialidade e da construção de alguma identidade espacial. Representava um espaço de resistência à ordem imperial e priorizava a defesa do território (buscava-se lugares de difícil acesso dos representantes da ordem imperial).

Isso só foi possível devido às redes de solidariedade formadas por quilombolas e outros segmentos sociais de acordo com seus interesses, tais como mercadorias, informações e cultura, como afirma Campos (2005:38). A inclusão da população preta nas cidades de maneira subalterna se deu pela necessidade de mão de obra para produção do espaço urbano, gerando assim uma estratificação social da classe escrava que (r) existia e forjava sua própria cidade.

Considerações finais

O racismo criou todo arcabouço teórico e sustentou-se maciçamente nessa performance de supremacia. O estudo buscou referências de diferentes áreas do conhecimento que pudessem contribuir para a construção da pluriversalidade que, de fato, a ciência deve ser composta. A Geografia é uma das disciplinas que estuda, analisa e elabora formas de compreender e apreender as transformações do/no espaço, inclusive o urbano, mas ainda não se atentou para a relevância das fontes históricas como meio de reconstruir o passado afrodiaspórico.

Nossa proposta foi de ler e interpretar o espaço por e a partir das relações raciais que as geo-grafias que o matriarcado criou. Ao apontarmos o matriarcado afrodiaspórico como um elemento estruturante dos espaços urbanos, criando e recriando dinâmicas próprias que legitimavam e asseguravam suas redes de solidariedade e manutenção de suas práticas culturais, econômicas, sociais e políticas, estamos sinalizando a importância de repensarmos nossas bases epistemológicas.

Os fluxos entre Bahia e Rio de Janeiro criaram laços culturais perceptíveis e as negras minas foram importantes portadoras desses conhecimentos ancestrais, foram elos culturais, pois se articulavam com grupos sociais de diferentes classes sociais. Além da construção e estruturação do espaço urbano, a população preta também detinha seus próprios fluxos e conseguiam se organizar e se manter, mesmo diante de todas as adversidades.

As Yalorixás ganham destaque por conseguirem não só comandar um Ilê e sua Egbé, mas principalmente por compreenderem a necessidade de estar presente na sociedade para garantir os direitos do povo negro e suas religiosidades. Poderíamos destacar, além de Tia Ciata, outras grandes líderes religiosas e sociais que lutaram para conquistar mais espaço na sociedade, Mãe Stella de Oxóssi, Makota Valdina, Mãe Beata de Yemonjá, Mãe Lúcia D’Obá e Mãe Gilda de Ogum cuja data 21 de março dedica-se ao seu retorno ao Orun após sofrer racismo e intolerância religiosa. Data que também institui o dia internacional pela eliminação da discriminação racial e dia nacional das tradições das raízes de matrizes africanas e nações do candomblé.

As mulheres pretas mercadoras, fossem elas de tabuleiro, quitandeiras, donas das casas de zungu, Yalorixás ou capoeiras nos apontam a necessidade de refletirmos sobre como cidades labirintos e cidades esconderijos resultam da ação de (r) existência preta no meio urbano, num sistema de irmandades e comunidades religiosas, políticas, econômicas ou culturais. Destacamos que essas grafagens2 da diáspora ainda estão visíveis nas cidades quando nos deparamos com as baianas de acarajé nas ruas de Salvador e do Rio de Janeiro demarcando seus territórios e mantendo toda herança ancestral na prática de seu ofício. Quando nos deparamos com rituais religiosos ou manifestações culturais realizadas em espaços públicos.

Os quilombos além se apresentarem como um elemento fundamental para recriar um modo de ser, estar, sentir e agir no mundo pautado nos princípios da ancestralidade, cooperativismo, energia vital (axé), corporeidade, oralidade visando um objetivo maior, a liberdade, são territórios com grande expressividade feminina em sua gestão econômica e cultural ou liderança política que trabalham para perpetuar a memória e o legado de anos de luta e conquistas quilombolas.

Nesse sentido, apontamos aqui o cotidiano da cidade e suas relações de poder detalhados numa geograficidade própria da população preta que, em algum grau, se mantém viva até os dias atuais. Através de leis, anúncios de jornais e arquivos policiais, conseguimos reconhecer lugares e personagens considerados ilegais, enquanto na verdade evidenciam trajetórias pretas. O acesso a essa documentação é de extrema urgência para reconstruirmos a geo-grafia das cidades, reposicionando e destacando personagens, acontecimentos e lugares que contribuam para preencher as lacunas que a história oficial não deu conta de preencher.

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Simone Antunes Ferreira / profgeo.simoneaf@gmail.com

Licenciatura Plena em Geografia pela Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Especialista em Ensino de História e culturas africanas e afro-brasileiras pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro. Professora do Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho – RJ e professora preceptora do Programa de Residência Pedagógica pela Universidade Federal Fluminense. Mestre em Geografia pela Universidade Federal Fluminense/Niterói. Co-fundadora e pesquisadora do NEGRA (Núcleo de Estudo e Pesquisa em Geografia Regional da África e da Diáspora) da UERJ/FFP com foco em matriarcado africano, memória e patrimônio negro, filosofias africanas e ensino de geografia afrocentrado. ORCID: https://orcid.org/0009-0001-2961-751X.


1 Quituteiras e Quitandeiras foram mulheres negras que comercializavam diferentes gêneros alimentícios em tabuleiros ambulantes pelas ruas e áreas centrais das cidades.

2 Grafagens representam as marcas históricas da presença negra inscritas nas paisagens.