“O rio é a origem de todas as coisas”: o movimento das águas como elemento edificador da região amazônica segundo Hilgard O’Reilly Sternberg (1917-2011)


Alan Daniel de Brito Mello

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Centro Simão Mathias de História da Ciência. São Paulo, Brasil.
ORCID: 0000-0002-6252-2790

Recibido: 12 de septiembre de 2023. Aceptado: 16 de marzo de 2024.

Resumo

Para a ciência geográfica brasileira, a década de 1950 teve importância ímpar: a de consolidar e internacionalizar as pesquisas acadêmicas que foram iniciadas entre 1930-1940, período no qual surgiram os cursos universitários de Geografia no Brasil. Com isso, os primeiros geógrafos formados no país começaram a ter destaque anos depois, interessando-se pelos mais diversos assuntos. Diante desta trama histórica formada no país, e tendo a necessidade de resgatar um personagem de destaque na história da ciência geográfica brasileira, o presente artigo tem por objetivo principal identificar os motivos que levaram o geógrafo brasileiro Hilgard O’Reilly Sternberg (1917-2011) a considerar a água como principal elemento edificador da paisagem natural e humana da Região Amazônica. Para isso, optou-se por selecionar três trabalhos do autor: “A água e o homem na várzea do Careiro” (1956), “Sismicidade e Morfologia na Amazônia Brasileira” (1953) e “Vales Tectônicos na Planície Amazônica?” (1950). Estes trabalhos, acreditamos, sintetizaram os argumentos mais usados por Sternberg para justificar a relevância da água na construção geomórfica da Região Amazônica. Por fim, para a elaboração do presente manuscrito, utilizamos o procedimento metodológico baseado em três esferas de análise: contextual, epistemológica e historiográfica, possibilitando assim a manipulação de documentos na criação de objetos de pesquisa (Alfonso-Goldfarb; Ferraz & Aceves: 2012).

Palavras-chave: HISTÓRIA DA CIÊNCIA. GEOGRAFIA. AMAZÔNIA. ÁGUA, RIO.

“El rio es el origen de todas las cosas”: el movimiento de las aguas como elemento constructivo de la región amazónica según Hilgard O’Reilly Sternberg (1917-2011)

Resumen

Para la ciencia geográfica brasileña, la década de 1950 tuvo destacada importancia: la de consolidar e internacionalizar las investigaciones académicas que se iniciaron entre 1930-1940, período en el cual surgieron los cursos universitarios de Geografía en Brasil. Así, los primeros geógrafos formados en el país comenzaron a tener relevancia años después, interesándose por los más diversos asuntos. Frente a esta trama histórica formada en el país, y teniendo la necesidad de rescatar a un personaje destacado en la historia de la ciencia geográfica brasileña, el presente artículo tiene por objetivo principal identificar los motivos que llevaron al geógrafo brasileño Hilgard O’Reilly Sternberg (1917-2011) a considerar el agua como principal elemento edificador del paisaje natural y humano de la Región Amazónica. Para ello, se optó por seleccionar tres trabajos del autor: “A água e o homem na várzea do Careiro” (1956), “Sismicidade e Morfologia na Amazônia Brasileira” (1953) e “Vales Tectônicos na Planície Amazônica?” (1950). Estos trabajos, creemos, sintetizaron los argumentos más utilizados por Sternberg para justificar la relevancia del agua en la construcción geomórfica de la Amazonia. Finalmente, para la elaboración de este manuscrito se utilizó el procedimiento metodológico basado en tres esferas de análisis: contextual, epistemológica e historiográfica, posibilitando así la manipulación de documentos en la creación de objetos de investigación (Alfonso-Goldfarb; Ferraz & Aceves: 2012).

Palabras clave: HISTORIA DE LA CIENCIA. GEOGRAFÍA. AMAZONIA. AGUA, RIO.

“The river is the origin of all things”: The Movement of the Waters as a building element of the Amazon region according to Hilgard O’Reilly Sternberg (1917-2011)

Abstract

For Brazilian geographic science, the 1950s had a unique importance: that of consolidating and internationalizing the academic research that began between 1930-1940, a period in which university courses in Geography emerged in Brazil. Thus, the first geographers trained in the country began to stand out years later, taking an interest in the most diverse subjects. Faced with this historical plot formed in the country, and having the need to rescue a prominent character in the history of Brazilian geographic science, the main objective of this article is to identify the reasons that led the Brazilian geographer Hilgard O’Reilly Sternberg (1917-2011) to consider water as the main building element of the natural and human landscape of the Amazon Region. For this, we chose to select three works by the author: “A água e o homem na várzea do Careiro” (1956), “Sismicidade e Morfologia na Amazônia Brasileira” (1953) e “Vales Tectônicos na Planície Amazônica?” (1950). These works, we believe, synthesized the arguments most used by Sternberg to justify the relevance of water in the geomorphic construction of the Amazon Region. Finally, for the elaboration of this manuscript, we used the methodological procedure based on three spheres of analysis: contextual, epistemological and historiographical, thus enabling the manipulation of documents in the creation of research objects. (Alfonso-Goldfarb; Ferraz & Aceves: 2012).

Keywords: HISTORY OF SCIENCE. GEOGRAPHY. AMAZON. WATER, RIVER.

Introdução

Embora o presente artigo carregue um título bastante amplo, o que pode torná-lo desinteressante para um leitor desatento, ele expressa um fundamento metafísico importante para a ciência geográfica: há uma causa primeira do mundo material. Porém, esta “causa primeira” pode variar a depender de quem se aventura a entendê-la, pois o princípio causador de “tudo que existe” deve seguir, em primeira instância, o caminho pré-estabelecido pelo agente individual e/ou institucional produtor do conhecimento, desde que ele consiga oferecer um suporte teórico e metodológico para um problema de ordem epistêmica (Alfonso-Goldfarb; Ferraz 2002: 08-09). Por isso mesmo, no decorrer deste manuscrito, tentaremos reconstruir parcialmente a heurística histórica da ideia de Região Amazônica contida em alguns trabalhos do geógrafo brasileiro Hilgard O’Reilly Sternberg (1917-2011), bem como evidenciar a postura edificadora do rio (água em movimento) na formação da paisagem amazônica, condição sine qua non à tentativa de compreender o tipo de ciência geográfica produzida por Sternberg.

De maneira resumida, Hilgard O’Reilly Sternberg, nascido em 1917 no Rio de Janeiro e falecido em 2011 em Fremont, Califórnia, desempenhou um papel significativo na academia. Entre 1944 e 1964, atuou como docente na Universidade do Brasil, atualmente conhecida como Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Além disso, Sternberg foi o fundador do Centro de Estudos de Geografia do Brasil, vinculado a mesma universidade. Durante uma década, dedicou-se ao ensino no Instituto Rio Branco (instituição responsável por formar os diplomatas brasileiros), ministrando cursos no exterior, incluindo passagens pela Universidade de Heidelberg, Columbia e Beijing. Em 1964, aceitou o convite para lecionar na faculdade de Geografia da Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos, e posteriormente foi nomeado professor emérito em 1988.

A produção científica de Sternberg, apesar de focada na realidade brasileira, nunca foi muito divulgada em nosso país, obviamente com prejuízo para muitos que poderiam ter usufruído de seus conhecimentos, desde cientistas a estudantes de mestrado ou doutorado. É dentro desse universo desconhecido que o presente artigo buscou construir um objeto de pesquisa alinhado à parte da produção intelectual do geógrafo entre 1950-1956. Assim, em razão do interesse de Sternberg pela região Norte do Brasil, optou-se por pesquisar os fundamentos epistemológicos da ideia de Região Amazônica – e sua interação com os rios – a partir da seleção de três principais trabalhos do autor publicados entre 1950-1956, “A água e o Homem na várzea do Careiro” (1956)1, “Sismicidade e Morfologia na Amazônia Brasileira” (1953)2 e “Vales Tectônicos na Planície Amazônica?” (1950)3. Ademais, por meio da documentação selecionada, pode-se perceber um profícuo diálogo entre Hilgard O’Reilly Sternberg e dois principais geógrafos estrangeiros, Carl Ortwin Sauer (1889-1975) e Pierre Gourou (1900-1999)4.

Por exemplo, em 1925 Carl Sauer publicou o artigo intitulado The Morphology of Landscape, no qual estabeleceu os fundamentos lógicos de seu principal conceito científico: a paisagem. Esse trabalho, durante muito tempo, tornar-se-ia a principal referência conceitual para Sternberg, principalmente entre as décadas de 1940 e 1950. Para o geógrafo estadunidense de Berkeley, o elemento humano não deveria ser considerado passivo diante das condições naturais de uma região específica; ao contrário, sua ação transformadora do espaço deveria ser levada em conta. Essa ação, enraizada na história de cada povo, poderia ser observada por meio da paisagem.

No entanto, a paisagem da qual Sauer se refere não é a natural, que precede a atividade humana, mas sim a paisagem cultural. Nesse contexto, a cultura se desvincularia do humano e adquiriria existência autônoma. Sauer recusava a ideia de que o homem fosse meramente um produto do meio natural, mas aceitava a noção de que a paisagem era um produto da cultura.

Para compreender melhor essa perspectiva, recorremos ao conceito de supra-orgânico, proposto pelos antropólogos de Berkeley Alfred Kroeber (1876-1960) e Robert Lowie (1883-1957), os quais influenciaram Sauer e, indiretamente, Sternberg. Os antropólogos dividiram a realidade em dois níveis: o inorgânico (associado à matéria de longa duração, com mudanças morfológicas lentas) e o orgânico (dividido em aspectos psicológicos e biofísicos, moldados pelas normas culturais de cada população). Essas normas alterariam tanto a esfera inorgânica quanto a orgânica, determinando o comportamento da sociedade.

Por isso, acreditamos que a entrada da teoria supra-orgânica na Geografia de Berkeley gerou debates profícuos sobre a definição de cultura e seu impacto no espaço. Apesar das controvérsias, esse diálogo entre áreas científicas ajudou a consolidar a Geografia Cultural produzida por Sauer, a qual veio a orientar os trabalhos de Hilgard O’Reilly Sternberg no Brasil.

Já com relação a Pierre Gourou, destaca-se o debate no entorno da expedição científica realizada por ele, acompanhado de Sternberg, na Amazônia brasileira em 1948. Essa experiência inspirou Gourou a escrever o trabalho intitulado L’Amazonie: Problèmes Géographiques um ano depois. No referido trabalho, ele enfatiza a homogeneidade da floresta como a principal estrutura formadora do espaço amazônico e, consequentemente, da paisagem. No entanto, ele reconhece que outros fatores também contribuiriam para a identidade local, como as vias fluviais e a população.

Embora Gourou valorize o estudo da água, que Sternberg aborda com maior detalhe, ele se concentra na densidade demográfica das áreas tropicais. Notavelmente, o geógrafo francês apresenta quatro possíveis razões para a baixa densidade populacional na região amazônica, o que supostamente alteraria sua paisagem: 1) clima severo, 2) insalubridade (doenças tropicais), 3) questões relacionadas ao solo e 4) características da floresta. E é justamente nessa divisão feita por Gourou, a qual organiza os estudos tropicais, que Sternberg também sistematiza suas pesquisas. Entretanto, o cientista brasileiro reduz a importância do clima como principal agente modificador do espaço amazônica, substituindo-o pela água em movimento.

As duas referências supracitadas esclarecem parte da “ciência geográfica” com a qual Sternberg mantinha proximidade intelectual na década de 1950. Ainda assim, antes de prosseguirmos, deve-se elencar o procedimento metodológico percorrido por esse artigo, a partir da reflexão desenvolvida no Centro Simão Mathias de História da Ciência da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Considera-se a consolidação do corpus documental individualizado uma etapa mais madura da pesquisa em História da Ciência Geográfica. Sendo assim, há etapas anteriores que devem ser percorridas pelo pesquisador, por isso direcionamentos precisam ser feitos para que não se perca o foco do trabalho. Muitas vezes, o que motiva um trabalho acadêmico é uma inquietação ou curiosidade epistêmica. Porém, é possível que inicialmente o pesquisador não tenha conhecimento sólido sobre o assunto para a formulação de uma hipótese satisfatória. Desta maneira, ele deve buscar todo o material disponível relacionado ao problema a ser resolvido, realizando um levantamento bibliográfico inicial. Com esse material em mãos, o pesquisador começa a fase de estudo do assunto, na qual ele pode descobrir se o problema já foi solucionado e, em caso afirmativo, de que maneira (ou maneiras) ocorreu a resolução.

Nesta etapa, Alfonso-Goldfarb, Ferraz & Aceves destacam dois princípios básicos: 1) criar uma hipótese bem fundamentada que orbite em torno do objeto; 2) estabelecer coerência lógica na seleção de documentos sustentadores do trabalho5. Com relação ao segundo princípio, vários tipos de documentos podem ser usados para compor o corpus documental de uma pesquisa. Entretanto, é recomendável ter-se em mente que, dependendo dos critérios historiográficos adotados, um determinado registro pode ser considerado um documento ou não. Deve-se ainda compreender como se organizava o conhecimento no período em que o objeto da pesquisa e a documentação estavam inseridos, visto que um registro só se torna um documento quando identificado dentro de um marco conceitual e temporal6. Para tal, a investigação das fontes é crucial - no caso, para Sternberg, Sauer e Gourou - devido ao fato delas emprestarem um movimento histórico ao documento.

A definição do objeto também recebe especial atenção no processo de construção do corpus documental, vinculando-se justamente à documentação selecionada que, por sua vez, pode ser alterada a depender da lapidação do próprio objeto.

Isto posto, o objeto deste artigo, o movimento das águas como edificadora da região amazônica, está inserido no Brasil da década de 1950 e coincide, explica Antônio Carlos Vitte, com o surgimento dos estudos da geomorfologia geográfica brasileira, sobretudo a partir dos trabalhos de Aziz Ab’Saber (1924-2012) e João José Bigarella (1923-2016), inspirados na Teoria da Pediplanação7.

Do início dos anos 1950 até aproximadamente 1957 foi um período marcado por um processo de transformação nas pesquisas geomorfológicas; [...] pelo fato dos trabalhos de geologia estarem mais avançados no conhecimento empírico da realidade brasileira do que os da geomorfologia, guiados por um modelo anacrônico e incompatível com a realidade tropical brasileira e que acabavam por não propiciar avanços significativos sobre a gênese do relevo brasileiro (Vitte, 2010:66)

A realidade tropical do Brasil, somada à sua grande distribuição latitudinal, impuseram aos estudos geomorfológicos um claro limite de método: o da impossibilidade de definir o clima do país, prejudicando os cientistas a buscarem o fator primeiro dos fenômenos erosivos. Isso porque o clima podia sofrer modificações qualitativas a depender da região; se no Norte do Brasil o pesquisador defrontava-se com um clima quente e úmido, no interior nordestino ele via-se submetido a outros qualificativos, como por exemplo alta temperatura com escassa precipitação anual.

Imerso nessa trama científica, Hilgard Sternberg rejeitava a ideia de que a Amazônia estaria à mercê de suas características físicas, supostamente uniformes pela presença do clima quente e úmido, vista como a Hileia a ser inundada pela civilização. Os trabalhos do geógrafo brasileiro a respeito da Amazônia não ganharam o merecido reconhecimento ao longo do tempo, ainda que ele tenha investigado a dinâmica físico-humana de uma das regiões mais conhecidas do planeta. Para ele, o macrocosmo amazônico não é a uniformidade vegetal e climática, nem de solo, topografia ou ocupação, mas sim um mosaico ecológico cuja paisagem pode fornecer indícios antropológicos e geofísicos à ciência geográfica.

A partir deste ponto de vista, o presente corpus documental justifica-se por duas razões: i. a década de 1950 no Brasil foi marcada por um visível interesse da comunidade científica internacional pela chamada “Geografia Tropical Brasileira” e ii. na condição de cientista brasileiro, Hilgard O’Reilly Sternberg consegue sintetizar e publicar todo esse debate ao estudar a formação da Região Amazônica, sob a ótica não somente do clima, mas também das águas que cortam todo o Norte do país. Nesse sentido, tal como orienta Alfonso-Goldfarb, Ferraz & Aceves (2012), qualquer pesquisa que almeje compreender o desenvolvimento de uma ideia científica deve ter lastro no corpus documental selecionado e este, por sua vez, só pode ser construído a partir de uma reflexão investigativa.

Ademais, a organização do conhecimento reflete a ordem do mundo e se associa ao enredo do objeto teórico criado, formando um constructo para a ciência. Não por acaso, para se gerar um corpus documental aceitável é necessário entender a estrutura formal do conhecimento no período estudado, de maneira a compreender se determinado objeto de investigação está no centro ou na periferia do paradigma científico da época. Além disso, destaca-se a necessidade do pesquisador em saber sobre o suporte material que sustentaria determinado trânsito do conhecimento (Rossi 2000: 48-49); ideia esta, julgamos, mais explicativa do contexto científico do país no decorrer da primeira metade do século XX. Com isso, torna-se possível perceber o conjunto de ideias contido em um objeto epistemológico individualizado, ou seja, este artigo visa identificar os motivos que levaram Sternberg a acreditar como a água poderia ser o principal agente constitutivo da Região Amazônica, por meio de um recorte conceitual e temporal específico: o de considerar os discursos sobre o espaço no Brasil durante a década de 1950.

A Amazônia-Mundo de Hilgard O’Reilly Sternberg

As dimensões continentais do Brasil impuseram-lhe a pecha de ser um país incompreensível, enigmático, consequência do imaginário coletivo de uma população espalhada por um espaço amorfo. Por isso, a busca identitária do que deveria ser o brasileiro - e o Brasil - passa pelos discursos cultural e científico, numa tentativa de dar forma àquilo que supostamente não possui, o território.

Hilgard O’Reilly Sternberg faz parte dos intelectuais brasileiros que passam a estudar as várias regiões do país, focando-se na Amazônia. Entretanto, antes de avançarmos com o texto, faz-se necessário compreender o debate acerca da regionalização do território brasileiro no intervalo entre 1940-1950, o qual, na condição de jovem geógrafo, Sternberg participa.

Em 1941, Fábio Macedo Soares de Guimarães (1906-1979) publica o artigo “Divisão Regional do Brasil” pela Revista Brasileira de Geografia. Este trabalho discute a urgência de criar critérios claros para o processo de regionalização do território, uma vez que “O estudo de um grande território, como o do Brasil, segundo os métodos da cartografia moderna, exige, como condição de êxito, a sua divisão em unidades menores, as chamadas regiões naturais” (Guimarães, 1941: 318). Estas regiões naturais, por sua vez, deveriam suportar complexos sistemas intercalados de organização do espaço geográfico, os quais formariam unidades territoriais menores, podendo valer-se dos aspectos orográfico, pedológico, geológico e hidrográfico.

O artigo ainda apresenta uma análise geográfica e histórica da divisão territorial do Brasil a partir do surgimento de algumas regiões, desde a colonização até a década de 1940. Além de destacar as diferentes tentativas de classificação regional no país, Fábio Guimarães (1941: 318) avalia os principais critérios utilizados por cientistas para organizar o território, apontando para a importância política e econômica do problema. A ampla pesquisa realizada pelo geógrafo, com a qual busca analisar a pluralidade das propostas de divisão regional sob diferentes perspectivas, é um trabalho notável, visto que consegue enxergar a matriz histórica na organização do território. Dito isto, a quantidade de informações condensadas no artigo escrito por Guimarães ajuda os novos geógrafos da época - entre eles, Hilgard Sternberg - a definirem um procedimento metodológico capaz de estruturar espacialmente a pesquisa geográfica com base em critérios menos ortodoxos, como por exemplo considerar o aspecto cultural na regionalização do território.

Tabela 1. Alguns modelos regionais do Brasil segundo Fábio M.S.Guimarães. Fuente: Guimarães (1941)

Autoria

Características principais para regionalizar o Brasil

Carl Friedrich Martius (1794-1868)

O autor considerava a história como estruturante das regiões, o que ele chamou de “grupos regionais”. Nesse caso, a província de São Paulo deveria ser agrupada com os estados de Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais.

André Rebouças (1838-1898)

Sugeriu regionalizar o Brasil a partir das atividades agrícolas em 1889 - após a publicação de Le Brésil en 1889 -, o que pode ser considerado uma unidade territorial econômica. Ele defende 10 divisões: i. Zona Amazônica. ii. Zona do Grande Parnaíba. iii. Zona do Ceará. iv. Zona do São Francisco. v. Zona do Paraíba do Norte. vi. Zona do Paraíba do Sul. vii. Zona Central. viii. Zona do Paraná. ix. Zona do Uruguai. x. Zona Auro-Ferrífera.

Elisée Reclus (1830-1905)

Na obra Estados Unidos do Brasil (1893), ele destacou a abordagem natural complexa por meio da influência fluvial. i. Amazônia. ii. Vertente do Tocantins. iii. Costa Equatorial. iv. Bacia do São Francisco e Vertente Oriental dos Planaltos. v. Bacia do Paraíba. vi. Vertente do Paraná e Contra-vertente Oceânica. vii. Vertente do Uruguai e Litoral Adjacente. viii. Mato Grosso.

Delgado de Carvalho (1884-1980)

A proposta de regionalização do autor está contida no livro Geografia do Brasil, 1913. Nele, Carvalho vai propor uma divisão territorial do país associando os aspectos humanos aos naturais, o que deve servir também ao ensino de geografia nas escolas. i. Brasil Setentrional ou Amazônico. ii. Brasil Norte-Oriental. iii. Brasil Oriental. iv. Brasil Meridional. v. Brasil Central.

Pierre Denis (1883-1951)

Aceita a definição de Delgado de Carvalho, diferenciando-se do geógrafo brasileiro por somente subdividir a Bahia em mais duas áreas naturais: Nordeste da Bahia e Recôncavo Baiano. i. Amazônia. ii. Nordeste. iii. Planalto Meridional. iv. Planalto Central. Essa estrutura regional encontra-se na obra Amérique du Sud, 1927.

Alberto Betim Paes Leme (1882-1938)

Ele defende a caracterização regional do território de acordo com a estrutura geológica existente, que vai desde escudos cristalinos a bacias sedimentares. i. Zona de Sedimentação Amazônica. ii. Zona Intermediária. iii. Zona Estabilizada. iv. Zona de Reajustamento Isostático. v. Zona de Erosão.

Moacir Silva (1891-?)

Apesar de engenheiro civil de formação, Silva participou ativamente do Conselho Nacional de Geografia e propôs uma divisão regional do Brasil por critérios naturais. Ele foi um dos primeiros geógrafos a defender as “Zonas de Transição” entre as demarcações cartográficas, que consistiam em áreas do território que contêm elementos naturais contraditórios.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

Em 1938 o IBGE adotou uma regionalização baseada nos Anuários Estatísticos do Brasil, incorporando para si as unidades territoriais que o Ministério da Agricultura defendia; critério este rebatido por Hilgard Sternberg e Fábio Guimarães, que alegavam não haver possibilidade de sustentar de maneira empírica um recorte espacial tão instável quanto o da agricultura. i. Norte. ii. Nordeste. iii. Leste. iv. Sul. v. Centro.

Deste modo, Guimarães alerta sobre o perigo de homogeneizar as regiões sem o rigor metodológico da ciência geográfica, porque a depender da escala utilizada pelo pesquisador, mudam-se os critérios analíticos e, por consequência, a maneira pela qual se regionaliza. Portanto, a região pode ser definida em duas concepções: a elementar e a natural. A primeira, de caráter mais superficial, vincula-se à unidade administrativa do estado e se baseia somente numa categoria de fenômenos: geológico, geomorfológico, orográfico, econômico etc. A segunda, mais complexa, sobrepõe às unidades elementares em si, que podem ser desde os aspectos da Geografia Humana quanto os da Geografia Física. Destaca-se a crítica feita por Guimarães à denominada “região humana” por ela se mostrar demasiadamente instável e mutável, o que poderia prejudicar a qualidade da região como possível objeto de estudo, porque, nesse caso, não haveria previsibilidade dos fenômenos delimitados.

Outra característica de destaque diz respeito às definições regionais da tabela. Se, por vezes, evidenciam-se divergentes no recorte do espaço - e se expandem ou contraem a depender dos critérios do pesquisador - estas definições mostram-se evidentemente homogêneas quando descrevem a região Norte, em especial a Amazônia, cujo qualificativo “exótico” dado à natureza mescla-se à ideia de Hileia a ser preenchida pela civilização.

Assim sendo, Sternberg aceita os limites espaciais do Norte do país semelhantes as regiões contidas na tabela 1 (1941), e reforça a perceptível influência do clima e da vegetação na dinâmica da paisagem amazônica. Apesar disso, também questiona a uniformidade descritiva da floresta, por isso mesmo introduz um terceiro elemento sustentador da sua organização regional, a água.

A vida exala o úmido

A condição da água como elemento essencial da vida é assunto já debatido por grandes pensadores, os quais, evidentemente, aparecem na construção deste subitem de maneira indireta. Sem querer olhar em demasia para o fundo da história do pensamento ocidental, correndo o risco de cair em miragens epistemológicas, Tales de Mileto (624-546 a.C) traz uma importante reflexão lógica ao afirmar que a água é a origem de todas as coisas e a fonte de tudo que existe. Ele acreditava que a água era o elemento transformador universal de tudo, a arché do mundo material. Embora a ideia de Tales pareça simplista, é importante entendê-la como uma tentativa corajosa de explicar a natureza do mundo sem recorrer a mitos ou lendas.

Outro grande pensador do entorno da península balcânica a usar o elemento água como recurso metafórico é Heráclito de Éfeso (540-470 a.C), “aos que entram nos mesmos rios outras águas afluem; almas exalam o úmido” (Dídimo 1999:20). Um dos pré-socráticos mais conhecidos, Heráclito formula com destreza a problemática da unidade permanente do ser diante da mutabilidade e pluralidade das coisas particulares. Desta maneira, pode-se interpretar o fragmento acima como uma reflexão sobre a mudança constante da vida e da natureza. Se nada permanece o mesmo, o princípio das coisas é o movimento.

Guardadas as devidas proporções, essa pequena reflexão apenas abre o debate acerca da importância da água e do movimento para a existência da Amazônia-Mundo de Hilgard O’Reilly Sternberg. Não se pretende aqui traçar um continuísmo anacrônico entre os filósofos e Sternberg, mas sim ressaltar permanências lógicas que se mantiveram vivas ao longo do tempo e influenciaram a identidade racional do ocidente.

Com efeito, a proposição que sustentamos é a de que a água constitui o elemento da paisagem, através do qual mais agudamente se sentem as vinculações do homem com o meio [...] quanto às relações entre a água e a sociedade humana, o elemento líquido é universalmente condição indispensável para a presença do homem. Aqui se poderia lembrar o nome de Tales de Mileto, que, segundo a tradição aristotélica, teria sido o primeiro a considerar a água como a “substância primordial”. (Sternberg,1998 [1956]:14-15).

Ora, se pudéssemos definir o rio de maneira simplificada, sob o prisma de um observador atento, ele seria água em movimento.

É importante termos bem claro, diria Canguilhem (2005: 09), que o objeto da Ciência (primeira ordem) não pode ser confundido com o objeto da História da Ciência (segunda ordem), embora ambos sejam construções epistêmicas. Além disso, ele também advertiria que “epistemologia sem a história é vazia, enquanto a história sem epistemologia é cega”. Os objetos de estudo, portanto, se modificam com o tempo e em diferentes lugares. Isso quer dizer que a ideia de “água em movimento” de Sternberg com certeza diferencia-se da ideia de “água em movimento” dos filósofos gregos, ainda que, em certa medida, na formação do tecido do conhecimento, alguns destes fios sobreviveram ao longo do tempo enquanto outros se perderam para sempre.

Dito isto, o local de atuação profissional do geógrafo brasileiro na década de 1950, onde localiza-se seu laboratório geográfico, no coração da floresta, limita-se ao pequeno município do Careiro, estado do Amazonas. Malgrado de dimensões modestas, o Careiro foi cuidadosamente escolhido por Sternberg por estar na convergência anastomosada do rio Negro com o Solimões, margeando a capital Manaus. Além disso, ele aceitava a ideia de célula da Paisagem (ecótopo), termo contido no trabalho A Paisagem Geográfica de Carl Troll ([1950] 1997). De maneira geral, quanto menores fossem as divisões espaciais, mais relevância poderiam adquirir frente à essência da paisagem observada, logo, os ecótopos, entendidos como divisão da paisagem geográfica, não são importantes somente no trabalho científico da geografia, mas também, ao expressar a distribuição dos diversos elementos da paisagem, têm uma grande importância prática (Troll: 5). A redução da paisagem a seus elementos essenciais não facilita o trabalho do geógrafo, mas evidencia os elementos identitários físicos e humanos. Sternberg, ao estudar a vasta e aparentemente estável Amazônia, escolheu investigar a dinâmica da paisagem de um pequeno município, o Careiro, refletindo a influência de Troll em suas pesquisas.

Sternberg reconhece que a constância das características do meio geográfico constrói o ritmo de vida dos grupos bióticos, enquanto variações constantes deste mesmo meio constituem a base de uma certa Ecologia da Paisagem, ao introduzir a imprevisibilidade dos fenômenos naturais. Essa abordagem contrasta com estudos anteriores que vinculavam a Amazônia estritamente ao clima. Ademais, no interior desse mosaico de teorias ao redor de Sternberg, ele ainda adota a ideia de “personalidade da região”, termo utilizado por Sauer, para descrever a singularidade da várzea do Careiro em relação as outras áreas do Amazonas. E tanto a célula da paisagem quanto a personalidade da região só podem ser compreendidas em razão do movimento constante dos rios, os quais agem sobre o espaço, construindo, assim, a singularidade da paisagem amazônica. Tal característica fisiográfica conectaria o pequeno município a um sistema ecológico tropical, cuja descarga de sedimentos orgânicos nas terras baixas do Careiro (várzea), assim como o processo de ocupação humana em suas terras altas e secas, poderiam transformar a morfologia do terreno, o que poderia levar a certa limitação no desenvolvimento de atividades econômicas, por exemplo.

Assim, a planície amazônica conteria duas ordens de paisagens inteiramente diferentes: as várzeas e as terras firmes. Foram as várzeas, propensas aos alagamentos nas imediações dos rios, que qualificaram o conceito de “terra imatura”, tão frequentemente identificado com a totalidade da região. Mas são as “terras firmes”, aponta o geógrafo brasileiro, que predominam na Amazônia. “Elevam-se, em alguns lugares, poucos metros acima das águas; em outros pontos, chegam a constituir planaltos de altitude moderada” (Sternberg 1998 [1956]: 244). Toda essa moldura morfológica minuciosamente descrita por Sternberg ao longo dos três documentos analisados neste artigo não exclui o processo de transformação do que é observado. Ao contrário, esta moldura pode expandir-se ou contrair-se dependendo do possível enviesamento histórico do pesquisador. Para Sternberg, o espaço amazônico não é um dado à priori, mas uma construção simbólica que, paradoxalmente, contém explicações supostamente objetivas (o discurso científico) e subjetivas (o discurso mitológico). Por isso mesmo, para buscar a coerência regional - transformando-a em objeto da ciência geográfica - foi preciso compreender a lógica destes dois mundos, bem como a interação deles com a fluidez ininterrupta do rio amazonas.

Após a publicação do trabalho “Vales Tectônicos na Amazônia Brasileira?” (1950), o cientista brasileiro passa a desconfiar de atividades tectônicas no solo amazônico. Observando fissuras na planície, ele acreditava em movimentos sísmicos geradores de deslocamento de terra em direção aos rios. Posteriormente, em 1953, ele reformula esta hipótese, excluindo os “movimentos sísmicos geradores” pela ideia de a densidade da água dos rios ser a principal causadora dos abalos no terreno amazônico. Essa alteração está contida no artigo “Sismicidade e Morfologia na Amazônia Brasileira” (1953)8, no qual o autor discute a relação entre movimentos da planície fluvial e o relevo, dando grande importância para atividade fluvial na formação da paisagem amazônica, visto que a dinâmica do deslocamento dos afluentes e subafluentes dos rios em direção aos canais hidrográficos principais esculpiam o relevo, do encontro das nascentes até a foz.

Na época, tal reformulação foi possível porque Sternberg percebeu uma diferença entre os testes em laboratório e o que se observava na natureza com relação aos processos de compartimentação do solo. No entorno Amazônico, haveria a possibilidade de os movimentos tectônicos formarem as fissuras ortogonais das planícies, o que de certa forma contradiz a própria ideia, naquele contexto, de que a região teria uma estabilidade sísmica. Os tremores do solo seriam a consequência de uma causa ainda não esclarecida, por isso a hipótese do deslocamento fluvial.

Entretanto, se fosse o caso, as terras soltas –margeadoras o rio Negro– ao se desprenderem do solo, deveriam produzir elevada força de impacto na via fluvial, causando um abalo sísmico. A percepção deste fenômeno, segundo Sternberg, foi descrita pela primeira vez em 1690 como um possível terremoto por Samuel Fernandes Fritz (1654-1725), padre da Companhia de Jesus atuante na catequização indígena nas várzeas do rio Negro e do rio Solimões. Segundo o jesuíta:

A 6, pela manhã, surgiram ao lado do Norte as terras em que, no anno passado de 1690, pelo mez de junho occorreu um grandissimo terremoto. Pareciam ruinas de grandes cidades: penhascos caidos, arvores grossissimas desarraigadas e lançadas ao rio; terras muito altas desmoronadas; outras brancas, vermelhas, amarellas, no meio de pedras e arvores, amontoadas sôbre as margens; por toda parte lagôas abertas, bosques destruidos, e· tudo sem ordem mixturado. Onde havia terra arenosa ou lodosa o estrago se não fizera sentir.9

Ao utilizar as memórias do padre, Hilgard Sternberg finca um diálogo com o passado no qual busca respostas para o estranho fenômeno do tectonismo nas planícies amazônicas sem, contudo, abandonar a premissa de que o tectonismo pode favorecer a construção morfológica da paisagem. Ora, dentro da disponibilidade material em 1953, ele observa um padrão nas ranhuras do solo que se avizinham aos rios amazônicos. No limite metodológico do período, a explicação de Sternberg sobre essa semelhança baseava-se no experimento de Daubrée – utilizado já em 1950 -, o qual consistia na ruptura de uma lâmina de vidro por torção, produzindo assim “trincas” semelhantes às encontradas no solo (Figura 1a).

Figura 1. A) Experimento de Daubrée (Sternberg, 1950:520).

B) Observação de trincas ortogonais em 3 placas de vidro mediante o uso do dispositivo indicado pelo experimento de Daubrée. Evidente tendência ao paralelismo, isto é, as fissuras na placa de vidro seguiriam condições correspondentes caso uma força constante fosse aplicada sobre elas (Sternberg, 1950:520).

Uma força externa seria necessária para criar as fraturas no vidro, logo, por analogia, o mesmo fenômeno deveria ocorrer na planície do Amazonas. E qual condição haveria de ter potência suficiente para movimentar todo um solo de uma região? A resposta seria: o próprio deslocamento de água dos rios causaria tectonismo que, em razão do seu gigantesco fluxo contínuo, teria peso o bastante para criar fraturas no solo (Figura 1b).

Todavia, Sternberg aceita parcialmente essa ideia, mostrando-se cauteloso em usá-la de forma irrestrita, visto que este instrumento era bastante rudimentar e impreciso. Em 1953, ele atribui menor importância às atividades sísmicas - ainda que não as negue por completo - substituindo-as por uma análise “mais humana” da formação morfológica da paisagem, auxiliado pela datação de objetos culturais (cerâmica, por exemplo) em áreas de várzea. No caso, as feições morfológicas da paisagem estariam mais atreladas à ação antrópica sobre o espaço do que a movimentos espontâneos de massa orgânica e inorgânica.

Outro ponto de destaque refere-se aos dados estatísticos usados por Sternberg para construir tanto o trabalho de 1950 quanto o de 1953, todos obtidos junto ao Conselho Nacional do Petróleo. Isso, além de demonstrar a centralização proposital da base de dados nas mãos de um órgão público, ainda aponta para o poder que o Estado exercia sobre o território. De acordo com Bomfim (2007: 78), pode-se supor que esse controle encontrava justificativa na ideia de soberania nacional, a qual balizou as ações do governo durante o século XX.

Sem entrar demais nesse assunto, porque o objetivo do presente manuscrito é outro, Sternberg se apropria de um novo procedimento metodológico na época que o auxilia a descortinar as origens naturais e humanas da Amazônia, a datação por radiocarbono. Desenvolvida em 1947 pelo químico Willard Frank Libby (1908-1980), dentro do departamento de estudos nucleares da Universidade de Chicago, o conhecido carbono 14 de certa forma proporcionou a Sternberg humanizar os estudos geomórficos no Brasil, na medida em que sua aplicação a certos materiais permitiu traçar um percurso histórico do aparato humano e do espaço por ele habitado, ligando o passado ao presente; e este presente, inclusive, ganharia contornos formais por meio da paisagem. Tudo isso, claro, segundo o geógrafo, deveria ser levado com moderação, porquanto o mencionado método ainda era desconhecido por grande parte dos cientistas brasileiros.

Helena Ribeiro (2012: 10), orientanda de mestrado de Sternberg na Universidade de Berkeley (1977), considera que o geógrafo buscou um modelo analítico integrativo para os problemas da tropicalidade amazônica, por isso transitava em outras áreas do conhecimento científico, sempre buscando absorver o que havia de novo em cada uma delas.

Se o movimento da água canalizada dos rios pode justificar horizontalmente a Amazônia-Mundo de Sternberg, os “rios do Céu” conseguem possibilitar a verticalização deste mundo por meio das chuvas. A vegetação natural é um indicador da variedade climática e de sua potência de nutrição. Isso quer dizer que podemos dividir as características do clima em duas correntes: precipitação e temperatura. Por isso, às vezes o autor utiliza o termo Regiões Climáticas. Os biócoros, neste contexto, referem-se às vegetações predominantes em determinada área do globo, o que demonstra sua relação com a temperatura, pressão atmosférica e a precipitação (Sternberg, 1950a).

Dentro dos predicados identitários que personificam a paisagem natural da várzea do Careiro –sejam os rios propriamente ditos movimentando-se no solo, ou sejam os “rios do Céu”– percebe-se a relevância da água como elemento edificador da região amazônica. E é em razão de sua atividade que derivam as formas do terreno e a ela se vincula ainda, direta ou indiretamente, a fisionomia vegetal da área. E não só altera a paisagem natural, mas a água também marca, de maneira mais acentuada, a paisagem cultural de outras regiões do Brasil, seja pelo seu excesso ou escassez.

Nota-se que a influência da água se manifesta através do suporte mesmo da ocupação: o solo, que Sternberg acreditava ser um subproduto geomórfico da água. Este solo diferenciou tratos muito desiguais quanto às possibilidades de aproveitamento. A organização do espaço far-se-ia, portanto, com a devida atenção à presença da água e às condições criadas pela geomorfologia fluvial. Essa atenção transparece, nas palavras de Sternberg (1998 [1956]:245):

Na configuração de áreas desbravadas e das propriedades, cujos contornos, sendo por vezes extremamente caprichosos, tomam a forma de um retângulo apoiado na margem do rio e alongado transversalmente a ele. A distribuição das culturas e das pastagens no interior das áreas assim definidas está naturalmente em função da diversidade dos solos que o feitio dominante das propriedades se reflete na distribuição da população agrária e, consequentemente, na própria vida social desta, de maneira comparável a que se pode observar outras regiões onde tenham surgido padronagem fundiária semelhantes. Visto como as habitações são construídas na extremidade Ribeirinha dos lotes compridos estreitos, o fato de residir o agricultor na propriedade não implica a ocupação dispersa, ao contrário, considerável agregação dos domicílios resulta em um tipo de habitat linear característica.

Nesse contexto, haveria grande adaptação antrópica ao regime das águas, sendo uma das principais preocupações do cientista brasileiro a construção segura de casas às margens do Careiro, levando-o a desenhar como deveriam ser (Figura 2).

Figura 2. Planta de uma construção adaptada ao regime das águas do rio Amazonas em 1929. Fonte: Sternberg “Influência da exploração”, 1949).

De acordo com a figura acima, as construções deveriam estar fincadas na parte mais estável e elevada do solo. Mesmo assim, as enchentes naturais causadas pelo regime de chuvas afetariam o transporte e a atividade econômica da população ribeirinha. O projeto acima demonstra uma arquitetura da necessidade, e por isso deve adaptar-se ao meio natural que o subjuga. Esta planta não é somente um esquema matematizado da engenharia civil, mas sim um registro histórico que dialoga com o passado, e contém um conjunto de saberes precedentes à data de sua criação.

Hilgard Sternberg percebia o valoroso papel dos registros históricos na elaboração de um estudo sobre a dinâmica hidrográfica amazônica. Afinal, eles forneciam medidas comparativas da paisagem observada durante sua pesquisa com um passado cercado de mistérios (Figura 3).

Figura 3. Ilha do Careiro em 1886. Fonte: Sternberg, “A água e o homem na várzea do Careiro”, 1998 [1956].

O desenho acima (figura 3) foi adaptado por Sternberg do mapa contido na obra Roteiro da navegação do rio Amazonas do Pará até Iquitos, de José Velloso Barreto, publicado em 1878. De maneira geral, o livro relata as observações de Barreto durante dois anos de viagem. Ele parte da cidade de Belém, então capital da província do Grão-Pará, percorrendo o rio Solimões e Amazonas até a cidade de Iquitos, na República do Peru. No mapa, apesar da natureza rudimentar do desenho não ter permitido a Sternberg identificar com exatidão o curso do rio, ele enaltece a tentativa de Barreto em espacializar os fenômenos geomórficos percebidos. E nesse caso, com certa perspicácia, o geógrafo brasileiro afirma ter conseguido fazer algumas comparações de posicionamento e localização da ilha do Careiro graças ao mapa de Barreto, que também possui grandes trechos narrativos complementares à imagem.

Para justificar a Amazônia-Mundo, Sternberg recorre ao farto material cartográfico encontrado em arquivos públicos espalhados pelo Brasil no ínterim das décadas de 1940-1950. Conquanto este material estivesse por vezes mal catalogado, ele tentaria organizá-lo dentro de um objetivo: compreender a mudança das paisagens cultural e natural do Careiro. Independentemente do município possuir singelos limites espaciais, ele estava conectado à dinâmica da natureza amazônica, cujo principal agente aglutinador das principais características da região seria a água. A suposta homogeneidade da floresta úmida ser a única explicação para justificar o modo de vida da população ribeirinha foi rebatida por Sternberg na mesma medida em que seu trabalho começava a ganhar destaque no meio acadêmico nacional e internacional. Se aceitarmos a ideia simplificada de que região é a organização do território a partir de um ou mais critérios estabelecidos, o principal fundamento da Amazônia-Mundo de Sternberg deve sua existência ao regime das águas que fluem por entre os inúmeros canais que cortam o espaço amazônico.

Conclusão

Neste artigo observou-se a tentativa do geógrafo Hilgard O’Reilly Sternberg de justificar a existência de toda dinâmica natural e humana da região amazônica. Para isso, valendo-se da importância da água em movimento, o rio teria papel fundamental dentro da ciência de Sternberg, visto que tanto os “rios do Céu” quanto os “rios da Terra” eram os responsáveis pela mudança da Paisagem Tropical. Isso quer dizer que Sternberg, ao longo da década de 1950, argumentou que a água, tanto na forma de rios quanto de precipitações, desempenha um papel crucial na formação da paisagem natural e humana da Amazônia. Essa perspectiva foi analisada a partir de três obras principais de Sternberg, inseridas em um contexto específico: o da consolidação e internacionalização da ciência geográfica brasileira: “A água e o homem na várzea do Careiro” (1956), “Sismicidade e Morfologia na Amazônia Brasileira” (1953), e “Vales Tectônicos na Planície Amazônica?” (1950). Cada uma dessas obras contribui para entender como o cientista brasileiro vê a água como o fator central na dinâmica geomórfica da região.

O procedimento metodológico utilizado neste estudo baseou-se em três esferas de análise: contextual, epistemológica e historiográfica, as quais possibilitam criar objetos únicos no interior da História da Ciência de alguma área do conhecimento. Isso permitiu uma compreensão mais relacional da obra de Sternberg dentro do contexto histórico da geografia brasileira e mundial da época, além de situá-la dentro das correntes de pensamento geográfico clássicas. Sternberg, influenciado por geógrafos como Carl Ortwin Sauer, Pierre Gourou e Carl Troll, incorporou conceitos como o de Paisagem Cultural, Célula da Paisagem, Ecologia da Paisagem, Geografia Tropical etc., além da premissa de que o ser humano não é apenas um produto passivo do meio, mas um agente ativo na modificação do ambiente, mesmo que, por vezes, essas ideias importadas fossem sofrer adaptações necessárias.

Sternberg também traçou paralelos entre suas ideias e o pensamento filosófico clássico de Tales de Mileto e Heráclito de Éfeso, enfatizando a água em movimento como a origem de todas as coisas. Embora essa comparação possa parecer um anacronismo, serve para destacar a continuidade de uma tradição epistemológica na ciência geográfica e nas ciências naturais em geral, que busca explicar os fenômenos naturais a partir de causas fundamentais.

A análise revela que Sternberg via os rios amazônicos não apenas como cursos d’água, mas como agentes dinâmicos que moldam a paisagem e influenciam a ocupação humana. A distinção entre várzeas e terras firmes, fundamental em suas obras, ilustra como diferentes tipos de terrenos na Amazônia são moldados pelas águas. As várzeas, áreas alagadiças próximas aos rios, são vistas como terras “imaturas” devido ao constante movimento de sedimentos e inundações, enquanto as terras firmes, elevadas e menos sujeitas a inundações, representam áreas mais estáveis para a ocupação humana e desenvolvimento econômico.

A criação deste artigo pode sugerir alguns novos caminhos para outras pesquisas, como por exemplo até que ponto a produção científica de Sternberg vai impactar as futuras gerações de geógrafos brasileiros, sobretudo àqueles vinculados a atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, local onde ele trabalhou até 1964. Dentro da temática específica, qual foi (ou se há) a crítica de Sternberg ao Estado brasileiro, especialmente em relação às políticas de desenvolvimento na Amazônia, que ele acreditava poderem ter impactos negativos sobre o ambiente natural e humano. Sabe-se, até o momento, que Sternberg defendia uma abordagem conservadora e preservacionista da complexidade ecológica da região, evitando a destruição da floresta e dos ecossistemas aquáticos.

Por fim, compreender a importância do elemento água na formação da Região Amazônica, levou a destacá-lo como um dos critérios utilizados para regionalizar o Norte do país, debate este (regionalização) levantado em 1941 por Fábio Guimarães, no artigo “Divisão Regional do Brasil”. Com isso, ainda que pouco conhecido no Brasil, Hilgard O’Reilly Sternberg pode ser considerado um personagem ímpar na história da Geografia brasileira, seja pelo fato de sua imensa obra ter sido pouco explorada por acadêmicos, seja pelo fato dele ter construído quase toda sua vida profissional no exterior.

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Alan Daniel de Brito Mello / alanbrito2013@bol.com.br

Licenciatura Plena em Geografia pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo. Mestre em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo. Doutor em História da Ciência pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pesquisador do Centro Simão Mathias de História da Ciência da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.


1. A obra A água e o homem na várzea do Careiro (1956) foi apresentada por Sternberg, no formato de tese, à Universidade do Brasil como requisito básico para entrar na carreira docente. O trabalho original divide-se em três capítulos, 1. A água e o produto de sua atividade geomórfica: a terra, 2. O povoamento e 3. A atividade criatória. Entretanto, utilizou-se a versão publicada em 1998 pelo Museu Paranaense Emílio Goeldi, em Belém do Pará. Além de autorizada pelo geógrafo brasileiro, esta segunda edição trouxe elementos pré e pós-textuais que auxiliaram na compreensão da maneira pela qual a pesquisa foi desenvolvida, bem como ajudou a entender a dimensão do seu impacto nos estudos amazônicos nos anos seguintes à primeira versão. Reforça-se o fato de que o texto central foi totalmente preservado, sem modificações de conteúdo tampouco conceituais.

2. Sternberg. “Sismicidade e Morfologia na Amazônia Brasileira.”: 443-453.

3. Sternberg. “Vales Tectônicos na planície amazônica?”: 511-535.

4. Nesse caso, sobretudo com os seguintes trabalhos, Sauer, “The morphology of landscape”; Gourou, “Les Pays Tropicaux”.

5. Alfonso-Goldfarb, Márcia H. M. Ferraz, & Patricia Aceves, “Uma ‘viagem’ entre documentos", vi.

6. Ferraz, Márcia H. M., Ana. M. Alfonso-Goldfarb & Silvia Waisse, “Reflexões sobre a constituição”, 45.

7. De maneira geral, essa teoria se baseia no princípio da atividade erosiva desencadeada por processos de ambientes áridos e semiáridos com a participação dos efeitos tectônicos, elaboradas ao longo do tempo em diferentes níveis. Há, nesse contexto, o soerguimento do solo, que pode indicar a idade geológico do terreno. Posteriormente, esse soerguimento será chamado de “morros testemunhos”.

8. Acredita-se que esse artigo tenha gozado de certo prestígio acadêmico na época, pois, ele é traduzido para o Francês e publicado no importante periódico Annales de Géographie em 1955. Cf. Sternberg, “Séismicité et morphologie en Amazonie brésilienne”, 1955.

9. O texto do padre Fritz está contido na obra O diário do padre Fritz, organizado por Albuquerque em 1917. Albuquerque, O diário do padre Samuel Fritz, 1917. Optou-se por manter a gramática original da época.