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Grupo de Pesquisa (CNPq) Poéticas do Urbano. Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Florianópolis, SC, Brasil.
Recibido: 28 de febrero de 2019. Aceptado: 26 de septiembre de 2019.
Este artigo tem por objetivo apresentar dois projetos de arte colaborativa realizados pelo coletivo de arte britânico PLATFORM, no intuito de fomentar reflexões sobre o campo da arte colaborativa, ativismos políticos e práticas educacionais libertadoras. O primeiro projeto, intitulado Delta (1993), centrou-se no processo de reativação do poder das águas na região do delta do rio Tamisa, em Londres. Com a colaboração de engenheiros, estudantes e professores de uma escola primária local, o coletivo construiu num rio próximo à escola uma microturbina hidráulica para geração de energia elétrica renovável, comunitária e de baixo impacto para a escola. O segundo projeto, Remember Saro-Wiwa (2005–2013), produziu uma série de atividades artísticas colaborativas de homenagem ao escritor e ativista ambiental nigeriano Ken Saro-Wiwa e de debate público sobre processos neocoloniais de exploração de recursos naturais e energéticos no Sul Global. Embora diferentes em suas formas e metodologias de trabalho, ambos projetos se apresentaram, ao meu ver, como experiências relevantes no campo ampliado das artes e da educação, no processo de engajamento de seus participantes em questões de justiça social e ambiental.
PALAVRAS-CHAVE: ARTE COLABORATIVA. ARTE ATIVISTA. PRÁTICAS DESCOLONIAIS. EDUCAÇÃO. JUSTIÇA AMBIENTAL.
In order to connect reflections on visual arts, political activism and educational practices as liberation, I introduce here two collaborative art projects carried out by the British collective PLATFORM. The first project, entitled Delta (1993), focused on the reactivation of water power in the Thames delta region (London/UK). With the collaboration of engineers, students and teachers from a local primary school, the collective built in a river near the school a hydraulic micro-turbine to generate renewable, community-based and low-impact electric power for the school. The second, Remember Saro-Wiwa (2005-2013), produced a series of collaborative arts activities in honor of Nigerian writer and environmental activist Ken Saro-Wiwa. The project opened a public debate about neocolonial processes of exploitation of natural and energy resources in the Global South. Although different in their forms and methodologies of work, from my point of view, both projects presented themselves as relevant experiences in the expanded field of arts and education and in the process of engaging their participants in issues of social and environmental justice.
KEYWORDS: COLLABORATIVE ART. ACTIVIST ART. DECOLONIAL PRACTICES. EDUCATION. ENVIRONMENTAL JUSTICE.
PALABRAS CLAVE: ARTE COLABORATIVO. ARTE ACTIVISTA. PRÁCTICAS DECOLONIALES. EDUCACIÓN. JUSTICIA AMBIENTAL.
Desde os anos 1960, mas especialmente a partir dos anos 1980 e 1990, questões das chamadas minorias sociais vêm ganhando espaço no campo das artes. Trabalhando individualmente, em coletivos ou em redes, cada vez mais artistas estão discutindo em suas práticas questões acerca das situações de subalternidade e de resistência de sujeitos e grupos sociais como mulheres, negros, indígenas, homossexuais, imigrantes, deficientes, moradores de periferia, entre outros. É também a partir desse período que artistas, críticos de arte e pesquisadores passaram a debater com maior afinco o modo como a história da arte ocidental e o seu templo sagrado, o museu, vêm moldando retóricas e práticas artísticas em conceitos eurocêntricos pretensamente universais (Mignolo, 2010).
Chamados nos anos 1960 de artistas políticos ou engajados, esses passaram a ser identificados, especialmente nas últimas três décadas, como artistas ativistas, enfatizando assim o caráter propositivo de seus trabalhos. Sem o objetivo aqui de enquadrar as práticas desses artistas em uma corrente artística uníssona, o que vale a pena destacar, como aspecto comum, é o desejo de que seus trabalhos provoquem mudanças sociais. O principal interesse da arte ativista é provocar tanto reflexões quanto práticas críticas frente às diversas injustiças sociais em curso, inventando e reinventando modos de sentir, pensar, ser e estar no mundo (Dassoler, 2017).
Diante do atual aprofundamento do neocolonialismo no Sul Global e envolvida politicamente com a perspectiva cultural e epistemológica de valorização das práticas de resistência e de crítica ao modelo energético atual, apresento a seguir dois projetos do coletivo de arte PLATFORM que, ao meu ver, entrelaçam de forma sensível e coerente questões do campo das artes, educação e justiça ambiental.
O coletivo de arte PLATFORM surgiu em 1983, fundado por estudantes universitários dos cursos de Teatro e Artes Visuais da cidade de Brighton, na costa sul da Inglaterra. Participando do movimento antinuclear da época e guiados pela ideia de que “a arte como ativismo é uma potente força para mudanças reais” (Trowell, 2013:31), o coletivo se formou em resposta às crescentes crises do setor público britânico.
Preocupados com a onda de privatizações dos principais serviços públicos, o grupo procurou reunir pessoas de diversas áreas e disciplinas, “na crença de que as artes poderiam sensibilizar as pessoas mais profundamente e de forma mais rápida do que outros meios” (Ibíd.:31). Pensada como uma plataforma para encontros, debates e criações, as primeiras ações do coletivo estavam alicerçadas em problemáticas locais, como os processos de gentrificação que estavam ocorrendo no centro da cidade e os abruptos cortes em bolsas de estudos.
Segundo James Marriott, um dos artistas fundadores do coletivo, o grupo surgiu num momento em que a política estudantil “tendia mais a se concentrar em questões de outros lugares” (Platform, 2001), como nos conflitos que transcorriam na época no Oriente Médio. Eles, por outro lado, desejavam intervir em seus cotidianos. Diziam eles: “Queríamos criar obras que, desde a primeira instância, estivessem envolvidas no imediato, no local, e usar isso como uma lente através da qual poderíamos ver questões mais amplas” (Platform, 2001).
O primeiro projeto desenvolvido por eles, Addenbrookes Blues, é um exemplo nesse sentido. Realizado em colaboração com profissionais do setor de limpeza do Hospital Universitário Cambridge Addenbrookes Blues, o projeto buscou revelar quem de fato estava sofrendo com os cortes de salários e políticas de terceirização dos serviços públicos no Reino Unido. Através da realização de uma série de ações como debates, performances e intervenções, o coletivo buscou chamar a atenção do público e da mídia local para a pirâmide hierárquica do hospital que, no momento de sua reforma, não mantinha os mesmos direitos e privilégios dos profissionais do topo para aqueles que atuavam na base de seu funcionamento (Trowell, 2013).
Buscando articular “a imaginação das artes com a ação política” (Trowell, 2013:31), o grupo anunciava em seu primeiro Manifesto, de 1987, sua proposta de atuação:
(...) para aqueles envolvidos com a política, pensar mais criativamente; e para os envolvidos com a arte, pensar mais politicamente. E trabalhar nisso juntos (...), pensando e agindo agora todos nós iremos desenhar os mapas do futuro (Ibíd.:31).
Em 1989, o coletivo migrou para Londres. Na capital, ganhou novos membros e buscou direcionar seus projetos para essa nova realidade metropolitana. Jane Trowell, arte-educadora e integrante do coletivo, comentou sobre essa nova fase: “Em Londres, nós demos início a uma investigação sobre o impacto social e ecológico da cidade de Londres em casa e no mundo” (Trowell, 2013:32). Foi a partir da ideia de uma pesquisa sistemática sobre o passado e o presente da cidade, que o coletivo passou a compreender melhor as relações de poder em jogo naquele lugar. Disse Jane: “Nós pudemos entender como que Londres, cidade do comércio global e centro do poder imperial e neoliberal, tinha raízes de 500 anos” (Ibíd.:32).
No início de 1992, o coletivo lançou um projeto pioneiro sobre a história de negligência dos rios na cidade de Londres. Intitulado Still Waters: re-imagining London’s rivers o projeto consistiu em um exercício de cartografia colaborativa de cursos d’água que se encontravam poluídos ou mortos (que haviam sido canalizados para o escoamento de esgotos). Através de entrevistas com moradores locais, pesquisas em bancos de dados da Prefeitura e técnicas de radiestesia (para localizar antigos riachos), quatro afluentes do Tamisa foram mapeados pelo grupo.
Ao articularem relatos de experiência de antigos moradores sobre a memória de vida e morte desses rios e reflexões sobre os processos de urbanização e industrialização da cidade de Londres, o coletivo procurou mediar o desejo de alguns moradores em reviver esses rios. Ao longo de um mês, o grupo organizou uma série de encontros, caminhadas e performances com o objetivo de re-imaginar coletivamente a presença desses rios na cidade. Por suas abordagens inovadoras, o projeto acabou recebendo ampla cobertura midiática no Reino Unido e o prêmio de Melhor Iniciativa Cultural do Ano pela famosa revista britânica Time Out.
Em entrevista a mim concedida, em fevereiro de 2016, James Marriott contou que o coletivo foi, desde o seu início, bastante influenciado pelas ideias de dialogicidade e colaboração do educador brasileiro Paulo Freire. Práticas e saberes de movimentos sociais se misturavam com aqueles vindos da academia e esses, por sua vez, se entrelaçavam aos saberes contidos nos relatos autobiográficos dos participantes dos projetos. As principais metodologias de trabalho do grupo surgiam, portanto, desse encontro frutífero de tradução intercultural de saberes e práticas.
Em 1993, comemorando dez anos de existência, o coletivo iniciou o projeto Delta, uma espécie de desdobramento do Still Waters. A temática da água permanecia, mas dessa vez avançava na discussão sobre a produção de energia renovável e comunitária em contexto urbano.
Delta foi concebido como um projeto de prática colaborativa, que tinha por objetivo reativar o poder das águas na região do delta do rio Tamisa. O Wandle, um dos afluentes do Tamisa (mapeado em Still Waters), foi escolhido como espaço geográfico de intervenção do grupo. Contando com a colaboração de uma equipe de engenheiros e de professores e alunos de uma escola primária local, a St. Joseph School, o coletivo de artistas fomentou um interessante processo de pesquisa participativa sobre o rio Wandle e sobre formas de geração de energia renovável de baixo impacto. Ao longo de um ano, diversas atividades aconteceram, culminando na construção e instalação de uma microturbina hidráulica com o objetivo de gerar energia elétrica para a referida escola (Figuras 1 e 2).
Para que o projeto fosse, de fato, significativo para as crianças, uma série de atividades pedagógicas e artísticas foram desenvolvidas com elas. Caminhadas nas margens do rio, elaboração de pesquisas sobre a história do bairro e a relação que os antigos moradores tinham com o rio, e a produção de mapas, vídeos, desenhos, poesias e performances (Figuras 3 e 4). Dentre outras atividades, cito aqui a instalação de um sino numa antiga eclusa do rio. Quatro vezes ao dia, com o movimento de subida e descida das marés (nível da água), o sino era tocado resultando em uma “performance musical ao ar livre” (Platform, 1993).
Figuras 1, 2, 3 e 4. Registros do Projeto Delta, em Londres (1993). Fonte: Acervo do PLATFORM.
Para Jane Trowell, que na época também trabalhava como educadora na St. Joseph School, o processo de envolvimento com o lugar foi importantíssimo para a atribuição de sentido e de engajamento das crianças no projeto. Elas eram incentivadas a pesquisar sobre as diferentes formas de produção de energia e puderam articular esses conhecimentos com a experiência de acompanhar de perto o trabalho dos engenheiros e artistas na construção e instalação da microturbina.
Em 1995, dois acontecimentos polêmicos marcaram uma nova fase e direção para os projetos do coletivo. O primeiro foi o do destino de Brent Spar, um enorme reservatório de petróleo da Shell que se encontrava em desuso no Reino Unido e que a empresa planejava, com o apoio do governo britânico, descartá-lo em águas profundas do Mar do Norte, no Atlântico. O segundo acontecimento foi a execução do escritor e ativista nigeriano Ken Saro-Wiwa1 e de mais oito ativistas ogonis durante o regime militar de Sani Abacha, na Nigéria, com implícita participação da Shell. Percebendo que as políticas produzidas nos escritórios londrinos estavam diretamente vinculadas a esses dois acontecimentos, o coletivo decidiu iniciar uma investigação de longo prazo acerca do papel de Londres na geopolítica mundial do petróleo. Abrigando diferentes tipos de projetos e frentes de ação, a proposta do coletivo era fomentar, em colaboração com outros artistas, universidades, organizações e movimentos sociais, pesquisas e ações artísticas e educacionais sobre os complexos impactos sociais e ambientais de corporações transnacionais de petróleo, cuja a sede e o centro de decisões se encontram em Londres.
No ano de 2004, o coletivo percebeu que os dez anos da morte de Ken Saro-Wiwa se aproximava e que, se em 1995 o caso dos assassinatos dos ativistas ogonis havia recebido grande atenção midiática no Reino Unido (impulsionado pelas duras críticas que a Shell estava recebendo por conta de Brent Spar), em 2004 parecia que o caso nigeriano tinha caído em total esquecimento. O coletivo então se questionou: como reanimar as ideias de Ken Saro-Wiwa sobre não-violência, solidariedade internacional e justiça social e ambiental? Como despertar empatia nas pessoas de Londres em relação ao sofrimento das pessoas no Delta do Níger que continuam morrendo por causa do petróleo? Como mostrar as inter-relações entre os lugares? Como falar sobre esse caso específico e sobre a geopolítica global do petróleo?
A partir desses questionamentos, o coletivo decidiu lançar, ainda em 2004, o projeto RSW – Remember Saro-Wiwa. A proposta era a realização de um projeto de arte pública e colaborativa em Londres que refletisse sobre a atualidade do legado de Ken Saro-Wiwa. A ideia era criar uma rede de coalizão com artistas, movimentos e organizações sociais, para depois produzir um memorial vivo ao escritor ogoni. O objetivo era tanto homenagear a história de resistência pacífica do artista e dos ativistas ogonis do MOSOP, quanto criar espaços significativos para o debate público sobre práticas de racismo ambiental.
Depois de criada a rede de coalizão, o coletivo PLATFORM anunciou uma chamada pública de propostas artísticas para a criação de um Living Memorial (Memorial Vivo), para Ken Saro-Wiwa.2 Os projetos poderiam ser enviados por qualquer pessoa, de qualquer idade ou nacionalidade, sem a necessidade de experiência ou formação prévia no campo das artes. A única condição era que o memorial fosse concebido como um espaço dinâmico e participativo, onde histórias silenciadas pudessem ser contadas, recontadas e discutidas. Como explicou Ken Wiwa, filho de Ken Saro-Wiwa e um dos integrantes da coalizão:
Em nosso mundo interconectado e economicamente globalizado, não deveria ser incomum colocar um memorial para um africano nas ruas de Londres. Afinal, a paisagem cultural é um reflexo do terreno econômico. Mas historicamente, memoriais e estátuas não falam a língua da justiça cultural; elas registram a narrativa do colonialismo em nosso mundo visual. Os grandes memoriais das cidades europeias tendem a honrar indivíduos que trouxeram para casa as pilhagens da guerra. (...) Na África, muitos memoriais ainda representam os colonizadores, homens (geralmente são homens) que abriram o continente a força para os negócios do império. Os próprios nomes de muitos de nossos países e cidades, cachoeiras e rios africanos, circundam suas memórias. Estátuas falam especialmente a língua da conquista. E enquanto vigiam os céus da Europa, essas figuras distinguidas zombam o presente com o peso morto de uma história que instalou uma ordem mundial construída sobre a expropriação e exploração. Outro mundo é possível. Um que aprecie homens e mulheres que dedicaram suas vidas a construir um mundo justo. Então, um memorial para o meu pai, para Ken Saro-Wiwa, é um começo. Um africano sendo homenageado no coração de Londres; um Memorial Vivo que honra um homem que morreu pela esperança de um futuro justo. Ele seguir os passos de Nelson Mandela como o segundo africano a ser oficialmente homenageado dessa maneira é uma grande fonte de orgulho para a minha família, minha comunidade e meu país. Esperamos que ele ofereça uma janela de esperança, que possamos construir um mundo baseado no respeito mútuo e no reconhecimento do nosso destino compartilhado (Wiwa, 2005:03).
A proposta de um Memorial Vivo atendia tanto ao exercício de desconstrução icônica das tradicionais estátuas da cultura ocidental colonial quanto ao exercício democrático de construção popular de práticas artísticas descoloniais, onde outras epistemologias e outros roteiros (Taylor, 2013) são possíveis.
Em junho de 2005, o coletivo recebeu quarenta e sete propostas para a criação de um memorial. Depois de analisadas por uma ampla comissão julgadora, cinco propostas finalistas foram debatidas junto ao público em um Seminário na famosa galeria de arte pública Whitechappel Gallery. Durante esse evento, os cinco finalistas puderam apresentar com maior detalhamento seus projetos e a comissão julgar com mais densidade qual seria a proposta vencedora.
Ainda em 2005, o coletivo lançou um website exclusivo para o projeto RSW, com notícias sobre os conflitos na região do Delta do Níger e informações sobre a história de Ken Saro-Wiwa e do povo ogoni. O grupo também realizou alguns encontros públicos para discutir a importância e impulsionar a criação do memorial. Em um desses eventos, intitulado The Living Memorial: Artists Talk, realizado no Museu de Londres, o escritor e jornalista Gary Younge participou na condição de palestrante. Cito a seguir um trecho de sua fala que considero bastante sensível à natureza propositiva de RSW:
Quero chegar a Ken Saro-Wiwa através de uma outra ativista célebre que recentemente partiu, a Rosa Parks. Quero falar sobre a maneira como ela é lembrada ou, como você poderia dizer, mal lembrada. Em Montgomery, Alabama, ela é lembrada através de placas na rua, no Museu Rosa Parks e, finalmente, pela Avenida Rosa Parks onde ela morava. Inevitavelmente, é claro, Jesse Jackson já pediu que uma estátua para ela fosse erguida em Washington. Há também placas nos locais onde ela entrou e foi expulsa do ônibus. Neste momento, há poucas chances de afro-americanos terem que desistir de um assento para pessoas brancas, porque os brancos não viajam de ônibus, eles não precisam. Os afro-americanos, porque são mais pobres, assim como os afro-americanos em Nova Orleans (após o furacão Katrina em agosto de 2005), são os que viajam de ônibus. Rosa Parks Avenue, onde ela morou, é uma das ruas mais desfavorecidas de Montgomery, um lugar onde há usuários de crack e casas de profissionais do sexo, onde as pessoas têm medo de sair quando está escuro, onde há tiroteios aleatórios. Finalmente, há o museu, que custou milhões para ser construído, muito dinheiro corporativo, tudo isso enquanto Rosa Parks não tinha dinheiro e não conseguia nem pagar seu aluguel. Perguntamos se esta foi a melhor maneira de homenageá-la. Isso não nos diz algo sobre o que ainda nos resta fazer sobre o trabalho de Rosa Parks? Queremos lembrar Ken Saro-Wiwa, é claro que sim, mas queremos lembrar dele por algum motivo. Queremos lembrar dele pelos valores que ele incorporou, em vez de seu próprio corpo. Anti-imperialismo, ativismo comunitário, ambientalismo, compromisso político, são coisas que duram além de seu corpo. Penso que o que estamos fazendo aqui é encontrar uma expressão artística adequada para esses valores (Younge, 2006).
No dia 10 de novembro de 2005, nos exatos dez anos da morte de Ken Saro-Wiwa, em um evento com cerca de duzentas pessoas em frente ao edifício da Prefeitura de Londres, o coletivo anunciou o projeto vencedor: The Battle Bus, da artista nigeriana, radicada em Londres, Sokari Douglas Camp. Durante a cerimônia, o renomado escritor nigeriano Wole Soyinka, o prefeito de Londres, ativistas ogonis e familiares de Ken Saro-Wiwa fizeram discursos emocionantes sobre a importância da criação desse memorial para as lutas em curso por justiça social e ambiental no Delta do Níger e no mundo.
A proposta da artista Sokari Douglas Camp consistia na criação de uma enorme escultura cinética em aço soldado. Do tamanho real de um tradicional ônibus nigeriano, a escultura pesaria cerca de três toneladas. Nas laterais do ônibus a seguinte inscrição: I accuse the oil companies of practicing genocide against the Ogoni (Eu acuso as empresas petrolíferas de praticar genocídio contra os ogonis). A frase, inspirada em uma das últimas declarações de Ken Saro-Wiwa, daria o tom insurgente da obra. No topo seriam colocados oito barris com os nomes dos oito ativistas que foram assassinados juntos com ele. Dentro do ônibus, foi pensado um espaço para a projeção de filmes, fotografias ou pequenas exposições.
Sobre o processo de realização da obra, disse a escultora Sokari Douglas Camp:
Eu construí um ônibus porque eu queria um veículo poderoso para percorrer as ruas de Londres e ser percebido, um pouco como aqueles ônibus de campanha das eleições. Eu queria algo familiar, mas interpretado de um modo terceiro mundista. Poderíamos ter um veículo pesado que celebra a história de um ativista contra a exploração do petróleo? As coisas nunca são preto ou branco e, intuitivamente, acho que Ken gostaria dessa ironia, porque o petróleo trouxe a sua morte, mas também está ali desempenhando um papel na educação do mundo sobre a situação do povo ogoni e das pessoas na região do Delta do Níger (Camp, 2005).
Em 10 de novembro de 2006, na área central de Londres, ao som de diversos músicos da diáspora africana, o Living Memorial foi inaugurado. Os discursos eloquentes de Maria Saro-Wiwa, viúva de Ken Saro-Wiwa, e de Angela Davis, filósofa e ativista antirracista, ganharam destaque na cerimônia de inauguração. Cito a seguir parte do discurso de Angela Davis:
As lutas de Ken Saro-Wiwa em defesa de seu povo ogoni são um farol de luz para as pessoas em todo o mundo. A determinação de manter viva a sua memória é uma luta para imaginar e criar um futuro livre dos estragos do racismo, do genocídio e do desrespeito absoluto pelo meio ambiente. Devemos pensar no papel da arte na criação da memória histórica; como os artistas podem enriquecer a nossa compreensão do passado e do presente e empurrar-nos para um futuro melhor. Os artistas podem nos encorajar a sonhar de uma maneira radicalmente diferente (Davis, 10 de novembro de 2006).
Após seu lançamento, o Memorial visitou diferentes espaços e reuniu públicos diversificados em uma série de atividades de arte, ativismo e educação, como performances, projeções de filmes, debates e oficinas. Promovendo discussões acerca da histórica guerra ecológica na região do Delta do Níger e das complexas dimensões do racismo ambiental e institucional em Ogoni e em Londres, o projeto Remember Saro-Wiwa cumpriu com suas prerrogativas de:
1. Evocar o espírito do trabalho de Ken Saro-Wiwa como escritor e ativista. 2. Focar atenção na realidade em curso da luta por justiça social e ambiental em terras sobre as quais a Grã-Bretanha depende, especificamente no Delta do Níger. 3. Refletir sobre a diversidade cultural do século XXI em Londres. 4. Incluir elementos de interatividade, estimulando o espectador a ser ativo e engajado. 5. Realizar um projeto de arte móvel, engenhoso e durável, para ser ao mesmo tempo transportável e localizado. 6. Não só lembrar o passado, mas ajudar a moldar o futuro (Trowell, 2006:02).
Em entrevista a mim concedida, em fevereiro de 2016, David A. Bailey, curador do projeto RSW, explicou:
Esse projeto tinha que fazer várias coisas. Tinha que animar o espaço em que se encontrava inserido e depois criar um ambiente e um programa de atividades nesse espaço, para que as pessoas entendessem do que se tratava o trabalho. A ideia de ter uma obra de arte pública no ambiente e que se refere ao ambiente, pode soar estranho, mas na verdade é muito mais complicado. E o trabalho da Sokari tinha que fazer todas essas coisas: ele tinha que ser uma obra de arte, uma obra de arte que estivesse em um ambiente, esse ambiente tinha que ser público, e então, a obra tinha que contestar esse ambiente com a questão do racismo ambiental.
Assim, mais do que uma obra site specific (criada para atender a um determinado local-ambiente), The Battle Bus foi produzido para ser uma obra de arte dinâmica, móvel, que pudesse dialogar com as mais variadas especificidades dos locais e ambientes que visitava. Desse modo, a ideia de experiência situacional era cara ao projeto. A intenção era que o Living Memorial percorresse diferentes lugares e que produzisse, em cada novo lugar, uma dinâmica renovada de diálogo com seu público.
Desde a sua inauguração em 2006 até o final de 2013, o memorial esteve em onze locais, dentro e fora da cidade de Londres. Destaco aqui dois deles: o parque Jubilee Gardens, localizado em frente ao edifício-sede da Shell (Figura 5), e o Centro Cultural Stephen Lawrence,3 onde The Battle Bus esteve por quatorze meses.
Figura 5. The Battle Bus, de Sokari Douglas Camp, em frente ao edifício sede da Shell em Londres. Fonte: Martin LeSanto-Smith, Acervo do PLATFORM.
Atuando como um mediador, o coletivo PLATFORM ofereceu, em parceria com outros colaboradores, uma série de atividades artísticas e educacionais junto ao memorial, como oficinas vídeo, escrita criativa, performance, produção musical, redação de projetos culturais, produção de eventos, especialmente para o público jovem.
No final de 2013, o coletivo começou a se organizar para a elaboração de uma nova programação para 2015, visto que a data marcaria dez anos de projeto RSW e 20 anos da morte de Ken Saro-Wiwa. Em entrevista a mim concedida, Jane Trowell explicou que durante todos os anos em que o Living Memorial se engajou em atividades e eventos, muitas coisas legais tinham acontecido (o que trazia para os realizadores do projeto uma grande satisfação). Entretanto, por causa do tempo, do passar dos anos, o memorial vinha perdendo um pouco da sua força propositiva. Então para 2015, era preciso que o coletivo pensasse em algo revigorante, surpreendente, que pudesse voltar a chamar atenção e engajar novos participantes. Foi assim que surgiu a ideia de enviar The Battle Bus para um tour pela Nigéria e que, no final dessa jornada, o Memorial se fixasse em Ogoni, na terra natal de Ken Saro-Wiwa. Essa ideia foi bastante discutida com todos os envolvidos no projeto RSW e, especialmente, com os ativistas do MOSOP (Movement for the Survival of the Ogoni People), que passariam a ser os responsáveis pelos cuidados com o Memorial. Outras organizações sociais no Delta do Níger também se motivaram com a proposta do tour pela Nigéria e também aderiram ao projeto que, a partir de 2014, passou a se chamar Action Saro-Wiwa.4
Rosalyn Deutsche, historiadora e crítica de arte contemporânea, nos diz que as artes visuais, por sua condição primeira de “tornar visível”, traz para os artistas que querem aprofundar e estender a esfera pública uma dupla tarefa: criar trabalhos que “ajudem aqueles que foram tornados invisíveis a fazer a sua aparição”, e que “desenvolvam a capacidade do espectador para a vida pública ao solicitar-lhe que responda à essa aparição mais do que contra ela” (Deutsche, 2009:176). Ao meu ver, Delta e Remember Saro-Wiwa responderam à essa dupla tarefa. Eles tornaram visíveis histórias silenciadas e, a partir do espaço público, instigaram o exercício crítico frente à exploração energética em curso no Sul Global. Embora diferentes em suas formas e metodologias de trabalho, ambos apresentavam um objetivo comum: instaurar a partir de práticas coletivas e colaborativas no campo da arte e da educação o engajamento do público em questões de justiça social e ambiental.
Por mais que o papel da liderança (e aqui podemos pensar no caso do coletivo de artistas) seja importante no processo de transformação social, como nos lembra o grande educador brasileiro Paulo Freire, esse papel “não lhe dá o direito de comandar as massas populares, cegamente, para a sua libertação. Se assim fosse, esta liderança repetiria o messianismo salvador das elites dominadoras” (Freire, 2016:258). Somente através do trabalho dialógico e colaborativo, do encontro entre as “gentes”, como diria Freire, se faz possível o desvelamento do mundo e de si mesmas, pois “ninguém desvela o mundo ao outro e, ainda quando um sujeito inicia o esforço de desvelamento aos outros, é preciso que esses se tornem sujeitos do ato de desvelar” (Ibíd.:260).
Se em 1993, no projeto Delta, a ideia era intervir localmente, conhecer e ressignificar um determinado lugar, em Remember Saro-Wiwa a noção de espaço de intervenção muda. Ao percorrer diferentes lugares e realizar atividades variadas junto ao público, a cidade de Londres e o Delta do Níger foram dialogicamente evocados e roteirizados. Novas narrativas surgiram desse encontro e um terceiro espaço, para utilizar aqui o conceito do filósofo indiano Homi Bhabha (2007), também foi construído. A discussão sobre o papel neocolonial de Londres na geopolítica de exploração energética, seja do ponto de vista político, econômico, epistêmico ou cultural, assim como os modos de enfrentamento e resistência frente à essas políticas de exploração, foram fundamentais para o sucesso do projeto do memorial.
Discussões sobre as inter-relações e as interdependências entre lugares, países e instituições são fundamentais se queremos construir um mundo onde a justiça social e ambiental seja praticada. O reconhecimento das lutas sociais que questionam os modos de exploração da energia no Sul Global não pode ficar, ao meu ver, longe do universo da arte e da educação, pois como bem argumentou Angela Davis (10 de novembro de 2006): “os artistas podem enriquecer a nossa compreensão do passado e do presente e empurrar-nos para um futuro melhor. (…) podem nos encorajar a sonhar de uma maneira radicalmente diferente”.
Este artigo apresenta parte da minha tese de doutorado em Artes Visuais, defendida em 2017, na Universidade do Estado de Santa Catarina. A referida pesquisa contou com o apoio da CAPES, do Centro de Artes da UDESC e da University of the Arts London, onde realizei em 2015-2016 meu estágio doutorado sanduíche. Agradeço também a todos os artistas e ativistas envolvidos na luta em manter viva a história de Ken Saro-Wiwa e por compartilhar comigo seus saberes e experiências.
Elisa Dassoler / elisadassoler@gmail.com
Doutora e mestra em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com realização de doutorado sanduíche na University of the Arts London (UAL). Graduada em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Integrante do Grupo de Pesquisa Poéticas do Urbano, vinculado ao Centro de Artes da UDESC. Atua como videomaker e documentarista. Portfolio completo: www.elisadassoler.com
1 Ken Saro-Wiwa foi um reconhecido escritor e ativista nigeriano que dedicou sua vida na luta contra a exploração abusiva de petróleo na região do Delta do Níger, na Nigéria. Identificado como figura chave e porta-voz do Movimento pela Sobrevivência do Povo Ogoni (MOSOP), Ken Saro-Wiwa foi preso várias vezes. Em 1995, ele e mais oito ativistas do MOSOP, foram julgados por um tribunal militar fraudulento e condenados à pena de morte por enforcamento.
2 Além do dinheiro para o custeio da sua produção, o projeto vencedor recebeu um prêmio no valor de 10 mil libras esterlinas. O projeto RSW foi financiado pelo Arts Council England (Conselho das Artes na Inglaterra) e por doações de pessoas físicas e jurídicas.
3 Stephen Lawrence Centre é um centro de artes e arquitetura criado em homenagem ao jovem britânico Stephen Lawrence, que, aos 18 anos de idade, foi brutalmente assassinado em uma parada de ônibus em Londres num ataque racista promovido por uma gangue de jovens brancos.
4 Para saber mais sobre esse projeto, assista no Youtube o documentário de minha autoria “Ken Saro-Wiwa, presente!” ou veja minha tese de doutorado (Dassoler, 2017).