Espaços públicos e territórios. As relações entre espaço e poder na Geografia

Paulo Cesar da Costa Gomes

Departamento de Geografia, Instituto de Geociências. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil.

Recibido: 31 de enero de 2020. Aceptado: 22 de abril de 2020.

Resumo

O artigo discute a tendência do uso exclusivo do conceito de território, entre os geógrafos, na análise das relações entre espaço e poder. Conceitos são instrumentos que orientam e delimitam as análises. No caso do conceito de território, as dinâmicas geradas pelos conflitos entre distintos grupos sociais e os mecanismos de apropriação espacial são elementos estruturantes. A despeito disso, há outras formas de análise que não demandam a caracterização de grupos sociais tão distintos e autônomos e focalizam processos de outra natureza, diferentes da simples apropriação do espaço. O conceito de espaço público, por exemplo, faz emergir outros elementos essenciais à discussão sobre espaço e poder, tais como o da convivência entre diferentes indivíduos que compartem um mesmo espaço e, para isso, estabelecem regulações. Todos os problemas e desafios dessa engenharia social e sua espacialidade permanecem pouco conhecidos e estudados, em parte, pela sobrevalorização da consideração territorial.

Palavras-chave: TERRITÓRIO. ESPAÇOS PÚBLICOS. PODER. POLÍTICA.

Public spaces and territories. The relations between space and power in Geography

Abstract

The article discusses the problems in geography to only use the concept of territory to analyze the relations between space and power. Concepts are instruments that guide and delimit the analyses. In the case of the concept of territory, the dynamics generated by the conflicts between different social groups and the mechanisms of spatial appropriation are structuring elements. Nevertheless, there are other forms of analysis that do not require the characterization of such distinct and autonomous social groups and focus processes of a different nature than the mere appropriation of space. The concept of public space, for example, gives rise to other elements essential to the discussion of space and power, such as the coexistence between different individuals who share the same space and establish regulations for it. All the problems and challenges of this social engineering and its spatiality remain little known and studied in part, by the overvaluation of territorial consideration.

Keywords: TERRITORY. PUBLIC SPACES. POWER. POLITICS.

Palabras clave: TERRITORIO. ESPACIOS PUBLICOS. PODER. POLITICA.

Introdução

A consulta à produção bibliográfica na Geografia nos últimos trinta anos revela como traço dominante a utilização generalizada da ideia de território. Por óbvio, são também marcantes os termos dela derivados, como as expressões territorialização, territorialidade, territorialismo, desterritorialização, reterritorialização, territorializador, etc. Um panorama desse diagnóstico pode ser verificado na figura abaixo (Figura 1).1

Figura 1. Quantidade anual de artigos com as expressões “territory” e “public space”, considerados também os plurais, em seus títulos (1989-2019). Fonte: Web of Science (Clarivate Analytics).

“O território está na moda” disse um conhecido urbanista no começo dos anos 80 (Corboz, 1983). Prova disso é que, na edição de 1974 do dicionário de Geografia de Pierre George e Fernand Verger, não há um verbete para território, mas ele aparecerá em todas as edições seguintes a partir dos anos 80 (George e Verger, 1974). Em outro dicionário de Geografia, já no início dos anos 2000, existem três extensos verbetes que apresentam o conceito de território, além de seus diversos cognatos, segundo diferentes abordagens (Lévy e Lussault, 2003). Mesmo em áreas de conhecimento próximas, como a História, a Sociologia e a Filosofia, o conceito de território passou a ser considerado central para pensar geograficamente o poder.2

Essa concentração do interesse dos geógrafos merece reflexão. Os principais intérpretes da ciência moderna (Bachelard, Kuhn, Popper, Lakatos, Latour) demonstraram fartamente que os principais debates e progressos de um campo disciplinar são estabelecidos e reconhecidos por discussões de cunho conceitual. Compreende-se, assim, que o conteúdo específico de um trabalho científico depende em grande parte do quadro teórico-conceitual que o instrui, o define, o delimita e o conforma. O julgamento epistemológico é, portanto, muito mais de natureza procedural do que conteudística. Por isso, por exemplo, não precisamos conhecer uma determinada área estudada em uma tese para fazer parte da banca que irá julgá-la. À banca cabe o julgamento acerca dos procedimentos escolhidos e utilizados no trabalho. O mesmo ocorre na avaliação dos artigos científicos ou dos projetos de pesquisa. As perguntas que guiam a avaliação dessas atividades são sempre voltadas para os procedimentos. Eles são suficientes, legítimos, válidos e coerentes? Esse conjunto de perguntas, como vemos, é a intervenção desejada no controle da qualidade da produção científica. Uma pergunta central nesse controle é aquela que indaga sobre o bom uso das noções e dos conceitos: eles foram bem escolhidos? Eles são os mais apropriados para a temática em tela e foram empregados com rigor e precisão?

Ora, é parte da vida dos conceitos serem instrumentos que operam problemas. Nesse sentido, eles têm a capacidade de ser ou não adequados ao tratamento de determinadas indagações. Pode-se mesmo dizer que os conceitos são instrumentos que nos conduzem a ver e a trabalhar certos aspectos e características dos fenômenos em detrimento de outros possíveis. Em síntese, eles convidam à discussão de ângulos específicos e, por isso, serão bem ou mal escolhidos, dependendo dos objetivos enunciados e pretendidos pela pesquisa. A Geografia, como as demais disciplinas científicas, desenvolveu o uso de diversos conceitos, pois trata dos problemas a partir de diferentes perspectivas. Assim, dispomos de uma sortida caixa de ferramentas conceituais e temos o privilégio da escolha entre esses variados instrumentos. A seleção se justifica pelo julgamento da capacidade do aparelho conceitual em tratar daquilo sobre o que almejamos refletir. Espaço, região, território, paisagem, lugar e meio ambiente são os conceitos mais lembrados, porém, há outros fundamentais, como localização, posição e situação, que, embora comumente esquecidos nas listas dos conceitos e princípios, fazem parte das questões genuinamente geográficas.

Há, ainda, uma série de noções básicas, como distância, centralidade, densidade, difusão, entre muitas outras, que, ao serem desenvolvidas dentro de um determinado corpo teórico-geográfico, também ganham dimensão conceitual. Esse é o caso da difusão espacial, das localidades centrais, da diferenciação de áreas e de numerosos outros exemplos na bibliografia geográfica. Apesar de serem confundidos, conceitos e noções são bastante diferentes. Os primeiros são constructos mentais sobre objetos (concretos ou abstratos) estabilizados por uma comunidade intelectual, são unidades de significado operando dentro de um sistema de raciocínio. Já as noções são conhecimentos gerais obtidos a partir da experiência comum.

Nas ciências sociais, muitas vezes, a denominação dada a um conceito é extraída do vocabulário comum, ou pode mais tarde se associar a ele. Isso não deve, no entanto, obscurecer o fato de que o conceito se constrói pela identificação dos predicados que são os constituintes essenciais de uma gama de objetos ou fenômenos. Os conceitos, por isso, dirigem-se sempre a um universo genérico, não valorizam aquilo que é singular, específico ou próprio. Eles têm compromisso com a essência (a quididade, como diriam os escolásticos) que habita aqueles objetos que o conceito identifica e procura descrever e compreender.

Nosso objetivo neste artigo é analisar as qualidades essenciais de dois conceitos que possibilitam a discussão das relações entre poder e espaço: o de território e o de espaço público. Para isso, examinaremos o campo de análise no qual cada um deles opera e, em seguida, tentaremos demonstrar o interesse do preciso uso conceitual para preservar toda a riqueza e variedade do domínio recoberto pelas relações entre espaço e poder.

Acreditamos que saber distinguir o campo de questões no qual um conceito opera constitui uma tarefa primária. É preciso reconhecer quais são os predicados essenciais que estão em discussão quando o utilizamos. Isso é particularmente importante para o conceito de território que, com frequência, pode se apresentar na Geografia de maneira tautológica. Em alguns textos básicos é comum a definição ser feita pela simples associação com a ideia de poder. Ora, por esse atalho, aparentemente tão óbvio e didático, se infiltram dois grandes equívocos. O primeiro é clássico. Não se pode apresentar como predicado aquilo que é parte da própria definição. Corresponderia a dizer que uma das qualidades do círculo é que todos os pontos são equidistantes do centro, quando sabemos que essa é a definição mesmo de um círculo euclidiano. Trata-se de uma proposição na qual o “relato pressupõe o próprio conceito cuja aquisição ele pretende explicar” (Chalmers, 1993:58).

O outro equívoco que subjaz na utilização do conceito de território é o de, por um lado, não qualificar o tipo de poder em questão trazido por esse conceito e, por outro lado, insinuar que todas as formas de poder discutidas pela Geografia são contempladas por esse conceito.3 É exatamente sobre essa última assertiva que iremos dedicar um exame mais minucioso. Antes, porém, é necessário deixar claro que nem todos os tipos de poder têm como sustentação uma base espacial. O conceito de território se estende apenas sobre aquele campo no qual o poder é conquistado, exercido e mantido em virtude do controle de um espaço –é exatamente por essa via que se define um território–.

Dito isso, vale então examinar se todas as formas de poder, que tem uma expressão espacial, se constroem a partir dos mesmos atributos que caracterizam o conceito de território.4 Em outras palavras, queremos saber se há outras formas de discutir as relações de poder que possuem relação direta com o espaço, mas que são diversas daquelas contempladas pelo conceito de território.5 Em seguida, cumpre examinar alguns desses outros instrumentos conceituais e justificar o eventual interesse e alcance que aprovaria seu uso pela Geografia. Essa é a tarefa fundamental que sustenta este artigo.

As operações executadas pelo conceito de território

Ainda tendo por base o exame da bibliografia geográfica sobre o tema do território, percebe-se, sem muito esforço, que um sem-número de trabalhos coloca em cena sempre dois elementos: 1) grupos sociais em conflito aberto pelo controle de uma área; 2) apropriação dessa área por um deles.6 De fato, não parece sem importância a estreita associação do conceito de território com a distinção de grupos sociais bem definidos, com interesses opostos, que disputam o controle de uma área. Essa área passa a ser, portanto, um território na medida em que ela consiste naquilo que está em jogo, em disputa, e seu controle levará ao domínio de um grupo sobre o outro.

Há alguns anos, tentamos demonstrar como o espetáculo de um jogo de futebol estetiza esse processo de maneira quase exemplar (Gomes, 2002). Duas equipes opostas, dois exércitos, se enfrentam pelo controle de uma área, o campo de futebol. A submissão de um grupo ao outro se caracteriza pela explícita condução da bola até a parte do campo, que é também aquela mais protegida pelo grupo oponente, onde se encontra a meta, o gol. Ao conseguir levar a bola até esse limite, a demonstração do domínio territorial é clara e, portanto, pode-se afirmar que uma equipe dominou completamente a outra. Devemos perceber que esse domínio não se produziu pela supressão física dos antagonistas, como em uma verdadeira guerra, nem pelo combate físico direto. O domínio se exprime exclusivamente pela capacidade de dominar um terreno que está em jogo, o campo. Devemos também reconhecer que, nessa estetização, a bola faz as vezes de uma arma que é lançada e, ao avançar até determinado limite, demonstra a superioridade de uma equipe em controlar o campo, transformando-o em um território.

As estratégias pelas quais uma equipe conseguirá ter êxito sobre a outra são muito variadas. No jogo de futebol muito se fala na habilidade dos jogadores, na disposição deles sobre o campo, nos deslocamentos que efetuam, nas jogadas que realizam, ou seja, nos movimentos que imprimem à bola. Como vemos, essas estratégias têm relação direta com a posição dos jogadores e da bola no espaço. Podemos dizer, então, que são estratégias territoriais, pois visam, ao final, garantir o controle sobre uma área e, por conseguinte, sobre o adversário.

Pode-se, portanto, dizer que esses são os ingredientes necessários à análise territorial: grupos em confronto, áreas em disputa e estratégias territoriais para impor o domínio de um grupo sobre o outro pelo controle daquele espaço, que se caracteriza então como um território. Qualquer que seja a situação encontrada, nas infinitas possibilidades que o mundo social pode apresentar, o sucesso da aplicação da análise territorial dependerá da boa caracterização desses ingredientes.7

O segundo elemento apontado em grande parte dos textos é a apropriação. O conceito de território tem, desde suas raízes clássicas, romanas, um forte comprometimento com a ideia de apropriação. Esse era o sentido sublinhado pelo vocábulo em sua origem, uma terra que é própria e exclusiva a alguém (Elden, 2013). Hoje, a geografia também utiliza o conceito de território para descrever os processos de apropriação e exclusividade. São relatos de estratégias instauradas pela supressão de direitos de grupos, pela expulsão física deles ou pela total submissão de uns aos outros. A característica fundamental a ser construída é a exclusividade alcançada pelos processos de apropriação.

Para realizar uma análise territorial, os trabalhos frequentemente partem de uma população na qual são aplicados redutores de complexidade para que possam ser apresentados como genuínos grupos sociais.8 Reduzir a complexidade significa, nesse caso, que um conjunto de pessoas, em princípio muito diversas, é apresentado sob a forma de um grupo que mantém relações estáveis, possuem interesses e objetivos comuns e dividem um sentimento geral de pertencimento e identidade. Essas características são subsumidas sem discussão, como um dado factual em algumas dessas análises territoriais. Em seguida, há a associação direta do grupo com uma área, considerada então como seu território de origem e vital para sua preservação. A identidade social é rebatida sobre o espaço e apresentada como algo evidente e dado.

Dessa forma, a identidade social e a definição de um território associado ao grupo passam a compor um par perfeito. Há, por assim dizer, um deslocamento da essência da identidade do grupo para essa área. Cria-se uma simetria perfeita entre identidade social e identidade territorial. A coincidência dessas identidades é concebida como espontânea, natural, portanto, ela é óbvia e não há necessidade em discuti-la ou examiná-la. Os adversários desses grupos são caracterizados como um conjunto de atores exógenos que age de forma articulada, segundo interesses coordenados, e que, mediante estratégias variadas, obtêm êxito em deslocar os membros do grupo original e os substituir no controle sobre a área. Não raras vezes, esses adversários do grupo original são qualificados como atores comprometidos com o modo de produção capitalista e associados aos processos de segregação, gentrificação, especulação imobiliária, implantação de atividades de turismo de grande porte, entre outros. Esses processos são expostos como evidências da nociva mercantilização da vida social e, em contraposição, os grupos que os sofrem, com frequência, são apresentados como marginais a essas atividades. Daí a transformação dessa luta territorial em luta de resistência, como são muitas vezes apresentadas essas dinâmicas.

A dependência essencial do grupo em relação ao controle que mantém sobre uma área, um território, assumida como implícita e necessária, leva à dedução de que sua perda, ainda que parcial, compromete a própria existência social do grupo. A bibliografia sobre essas perdas, ou as ameaças que pesam sobre os grupos de não guardar o controle dos seus territórios, é absolutamente impressionante.9 As populações ditas tradicionais, por exemplo, são uma predileção dessas análises justamente pela facilidade de sua apresentação como grupos sociais coesos e unitários. A forte relação de identidade entre essas populações e uma área, embora seja um elemento básico na argumentação, raramente têm sua constituição, seus interesses e sua historicidade discutidas com acuidade. Por esse artifício de simplificação, a eventual mobilidade espacial de elementos do grupo é necessariamente vista como compulsória e os interesses diversificados que poderiam, em parte, explicá-la são considerados ilegítimos e alheios aos interesses do grupo.

O sentido mais global dessas leituras é o de uma denúncia. Tratar-se-ia de uma população composta de pessoas arraigadas a uma área, que só podem gozar de identidade e reconhecimento se se mantiverem em seus locais de origem. Elas só existem enraizadas ao seu solo e, uma vez dele retiradas, fenecem. A analogia com o mundo vegetal não é completamente estranha e, com a licença de uma pitada de ironia, poderíamos dizer que as pessoas são, por vezes, concebidas como legumes. Só têm vida se mantêm intactas suas raízes, só podem existir em seus torrões originais. A analogia vegetal é também preservada na falta de independência atribuída a essas pessoas. Delas são retiradas a aptidão para a reflexão e a competência para a ação autônoma. Quando agem são apenas levados a isso por interesses estranhos aos seus. Um dos maiores problemas dessas análises é que elas se apresentam, em geral, como defensoras desses grupos, mas não outorgam nenhuma legitimidade às iniciativas que fogem ao perfil da pura e simples vitimização.10

Ao apresentar assim esses trabalhos de análise territorial, em suas formas mais gerais, corremos o risco de o leitor julgar que há um voluntário exagero com a intenção de configurar uma caricatura. Isso não é procedente. O quadro apresentado é meramente descritivo e não tem nenhuma intenção de prescrever protocolos de como deveriam ser esses trabalhos. Evidentemente, há contribuições numerosas na Geografia que fogem a essa vulgata e discutem com rigor e precisão lutas territoriais, sem evitar a complexidade e a variedade de situações. Há, por isso, verdadeiros avanços na produção de conhecimento sobre o tema. Acreditamos, no entanto, que seja útil descrever os abusos cometidos por supostas análises de problemas territoriais. O exame minucioso dos procedimentos e das vias pelas quais as análises são feitas é a forma mais correta de reconhecermos e diferenciarmos os trabalhos e só assim nos deve ser permitido falar de competências, interesse e relevância.

Outra forma de conceber relações de poder e espaço

Há alguns anos temos realizado diversas pesquisas a partir do conceito de espaço público.11 Inicialmente, nas apresentações dos trabalhos e submissões dos projetos às agências financiadoras de recursos, houve resistência e incompreensão. Um dos primeiros projetos submetidos no começo da década de 1990, por exemplo, recebeu um parecer desfavorável com a justificativa de que a discussão sobre espaços públicos seria pouco relevante e fora dos temas sobre os quais a Geografia deveria se dedicar. Aos poucos, no entanto, o interesse foi aumentando e já há numerosos autores em Geografia que utilizam a expressão espaços públicos. Ela começa mesmo a aparecer como assunto em mesas-redondas ou eixos temáticos de alguns eventos especializados.12

Há, entretanto, uma fortíssima tendência a utilizar a noção de espaço público submetendo-a a uma forma similar àquela descrita como a mais comum na compreensão territorial. Isso quer dizer que, embora muitos autores incorporem em seus discursos o vocábulo espaço público, ele é tratado sob as mesmas perspectivas do conceito de território.13 Muda a denominação, mas as análises seguem as mesmas operações e, por isso, não há tanta novidade do ponto de vista do avanço da pesquisa. Há um efeito discursivo que insinua um novo tratamento e novas questões, mas retoma as mesmas vias utilizadas pelas análises territoriais. Estão preocupados tão-somente com os processos de constituição de grupos sociais que disputam a exclusividade sobre uma área, nesse caso, pública, e que impõem seu domínio pelo controle dela, transformando-a em território. Anula-se a potência da utilização dos espaços públicos como um verdadeiro conceito, com o aporte de novas questões e de outras formas de discutir as relações e conflitos derivados da experiência de uma espacialidade compartida.

Sem dúvida, as ações de grupos, mais ou menos coordenados, que buscam impor uma apropriação sobre alguns espaços públicos, são muito presentes e podem ser reconhecidas cotidianamente, por exemplo, em áreas centrais das grandes metrópoles. Esse importantíssimo processo ganha, no entanto, outra perspectiva quando se parte dos espaços públicos como modelo conceitual de análise.

Ora, como já foi dito antes, conceitos são instrumentos analíticos, eles devem atuar em operações nas quais sejam competentes para trazer novos recortes e, sobretudo, novas formas de pensar problemas. Como se diz em epistemologia, é no momento que um conceito muda de sentido que ele tem mais sentido.14 Isso é o que queremos demonstrar com a ideia de espaço público na Geografia.

De fato, desde a publicação da tese de J. Habermas sobre a constituição de uma esfera pública, no começo dos anos 1960, as ciências políticas e sociais têm desenvolvido novas linhas de reflexão com base na ideia de um espaço público (Habermas, 1960). Acreditamos que a Geografia tem condições de contribuir com muita competência nesse debate, mas, para isso, deve fazer um esforço no sentido de bem constituir o campo, o alcance e a relevância dessa discussão tendo como ponto de partida sua especificidade em relação aos demais domínios conceituais.

Nesse sentido, algumas advertências devem ser imediatamente feitas para sermos bem compreendidos. Não se trata de conceber um tipo de espaço apenas por seu regime de propriedade que tem como registro formal a potência pública. Hospitais, casernas, escolas e todas as outras instituições do Estado são públicas por definição, mas ninguém está em princípio pensando nesse conjunto tão variado. Espaços públicos são aqueles logradouros frequentados voluntariamente por pessoas que, por certas condições específicas, são concebidas como um público.

Sem querer estender mais que o necessário essa apresentação geral, digamos que um público é um conjunto de pessoas definido como uma comunidade política, soberana no uso de direitos, e composta por indivíduos, em princípio, muito diferentes em interesses e características e que, por uma situação de organização física do mundo social, dividem um mesmo espaço. Na esteira do pensamento de Hannah Arendt, o público é composto por uma pluralidade de pessoas que interagem com o objetivo de estabelecer os meios para uma vida em comum fundada no diálogo racional, livre e autônomo:

Conviver no mundo significa ter um mundo de coisas em comum interposto entre os que nele habitam, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam ao seu redor, pois como todo intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece uma relação entre os homens (Arendt, 2007:64).

Essa mesa é o espaço público, aquilo que reúne e separa, que iguala e diferencia. Para que esse tipo de espaço exista, e assim funcione, é absolutamente necessário que as pessoas ao seu redor se comportem e se reconheçam formando uma pluralidade de diferentes que dividem e constroem algo comum. A cultura pública é esse grande mediador das sociedades democráticas. É por esse diálogo que se constrói o poder e a autoridade. A formalização desses mecanismos de regulação dá origem a diversas instituições que, nas sociedades democráticas, têm a legitimidade do poder público: partidos, parlamentos, tribunais etc.

Precisamos, pois, reconhecer que o espaço público não é somente a forma física capaz de colocar as pessoas em interação; precisamos reconhecer que a existência dos espaços públicos tem como condição sine qua non um conjunto de pessoas organizadas como um público; precisamos, enfim, reconhecer que a forma física é uma condição para que esse grupo de pessoas exista e se construa como um público. A concepção dialética desses termos talvez seja a mais importante contribuição que a Geografia pode trazer ao debate desse conceito.

Como consequência, tratar, por exemplo, uma rua, ou qualquer outra forma física espacial (praças, parques, largos etc.), como um evidente e perene espaço público é, pelo que acabamos de ver, um grave erro. A forma física em si mesma não é capaz de informar sobre as ações que aí ocorrem. Sabemos que, em diversos momentos da história, sob as mais diferentes culturas, podemos encontrar formas muito próximas daquilo que denominamos como uma rua, ou seja, uma via deixada livre para a circulação entre o casario. Sabemos também, entretanto, que os espaços públicos demandam a existência de um público e que essa formação social é histórica e socialmente bem delimitada. A funcionalidade estrita da rua é a mobilidade, mas isso não se confunde de forma alguma com as propriedades essenciais do conceito de espaço público. A complexidade da aplicação desse conceito às formas genéricas é muito grande, basta que pensemos nas diferenças de uso, de vida urbana, de público que frequenta e interage em um mesmo momento em um logradouro. Um tipo similar de morfologia urbana, em outro ponto da cidade, certamente apresentará outra composição da diversidade social. Uma cidade pode ter muitas praças, muitas ruas, muitos parques, mas cada um deles é animado por uma vida urbana e social diferenciada. Isso equivale a dizer que há graus e vivências muito diversas daquilo que chamamos de público, mesmo quando são considerados espaços bastante limitados como, por exemplo, na escala de um bairro em uma cidade contemporânea.

Costuma-se, também equivocadamente, sugerir que os espaços públicos, assim genericamente denominados, sejam todos aqueles em que o acesso é livre e indiscriminado. Já em outras oportunidades nos esforçamos para demonstrar que, ao contrário dessa banal e resistente concepção, os espaços públicos são caracterizados por exprimirem regulações, estabelecendo as condições e os limites para sua utilização (Gomes, 2004).

Três consequências podem ser extraídas do que acaba de ser visto. A primeira diz respeito ao fato de que, se quisermos trabalhar com a ideia de espaço público como um conceito, é necessário renunciar à atraente facilidade de tratar essa expressão tão genericamente que os contornos exatos nunca fiquem muito claros e que, com isso, recubram situações de natureza muito diversas. Se praças, largos, ruas e avenidas parecem óbvios exemplos de espaços públicos, e assim são tratados na linguagem comum, no momento em que trabalhamos dentro de um quadro mais rigoroso, percebemos, como foi dito antes, que simplesmente a morfologia, extraída de todo contexto histórico e esvaziada da vida social que a anima, não é, nem de longe, um critério suficiente. O exato fenômeno que se pretende analisar precisa estar muito claro e, depois disso feito, podemos nos oferecer o conforto de reconhecer que unidades essa definição recobre. Como foi visto anteriormente, há uma diferença fundamental em trabalhar com uma noção e um conceito. A Geografia, que é competente para refletir sobre as dinâmicas com expressão espacial, tem a obrigação de fazer essa reflexão conceitual quando trabalha com espaços públicos e não os tratar, como majoritariamente se faz, como uma vaga noção de um espaço comum a todos.

A segunda importante consequência é aquela que recobre a discussão sobre o poder e sua expressão espacial. Percebe-se facilmente que o conceito de espaço público nos convida a ver a dinâmica do poder sob um novo ângulo. A expressão espacial do poder público, sua natureza, sua origem e seu exercício não se resolvem nas equações que caracterizam as dinâmicas territoriais. Não se trata mais de apropriações, nem de lutas para estabelecer supremacia ou exclusividade. O campo de indagações recoberto pelo conceito de espaço público procura responder à questão sobre as possibilidades que temos de viver juntos, dividindo um mesmo espaço e resguardando-se a incontornável perspectiva da pluralidade dos indivíduos e de seus interesses, anseios e julgamentos. Conflitos de interesse, vistos como problemas centrais nas dinâmicas territoriais, são inerentes às atividades públicas. Esses interesses devem ter a garantia de, pelo menos, se manifestarem em igualdade de condições. Por isso também, todos os pensadores que se dedicaram às discussões sobre o espaço público são quase unânimes em afirmar que só há formação de um público se houver um espaço, um espaço que é físico e não apenas abstrato, que garanta a manifestação e interação livre e indiscriminada da razão. Habermas identificou isso como uma articulação comunicativa, expressão livre do julgamento e uso da razão na operação dos conflitos. Assim, o uso do conceito de espaço público chama a atenção para a pluralidade de interesses e de julgamentos que sempre existe como um dado, os conflitos são apenas a expressão dessa diversidade.

O processo de convivência exige o estabelecimento de acordos e compromissos que procuram diminuir as áreas de fricção entre os diferenciados interesses. Evidentemente, esses acordos são transitórios e instáveis. Para nós, geógrafos, o importante é reconhecer como as delimitações espaciais são marcadores dessas disposições. Utilizamos a expressão áreas de fricção porque uma grande parte das tensões sociais tende a ser menos ativa ou, em parte, resolvida pela classificação espacial de usos e práticas. Dito de maneira diversa, a atribuição de uma qualificação espacial, que funciona como um guia para delimitar comportamentos, é um dos mais eficientes instrumentos para o estabelecimento de uma convivência social consciente da diversidade de interesses. Em outra oportunidade mostramos como isso constitui um estatuto específico do espaço e o chamamos de nomoespaço (Gomes, 2004). Dessa forma, o espaço público é o campo conceitual que nos permite fugir da escatologia de uma figuração da perfeita harmonia e da ausência de conflitos, seja no passado, quando idealizamos as situações pretéritas das comunidades dando-lhes uma vontade coletiva que talvez nunca tenha existido, seja no futuro, prometendo que teremos um mundo de paz e harmonia, uma vez dominada a cupidez e a pura maldade, concebidas como características intrínsecas dos processos atuais.

Finalmente, a terceira e mais importante consequência, é a definição clara dos predicados essenciais que estão associados ao conceito de espaço público sob um ponto de vista geográfico.

As qualidades essenciais do conceito de espaço público

A palavra publicidade, quando se impôs no vocabulário comum no século XVIII, tinha como significado aquilo que é apresentado ao público. Essa ideia de apresentação ao público tem duas principais dimensões. A primeira, como foi discutido anteriormente, é a existência mesma de um público. Esse conjunto de pessoas, prontas a reagir e a julgar com autonomia e fazendo uso da racionalidade, torna tudo aquilo que lhes é apresentado em um elemento de articulação e de diálogo. A segunda importante dimensão é a espacialidade, que não poderia deixar de ser mencionada por um geógrafo, uma vez que a exibição de algo deve ser feita a partir de um espaço constituído para isso. Essa reflexão sobre uma espacialidade construída para o exercício da vida pública já foi explorada em outras publicações.15 Serão recuperados aqui apenas alguns aspectos mais importantes dessa reflexão.

O primeiro deles é que a sociedade, ao estabelecer que há coisas que devem ser exibidas ao julgamento público, precisa constituir espaços físicos para que isso ocorra. Em outras palavras, há uma reorganização espacial que dispõe de fortes indicadores sobre aquilo que deve ser exibido e aquilo que deve permanecer protegido do olhar do público. Reconheçamos que o corpo social, dessa maneira, não restringe as atividades, mas as qualifica segundo o lugar onde devem aparecer, onde devem ter lugar. Apresentar ao público significa exibir ao olhar. Há, por isso, uma primeira propriedade fundamental dos espaços públicos, que é a visibilidade. Em diversas passagens de seus trabalhos, Hannah Arendt se refere à visibilidade como essencial à dimensão pública, aquilo que não se apresenta ao público não existe ou permanece invisível para o mundo (Arendt, 2007:258-270). Toda uma importante bibliografia sociológica voltada para a interação social e suas diferentes constituições, de uma forma ou de outra, também percebeu a importância da visibilidade e sua necessária relação com o desenho espacial que qualifica e dá significado às ações sociais.16

A visibilidade é uma qualidade do público porque é fruto de uma interação aberta, na maior parte das vezes, entre desconhecidos que tomam parte em algo, sobre o qual incidem regras que garantem a isonomia e a participação de todos, independentemente dos fatores pessoais ou familiares. Assim, parece inequívoco o papel fundamental da espacialidade no estabelecimento desses ambientes de visibilidade e de troca entre desconhecidos. Há uma arena para essa dinâmica da visibilidade que dá sentido a um reconhecido clichê: espaços públicos, lugares para ver e ser visto.

Outra qualidade ou predicado essencial do conceito de espaço público deriva do tipo de poder que ele abriga e reconhece como legítimo. Trata-se de um poder que encontra justificação na busca do benefício comum, estabelecido pelo compromisso possível entre os múltiplos interesses considerados. Esse compromisso deve ser rediscutido e repactuado em face da eventual manifestação de novos interesses. Como explicou M. Weber, a submissão a esse poder é fruto da convicção de sua competência funcional para estabelecer com justiça o bem comum (Weber, 1919). É fruto também da convicção de que as normas que daí derivam foram fundadas objetivamente e com base na aplicação da razão. Esses princípios garantem a legitimidade desse domínio racional-legal. Na maioria das vezes, trata-se de uma dominação que não gera resistência, uma vez que parte da persuasão de que o estabelecido é resultado de um raciocínio lógico-racional, impessoal, geral e objetivo. A submissão se define em relação às regras e a obediência é apenas intermediada por um corpo hierarquizado de funcionários, apresentados como competentes para criá-las, formalizá-las e aplicá-las. Eles não têm o poder a título pessoal, são investidos dele pelo posto que ocupam nessa administração. Essa é a forma comum do domínio exercido pelo Estado moderno.

É nesse sentido que N. Elias identifica a marcha histórica no Ocidente de criação de modelos de atitude em público para o controle dos afetos e da agressividade pela incorporação de regras de comportamento em situações de interação entre pessoas diferentes, desde então denominada como urbanidade (Elias, 1994).17 Esse processo, denominado por ele como “civilizador”, foi paralelo à construção do Estado Moderno.

Por isso, diz Weber, dentro desse processo, apenas o Estado tem o monopólio legítimo da violência física para a obediência da lei. Quando os argumentos lógico-racionais se mostram insuficientes, o último recurso é a força, usada dentro dos limites da legitimidade. O privilégio ao uso da força reservado somente ao Estado significa que todo conflito, em seu interior, deve ser objeto de discussão racional e pacífica, vetando-se o uso da força nesses espaços para obter qualquer vantagem que seja. Essa é uma condição básica para o funcionamento de uma sociedade democrática, pois há uma restrição generalizada ao uso da força no arbítrio dos conflitos. Como na expressão atribuída a Cícero: cedant arma togae, concedat laurea linguae (que as armas cedam às togas, conceda-se os louros à língua), o poder republicano só poderá existir no respeito à majestade dos códigos legais estabelecidos pela discussão (língua, eloquência), nunca em submissão às armas.18

Essa forma de organização do poder define uma esfera comumente denominada como política. Para Weber, a política significa a participação no poder ou a luta para influir na distribuição dele, seja para servir à sociedade, seja para se servir dele em benefício próprio (Weber, 1919). Por isso, não há sentido em concordar com os propósitos de Clausewitz de que a guerra é a continuação da política por outros meios. A política acaba quando começa a guerra. São duas formas muito diferentes de estabelecer um domínio, o próprio Clausewitz admite que a “guerra é um ato de violência destinado a obrigar o adversário a executar nossa vontade” (Clausewitz, 1996:51).

Na guerra, ou pela violência, a submissão não é conseguida pela convicção ou pela discussão, mas pela pura força. A guerra é, por isso, o fracasso da política e seu fim. Essa discussão é hoje em dia da maior importância, sobretudo em um país como o Brasil, onde os números e sinais de violência urbana são calamitosos. Talvez a violência seja a maior inimiga da vitalidade dos espaços públicos cotidianos.

Mais uma vez podemos nos apoiar nos escritos de Arendt para reconhecer que, desde suas mais remotas origens na Grécia Clássica, a política se define pela organização do poder fundado na articulação dialógica racional de pessoas livres e autônomas que se colocam face ao desafio de estabelecer regras para sua convivência. O lugar da política são os espaços públicos, aqueles que, pelo menos no modelo ideal, atendem e abrigam a diversidade de interesses e regulam a possibilidade de encontrar vias pacíficas para estabelecer um benefício comum.

A expressão espaço público é, por isso, comumente apresentada nas ciências sociais como uma esfera de poderes e instituições formais que compõem a organização do poder nas sociedades democráticas. Há, no entanto, nesses trabalhos, um relativo esquecimento dos espaços públicos concretos, aqueles sobre os quais se organiza cotidianamente a vida pública, onde se manifestam os conflitos, onde se apresentam os diferentes interesses, onde se aprecia a aplicação das normas e regras geradas pelas instituições formais. Esses espaços são um terreno muito fértil de observação para discutir os limites e alcance entre a esfera formal, que define as regras, e a dinâmica cotidiana onde elas se aplicam. Sobre esses espaços públicos exercitamos a convivência cotidiana com a alteridade, ou seja, a diversidade se manifesta sobre esse terreno comum e por essa via obtém visibilidade e reconhecimento.

Em resumo, o conceito de espaço público nos conduz a refletir essencialmente sobre a possível interação entre indivíduos diferentes que compartilham um mesmo espaço –como organizá-lo, como habitá-lo, como garantir a livre manifestação da diversidade sem comprometer as bases da convivência? –. Esse espaço, assim construído e vivido, tem uma relação essencial com a ideia de cidadão e com a dinâmica que caracteriza suas ações: a política.

É fácil perceber o interesse que o campo disciplinar recoberto pela Geografia tem em refletir e pesquisar essas questões. Estranho talvez seja o fato de que o conceito de território tenha dominado as preocupações dos geógrafos a tal ponto que o potencial interesse contido no conceito de espaço público tenha ficado secundarizado. É bom deixar claro que as preocupações tratadas pelo conceito de território são fundamentais e relevantes. As dinâmicas territoriais são muito vivas, atravessam e comprometem mesmo, com muita frequência, a experiência da convivência cotidiana nos espaços públicos. Nem por isso se justifica que tornem subalternas as outras formas e dinâmicas que configuram os espaços de interação social. A discussão das relações sobre o poder e a espacialidade não se esgotam nos limites explicativos do conceito de território.

Conclusão

Certo, há uma forte sedução no uso do conceito de território. Em parte, tal sedução pode ser oriunda da simplificação da análise decorrente do conforto em trabalhar com uma oposição binária entre grupos que disputam a supremacia sobre uma área. Evidentemente, há também a sedução de aproximar essa dinâmica da apropriação e da luta territorial das demais lutas sociais, sobretudo por aqueles que estão convencidos de que as chaves de interpretação do mundo social já estão dadas, cabendo ao pesquisador apenas aplicá-las. Voltando ao início dessa discussão, é preciso reconhecer que um campo epistemológico se nutre das questões que é capaz de construir e não da simples aplicação de um modelo de análise completamente desenhado de antemão.

Nos últimos anos temos assistido a uma série de eventos que eclodiram nas grandes cidades e que mobilizaram muita atenção. Citemos, entre outros, a Primavera Árabe, as Jornadas de 2013 no Brasil, os Indignados na Espanha, o Occupy Wall Street nos EUA, os Coletes Amarelos na França, os Protestos em Hong Kong –todos eles tiveram em comum o uso de determinados espaços públicos como campo de visibilidade, de reconhecimento e de luta–. Não podemos conceber que sejam todos similares, que tenham a mesma estrutura, que exprimam o mesmo sentido e nem que se construam a partir de uma mesma espacialidade. Não podemos, sobretudo, imaginar que já temos um modelo de análise pronto para interpretá-los. Se isso é verdade para esses eventos extraordinários também não deixa de ser para a vida urbana ordinária, que se renova e se reinventa todos os dias nos espaços de forte interação. Facilmente nos sentimos interpelados por eventos extraordinários, poucas vezes atribuímos interesse ao mundo ordinário, ao cotidiano da vida pública. Entretanto, as convenções variadas que utilizamos na convivência social, as delimitações espaciais que nos guiam sem que, às vezes, nos apareçam com clareza, a experiência da alteridade que nos é proporcionada no espetáculo das calçadas todos os dias... Tudo isso, que parece tão espontâneo e natural, é fruto de um longo processo, de muitos conflitos, muita discussão e muitos compromissos. Mais importante ainda, esses elementos que caracterizam a convivência cotidiana são os alicerces da nossa vida pública e exprimem, nesse exercício prático, nossas concepções sobre direitos e deveres. Por essas razões, é fundamental dedicar mais atenção e interesse ao tema dos espaços públicos.

O mundo social possui uma arquitetura muito complexa. Ele é composto por uma infinidade de segmentos sociais, nem sempre estáveis, cada um deles com interesses, vontades, valores e disposições muito diversos. A cada momento e a cada lugar esses segmentos sociais interagem a partir de geometrias muito variáveis. O uso preciso do conceito de espaço público abre um conjunto de questões muito amplo e relevante, a Geografia tem um papel chave nisso.

Bibliografia

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Paulo Cesar da Costa Gomes / pcgomes@yahoo.com.br

Graduado (1980) e mestre (1988) em Geografia, Universidade Federal do Rio de Janeiro; Docteur en Géographie, Sorbonne - Université de Paris IV (1992). Professor convidado na França (nas Universidades de La Rochelle, Pau et Pays de l’Adour, Lyon e Reims), pesquisador na Universidade de Ottawa, Canadá (1995 e 2002), Pós-Doutorado, Université de Paris III (2005), Visiting Scholar, Consortium TEMA-Erasmus Mundus (2014), visiting Scholar, École de Hautes Études en Sciences Sociales- EHESS, (2014/2015), pesquisador no Centre de Recherches en Histoire Internationale Atlantique - CRHIA, Université de La Rochelle, (2016), professor convidado na Universidade de Granada, Espanha (2017) e na Universidade de Buenos Aires, Argentina (2018). Atualmente é professor Titular no Departamento de Geografia da UFRJ. Tem experiência nas áreas de Teoria e Métodos em Geografia, com ênfase em História do Pensamento Geográfico, Epistemologia da geografia e Geografia Política, atuando principalmente nos seguintes temas: espaços públicos, epistemologia da geografia, cidadania e cultura.


1 Os dados do gráfico foram extraídos da Web of Science Core Collection, base que indexa aproximadamente 12 mil periódicos acadêmicos. Os seguintes filtros e operadores foram utilizados na pesquisa: 1) ocorrência das expressões territory ou public space, e seus respectivos plurais, nos títulos de publicações científicas de geografia (geography); 2) o tipo de publicação está restrito aos artigos científicos. Os resultados da Web of Science para as mesmas expressões em português e espanhol não foram significativos no período considerado –entre os anos de 1989 e 2019–. Os resultados da pesquisa, portanto, contemplaram majoritariamente periódicos anglofônicos.

2 É o que se lê, por exemplo, no livro de Younès e Paquot (2009).

3 Essa ampla generalização aparece em um dos trabalhos clássicos sobre território, o livro de Claude Raffestin (1980).

4 Evidentemente, estamos restringindo aqui a discussão à territorialidade humana.

5 Como já foi apresentado em outra oportunidade, esse seria o caso, por exemplo, do conceito de região (Gomes,1995).

6 Excluímos desse exame a farta bibliografia geográfica que trata do conceito de território, mas o associa à escala dos Estados nacionais. Esse uso é bem anterior ao que examinamos aqui. Essa decisão se justifica pois o uso do conceito em uma escala subnacional dirige a atenção para fenômenos diversos daqueles tratados nas dinâmicas dos Estados nacionais.

7 O excelente trabalho de Robert Sack (1986) justifica com muita precisão esses ingredientes na análise territorial.

8 Esse procedimento foi classificado por Popper (1985:497) como “coletivismo ingênuo”. Ele recomendava que fosse substituído pela análise dos fenômenos sociais, inclusive os coletivos, em relação aos indivíduos, às ações e às relações nas quais eles são os sujeitos. Luc Boltansky também critica todas as pesquisas de cunho sociológico que não discutem a ideia de ação coletiva ou de grupos sociais. Ele se refere a isso como a “maldição de Popper” (Boltansky, 2012).

9 Qualquer indicação bibliográfica sobre esse ponto seria incompleta e, por isso, injusta. Faria recair a responsabilidade sobre um pequeno número de autores quando há uma infinidade de livros, capítulos, artigos, comunicações etc. que correspondem à descrição feita. A simples consulta aos anais de congressos e colóquios, em diferentes países, entre os anos 1990-2019, é suficiente para uma noção da magnitude desse gênero de tratamento na produção geográfica.

10 Não há absolutamente menosprezo à violência e ao sofrimento que fazem parte desses processos. A etimologia da palavra desolado (solus; solum) nos indica claramente a dolorosa associação que existe entre perder o chão e se sentir isolado, abandonado, só. O problema consiste em transformar a cabível empatia que experimentamos diante dessas situações em um instrumento epistemológico. As pessoas agem não inteiramente submetidas a uma determinação, que opera contra a vontade delas. São atores conscientes que manejam e adaptam um sistema de valores às situações que se apresentam. Observá-los e estudá-los não demanda amor nem compaixão, apenas exige que seja compreendida a lógica que os animam.

11 Desde então, esse tema tem sido central nas variadas pesquisas de todos aqueles que integram ou integraram o grupo de pesquisas Território e Cidadania da UFRJ.

12 Em 1999, por exemplo, um evento em Paris, Réinventer le sens de la ville: les espaces publics à l’heure globale, organizado por Cinthya Ghorra-Gobin, procurou exatamente sensibilizar os geógrafos para o tema e foi um dos primeiros a conseguir grande adesão e boa repercussão.

13 Processo inverso ocorreu com os trabalhos do grupo de Pesquisa Território e Cidadania. Havia a consciência de que estudávamos fenômenos diversos daqueles contemplados pelo conceito de território, mas antes de chegarmos ao espaço público, utilizamos a denominação de território para discutir cidadania, democracia e comunidade cívica. Um artigo aparecido em 1997 exprime muito bem essa ambiguidade (Gomes, 1997). Logo depois, o conceito de espaço público se impôs com clareza nas discussões que desenvolvemos, mas a denominação do grupo é uma testemunha dessa trajetória que se iniciou pelo território.

14 Aparentemente, o primeiro a dizê-lo foi Bachelard (1934): “C’est au moment où un concept change de sens qu’il a le plus de sens, c’est alors qu’il est, en toute vérité, un événement de la conceptualisation.” (Bachelard,1934 :56). Em tradução livre: “É no momento em que um conceito muda de sentido que ele tem mais sentido, é quando ele é, de verdade, um evento da conceptualização”.

15 A esse respeito, ver especialmente Gomes (2013).

16 Esse é o caso, entre outros, de Goffman (1959) e de Garfinkel (1967).

17 Precedentemente, na passagem da Antiguidade Clássica para a Tardia, com frequência se constata que as cidades perdem seu nome próprio e passam a ser identificadas pelo grupo social que nelas reside. Assim, por exemplo, Lutécia, antiga denominação de Paris, passa a ser denominada como “cidade dos parisi”. Esse é o momento no qual ocorre uma forte queda no número de habitantes, uma retração da superfície urbana e sua delimitação por muralhas. Perde-se, talvez, o mais importante, o ideal da “urbanitas”, forma de viver em sociedade que tem na cidade sua forma espacial (Duby, 1980). Interessante é perceber que Jacobs identifica, nos anos 1960, a decadência das cidades pela perda da “urbanidade”, qualidade essencial ao sentido de cidade, segundo a autora (Jacobs, 1961).

18 Vale lembrar que a República Romana exigia que os soldados entrassem desarmados nos limites da cidade. Todo armamento das tropas era depositado no Campo de Marte. Na passagem da República para o Império, essa regra foi abolida e o Campo de Marte foi incorporado aos limites de Roma.