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Departamento de Geografia. Centro de Ciências Humanas e Naturais. Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil.
Recibido: 28 de febrero de 2019. Aceptado: 20 de agosto de 2019.
O texto1 se articula em torno de um grupo de mapas: os mapas de varetas de ilhéus do Oceano Pacífico. Procura esboçar trajetórias humanas e não humanas que deram existência, calaram e retomaram esses mapas que, nesse último movimento, vem desacompanhados de encontros que lhe davam vida: o corpo, a canoa, a ondulação do mar. Traços de uma imaginação espacial insinuam-se pelos exemplares sobreviventes e reconstruções atuais destes mapas, mas a ausência do pensamento ilhéu, que conduzia a arte de deslocar-se no movimento, os mantém numa insuperável incompletude, uma cartografia impossível de atualizar. A partir das trajetórias esboçadas, busca-se problematizar como o ocidente subjugou saberes e pensamentos e consolidou isso em mapas ou, nas palavras de Doreen Massey, como os mapas ocidentais tiraram a vida do modo como imaginamos o espaço. Ao mesmo tempo –e a partir disso– toma-se estas trajetórias como intercessoras para o pensamento de/em/com geografias menores, de cartografias in possíveis.
Palavras-chave: MAPAS DE VARETAS. GEOGRAFIAS MENORES. PENSAMENTO SOBRE O ESPAÇO.
The text articulates a group of maps: the sticks charts of islanders of the Pacific Ocean. It seeks to sketch human and nonhuman trajectories that gave existence, silenced and retaken these maps which, in this last movement, came unaccompanied by encounters that gave life to it: the body, the canoe, the rippling of the sea. Traces of a spatial imagination are insinuated by the surviving examples and current reconstructions of these maps, but the absence of the islander thought, that drove the art of dislocation in the movement, keeps them in unsurpassed incompleteness, a cartography impossible to update. From the outlined trajectories, the article seeks to problematize how the West has juxtaposed knowledge and thoughts and consolidated it in maps or, in words of Doreen Massey, how the Western maps took life the way we imagine space. At the same time –and from this– these trajectories are taken as intercessors for the thought of/in/with smaller geographies, of cartographies in possible.
Keywords: STICK CHARTS. SMALLER GEOGRAPHIES. THINKING ABOUT SPACE.
Palabras clave: MAPAS DE VARILLAS. GEOGRAFIAS MENORES. PENSAMIENTO SOBRE EL ESPACIO.
Grande parte dos mapas que conhecemos mostra os mares e oceanos como massas de um azul homogêneo, como algo que separa as grandes estruturas de terra e rocha, os continentes. Alguns trazem a batimetria2 do fundo oceânico, variações tonais do azul. Em tempos de globalização, os oceanos parecem ser somente obstáculos a superar para a realização das trocas comerciais. Esta é uma percepção média, uma imagem fixada em nossa imaginação a partir de mapas escolares e reafirmada pelos mapas convencionais. É também uma perspectiva continental, sendo o continente algo fixo e estável.
Deslocar-se pelo continente é bem diferente de se deslocar pelos oceanos e mares. Nos mapas de deslocamentos continentais, linhas variadas em cores, espessuras e formas nos dão os caminhos fixos no terreno que percorremos para chegar em algum lugar. Para o deslocamento oceânico há também rotas, conjunto de posicionamentos a serem tomados pelas embarcações, e portos, o nó que conecta os deslocamentos em água aos deslocamentos em terra. Mas o que os mapas pouco enfatizam é que o movimento das massas oceânicas, suas ondulações, produzem um meio completamente diferente para o deslocamento.
O pensamento continental sobre os deslocamentos é o que parece impor aos mapas de navegação marítima uma ideia de segurança semelhante ao do deslocamento continental: rotas como linhas fixas para chegar, sem erro, a um ponto específico. Os marinheiros sabem destas limitações de entendimento do mar pelos continentais, que têm como normal um dia de bom tempo e calmarias. E eles, os marinheiros, nunca se fiam somente nos mapas. Lançam mão de informações meteorológicas, alertas, tábuas de maré, fase da lua, estação do ano, zona climática… Todo um conhecimento das dinâmicas da natureza é colocado a serviço do entendimento dos movimentos para realizar o deslocamento seguro.
Como seria um mapa do mar constituído não com o pensamento continental, mas com o pensamento que ignora a estabilidade das grandes massas continentais e pensa o deslocamento precisamente no movimento, tal como o de navegantes que se deslocam entre ilhas?
Os Armij Aelon Kein habitavam Aelon Kein Ad, arquipélago localizado no Oceano Pacífico, composto por vinte nove atóis e cinco ilhas. Este arquipélago está localizado no meio da placa tectônica do Pacífico, fora do círculo de fogo que produz arcos de ilhas por derrame de lava em bordas de placas convergentes. É composto por ilhas vulcânicas, muito antigas, já submersas, ocupadas por recifes de corais que, hoje, acima do nível médio do mar, têm a configuração aproximada de uma ferradura.
Os atóis do arquipélago de Aelon Kein Ad são dispostos em duas cadeias paralelas, a Ralik e a Ratak, situadas aproximadamente entre 5o e 12o de latitude norte, na região dos doldrums3 faixa próxima ao Equador, entre os ventos alísios de nordeste e de sudeste. Esta posição faz com que de novembro a julho predominem os ventos de nordeste em direção ao sul, mais fortes, e entre julho e outubro predomine relativa calmaria e ventos alísios de sudeste suaves. Faz também com que o norte do arquipélago seja banhado pela corrente equatorial norte, mais fraca, com direção de leste para oeste, e o sul do arquipélago seja banhado pela contra-corrente equatorial, mais forte, com direção de oeste para leste.
A ondulação do mar é produzida pelos ventos superficiais e depende tanto do volume de água deslocado como do fundo oceânico. Um deslocamento da massa d’água muitas vezes é sentido bem longe do local onde foi gerado. Ao se deparar com um obstáculo, a energia das ondas pode se comportar de várias maneiras, mas principalmente por refração, por difração e por reflexão.4 Este comportamento varia de acordo com a direção da ondulação e o tipo de obstáculo (ou obstáculos).
A formalização científica dos conhecimentos sobre a ondulatória e suas leis data dos séculos XVII e XVIII, com Christian Huygens, Robert Hooke, Thomas Young, Isaac Newton e outros. Mas os Armij Aelon Kein dominavam, pela observação da natureza, todos os princípios da ondulatória desde, pelo menos, o segundo milênio antes de Cristo.
Os atóis e ilhas de Aelon Kein Ad distam entre si em média 100 milhas, algo da ordem de 160 km. Em geral não são visíveis de uma a outra. Em consequência, os Armij Aelon Kein desenvolveram um sistema de navegação baseado na observação visual e no sentir com o corpo as perturbações causadas pelas ilhas e atóis nas ondulações do mar, estimando a partir daí suas posições e distâncias relativas. Este sistema dependia, portanto, da observação do conjunto de fatores naturais –ventos, ondulações, perturbações– e de uma embarcação específica, uma canoa, que pudesse favorecer a vibração da ondulação no corpo. Natureza, barco, corpo. Deslocar-se no movimento.
O compartilhamento destes conhecimentos entre os ilhéus se dava, primeiramente, pelo registro em mapas efêmeros, desenhados na areia da praia, logo após seu retorno do mar. Para fixá-los, passaram a utilizar fibras de coco e conchas, gerando tipos distintos de mapas de varetas ou stick charts: os Rebbelib, Mattang e Meddo.
Os Rebbelib (Figura 1) apresentam a distribuição aproximada de um conjunto maior de feições do arquipélago. Atóis e ilhas figuram como conchas amarradas às estruturas de fibra de coco que tanto significam as direções das ondulações e os movimentos de refração, difração e reflexão da ondulação como podem ser mera estrutura de suporte às informações. Os Meddo são similares aos rebbelib, mas apresentam um conjunto mais restrito de feições. Pode-se dizer, assim, que se trata de uma diferença de escala. A natureza dos mattang (Figura 2) é instrucional, ou seja, são mais abstratas e apresentam dinâmicas gerais da relação ondulação, vento, ilha/atol. São, por isso, geometricamente mais regulares.
Figura 1. Mapa de navegação (Rebellib). Data provável: Século XIX. Fibras vegetais e conchas. 67.5 x 99 x 3 cm, Marshall Islands, Micronesia. Fonte: Acervo do Museu Britânico.
Figura 2. Mapa instrucional (Mattang). Data provável: Século XIX ou início do Século XX. Fibras vegetais e conchas. 63 x 57.5 x 2,5 cm, Marshall Islands, Micronesia. Fonte: Acervo do Museu Britânico.
Nenhum dos tipos de mapas de varetas era levado ao mar pelos Armij Aelon Kein. Sua consulta se dava em terra, antes da embarcação, mentalizando e antecipando no corpo o movimento a encontrar no trajeto para chegar ao destino. E, assim, os Armij Aelon Kein construíram seu sistema de referência e navegação, até que seus corpos e suas ilhas e atóis foram inseridos em outros mapas.
Pelo Tratado de Tordesilhas, as ilhas de Aelon Kein Ad pertenceriam à Coroa de Castela. Os exploradores espanhóis, por volta dos anos 1530, foram os primeiros ocidentais continentais a registrar a existência daquelas ilhas e atóis. Batizaram-nas de San Bartolome, Los Pintados, Los Barbados, Placeres, Pajares, Corrales. Após este primeiro contato com a civilização ocidental, os Armij Aelon Kein viveram em relativo isolamento por mais ou menos dois séculos. Em 1788, um capitão inglês chamado John Marshall aportou no arquipélago para iniciar o mapeamento das ilhas para a marinha britânica. A partir daí, Aelon Kein Ad passou a ser nomeada nos mapas europeus como Ilhas Marshall, nome pelo qual as conhecemos atualmente.
Entre 1750 e 1850, aproximadamente, as ilhas e atóis foram sendo descobertos por ingleses, franceses, russos, americanos… Encontros que renderam mortes. Por um lado, a falta de imunidade dos ilhéus às doenças europeias resultou na morte de quase um quarto da população neste período. Por outro, uma grande quantidade de embarcações europeias foram destruídas e suas tripulações mortas pelos ilhéus, em geral, em resposta às hostilidades daqueles. A pacificação dos ilhéus se iniciou com os reverendos metodistas Pierson e Doane, que chegaram às ilhas em 1857 a bordo do navio Morning Star. Eram missionários americanos especializados em estabelecer a religião cristã nas ilhas do Pacífico. Decorre daí uma mudança significativa na relação entre o corpo (agora coberto e resignado) e a natureza.
As Ilhas Marshall foram possessão espanhola até 1874, protetorado alemão até a Primeira Guerra Mundial, controladas pelos japoneses até a Segunda Guerra Mundial e tomadas pelos Estados Unidos durante este conflito, sendo incorporadas ao Protetorado das Ilhas do Pacífico das Nações Unidas. A posição geopoliticamente privilegiada fez com que fossem consideradas território estratégico em muitos episódios da disputa pelo controle do mundo por parte das nações ocidentais e ocidentalizadas, sendo por isso negociadas, invadidas...
No período que sucedeu o final da Segunda Guerra Mundial, as ilhas foram utilizadas como campo para testes de bombas nucleares. Os habitantes de Bikini, ao norte do arquipélago, foram convencidos que o aperfeiçoamento da bomba nuclear garantiria a paz no mundo, e assim, ceder uma pequena parte de seu território para os testes seria um pequeno sacrifício para o bem da humanidade. Uma evacuação passageira, depois poderiam retornar. Assim, entre 1946 e 1958 foram realizadas 67 explosões nucleares, dentre elas a da primeira bomba H, em 1952. No conjunto, as explosões foram sete mil vezes maiores do que a bomba lançada em Hiroshima na Segunda Guerra Mundial. Apesar de os habitantes do atol terem sido removidos, o local onde foram instalados, bem como diversas outras localidades do arquipélago, receberam, por conta das condições climáticas, altas doses de radiação residual. As explosões visavam também testar a resistência dos navios de guerra ao impacto das bombas, bem como em animais que foram levados para as ilhas (cabras, porcos e ratos) e nas plantas locais. Contudo, não informaram aos habitantes que um dos objetivos dos testes era verificar, também, os efeitos da radiação nos seres humanos. Foram muitas as mortes e sequelas pela radiação em várias gerações de ilhéus.
Hoje as autoridades nucleares, tais como a Agência Internacional de Energia Atômica, consideram seguro a visita a Bikini e às ilhas e atóis próximos, mas não o consumo de produtos cultivados, pois a radiação no solo é ainda muito alta. Não se recomenda, portanto, sua recolonização por humanos, mas é possível a visita turística, mergulho e outras práticas de caráter esporádico.
Como já mencionado, os mapas dos nativos das Ilhas Marshall cumpriam uma função de registro e compartilhamento de conhecimentos e experiências vividas pelo corpo na ondulação do mar, intermediada pela canoa. Não eram, portanto, lidos na racionalidade das dimensões absolutas do espaço visto de cima, mas auxiliavam uma incorporação prévia, mental e sensorial, dos movimentos a serem vividos no deslocamento. O pouco entendimento das possibilidade deste processo por parte dos diferentes grupos estrangeiros que sobre-habitaram o arquipélago, dado seu descolamento das formas ocidentais e continentais de mapear, legaram a esses mapas o status de primitivo, curiosidade para museus. A maior parte dos rebelib, dos meddo e dos mattang sobreviventes estão em museus alemães e americanos e suas aquisições são datadas entre 1870 e 1930. É neste período que este modo de mapear vai se tornando obsoleto, pois vão sendo paulatinamente desmembradas as variáveis que sustentavam a sua existência: o corpo (agora doente e contido), outros modos estrangeiros de embarcação e navegação e um mar que não é mais o mesmo, agora coalhado de navios de guerra e de restrições.
Há uma narrativa sobre os mapas de varetas até hoje muito reproduzida, a despeito dos esforços de revisão da história da cartografia iniciada por John Brian Harley, David Woodward e colaboradores. Tais narrativas, comuns no tópico História da Cartografia das aulas de Geografia no ensino básico, mencionam interessantes mapas pré-históricos dos primitivos habitantes das Ilhas Marshall,5 quando não são atribuídos aos polinésios, que tinham um sistema bastante diferente de mapear e de navegar. Esta forma de narrar a Cartografia associa um mapa contemporâneo (pelo menos até 1930 eram produzidos e utilizados) aos mapas da Mesopotâmia e de inscrições rupestres da era do bronze. Tal perspectiva busca nestes mapas semelhanças com os atuais, ocidentais, de modo a compor uma antiguidade como artifício de defesa do campo. Denis Wood (2003) argumenta que se a história do automóvel fosse contada como se conta a história da cartografia, ela seria iniciada pelas sandálias, aludindo a uma necessidade que ramos técnicos e científicos contemporâneos têm em forjar uma antiguidade para sua valorização no presente. O mais marcante de todo este processo é que tira a vida dos mapas (Massey, 2008).
Tirada a vida dos mapas, sobra-lhes o pitoresco. Na incompreensão sobre a lógica de sua produção e uso são classificados, junto com seus autores, de primitivos, justificando a necessidade de seu enquadramento e localização na história do ocidente (e da Cartografia). Isto, contudo não difere, em grandes linhas, do acontecido com muitos e muitos outros povos não europeus mundo afora.
Muito recentemente, particularmente após a liberação da visitação pelas autoridades nucleares, houve um aumento nas investigações sobre o arquipélago como um todo. Alguns destes estudos dizem respeito à navegação interinsular, enfocando a construção das canoas e dos mapas de varetas. Há esforços na reconstrução dos saberes sobre os mapas por nativos, que ainda dispõem de algum conhecimento passado por seus ancestrais, mas este conhecimento tem por fontes relatos de antigos viajantes, exploradores, oficiais de marinhas e missionários. Assim, de certo modo, já há um atravessamento cultural na narrativa do significado destes mapas e canoas para os ilhéus. Paralelamente à pesquisa acadêmica, algumas técnicas de construção das embarcações e dos mapas estão sendo ensinados às gerações mais jovens.
A despeito da intencionalidade de ambos os grupos –pesquisadores e nativos– em reconstruir um saber interrompido, os objetos –canoa e mapa– têm basicamente, por ora, o apelo turístico. Miniaturas de embarcações e mapas são vendidos como souvenires. A recuperação de um fazer tradicional concorre, também, para constituições e fixações identitárias, em certa medida também capturadas pela indústria turística.
Uma equipe composta por físicos, antropólogos e oceanógrafos da Universidade do Havaí tem estudado a técnica e o desempenho dos mapas e canoas em situações atuais concretas (Genz e Finney, 2006; Genz et al., 2009). Têm concluído que realmente os rebellibs e os meddos são bastante fiéis aos movimentos oceânicos e precisos na observação dos princípios da ondulatória. Para fazer isso, comparam rebelibs e meddos a imagens de satélite que registram o movimento de refração, reflexão ou difração da ondulação quando atinge um alvo qualquer, estimando, matematicamente, a distância entre uma e outra ilha a partir dos comprimentos de onda (crista a crista).6 Do mesmo modo, têm apontado que a técnica construtiva da embarcação permite que ela seja ao mesmo tempo estável e sensível a todas as variações de ondulações e correntes. Entendem que o aprofundamento e revalorização deste conhecimento local pode contribuir com o desenvolvimento da ciência atual. Há, contudo, uma variável que não tem sido possível reproduzir. Os corpos ocidentalizados –dos pesquisadores e também dos nativos– têm muita dificuldade de incorporar por antecipação os movimentos e deslocar-se por eles. Ademais, hoje tem GPS e todo este esforço parece inútil na vida prática dos ilhéus…
A exposição desta pequena e resumidíssima história dos mapas de varetas objetivou problematizar alguns tópicos para pensar cartografias. A riqueza dos mapas de vareta e seus contextos podem funcionar para nós como intercessores para pensar espacialidade e geograficidade, tal como o cinema e cineastas funcionaram como intercessores para Deleuze pensar sobre o movimento, entendendo este não como um mero deslocamento no espaço, mas como variações de vida.
Também para pensarmos, com Massey (2008), sobre como os mapas ocidentais tiraram a vida do modo como imaginamos o espaço e, mais ainda, como foram impedidas outras imaginações espaciais. Portanto, outros mapas. Mas também, pensar no espaço como encontro de trajetórias e, com isso, perguntar sobre o sentido político de recuperação cultural de construção dos mapas e canoas no aqui-e-agora e sua força, antes, como fixação identitária, valorização de pertencimentos que podem beirar a fascismos e, dando sentido a isso tudo, a captura capitalista de todas essas possibilidades.
Estes aportes parecem convergir para o fortalecimento de olhares sobre a diversidade de formas de mapear, colocando a imagem cartográfica como um nó de rizoma. Os rizomas, extraídos do escopo da Botânica, significam sistemas radiculares em potência –que podem se transformar em um galho, uma folha ou outro elemento da planta, a depender do que acontece no encontro destas estruturas com outras forças (como água, nutrientes e outras). Eles funcionam para Deleuze e Guattari (1995) como intercessores para pensarem o pensamento. Assim, um mapa como nó de rizoma são aberturas para o novo e não um produto acabado ou uma finalização representacional. Del Casino Jr. e Hanna (2006) chamam a este nó de espaço mapa, apontando que a potências destas imagens é fazer proliferar pensamentos sobre o espaço a cada olhar, a cada marca –física ou virtual– que neles inserimos. Viver, no movimento, novas descobertas e, na volta, colocar mais uma vareta ou mais uma concha, como pequenos disparadores posteriores de memórias.
Os mapas de varetas, como intercessores, foram aqui convocados para nos ajudar a pensar em geografias7 menores. As geografias menores foram inicialmente apontadas por Oliveira Júnior (2009) e derivaram das ecologias menores de Ana Lúcia Godoy. Menor aqui não se refere a relações de tamanho, a hierarquias, a graus de importância, mas ao que é estabilizado (maior, padrão) e o que está em movimento (menor, devir minoritário), recusando qualquer estabilização, fluindo, inventando novos modos (Deleuze e Guattari, 1977). Assim, geografias menores são lugares de criação, geografias-arquipélago que expandem o continente da Geografia maior (estável, hegemônica). São geografias possíveis in (dentro da) Geografia, ao mesmo tempo geografias impossíveis de ser toda a Geografia. Talvez pudéssemos pensar que entre o arquipélago das geografias menores e o continente da Geografia maior há também mar, ondulações, refrações, difrações… Precisamos colocar nossos corpos a sentir estas vibrações, observar como o meio produz movimentos e habitá-los, dar vigor ao pensamento ilhéu. Precisamos construir nossas canoas.
Após sua apresentação no 5° Colóquio Internacional A Educação pelas Imagens e suas Geografias, a versão original deste texto circulou em alguns grupos, dos quais muitas reverberações passaram a compor a presente versão. Agradeço, por isso, aos membros do Grupo de Pesquisa POESI – Política Espacial das Imagens e Cartografias (CNPQ/Ufes), em especial a Marisa Valladares (in memoriam), Juliana Botelho, Ernandes Oliveira, Carla Wstane, Louriene Gonçalves, Patrícia Coelho, André Tonini e Igor Robaina; às/aos estudantes Tupinikim e Guarani da Licenciatura Intercultural Indígena (Prolind-Ufes), ao antropólogo e professor Sandro José da Silva (DCSO-Ufes) e aos membros da rede internacional de pesquisa “Imagens, Geografias e Educação”, em especial a Valéria Cazetta e Wenceslao Machado de Oliveira Júnior. Agradeço, ainda, a Augusto Gomes pela revisão final do texto.
Gisele Girardi / gisele.girardi@ufes.br
Bacharela, Licenciada, Mestre e Doutora em Geografia (Universidade de São Paulo), Pós-Doutora em Educação (Universidade Estadual de Campinas). Professora no Departamento de Geografia e no Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Geografia (Universidade Federal do Espírito Santo). Atua na pesquisa e na docência em temáticas da cartografia geográfica contemporânea, com publicações. Coordena a Rede Internacional de Pesquisa “Imagens, Geografias e Educação” e o Grupo de Pesquisa CNPq POESI – Política Espacial da Imagens e Cartografias.
1 O título deste texto deriva do tema da mesa-redonda para a qual havia sido inicialmente produzido: Cartografias (im)possíveis II, 5o Colóquio Internacional A educação pelas imagens e suas geografias, Florianópolis-SC, novembro de 2017. Ocorreu que a organização do evento ora utilizou o im ora o in nos convites e materiais de divulgação, como folders e sítio na internet. Este fato, que deveria passar despercebido como insignificante deslize em meio a tantas tarefas da organização, atuou em mim como força para traçar os pensamentos que compuseram a versão deste texto então apresentada. O subtítulo o ilha, por sua vez, busca apontar que não se fala do ilhéu nem da ilha, mas do que se passa entre ambos. O erro gramatical de flexão de gênero deve, assim, ser lido como licença poética. Ainda, ao ser lido em voz alta, sua sonoridade remete ao nome de um amigo, com quem convivi durante a elaboração do texto, ele mesmo um ilhéu.
2 Batimetria: informações sobre as medidas de profundidade do fundo de um corpo d’água, tais como oceanos e lagos. Nos mapas, são utilizados pontos com as medidas de profundidades ou curvas batimétricas, que unem pontos de mesma profundidade.
3 Doldrums: áreas nos oceanos Pacífico e Atlântico afetadas por células de baixa pressão, que faz com que os ventos sejam calmos.
4 Na refração a velocidade da onda se modifica por ter havido modificação no meio de propagação; na difração a onda, ao contornar um obstáculo, muda sua forma e direção; na reflexão a onda, ao atingir um obstáculo, volta a propagar-se na direção contrária.
5 Ver, por exemplo, Geografia, Aula 2 em https://slideplayer.com.br/slide/5644555 ou Cartografia: A Ciência dos Mapas em https://www.slideshare.net/ogeografo/cartografia-histria-1-parteX
6 Ver Figura 8 em Genz et al., 2009, p. 242.
7 A grafia da palavra geografias, em minúsculas e no plural, refere-se a práticas espaciais ordinárias ou a geograficidades como condição de nossa existência no mundo; iniciando em maiúscula e no singular, Geografia refere-se à ciência ou ao campo disciplinar e às instituições ou às práticas institucionalizadas que recebem este rótulo.