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Escola de Educação Básica. Universidade Federal de Uberlândia (ESEBA/UFU) MG/Brasil.
Recibido: 28 de febrero de 2019. Aceptado: 23 de julio de 2019.
Pensar encontros para mobilizar pensamentos e fazer brotar outras África(s) é a proposta deste texto que se dispõe a conversar com docentes e com imagens do continente africano. As reflexões tiveram início em conversas que aconteceram em oficinas, realizadas com professores de Geografia convidados a pensar o continente africano com imagens fotográficas registradas por artistas africanos contemporâneos, e que proliferaram no espaço escolar em que os docentes atuam. Na oficina, o contato com as fotografias movimentou pensamentos em torno da resistência de um pensamento único relativo ao continente. Tal encontro mobilizou experimentações curriculares que derivaram dos encontros e conversas, permitindo que se pensasse o currículo com imagens como possibilidade de resistência –currículo-resistência– no território da educação que é, predominantemente, da escrita.
PALAVRAS-CHAVE: FORMAÇÃO DOCENTE. EXPERIMENTAÇÃO. CURRÍCULO. IMAGENS. ÁFRICA(S).
This text proposes to think encounters to mobilize thoughts and to sprout other Africa(s), in conversations with teachers and African continent images. The reflections began in conversations that took place in workshops, held with Geography teachers invited to think about the African continent through photographic images recorded by contemporary African artists and that spread in the school space where teachers work. In the workshop, the contact with the images mobilized ideas about the resistance of a single thought concerning the continent. This meeting mobilized curricular experiments that resulted from the meetings and conversations, allowing the curriculum to be imagined as a resistance possibility –curriculum-resistance– in the education territory, which is predominantly writing.
KEYWORDS: TEACHER TRAINING. EXPERIMENTATION. CURRICULUM. IMAGES. AFRICA(S).
PALABRAS CLAVE: FORMACIÓN DE PROFESORES. EXPERIMENTACIÓN. PLAN DE ESTUDIOS IMÁGENES. ÁFRICA (S).
Nas últimas décadas, houve uma ampliação nas discussões e nas perspectivas de abordagens de questões relativas à formação docente e do currículo, tendo-se a intenção de atender às diferentes possibilidades de formação(ões) e de prática(s). Pensando nos cotidianos e nos diferentes atravessamentos curriculares presentes nas redes de ensino, bem como nos diferentes níveis da Educação Básica, fez-se necessário “(...) pluralizar os termos, na compreensão da multiplicidade de soluções que aparecem nos cotidianos das redes educativas (...)” (Alves, 2013:35). Para tanto, a temática que permeará a discussão do presente texto é o continente africano.1
Mesmo com os relativos avanços das últimas décadas, sabe-se que há carências no debate sobre o continente africano e, para agravar tal fato, corre-se o risco de privilegiar obras desatualizadas ou carregadas de preconceitos e estereótipos que retratam o olhar do estrangeiro sobre o continente. Assim, tendo em vista a importância de tal discussão no cotidiano docente, foi estabelecida uma conversa com esses sujeitos, a partir de fotografias da(s) África(s)2 registradas por africanos de diferentes países do continente. Vale ressaltar que as imagens tornam-se uma possibilidade, dentre outras, de propiciar um olhar outro para (re)pensar o lugar. Para tecer tal conversa, foram realizados encontros na forma de Oficina com imagens,3 cujo público era de professores de Geografia. Esta escrita tem como objetivo apresentar uma experiência que procura resistir às recomendações e discussões em torno de possibilidades únicas. As conexões estabelecidas e os caminhos trilhados serão delineados na intenção de relatar uma trajetória entre outras possíveis.
A realização das Oficinas como possibilidade de formação docente é um caminho, dentre outras opções metodológicas, que possibilita o contato com a subjetividade a partir da produção individual e coletiva dos participantes, permitindo um encontro com as fissuras do pensamento e o desenvolvimento de reflexões sobre a formação e a prática docente (Pey,1997). Nesse sentido, adotamos a Oficina como método de formação e de pesquisa para a aproximação e a experimentação docente.
A Oficina permite outros olhares sobre a temática em discussão, podendo utilizar diferentes processos articulados. As atividades diversificadas e o conhecimento que se estabelece na relação com o outro podem romper com a hierarquização da construção e socialização do conhecimento, “o oficineiro detêm uma autoridade funcional em relação à Oficina que criou e desenvolve, o que em nenhum momento o autoriza a ‘des-autorizar’ o saber dos protagonistas a respeito da situação” (Pey, 1997:50).
Como as oficinas são estratégias de formação e de pesquisa em educação, que por meio de encontros mobilizam pensamentos, procurou-se movimentar os docentes também no desmobilizar do pensamento e no desacostumar o olhar, lançando os mesmos às imagens, ao desafio de perceber as imagens, o que contavam, o que mostravam, o que...
Provocar o desassossego diante das imagens foi o objetivo do encontro. Em outros termos, buscou-se trazer a potência das fotografias para permear pensamentos distintos que pudessem proliferar e circular outros espaços, outra(s) África(s), com a intenção de dar visibilidade às potências que a(s) África(s) movimentam na vida das pessoas. Atuando no sentido do acúmulo e sobreposição e, ao mesmo tempo, transbordando por esses desejos de expressão que transformam a fotografia em matéria de fabulação, de imaginação por superfícies previsíveis (Wunder e Dias, 2011).
Foram convidados, para atravessar a oficina, corpos, cores, lugares, geografias e instantes de apreensão materializados em imagens fotográficas de um catálogo (Mali, 2011). As imagens foram chamadas para invadir o olhar dos docentes sem aviso prévio; sem pedir licença o olhar dos participantes foi lançado sobre uma coletânea de fotografias (Figura 1).4
Um lençol foi estendido sobre o chão e, nele, as fotografias foram disponibilizadas, de modo que os docentes pudessem degustar com o olhar, com o toque, com o cheiro (as fotografias podem transmitir também a sensação do cheiro do lugar), lançando o olhar ao devir: “(...) o olhar fotografias e o pensar por meio delas como acontecimentos imbricados nos sentidos previstos e retidos, e nos sentidos que esvaem nos diferentes encontros com as imagens” (Wunder, 2008:71).
Os participantes foram convidados a sentar em torno do lençol para entrar em contato com as fotografias; ver e sentir o que as imagens os convidavam a pensar. Por alguns minutos tocaram, sentiram, falaram sobre as fotografias, produziram geografias, movimentos e sentimentos; as conversas revelaram que as imagens provocaram diferentes maneiras de ver os lugares e as pessoas que foram grafadas em imagens.
Figura 1. Fotografias da IX Bienal de Fotografias Africanas em exposição em Lisboa Portugal no ano de 2011. Fonte: Catálogo da IX Bienal de Fotografias Africanas (2011).
Os docentes foram então convidados a observar as fotografias e escolher as que mais os haviam tocado: Que fotografia lhe toca? Que lhe prende e convence a con-VER-sar com a imagem fotográfica? Que sensações lhe surgem ao entrar em contato com a imagem? foram perguntas feitas no momento do encontro dos professores com as imagens fotográficas. O contato e a conversa com as fotografias foram livres, sem obrigação ou destino preestabelecido. Percebia-se que as fotografias escolhiam os participantes, ocorria ali um encantamento imagético (Figura 2).
Figura 2. Encontro dos professores com as fotografias da IX Bienal de Fotografias Africanas em exposição em Lisboa Portugal no ano de 2011. Fonte: Catálogo da IX Bienal de Fotografias Africanas (2011).
No contato com as fotografias, muitas questões foram surgindo nas intervenções junto ao grupo. Questões sobre as fotografias e suas geografias foram permeando as conversas: Que fotografias são essas? O que mostram? O que é África? O que não é África? É possível saber o que é e o que não é? Por que é preciso saber o que é África? Esse saber o que é África está ligado ao território continental ou à localização geográfica? África não está (pode estar) em todo lugar? Estes e outros questionamentos nos remetem a pensar que talvez sejam válidas para as imagens aquilo que Foucault (1988:26) apontou para o texto escrito, pois
(...) é preciso que o olhar se mantenha acima de todo deciframento possível; é preciso que as letras permaneçam pontos, as frases linhas, os parágrafos, superfícies lisas ou massas – asas, caules ou pétalas; é preciso que o texto não diga nada a esse sujeito “olhante” que é voyeur (olhar), não leitor (...).
Os docentes escolheram as fotografias que mais lhes tocavam, trilhando o caminho de selecionar e classificar as imagens. Para a maioria dos participantes foi mais fácil decidir o que as imagens retratavam e, assim, criar classificações e agrupamentos. Encontraram indícios da veracidade para responder, sobretudo, à questão que surgiu: O que é e o que não é África?
As falas evidenciavam o movimento dos participantes de pensar as fotografias como um espaço seguro, “como se o olhar pudesse tocar as coisas e os seres, como se a fotografia fosse a própria pele deste [daquele] momento olhado, que pode ser tocado novamente em outros tempos, por outros olhos” (Wunder, 2008:84). As imagens puderam ser pensadas como força documental, clichê documental, que revela nas falas o encontro com o excesso de verdades que classifica em ser e não ser.
Vive-se atualmente em uma civilização de clichês sedimentados pela centralidade da cultura (Hall, 1998), e o encontro com imagens de África(s) não nos apresentou algo diferente de falas amparadas nos clichês de África. As falas e as fotografias selecionadas pelos docentes permitiram perceber os clichês que nelas se sedimentaram, em decorrência das experiências culturais de cada um e, também, de todos. Conforme a fala de outro docente em contato com a Figura 3: “Ainda que a cor da pele do rapaz nos remeta a pensar na África (negra), os acessórios utilizados por ele, a garrafa de bebida, o tipo de edificações ao fundo, o veículo moderno nos revelam uma negação explícita de tudo que possa se relacionar com a África, ou seja, perpassa a ideia de aculturação do indivíduo” (Docente 1, 2013). A fala revela as capturas do pensamento que resiste em permanecer com a visão do continente africano como primitivo, sem movimento, pois, afinal, o que estaria sendo negado pelo rapaz fotografado senão os clichês que esse docente pensa/remete à África?
Figura 3. Fotografia selecionada por docente participante da oficina. Fonte: Antony Kaminju Kimani (Kenya), Catálogo da IX Bienal de Fotografias Africanas (2011).
Esses clichês, presentes na sociedade brasileira, ficam explícitos nas falas de vários docentes. Neles, a África não pode ser diferente: certos padrões sociais e culturais estão presos no Ocidente e não chegam na África, como se existissem fronteiras que aprisionam os padrões em seus territórios. Fronteiras as quais apresentam as imagens clichês que permeiam os pensamentos, cristalizando realidades como as decalcadas na fala de outro docente sobre a mesma fotografia: “a figura que marca a África é a do negativo; ainda é e penso que permaneça” (Docente 2, 2013).
Mas também ocorreram momentos de resistência capturados na fala de outro docente sobre a mesma fotografia: “Atualmente, [o continente africano] é parte integrante de um mercado globalizado. Apresenta símbolos de uma linguagem mercadológica mundialmente reconhecida e consumida” (Docente 1, 2013). Se a linguagem mercadológica é um clichê do capitalismo ocidental e seus símbolos são reconhecidos em diferentes territórios e línguas, decalcando-se no pensamento que os identifica como ligados ao mercado e ao consumo; na fala desse docente, o continente africano é incluído no capitalismo ocidental, retirado, portanto, das imagens de atraso e tribalismo.
Em todo momento estamos diante de movimentos de resistência e captura; clichês revelam as imagens do pensamento estabelecido e impregnam padrões sociais, culturais e de consumo, que teimam em enraizar-se no continente por meio de modelos e padrões. Conforme afirma um docente: “A imposição da colonização impregna padrão de beleza europeu e a perda da identidade”. Mas de que identidade se fala? África ou África(s)? (Docente 3, 2013)”
Território-continente em que as singularidades e multiplicidades se encontram e se misturam em diversos lugares. Corpos humanos cobertos por pele (branca ou negra), roupas, estereótipos que determinam uma localização geográfica: os primeiros não podem estar em África, mas os outros podem estar em outro lugar que não seja a África; são falas que surgiram em relação à Figura 4: “Parecem gangues de NY, mostram a decadência e os problemas urbanos, a violência” (Docente 3, 2013).
Figura 4. Fotografia selecionada por docente participante da oficina. Fonte: Mohamed Bourouissa (Algeria), Catálogo da IX Bienal de Fotografias Africanas (2011).
A decisão de classificar as imagens seguindo pensamentos já determinados revela as capturas, sobretudo pelo modo classificador do é ou não é, bastante frequente na cultura escolar informativa. Essa nos pareceu à principal captura que levou à escolha das fotografias que repetem clichês de África.
Os escapes dessa perspectiva atravessaram as falas, fazendo-se potências menores, como a que está presente na fala de um docente que revela o motivo da sua escolha pela Figura 5: “África não é um continente ‘esquecido por Deus’. Berço da miséria e da escassez de recursos financeiros. Para mim, a foto poderia representar a realidade das escolas de todo o Brasil (de norte a sul) e não apenas de países africanos” (Docente 4, 2013). A mesma fotografia foi palco de capturas como “África é uma sociedade à espera por dias melhores. As pessoas não são sujeitos de suas vidas... elas querem a mudança, transformação, mas são impedidas por questões políticas/ideológicas” (Docente 5, 2013). Captura semelhante está presente em outra fala relativa à mesma fotografia: “África é de descolonização recente, o mundo globalizado oferece possibilidades e a escolha é da África..., mas deve manter a individualidade, a identidade em diálogo com o mundo” (Docente 1, 2013).
Figura 5. Fotografia selecionada por docente participante da oficina. Fonte: Baudouin Mouanda (Republic of Congo), Catálogo da IX Bienal de Fotografias Africanas (2011).
Em alguns momentos, percebeu-se que possíveis linhas de fuga dos clichês foram traçadas pelos participantes, os quais, ao mirarem as fotografias, diziam coisas como, “os óculos não são África, e sim a presença do mundo na África” (Docente 2, 2013) (em relação à Figura 3). Fugas frágeis, pois capturadas em outros estereótipos, como também se pode notar na fala relativa à Figura 6: “a fotografia do pub mostra o estereótipo dos lugares pelo mundo, imagem estereotipada do negro e da África no mundo” (Docente 2, 2013). Linhas de fuga, portanto; também linhas de captura da própria classificação/identificação da África como um território homogêneo em que predomina a pobreza e o corpo negro, fazendo com que, uma vez que essas características estejam presentes numa fotografia, a África ali está, mesmo que a foto tenha sido tirada na França ou na Colômbia.
Figura 6. Fotografia selecionada por docente participante da oficina. Fonte: Antony Kaminju Kimani (Kenya), Catálogo da IX Bienal de Fotografias Africanas (2011).
Imagens que retratam características naturais foram selecionadas pelos docentes, a exemplo da Figura 7, e sobre elas foram decalcadas falas como parecem as praias do Nordeste brasileiro, o muro das pousadas e os hotéis ou nunca vi esse tipo de praia em fotos da África. Também a natureza africana enfrenta as padronizações midiáticas e escolares, fazendo com que fique nítido, nessas falas, o apagamento do litoral africano com suas praias e cidades a beira-mar, levando os participantes a mais facilmente verem ali o Nordeste brasileiro que alguma praia africana. Sobretudo porque, além de a natureza africana divulgada ser recorrentemente a do interior (desertos, savanas, florestas), as cidades africanas não são mostradas em sua modernidade –os edifícios, o turismo–, mas sim (e quase que exclusivamente) em suas misérias e doenças.
Figura 7. Fotografia selecionada por docente participante da oficina. Fonte: Yo-Yo Gonthier (Mauritius), Catálogo da IX Bienal de Fotografias Africanas (2011).
Algumas forças movimentaram um docente, que afirmou: “É mais fácil saber o que é do que o que não é... mas a África está em nós, em todo lugar” (Docente 5, 2013). Ainda cabe descobrir onde estão, em nós e em todo lugar, os estilhaços do continente que antes fazia a África estar num só lugar.
As imagens têm a intenção de provocar outro olhar sob o continente, pensar África(s) a partir do olhar do africano em imagens fotográficas, com o propósito de mergulhar e resistir aos clichês –não com a intenção de fazê-los desaparecer, mas com o propósito de rasurá-los naquilo que buscam dizer nas imagens–, pois:
(...) não pode suprir estes vazios temporais e espaciais que a envolvem, a partir daí enveredar por um pensamento que não busque preenchimentos, mas esvazie-se, silencie-se nas paisagens planas e fragmentadas (Wunder, 2008:113).
Percebeu-se que as imagens clichês presentes na memória dos docentes foram mais acentuadas –cristalizam as ideias divulgadas pela mídia e pelos materiais didáticos–, evidenciando as necessidades sofridas pelo povo africano e suas carências. É também presente a ideia de que o modo de vida típico de determinados lugares do planeta é inferior por não apresentar o modelo de desenvolvimento ocidental considerado padrão nas sociedades capitalistas. Houve, na interação a presença constante da negação da diferença, como se o diferente fosse inferior. A principal ação política da Oficina e do encontro com as fotografias se deu, então, considerando que “qualquer processo que sirva para revolver esses códigos e suas configurações de poder tem força política com o potencial de transformar as relações sociais e do meio de maneiras imprevisíveis” (Bogue, 2011:20).
Mais ao final da Oficina, contando a trajetória das fotografias, a autora informou que essas fotografias foram produzidas por fotógrafos de diferentes países do continente africano que capturaram imagens em seu continente-território, o que provocou estranhamento em muitos docentes.
A conversa, então, circulou em torno do papel das imagens que não visam comunicar ou informar algo, mas mobilizar pensamentos e estabelecer conexões individuais e coletivas diversas, proporcionando outras possibilidades de ver, podendo resistir ao clichê que impõe uma cortina à frente do olhar. Foi explicitada a ideia de as fotografias proporem ver além da cortina, resistir à barreira presente no tempo atual para que seja possível ver, ir além, pensar com as imagens em uma perspectiva nômade (Gallo e Carvalho, 2010).
Ainda que a tentativa fosse a de resistir, deslizar e encontrar imagens potentes que levassem os docentes a escaparem dos clichês já estabelecidos para ser possível pensar a(s) África(s), só o encontro das imagens com os sujeitos diria da potência delas naquele grupo, pois “neste jogar-se no pensamento pelas imagens, jogar-se nas imagens pelos pensamentos não há como definir uma linha de causa e efeito entre palavras e imagens” (Wunder, 2008:23).
Ao final, tudo aquilo que havia sido considerado como não sendo África foi incorporado ao repertório, levando a uma ampliação das margens da(s) África(s) no pensamento dos docentes. Pode-se dizer melhor se for considerado que a África se metamorfoseou em imagens, talvez com força para continuar levando o pensamento daqueles docentes a pensar outra(s) África(s) em suas atividades educativas. África(s) mais multifacetadas, mais complexas, menos identificáveis.
A experimentação realizada na Oficina proliferou para além do encontro, estabelecendo conexões com as escolas e práticas educativas dos docentes. Após alguns dias da realização da oficina, a autora recebeu e-mail de um dos participantes que solicitou o compartilhamento das fotografias.
No encontro seguinte, ele contou sobre a atividade realizada com os estudantes do 8º ano do Ensino Fundamental; relatou que teve a intenção de utilizar as fotografias para “mobilizar discussões sobre as questões ambientais, culturais, sociais e econômicas relativas ao continente, pois é comum associar o referido continente às questões degradantes do ser humano, esquecendo-se de suas múltiplas facetas constituintes” (Docente 1, 2013). A África proliferara em África(s)! Como aponta Oliveira Jr. (2013:307),
(...) estas experimentações criam fraturas no que era antes, sem contudo, negar o anterior, mas forçando-o a ser pensado e vivido de outras maneira, (...) [levando os docentes] a serem outros desde dentro deles próprios, promovendo outras experiências deles/neles mesmos(...).
Pensar nas experimentações é pensar no encontro em um espaço múltiplo, é pensar em uma prática docente que tem como perspectiva a resistência e a abertura, envolvendo todos os personagens em um processo de criação, e não de reprodução que leva à repetição de ideologias e clichês que impregnam a memória e a escola. Todos os envolvidos –alunos, professores, materiais, ritmos, lugares, conteúdos, linguagens– são desafiados a resistir aos currículos oficiais e às práticas de ensino já estabelecidas, criando linhas de fuga que permitam surgir outros currículos e práticas educativas e, novamente, entrem em fuga reexistindo em outros pontos do rizoma-processo educativo:
Resistir é busca de proliferação, é fazer existir alguma coisa desde dentro dela mesma: re-existir se e quando se é conectado a outros elementos que antes não compunham aquela coisa – a educação, a geografia, a fotografia, a cartografia, o vídeo, o espaço (...) (Oliveira Jr, 2013:304).
Como foi possível notar na fala do docente que experimentou as fotografias com os estudantes,
Mesmo todas as fotografias sendo expressões das realidades africanas, várias foram classificadas como não, pois no imaginário dos estudantes a África é, via de regra, o reflexo das notícias que recebemos pela mídia. Ocorreram resistências e fugas, alguns alunos colocaram em xeque algumas de suas certezas e realizaram, inclusive, analogias com o nosso país, revelando que não existe apenas uma África, mas sim, África(s)! E que elementos de sua cultura não se restringem ao seu espaço geográfico, pois as relações ultrapassam suas fronteiras e mantém uma comunicação/troca entre as diferentes partes do mundo, inclusive com o Brasil (Docente 1, 2013).
Ainda segundo o docente,
Foi possível perceber que as atividades foram muito importantes para um envolvimento maior da classe. Não se tratou de um processo de desconstrução da figura que eles (os estudantes) tinham sobre o continente africano, mas de um movimento de questionamento dos conhecimentos já existentes sobre a África para (re)pensar sobre um espaço estereotipado e, a partir de então, refletir sobre os objetivos e/ou fins que estão por trás desta realidade mascarada, ou seja: para quem é interessante e por quê vincular a África como sendo um espaço impotente? (Docente 1, 2013).
Assim, faz-se necessário escolher o currículo como resistência. Não com a intenção de oposição ao dado, mas centralizando o propósito de dar vazão ao menor, em uma perspectiva de criação rumo à proliferação de pensamentos que, politicamente, mobilizam novos pensamentos, oferecendo resistência ao maior (Gallo, 2008), ao já instituído que bloqueia outros pensamentos. A esse processo, Almeida (2004:14) chama de “a cultura de massa e a escola de massa [que] compartilham a segmentação, a simplificação do conhecimento, o oficialismo do poder econômico e estatal”. Esses poderes, mesmo permeados por imagens, permanecem arraigados na cultura escrita para ratificar o conhecimento científico, relegando as imagens ao papel de ilustrar/documentar o que a escrita informa. Alinhavadas nessa situação, as imagens cumprem o objetivo de explicar e ensinar algo previamente estabelecido. Esta tem sido a maior potência das imagens nos espaços escolares, contribuindo para mobilizar o(s) currículo(s) e a prática(s) docente(s).
O currículo pode ser vivido como movimento de resistência ao determinado: currículo-resistência que provoca rupturas e atravessa leis, livros didáticos, práticas docentes, fratura o currículo prescrito com a proposta de “(...)experimentar no currículo, de experimentar com o currículo, de fazê-lo entrar em novos agenciamentos, sem procurar conformá-lo a uma definição prévia. O novo agenciamento obtido não passaria de mais uma parte, de mais um rizoma” (Gauthier, 2002:144).
A(s) África(s) extraídas das experimentações na oficina com fotografias movimentaram as imagens já instituídas do continente pelo discurso maior, que dificulta outros pensamentos relativos ao continente africano. A intenção na oficina não foi arrancar os clichês, mas revolvê-los, possibilitando que as raízes arbóreas ganhem liberdade para que se fraturem em rizomas, de forma a tornarem-se abertas e múltiplas.
A multiplicidade é ação, fluxo, máquina de produzir diferenças que resiste à identidade redutora das diferenças. Pensar em África(s) é resistir ao pensamento da diversidade, que é estático e estéril, que limita o existente ao visível, caracterizando a identificação como a um dado da cultura ou da natureza, reafirmando o idêntico, reproduzindo clichês. Para afirmar a diferença, é preciso tentar escapar do pensamento identitário, pois a identidade impõe uma figura do pensamento e a diferença propõe, mobiliza o pensamento. Então, sugere-se:
Preferir a diferença à identidade. A positividade à negatividade. A afirmação à contradição. A singularidade à totalidade. A contingência à causalidade. O evento ao predicado. A performatividade à qualidade. O verbo ao adjetivo. O “verdejar” ao “verde”. A linha ao ponto. A espiral à seta. O rizoma à árvore. A disseminação à polissemia. A ambiguidade à clareza. O movimento à forma. A metamorfose à metáfora. O acontecimento ao conceito. O impensado ao bom senso. O simulacro ao original (Corazza e Tadeu, 2003:10).
O desafio da prática docente é o de não criar raízes-identidades que reafirmem ou criem clichês, como os clichês divulgados em livros didáticos e nos meios de comunicação que se repetem em muitos momentos nas criações dos docentes; o desafio é rizomatizar o pensamento, fazê-lo variar em outras formas e possibilidades de ver África(s).
A experimentação com fotografias de África(s) teve a intenção de provocar o pensamento sobre o currículo não como substantivo, mas como verbo, ação, movimentação, curriculação, com a intenção de gestar a proliferação em uma perspectiva aberta e difusa do currículo-resistência. Torna-se necessária a crença de que os percursos curriculares devem apostar no saber escolar não como acúmulo de informações, mas como proliferação de pensamentos (Oliveira Jr, 2013), permitindo que a multiplicidade e a diferença estejam sempre presentes.
A intenção de mobilizar o pensamento por figura para conversar com o continente africano teve a intenção de resistir, ao maior, aos currículos prescritos e determinados que decalcam condições e situações. A proposta de pensar com imagens resiste ao caminho do ensino, em que o conhecimento maior evidenciado, sobretudo, por um tipo de cultura-linguagem escrita, sobrepõe-se a tudo dificultando –ou mesmo impedindo– as potencialidades que outras linguagens poderiam ter nos ambientes escolares.
O campo das experimentações curriculares com imagens é da ordem do menor, do que não é definido como norma, modelo didático, metodológico ou informativo para ser aplicado no processo de ensino. As fotografias foram agenciadoras de experimentações com a intenção de resistir ao estabelecido, de provocar a abertura do pensamento para as multiplicidades que venham a ser extraídas nas e das conexões que vierem a ser feitas por onde circularam.
As imagens podem ser um campo de resistência e de proliferação potente quando não aprisionam o pensamento em um significado ou modelo específico de pensar, mas libertam o pensamento para novas aberturas e perspectivas que permitam mapear as inúmeras saídas/fugas dos pensamentos, singulares nas novas conexões e avizinhamentos que realizarem. Nesse sentido, no contato com as fotografias o importante é colocar o pensamento em constante movimento, provocando rasuras naquilo que impede o pensamento de pensar; por isso, resistir aos clichês nos quais o pensamento se estabiliza por parecer já ter tocado a verdade, a (única) realidade da figura.
No entanto, cabe dizer que muitas vezes aquilo que institui, que tem potência maior, pode provocar fissuras e aberturas para que as potências menores venham a atuar com mais força e variação. É esse o caso da lei que instituiu a obrigatoriedade do ensino da História da África e da Cultura Afro-brasileira nas escolas do Brasil. Em meio à necessidade de enfrentar algo novo, podem se dar às invenções. A própria oficina reverberou com mais força entre os docentes porque eles também encontraram ali possibilidades para enfrentarem e inventarem outras maneiras de fazer o instituído pela lei.
As imagens podem vir a configurar um currículo dentre outros, fazendo um contraponto ao currículo como prescrição, não como lista de conteúdos, mas como conjunto de práticas de formação.
O que fazer já estava dado pelo maior, mas o como fazer fica nas mãos de cada docente, que pode escolher caminhos no sentido de capturas ou a resistências aos clichês. A proposta é de que as conversas com as imagens de África(s) tragam para dançar nos encontros realizados com os estudantes potências que valorizem a singularidade, com a intenção de fazer proliferar pensamentos os quais valorizem a diferença, movimentem a multiplicidade em desfavor da diversidade para resistir às imagens e pensamentos bloqueadores, possibilitando experimentar a(s) África(s) por imagens em uma perspectiva rizomática.
As imagens são apenas outra possibilidade de ver (educar); imagens que podem ser da(s) África(s) ou de outros lugares, pois o mundo, na perspectiva da Filosofia da Diferença, é aberto e, como tal, não impõe lugares, mas propõe linhas de pensamento; as conexões acontecem permitindo o ir e vir as trocas, as escolhas e as montagens que (re)criam territórios e novos mapas. Nada é, as coisas estão.
Ínia Franco de Noves / inianovaes@ufu.br
Licenciada em Geografia - Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e em Pedagogia - Universidade de Uberaba (UNIUBE). Mestre em Geografia - Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Doutora em Educação – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Docente da Carreira do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico da Escola de Educação Básica da Universidade Federal de Uberlândia (ESEBA/UFU). Tem experiência nos diferentes níveis de ensino desenvolvendo pesquisas com temas que abordem a Educação, Imagens, Currículo, Formação e Prática Docente na Educação Básica.
1 Escolha fortalecida em detrimento da promulgação da Lei N° 11.645, de 10 de março de 2008, que alterou a Lei N° 10.639, de 09 de janeiro de 2003. A qual, por sua vez, alterou a Lei N° 9.9394 de 20 de dezembro de 1996, das Diretrizes e Bases da Educação Nacional (regulamentada pelo Parecer CNE/CP 003/2004 e pela Resolução do CNE/CP 001/2004), estabelecendo a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
2 A grafia África(s) refere-se à imagem múltipla que a autora tem do continente.
3 As Oficinas foram realizadas no Centro Municipal de Estudos do Professor do Município de Uberlândia-MG (CEMEPE) em dois encontros, abril e maio de 2013. Foram voltadas para os professores da rede pública de ensino, e demais interessados na temática em discussão, perfazendo um total de oito horas de atividades com temáticas específicas relacionadas à(s) África(s).
4 As imagens fotográficas fizeram parte do catálogo da IX Bienal de Fotografias Africanas expostas em Lisboa, Portugal, no ano 2011 (Mali, 2011). A Bienal foi um dos importantes eventos dedicados à promoção e à exposição de artistas contemporâneos do continente e da diáspora africana, revelando novos talentos da África.