A Triste “Grande Aventura” de António Granjo
Percepções Republicanas sobre a Grande Guerra
Teresa Nunes
Universidade de Lisboa, Portugal
teresa.nunes@campus.ul.pt
Fecha recepción: 8/03/2022
Fecha aceptación: 24/05/2023
Resumo
Ardente defensor do republicanismo e militante promotor da mudança de regime, ocorrida em Outubro de 1910, António Granjo observou na Grande Guerra um confronto entre o despotismo e o progressismo, bem como uma tentativa de reformulação do mapa político da Europa, em benefício dos grandes impérios. Cedo, defendeu a beligerância portuguesa no conflito, alinhada com os poderes da Entente Cordiale e ingressou consistentemente no Corpo Expedicionário Português (CEP), como voluntário. Consciente da relevância inquestionável do confronto, responsável pela formação de um novo mundo, empreendeu a tarefa didática de divulgar a experiência do ex-combatente e a realidade poliédrica intrínseca à “Grande Aventura”.
Palavras-chave: Portugal; Grande Guerra; Corpo Expedicionário Português; mulher e guerra; António Granjo
La triste “Gran Aventura” de António Granjo. Percepciones republicanas de la Gran Guerra
Resumen
Ardiente defensor del republicanismo y militante promotor del cambio de régimen, que tuvo lugar en octubre de 1910, António Granjo vio la Gran Guerra como un enfrentamiento entre el caciquismo y el progresismo, así como un intento de reformular el mapa político de Europa, a favor de los grandes imperios. Desde el principio, abogó por la beligerancia portuguesa en el conflicto, se alineó con los poderes de la Entente Cordiale y, coherentemente, se unió como voluntario al Cuerpo Expedicionario Portugués. Consciente de la incuestionable relevancia del enfrentamiento, que derivó en la formación de un nuevo mundo, se comprometió en la didáctica tarea de difundir la experiencia del excombatiente y la realidad poliédrica intrínseca a la “Gran Aventura”.
Palabras clave: Portugal; Gran Guerra; Cuerpo Expedicionario Portugués; mujer y guerra; António Granjo
António Granjo's Sad “Great Adventure”. Republican Perceptions on the Great War
Abstract
An ardent defender of republicanism and a militant promoter of the regime change, which took place in October 1910, António Granjo observed the Great War as a confrontation between despotism and progressivism, as well as an attempt to reformulate the political map of Europe, in favour of the great empires. Soon, he advocated Portuguese belligerence, aligned with the powers of the Entente Cordiale and, coherently, joined the Portuguese Expeditionary Corps, as a volunteer. Aware of the unquestionable relevance of the confrontation, which resulted in the formation of a new world, he committed himself to the didactic task of disseminating the experience of the former combatant and the polyhedral reality intrinsic to the “Great Adventure”.
Key words: Portugal; Great War; Portuguese Expeditionary Corps; woman and war; António Granjo
Introdução
A eclosão da Grande Guerra ocasionou um amplo debate no contexto político-partidário português sobre o posicionamento desejável para os desideratos nacionais. Decerto, não escasseavam motivações de índole diferenciada, como a conjuntura propícia à revisão institucional da República, através de uma reforma constitucional conforme ao ensejo do Partido Republicano Português, vulgo Partido Democrático,[1] de erradicar as bolsas de resistência prevalecentes ao desempenho governativo dessa estrutura. Tais obstáculos, conotados maioritariamente com o Partido Republicano Unionista[2] e respectiva representação parlamentar no Senado da República, mas também com o núcleo agremiado em torno do herói sobrevivo da implantação da República, António Machado Santos,[3] sugeriam a conjuntura bélica europeia como azada para uma redefinição do escopo institucional da segunda câmara ou mesmo a extinção da mesma, conforme se prenunciava no Congresso Republicano ocorrido na Figueira da Foz, em Maio de 1914 (“O Congresso da Figueira da Foz”, A Capital, n° 1361: 2).
A mesma estrutura partidária não iludia outras motivações, de pendor exógeno, as quais correlacionavam-se (in)directamente com as negociações travadas entre o Reino Unido e o Império Alemão acerca do império português em caso de incumprimento das obrigações financeiras de Portugal, nos anos de 1912 e 1913 (Rosen, 2018).
Qual réplica das conversações entre ambas as potências europeias cuja rivalidade no contexto da Velha Europa surgia eventualmente superada através da partilha do império português em África, ocorridas em 1898. Decerto, a iniciativa imediatamente anterior à eclosão da Grande Guerra assumia uma dimensão engrandecida pelo perímetro espacial considerado – a totalidade do território de soberania nacional extraeuropeu – como pela abordagem metodológica subjacentes, a de correspondência plena entre a realidade e padrões geopolíticos europeus e os vigentes nos contextos extraeuropeus. Nessa conformidade, o procedimento dos dois grandes impérios, na perspectiva germânica, consubstanciava a emergência de uma nova ordem internacional, assente na prevalência dos interesses geopolíticos das unidades políticas e institucionais de elevada grandeza, em detrimento dos demais estados soberanos, assim reconhecidos entre os respectivos pares. Nessa conjuntura, se o império português assomava um inequívoco pendor de efemeridade, conforme os desideratos e interesses alheios à realidade nacional, a presença portuguesa no Velho Mundo afigurava-se igualmente intranquila em face dos intentos estabilizadores do regime monárquico espanhol, preconizados por Alfonso XIII. Ao abrigo desses propósitos, escorados na salvaguarda das instituições políticas e integridade territorial da Espanha, o monarca reservava-se o direito de agir militarmente em Portugal, caso o regime republicano desse estado ibérico representasse um factor de instabilidade dissolvente para o vizinho.
A articulação dessas premissas catapultava Portugal para uma evidente fragilidade geopolítica, cerne das apreensões evidenciadas pelo Partido Democrático segundo o qual, a beligerância portuguesa asseguraria o reconhecimento efectivo do regime político implantado em Outubro de 1910 enquanto salvaguardava o território de soberania portuguesa e impunha ao Reino Unido a aplicação dos tratados de aliança celebrados com Portugal, mormente o Tratado de Windsor, em 1899, posteriormente reafirmado entre as duas aliadas, na sequência da aceitação inglesa das instituições republicanas nacionais, em Setembro de 1911.
Cedo, este posicionamento foi amplamente secundado pelo Partido Republicano Evolucionista (Leal, 2008: 51-55), cujas divergências político-ideológicas com a estrutura partidária democrática não obviavam a convergência no entendimento sobre as causas determinantes da confrontação europeia e a fragilidade da posição nacional no quadro alargado dos interesses estratégicos das grandes potências. Assim, avultava a orientação expressa pela participação activa no conflito, em articulação com as potências subscritoras da Tríplice Entente, como fórmula de consubstanciar a aliança luso-inglesa, cuja natureza diplomática estruturante implicava a imediata proximidade dos signatários do Tratado de Windsor. Paradoxalmente, ou talvez não, o Partido Republicano Unionista mostrava-se concordante com o diagnóstico da fraqueza endémica intrínseca às posições nacionais nos alvores da Grande Guerra. À semelhança de Democráticos e Evolucionistas não ignorava ou menorizava a perigosidade inerente às negociações entre Berlim e Londres, como não desconsiderava os anseios de Alfonso XIII.
Porém, segundo a perspectiva desenvolvida pelo agrupamento partidário chefiado por Manuel Brito Camacho,[4] tal conjuntura implicava uma metodologia parcimoniosa de abordagem ao problema da guerra europeia. Longe de se refutar à beligerância portuguesa no conflito europeu, os Unionistas mostravam-se especialmente apreensivos com as leituras endógenas do oponente Democrático e, por extensão, receosos pela subordinação dos interesses nacionais às premissas de índole partidária, no sentido estrito. Assim, advogavam os Unionistas a necessidade de observância intransigente dos tratados diplomáticos em vigor, uma atitude desconforme à inserção portuguesa no esforço bélico da Entente sem a solicitação explícita do Reino Unido. De resto, Manuel Brito Camacho enfatizava os antecedentes históricos próximos, mormente a guerra anglo-bóer, para refutar liminarmente a existência do princípio da reciprocidade como para enjeitar a natureza de premência em acompanhar o aliado na decisão de beligerância e corroborar essa na participação efectiva.
Os Unionistas destacavam-se na crítica ao posicionamento preconizado por Democráticos e Evolucionistas sobre a Grande Guerra, escorada na tentativa dos oponentes político de redesenhar os termos do Tratado entre Portugal e o Reino Unido como no esforço de persuasão da opinião pública portuguesa através da indução de um clima favorável à beligerância portuguesa. Amiúde, os Unionistas procuraram dar visibilidade aos perigos intrínsecos à orientação adoptada pelo executivo Democrático, atendendo à pressão exercida sobre o Reino Unido e à indisponibilidade essa potência em subscrever os intentos belicistas nacionais. Nesse debate entre os denominados guerristas e antiguerristas (Medina, 1986) – no cerne do qual, em rigor, nenhuma força partidária republicana se escusava à participação no esforço de guerra – não escasseavam os posicionamentos das forças antirrepublicanas, as quais evidenciavam quer a a neutralidade, no âmbito restrito, quer a afinidade, mais longínqua do que próxima, com as Potências Centrais, amplamente tributária da contestação à influência considerada funesta do Reino Unido na sociedade portuguesa.
A querela suscitada pela Grande Guerra no panorama político assim como no espaço público, os factores subjacentes e as repercussões, próximas e remotas para a soberania e interesses nacionais, na Europa e no âmbito extraeuropeu têm sido longa e profusamente analisados na abordagem historiográfica portuguesa, um esforço renovado na sequência do Centenário da Grande Guerra.[5] Porém, nessas sucessivas análises históricas paulatinas, de especificidade sectorial ou de índole transversal e holística, tem escasseado a atenção aos testemunhos e contributos prestados por António Granjo, proeminente membro do Partido Republicano Evolucionista cujo apego militante ao ideário republicano, antes e depois da implantação da República em Outubro de 1910, assentava nas aspirações reestruturantes da sociedade portuguesa cuja decadência institucional, política, económica e social justificava como fruto da actuação funesta do regime monárquico multissecular. De igual modo, António Granjo revelava-se assaz comprometido com a tarefa indeclinável de resgatar o prestígio externo português, um desiderato tão premente quanto considerava o carácter improficiente e, simultaneamente, nefasto das orientações diplomáticas protagonizadas pela monarquia constitucional portuguesa. Uma vez implantada a república, as novas instituições deveriam, segundo Granjo, agir à luz dos compromissos internacionais e tratados diplomáticos vigentes. Longe de refutar a aliança luso-inglesa, cuja relevância lhe parecia inquestionável, o abnegado Evolucionista assomava um defensor devotado da beligerância portuguesa, entendida essa como a fórmula de assunção plena da soberania nacional. Qual exercício de alcance eminentemente político, a confrontação europeia e mundial, originada no Verão de 1914, avultava em momento de consagração absoluta dos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade, no panorama das relações diplomáticos entre os Estados do Velho Mundo. Desta feita, tratava-se de assegurar o direito à existência plena das unidades nacionais, um pleito ao qual Portugal, ancestral nação europeia, não poderia deixar de participar.
Percurso biográfico: alguns apontamentos [6]
Nascido em Chaves, a 27 de Dezembro de 1881, António Joaquim Granjo realizou a formação inicial na Escola Conde Redondo e no Colégio de S. Joaquim. Concluída essa, prestava serviço militar entre os anos de 1899 e 1901, data em que passava à reserva territorial. Durante esse período, António Granjo inscreveu-se na Academia Politécnica do Porto, a qual frequentava no ano lectivo de 1899/1900. Em 1902 rumava a Coimbra; em 1902 iniciava a formação em Teologia na Universidade dessa cidade, uma opção secundarizada pelo ingresso no curso em Direito, o qual concluía em 1907. Enquanto estudante, António Granjo angariava elevada notoriedade no decurso da crise académica desse ano, culminada na greve estudantil de Coimbra. Destacado dirigente académico, António Granjo seria igualmente conhecido por integrar o núcleo dos Intransigentes, assim denominados os discentes que recusavam a possibilidade de beneficiarem de uma época excepcional de exames para obterem a conclusão do curso.
Uma vez licenciado, António Granjo regressava à vila natal, local onde fundava o Centro Republicano de Chaves, em 1908, estrutura vocacionada para a alfabetização de menores e adultos, em contexto pós-laboral, através do método João de Deus. Essa entidade antecedia a formação do núcleo republicano de Montalegre, uma iniciativa à qual António Granjo se encontrava indelevelmente ligado. Na esfera regional procurava secundar as dinâmicas da propaganda e acção republicanas, fundamento para o respectivo empenhamento na criação do comité nessa vila para acompanhar as iniciativas revolucionárias em preparação e malogradas a 28 de Janeiro de 1908. A referida estrutura propunha-se controlar o forte de S. Neutel, angariar armas e municiamentos, persuadir os militares do Regimento de Infantaria nº 19 e ocupar a sede da administração do concelho. Para a prossecução desses objectivos, António Granjo era acompanhado por Adelino Samardã, Antão Fernandes de Carvalho, António da Silva Correia, José Mendes Guerra e Vítor Macedo Pinto.[7]
O empenhamento militante de António Granjo na causa republicana aferia-se igualmente na imprensa periódica, corporizada na disseminação do ideário através do jornal A Aurora, ao qual se manteve ligado entre 1 de Janeiro de 1908 e 16 de Julho do mesmo ano; ou O Protesto, com colaboração de António Granjo entre Abril e Dezembro de 1909. Volvida a implantação da República, a assídua participação na imprensa periódica da capital não eximiu o autor ao apego pelo periodismo de expressão eminentemente local e regional, conforme ficava demonstrado em O Republicano, título dado à estampa entre Janeiro de 1912 e Janeiro de 1915.
A projecção alcançada por António Granjo no contexto regional e local catapultavam-no para o exercício de funções administrativas partidárias no perímetro geográfico do respectivo desempenho – assim, cedo integrava o elenco constitutivo da Comissão Municipal Republicana de Chaves, enquanto era incluído no Comité Revolucionário Republicano de Trás-os-Montes e Beiras. Se a primeira se encontrava vocacionada para a representação institucional e propaganda partidária, a segunda inscrevia-se claramente no âmago da orientação insurreccional preconizada pelo Partido Republicano Português e, consequentemente, desenvolvia actuação no espectro da clandestinidade. Implantada a República, António Granjo era chamado ao exercício de funções institucionais conforme a nova arquitectura política do estado português; inicialmente membro da comissão administrativa municipal de Chaves, entidade à qual presidia, era forçado a afastar-se para assumir o cargo de administrador do concelho. Persistia, porém, na direcção do Centro Republicano de Chaves e, denodadamente, aderia ao Batalhão Voluntário Patriótico, constituído por iniciativa da Comissão Municipal Republicana de Chaves.
Este ciclo do trajecto político do autor conhecia uma interrupção, largamente tributária do escrutínio para a Assembleia Nacional Constituinte, órgão no qual tomava assento como parlamentar eleito pelo círculo de origem, a 28 de Maio de 1911. Desde então, caracterizou-se pela constância na actividade parlamentar, inicialmente afecto ao denominado Bloco – designação conferida aos constituintes, posteriormente aos deputados e senadores apoiantes das sensibilidades políticas moderadas, afectos aos núcleos liderados por António José de Almeida[8] e Manuel Brito Camacho, por oposição ao crismado grupo parlamentar democrático, arreigado à influência crescente de Afonso Costa.[9] O labor parlamentar perdurou até 1914, momento de distanciamento granjiano das instâncias políticas, ao qual não seria alheio uma crescente frustração com o impasse suscitado pela ausência de respostas partidárias forjadas no âmago do Partido Republicano Evolucionista no qual militava desde a formação, como ainda pelas entropias geradas entre os poderes legislativo e executivo do novel regime.
Sublinhe-se, este afastamento não representava menor robustez das convicções políticas e ideológicas de António Granjo; antes, em função dessas, entendeu o autor alistar-se como voluntário e nessa condição integrou o Corpo Expedicionário Português. Das sucessivas experiências conferidas pelo contacto directo com a crueza das dinâmicas da guerra, contexto compósito para o qual concorriam activa e assaz paradoxalmente, as fórmulas de violência mais primitivas, engrandecidas pelas potencialidades facultadas pelo desenvolvimento da ciência e pela valência económica industrial das grandes potências em confronto. Assim, o âmago da observação de António Granjo atinha-se à confluência de novos e ancestrais métodos beligerantes, assistidos pela justaposição de velhos e recentíssimos instrumentos bélicos, um escopo do qual resultava uma tragédia de dimensões até então inimagináveis. Porém, o espectro analítico quedava-se em facetas igualmente relevantes, por directamente resultantes da beligerância, cuja grandeza reconfigurava quaisquer aspectos da vivência humana, na vertente individual ou na esfera colectiva.
Qual martírio expiatório, a Grande Guerra devolvia António Granjo robustecido na força das sociedades progressistas, as vencedoras do conflito. No entanto, logo se persuadia do irreprimível processo de mudança estrutural, gerador de dinâmicas diferenciadas, indutoras de novos agentes políticos e institucionais, assistidos por carências e ideários diferenciados. Esta nova dimensão, transversal no contexto europeu e português, impulsionava o retorno pleno de António Granjo à vida política activa. Inquestionável no enquadramento partidário e na filiação na estrutura evolucionista, revelava-se um arauto da proximidade entre as formações moderadas do republicanismo, enquanto fórmula para ripostar a influência crescente e tendencialmente dominante do Partido Democrático. Essa aspiração remota, acalentada desde a fragmentação do velho Partido Republicano Português, corporizava-se na constituição do Partido Republicano Liberal, agremiação na qual se fundiam evolucionistas e unionistas, entre outras expressões partidárias, embora incapazes de gerar a unanimidade. Cumprido parcialmente esse anseio, em 1919, António Granjo via-se como uma das figuras primeiras da novel estrutura partidária em função da qual se via acometido para uma miríade de novas responsabilidades além da renovação projecção pública.
Ao promotor da convergência entre os moderados incumbiria a liderança do novo partido, a direcção do jornal República, fundado nos alvores do regime por António José de Almeida, reconvertido em órgão oficial da nova estrutura partidária[10]. O novel estatuto partidário impunha a António Granjo, novamente membro da câmara dos deputados em 1919, uma dimensão executiva de natureza diferenciada, a saber, assumiu a presidência do ministério entre Julho e Novembro de 1920, experiência replicada entre Agosto e Outubro do ano seguinte. Sem desprimor do desempenho de tais cargos, foi designado ministro da Justiça e dos Cultos, entre Março e Junho de 1919, ministro do Interior, a título interino, em Julho de 1920, ministro da Agricultura, entre Julho e Novembro de 1920, ministro do Comércio, entre Maio e Agosto de 1921 e, por último, ministro do Interior, entre Agosto e Outubro de 1921.
Entusiasta da modernização da vida pública nacional e, particularmente em áreas sensíveis como a abertura de alguns sectores ao desempenho profissional feminino, o aperfeiçoamento ou a humanização do sistema prisional português, com o intuito de induzir uma reintegração dos reclusos após o final das penas respectivas ou, não menos relevante, a atenção dada aos jovens desvalidos, António Granjo viria a soçobrar à violência política prevalecente em Portugal desde os primórdios de Oitocentos e cujo paroxismo se verificava no rescaldo da Grande Guerra. De resto, o assassinato do então presidente de ministério demissionário, ocorrido a 19 de outubro de 1921, em Lisboa, adquiria rapidamente a designação de Noite Sangrenta por vitimar igualmente outras figuras republicanas de particular projecção, como os heróis da Rotunda, António Machado Santos (Silva et al., 2013) ou José Carlos da Maia (Barreiros, 1989).
António Granjo e a Grande Guerra: tópicos de análise
A eclosão da Grande Guerra reconduzia António Granjo à actividade militar: chamado ao Serviço Especial, a realizar na Escola Prática de Oficiais Milicianos no Regimento de Infantaria nº 18, da cidade do Porto, em 7 de Agosto de 1916, era promovido a aspirante a oficial miliciano em 13 de Outubro do mesmo ano. A 13 de Janeiro de 1917, no posto de alferes miliciano, ficava colocado no Regimento de Infantaria nº 19, de Chaves.[11] A 20 de Maio rumava a Lisboa com o 1º Batalhão desse regimento e a 27 seguinte embarcava para Brest, destino ao qual aportava a 2 de Junho. A estada na frente ocidental perdurou até Outubro seguinte, data da reserva do autor. Ao invés da função de advogado oficioso no Tribunal de Guerra, António Granjo optava pelo regresso a Portugal.
No início de 1918, António Granjo dava à estampa um conjunto de textos no Diário de Notícias. Tratava-se de uma série de artigos subordinados às vivências quotidianas dos combatentes, fossem essas tributárias das funções intrínsecas ao soldado, fossem dedicadas às sequelas dos confrontos, fossem respeitantes à relação com o adversário e sobre a imagem do oponente, fossem devotadas ao impacto da guerra na condição feminina no contexto beligerante ou na retaguarda, fossem referentes à reestruturação do velho mundo cujos pilares hierárquicos submergiam nas trincheiras. Nesse contexto forjavam-se novas fraternidades, desenvolviam-se cosmopolitismos inusitados, esboçavam-se elites inesperadas, estribadas no valor da tecnicidade bélica, em detrimento das fórmulas tradicionais de comando, e encetava-se uma nova era, assente na dinâmica dos movimentos sociais aglutinantes do homem comum, o herói da confrontação militar e o promotor exclusivo da vitória das potências progressivas.
Segundo a visão granjiana, a Grande Guerra havia demonstrado integralmente o princípio da nação em armas, corporizado na frente, como na retaguarda, pelos segmentos menos privilegiados das sociedades europeias. Nas suas palavras:
Passou o tempo dos exércitos permanentes. Já não basta a cada nação um certo número de milhares de homens encarregados de velar pela sua segurança e segurança. Para uma nação se defender das tentativas de agressão e de rapina dos povos vizinhos não bastam os velhos organismos militares, constituídos por profissionais. Esta guerra diz-nos que se torna absolutamente indispensável, para a vida livre do povo, organizar as indústrias, de modo a produzir-se um material de guerra inesgotável, e igualmente indispensável se torna o alistamento nas fileiras de todos os homens válidos, de modo a conseguir-se, nos dois sentidos da extensão e da intensidade, o maior esforço útil no menor prazo de tempo (Granjo, 1918: 184).
De igual modo, havia provado à saciedade, o valor do patriotismo e da noção de pertença civilizacional e cultural, vertentes às quais as elites, políticas, económicas e militares, haviam ficado alheadas. Em conformidade, a novel sociedade, reestruturada na sequência da Grande Guerra, não podia deixar de atender aos agentes vitoriosos; ao individualismo liberal oitocentista, fautor de sistemas representativos de pendor eminentemente censitário, o pós-guerra prenunciava os alvores de uma nova vivência política e institucional à qual a expressão colectiva da sociedade não ficaria ausente.
O(s) combatente(s)
O acolhimento público obtido pelos textos dados á estampa no Diário de Notícias inspirava António Granjo a coligir uma colectânea desses escritos, os quais seriam objecto de publicação num único volume, intitulado A Grande Aventura. Cenas da Guerra. Essa novel iniciativa editorial, surgida em 1918, pretendia consolidar os propósitos informativos e pedagógicos subjacentes à divulgação original, cujo formato, se adequado à difusão ao público generalista, induzia à dispersão dos documentos e, por extensão, diluía o alcance pretendido. Congregadas em livro, a antologia constituía um todo coerente e sistemático das percepções colhidas por Granjo sobre a Grande Guerra. Sublinhe-se, porém, a natureza holística da observação realizada sobre o fenómeno beligerante, cuja natureza compósita conduzia o autor à identificação e análise específica ou transversal de agentes actuantes diferenciados nos posicionamentos respectivos mas fundamentais na compreensão cabal do conflito e respectivas repercussões sociais.
Assim, paradoxalmente, ou talvez não, António Granjo aspirava contribuir activamente para a formação de uma consciência colectiva sobre o conflito e as consequências intrínsecas para a sociedade portuguesa. Segundo esta abordagem, a primeira etapa correspondia à informação integral, uma dimensão na qual António Granjo se empenhava através da construção de um elo directo entre a vanguarda e a rectaguarda da Grande Guerra. Assim, tratava-se do cumprimento do último dever do militar e a primeira obrigação do patriota, desejando que “as minha palavras toquem o coração do povo” (Granjo, 1918: 183) – um propósito imprescindível para a compreensão pormenorizada da Grande Guerra e dos impactos sobre todos os participantes no conflito. Por outro lado, assaz oportuno quanto “acabada a guerra, quando nós voltarmos, ouvirá contar coisas que nunca foram imaginadas e que serão inacreditáveis para aqueles que se deixaram ficar na doce paz da sua casa” (Granjo, 1918: 138).
Em observância, a atenção preferencial do labor granjiano incidia sobre o combatente – qual tipologia genérica, amplamente retratada nos textos do miliciano e cujo escopo primordial se encontrava centrado na abordagem do compatriota em combate. No entanto, a referida leitura requeria uma caracterização prévia sobre a natureza do conflito, um exercício gradualmente correspondido por António Granjo através de definições sucessivas, não raras vezes contraditórias. A saber, se a confrontação evidenciava um pendor eminentemente industrial, com reflexos na estrutura hierárquica militar e na subalternização dos comandos tradicionais (Granjo, 1918: 48-49), também configurava uma “guerra de salteadores” (Granjo, 1918: 129-130), observação inspirava na fórmula incontida como os beligerantes se conflituavam à revelia de quaisquer convencionalismos, normativos e ou valores. Assim, estranhamente, ou talvez não, a Grande Guerra surpreendia pela imagem dissolvente da civilidade reconhecida às potências envolvidas:
...os mamelucos e os berberes, com os seus hábitos hospitaleiros e a sua lealdade em combate, devem sentir-se infinitamente superiores a estes europeus ultracivilizados que se assemelham bem mais aos bandidos da Floresta Negra do que aos cavaleiros da Távola Redonda (Granjo, 1918: 129-130).
Contextualizada a ambivalência da confrontação militar, António Granjo quedava-se em sucessivas apreciações acerca do combatente português. Atinha-se, particularmente, ao quadro referencial de proximidade, no âmbito do qual havia servido e, como alferes miliciano, assumido comando. Entre esse universo, o autor concedia ênfase ao 1º Batalhão de Infantaria 19, uma unidade de depósito sujeita à dissolução em face das conveniências de serviço e as necessidades das operações. Assim, esse grupo de trasmontanos, enquanto entidade militar colectiva, ficava reduzido ao silenciamento e às desmemórias impostos pela condição atribuída. Porém, a António Granjo impunha-se resgatar o merecimento dos bravos com os quais havia percorrido o trajecto entre Chaves e o norte de França, ou não fosse “de todos os batalhões da Flandres, aquele que contribuiu com um maior contingente de heroísmo. Às nossas mais belas páginas da guerra está ligado imperecivelmente algum nome do 1º Batalhão de Infantaria 19”.[12] Idêntica deferência era merecida ao 1º Batalhão de Infantaria 22, unidade militar na qual António Granjo ficava colocado, após a chegada a França, com a incumbência de liderar o 3º pelotão da segunda companhia. A esses homens, cuja valentia e vigor sublimava, dedicava o esforço memorialista no qual anotava a especial competência do soldado português capaz de “suprir as deficiências da organização, as falhas dos dirigentes e a pouca fé dos chefes” (Granjo, 1918: 10).
Eivado de patriotismo, Granjo empenhava-se numa caracterização dos “Antónios” – a designação atribuída às tropas portuguesas pelos ingleses, tributária da elevada frequência desse nome próprio, de fácil pronúncia para os aliados (Granjo, 1918: 87-88) – assente numa dinâmica dicotómica intrínseca à qualidade e bravura das lideranças militares nacionais. Desta feita, salientava a forma como os “Filhos da Pátria”, dotados do espírito de sacrifício necessária para a reformulação do regime republicano e o resgate da nação, haviam sido deslocados para o norte de França, numa embarcação previamente utilizada no transporte de gado, entre a Austrália e o Reino Unido: “tratam-nos como tratariam cavalos. Desde que saímos de Lisboa não comemos senão batatas. A carne é pobre, o bacalhau é intragável, o vinho é uma mixórdia ignóbil” (Granjo, 1918: 25). As necessidades quotidianas deste “rebanho humano” (Granjo, 1918: 33) não melhoravam substancialmente na frente, nas vertentes da alimentação[13] ou da acomodação[14].
Nesta “miserável e pequenina Grande Guerra” (Granjo, 1918: 79), no âmbito da qual findava a grandeza épica às lutas humanas – aferível a vivos e mortos – aos “Antónios” não escasseavam adversidades entre as dimensões mais comezinhas da vivência comum. Ora o sono, ora o tempo poderiam configurar os oponentes mais temíveis dos combatentes portugueses. Decerto, no primeiro caso, tratava-se de uma necessidade fisiológica; porém, na frente, o cumprimento da mesma poderia representar perda de vidas. Ou, como referia um jovem soldado em missiva dirigida à mãe:
A gente não deve abandonar-se ao cansaço, nem pode entregar-se ao sono. O descuido de um minuto, o desfalecimento de um instante paga-se com a vida. É preciso olhar para todos os lados, quase adivinhar as intenções das balas, ter todos os sentidos bem espertos, para a gente se poder defender da morte. Mas o corpo é fraco, e muitas vezes deixamo-nos cair numa espécie de amolecimento da carne, de quebramento de sangue, que nos faz bem (Granjo, 1918: 107-108).[15]
No entanto, as repercussões da privação de sono na saúde, física e mental, dos combatentes portugueses não ficavam esquecidas no relato granjiano. Rememorando o descanso volvido a primeira semana passada nas trincheiras e as primeiras experiências de combate, António Granjo não desatendia aos camaradas de armas severa ou irreversivelmente afectados na capacidade de dormir. Se o sono profundo era um dos maiores prémios concedidos “nesta guerra de esgotamento”, muitos havia para os quais tal não voltava a ser possível:
...alguns nunca mais têm outro sono que não seja o horrível e contínuo pesadelo da noite iluminada pelos very-lights, cortada pelos assobios das balas, abalada pelo estrondo formidável dos obuses, das granadas explosivas e incendiárias, dos morteiros ligeiros, médios e pesados, das granadas de espingarda, dos gritos dos feridos […]. Alguns só num manicómio encontram algum sossego. São os supremos desgraçados (Granjo, 1918: 84).
No entanto, para o militar português, e demais, outros adversários assomavam, entre os quais se encontrava a ausência de actividades durante o período de serviço. Conforme a formulação de António Granjo:
...o segredo desta guerra está em fazer à roda do espírito uma atmosfera em que não haja cor, nem som, nem movimento e em que se vejam correr as horas como os ramos pendentes das margens veem correr as águas do rio. O essencial é ganhar a soma de inconsciência necessária à vida animal em que se transformou a existência de toda esta gente que se mata e range os dentes (Granjo, 1918: 101).
Nesta abordagem analítica, de pendor memorialístico, o autor não iludia a natureza diferenciadora prevalecente às condições específicas inerentes aos combatentes portugueses. Numa confrontação de heróis sem nome (Granjo, 1918: 157), os portugueses destrinçavam-se dos mais contingentes da Tríplice Entente pelas condições subjacentes à presença em contexto beligerante. Assim, ao invés das unidades militares australianas, as forças portuguesas não eram pagas principescamente nem “enchiam as terras por onde passavam das suas libras esterlinas” (Granjo, 1918: 14).[16] Aliás, com ampla representação de pequenos e médios agricultores ou assalariados rurais, os integrantes do CEP cedo reconheceram a prosperidade agrícola da França, em comparação com a aspereza da mesma actividade, uma diferenciação resultante das condições climáticas e da morfologia dos solos. No testemunho relatado por Granjo:
Oh meu alferes, isto para aqui é que são terras! Não se vê ninguém a trabalhar. A terra é que oferece os seus opimos frutos ao homem. Esta gente deve viver quase sem esforço. A água corre por todos os lados, como sangue alegre e vivo e as sementeiras gradam por si, como nos nossos campos gradam as urzes e as estevas. Pobre lavrador de Trás-os-Montes, rasgando a enxadão os seios da encosta para poder comer um bocado de pão, remexendo de sol a sol, todo o santo dia, as entranhas do apertado vale para poder comer umas batatas à ceia! Pobre lavrador do Douro, transportando às costas a terra que há-de encher os interstícios dos rochedos, onde os braços da videira se enrosquem, para que o sol toste os bagos louros das uvas! Pobre lavrador do Minho, aproveitando as árvores para enforcar as videiras e sachando o campo com a mesma devoção com que reza o padre nosso para se assegurar uma broa de milho! (Granjo, 1918: 35).
Outrossim, os militares portugueses distanciavam-se dos pares respectivos na pressão exercida pela longa permanência em serviço militar, motivada pela natureza esparsa das rendições e licenças (Granjo, 1918: 171-180), uma circunstância determinante da condição de “forçados de guerra”, sentida amiúde entre as tropas portuguesas (Granjo, 1918: 171).
Os Outros: Aliados e Adversários
Uma das características estruturantes dos textos produzidos por António Granjo incidia na apreciação do outro – fosse esse congénere no alinhamento militar, fosse ainda oponente respectivo. A saber, avultava o reconhecimento basilar da condição humana subjacente aos agentes em combate, congregados sob a adversidade do cumprimento das ordens responsáveis pela alteração substantiva e irreversível da existência individual. A certeza plena do quão profundamente diferenciado seria o percurso do combatente se, acaso, sobrevivesse ao infortúnio da guerra e retornasse aos contextos primaciais inspirava o exercício reflexivo do autor em torno da precaridade da vida humana e trajecto subsequente, nas dimensões particular ou colectiva. Assim, a todos, sem excepção, se impunha atender ao espírito de sacrifício revelado nas trincheiras da guerra para “encarar com certa tranquilidade o futuro” (Granjo, 1918: 11).
Segundo a premissa basilar granjiana, a Grande Guerra assumia uma expressão babélica, materializada sob a fórmula poliédrica, intrínseca e transversal às vivências dos combatentes, uma realidade inquestionável para os mesmos desde os contactos primordiais com as estruturas bélicas. Qual demonstração de profundo cosmopolitismo, os acampamentos militares, as ruas das vilas e cidades francesas percorridas durante as licenças dos soldados, os estabelecimentos comerciais de dimensões diversas ou a restauração, além dos serviços de assistência médica evidenciavam à saciedade a elevada convergência de milhares de pessoas provenientes de contextos históricos, linguísticos e culturais assaz distintos, em interacção estreita.
Decerto a caracterização do outro far-se-ia, invariavelmente, em função do quadro de referências familiares ao autor, o qual aclimatava aos âmbitos sucessivos da análise pretendida. Assim, não surpreendia a evocação das fardas do exército colonial português para tornar acessível a imagem concebida acerca das tropas australianas (Granjo, 1918: 13-14). Essas, por seu turno, como anteriormente referido, destacavam-se pela conflitualidade, nas variantes latente ou declarada, com o contingente português. Fosse pela compleição física “esses homens enormes do Pacífico”, fosse pela fisionomia atendendo aos “olhos azuis e ingénuos de grandes animais”, os australianos inspiravam a animadversão entre os portugueses, caso irrepetível na avaliação e concepção da imagem das tropas inscritas no perímetro da Tríplice Entente.
Os Aliados
Na abordagem granjiana sobre a Grande Guerra, os aliados portugueses assumiam uma relevância inequívoca, materializada na referência abundante aos respectivos contingentes, oficiais e soldados. Nessa apreciação trifásica, o Reino Unido adquiria inequívoca notoriedade, sob a qual se diluía os demais grupos contribuintes para a confrontação bélica com as Potências Centrais. Para o referido efeito actuava a proximidade entre ingleses e portugueses os quais ficariam enquadrados sob a égide do comando militar da aliada multissecular. Desta feita, a leitura das evocações de Granjo inspirava uma dimensão distorcida do conflito atendendo à prevalência de referências sobre os ingleses em detrimento dos maiores exércitos ao serviço da Tríplice Entente, os quais mereciam menções esparsas ou a completa ausência de alusão.[17] Por outro lado, a visão exponenciada e, por extensão, desequilibrada conferida à prestação do Reino Unido e respectivo império resultava igualmente do âmbito cronológico subjacente à prosa do autor, tributária da experiência do próprio. Desta feita, o vislumbre granjiano da Grande Guerra privilegiava os contextos geográficos percorridos pelo autor, observava os campos de batalha ou as trincheiras onde pelejou e reflectia os contactos interpessoais estabelecidos no âmbito do serviço ou em contextos militares.
Qual híbrido de perplexidade e admiração, tais eram as premissas prevalecentes à imagem inicial traçada por António Granjo acerca do contingente inglês, caracterizado de destemido em face do perigo inerente ao confronto. Essa configurava uma simbiose entre atributos físicos – com referência expressa à compleição dos combatentes – e predicados de índole mental, aos quais não eram alheios a experiência de combate. Sublinhe-se a natureza exuberante da presença militar proveniente do Reino Unido, cuja diversidade intrínseca se reflectia na composição e especificidades do contingente em apreço. Nas palavras de António Granjo:
Num terreno de parada formava uma companhia inglesa. Ia para a frente. Uma charanga, na rua larga desenhada com pedras de cal, esperava que a companhia encetasse a marcha. Os oficiais chegaram, tomaram os seus lugares. As caras duras dos soldados, voltadas para o sol nascente, tinham um ar de desafio. O desfile começou. As notas do Typerare vibraram no ar translúcido da manhã, logo que o primeiro pelotão, com o oficial à frente, a espingarda suspensa horizontalmente pelo fuste, na altura da culatra, avançou os primeiros passos. O sol dardejava sobre os capacetes e os metais dos equipamentos. As máscaras e os capuzes bamboleavam nos flancos. Os outros batalhões partiram. Atrás, o capitão, segurando também a sua espingarda, com três ordenanças, marchava com os olhos no chão. Quando as últimas filas saíram da parada, viram-se passar as primeiras a meio da encosta e ouviu-se uma música escocesa […] A gaita de foles ria estridulamente acima do barulho das pesadas botas inglesas batendo surdamente a areia. […]. Um grupo de escoceses, as pernas musculadas ao léu, as saías curtas em volta dos quadris, as fitas dos gorros pendentes sobre a nuca, passou numa algaraviada alegre. […] Para onde iam esses homens? Sabiam apenas que embarcariam num comboio […] à procura do inimigo. Era lá que os esperava a morte (Granjo, 1918: 15-17).
Os Adversários
Na perspectiva de António Granjo avultava o reconhecimento da natureza humana ao adversário, com o qual partilhava a condição de adversidade, subjacente à exasperação do autor pelo final da beligerância, conotada com o resgate da dignidade do combatente. Conforme expressava:
...quando acabará esta guerra maldita? Quando é que os homens deixaram de se matar como bestas e por cima destas trincheiras as mãos se estenderão aos inimigos no gesto irresistível de irmãos que se reconhecem e que se perguntam a si mesmos porque há tanto tempo se estão matando? (Granjo, 1918: 110).
Porém, não iludia o entendimento comum do oponente em função de uma fórmula genérica e de feição pejorativa, o Boche (Granjo, 1918: 78). Decerto, tal apodo subordinava-se exclusivamente às tropas germânicas, as quais angariavam, exclusivamente, as atenções granjianas. Tal circunstância explicava-se, uma vez mais, pela experiência beligerante do autor, forçado à confrontação com as forças militares do Império Alemão. Nessa medida, as tropas germânicas assumiam o pleno do ónus odioso associado ao inimigo, com prejuízo das demais inscritas no alinhamento diplomático das Potências Centrais.
Se o confronto com os combatentes germânicos constituía o cerne temático dos escritos de António Granjo, já familiarizado com a situação dos soldados alemães prisioneiros de guerra (Granjo, 1918: 36), a captura de dois militares às ordens de Guilherme II pelo pelotão comandado pelo autor, propiciava um contexto de proximidade irrepetível, com repercussões no entendimento holístico sobre a guerra, o outro (aliado ou adversário) e os portugueses. Ao cumprimento do normativo estabelecido – o de não interagir e ou interrogar os detidos –, Granjo optava pelo humanismo em face dos seus semelhantes os quais, esfomeados, foram alimentados pelos portugueses. Embora breve, o diálogo estabelecido entre Granjo e os alemães impelia o autor a um conjunto sintomático de apreciações acerca do oponente, mas, igualmente, sobre a relação entre os aliados portugueses e ingleses. Confrontados com a detenção, os alemães apelavam à lealdade dos portugueses pela observância das leis, realidade intangível ao CEP subordinado ao Comando Militar inglês. Desta feita, o destino dos dois detidos viria a ser determinado sem qualquer intervenção da entidade responsável pela captura (Granjo, 1918: 168-169).
Outrossim, a convicção dos prisioneiros acerca do desfecho do conflito, sob a forma de um sorriso, concitava um vislumbre imediato da barbárie germânica. Para Granjo:
...esse sorriso era alguma coisa de formidável. Afrontava como uma bofetada, vexava como um escarro, indignava como uma cínica apologia duma iniquidade. O sorriso daquele homem era uma verdadeira arma ofensiva. Revelava um tal orgulho da raça, uma tal certeza do triunfo final, que acendia de raiva o sangue do adversário (Granjo, 1918: 167).
A condição feminina nas regiões devastadas e na frente interna
Uma das características estruturantes da abordagem desenvolvida por António Granjo incidia na observação apurada acerca da condição feminina no contexto da Grande Guerra.[18] Essa atenção abrangia simultânea e correlativamente as realidades francesa e portuguesa atendendo às repercussões do conflito e da mobilização dos homens no quotidiano das mulheres. Esse escopo de interesse manifestava-se como uma das particularidades da reconstituição da chegada do alferes miliciano a França. Desta feita, o autor catapultava as mulheres francesas como as vítimas imediatas da confrontação responsável pelo reposicionamento da componente masculina da respectiva sociedade. Decerto chocado pela vulnerabilidade da mulher, forçada a atender à sobrevivência própria e de terceiros dependentes, António Granjo revelava-se igual e profundamente crítico com a conduta desrespeitosa manifestada pelos exércitos da Tríplice Cordiale, a qual explicava pela mudança do padrão bélico “quando a guerra se resumia à marcha e à manobra, os exércitos levavam consigo as vivandeiras. Na actual guerra, as vivandeiras foram substituídas por esta gente” (Granjo, 1918: 52-53).
Impunha-se, porém, escrutinar o perfil das mulheres cuja existência suscitava a atenção e as preocupações de António Granjo. Segundo o autor, este universo feminino aglutinava as diferentes faixas etárias, as quais compartilhavam a fragilidade das condições de vida além do luto. No entanto, sublinhava-se a vulnerabilidade acrescida das mulheres jovens, mais frequentemente sujeitas à conduta inadequada dos militares integrantes dos exércitos aliados da França (Granjo, 1918: 52). Todavia, o olhar de António Granjo não era indiferente ao infortúnio dos belgas e, muito especialmente, à adversidade das mulheres dessa nacionalidade forçadas ao exílio francês para escapar à barbárie (Amara, 2014: 315-364).
Ainda assim, seria a França um santuário seguro? A descrição deixada pelo autor era esclarecedora:
...perto de mim, sentou-se uma rapariga de olhos verdes e sorriso largo, e com um chapéu que também podia ir para os Inválidos. Era uma refugiada belga. Andava por ali aos encontrões, babujada por todos esses homens que desciam do acampamento após os violentos exercícios duma instrução intensiva, ébrios de uma hora de gozo, devassando com os olhos lúbricos os vestidos de todas as mulheres, rangendo os dentes à vista de uma perna nua, como bestas ferozes uivando de cio (Granjo, 1918: 38).
Se as mulheres francesas (e em França) eram instadas a suportar os martírios da Grande Guerra (Granjo, 1918: 56), as portuguesas não desmereciam a observação do autor. Fá-lo-ia em duas evocações diferenciadas, a primeira das quais subordinada ao drama das mães portuguesas, confrontadas com o sofrimento causado pela separação, com a incerteza do regresso, com a eventualidade da morte e ou a impossibilidade de realizar exéquias fúnebres (Granjo, 1918: 107-113). Contudo, as mulheres portuguesas na retaguarda podiam igualmente ser sujeitas à pressão social generalizada fruto da relutância dos maridos em integrar o CEP ou a resistência em combater – uma condição extensível aos demais membros do agregado familiar, inclusivamente menores (Granjo, 1918: 145-156).
Considerações Finais
Para António Granjo, a Grande Guerra configurava a demonstração da vitalidade nacional em prol do ideário subjacente ao republicanismo e ao regime republicano pelo qual muito havia pugnado. Nessa conformidade, Portugal não poderia alhear-se da participação militante no cenário bélico europeu, fórmula de corroborar o esforço desenvolvido desde 1914 no contexto africano. A intervenção portuguesa constituía a garantia de prevalência para a soberania nacional, de pendor tricontinental, concebida à luz do concurso nacional entre os “soldados do Direito” (Granjo, 1918: 31) para a derrota dos Impérios Centrais. Porém, representava igualmente a capacidade autorregeneradora da sociedade portuguesa a qual redescobria as forças respectivas no sacrifício beligerante. Assim, o desafio colocado ao povo português em prol da pátria ombreava com a expansão marítima desenvolvida nos sécs. XIX e XX.
Neste raciocínio, a “Grande Aventura” correspondia à extinção das teorias das nações moribundas e ao fortalecimento cabal das pátrias; porém, a expressão plena do patriotismo consolidava-se na paz, anseio primordial do autor, o qual não iludia o sacrifício de quantos haviam morrido em prol da prossecução da independência nacional, integridade territorial e da respeitabilidade das instituições políticas republicanas – a triste “Grande Aventura”.
Referências Bibliográficas
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Sobre o autor
Teresa Nunes é doutorada em História, na especialidade em História Contemporânea pela Universidade de Lisboa. Professora Auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, desde 2012, dirige a licenciatura em Estudos Europeus da mesma instituição, desde 2014. Investigadora do Centro de História da Universidade de Lisboa e do HTC- FCSH da UNL. Áreas de investigação: Monarquia portuguesa (séc. XIX e XX); republicanismo e regime Republicano no contexto ibérico; relações Luso-Espanholas (séc. XIX-XX); agricultura portuguesa (séc. XIX-XX).
https://orcid.org/0000-0002-1765-7880
Sobre el autor
Teresa Nunes es doctora en Historia, especializada en Historia Contemporánea, por la Universidad de Lisboa. Desde 2012 es profesora asociada en la Facultad de Letras de la Universidad de Lisboa y desde 2014 dirige la licenciatura en Estudios Europeos en la misma institución. Es investigadora en el Centro de Historia de la Universidad de Lisboa y en el HTC- FCSH de la UNL. Sus áreas de investigación son: Monarquía portuguesa (siglos XIX y XX); republicanismo y régimen republicano en el contexto ibérico; relaciones luso-españolas (siglos XIX-XX); y agricultura portuguesa (siglos XIX-XX).
About the author
Teresa Nunes holds a PhD in History, specializing in Contemporary History, from the University of Lisbon. Since 2012 she has been an associate professor at the Faculty of Letters of the University of Lisbon and since 2014 she has been directing the degree in European Studies at the same institution. She is a researcher at the History Center of the University of Lisbon and at the HTC- FCSH of the UNL. Her research areas are: Portuguese monarchy (19th and 20th centuries); republicanism and republican regime in the Iberian context; Portuguese-Spanish relations (19th-20th centuries); and Portuguese agriculture (19th-20th centuries).
[1] Sobre o Partido Republicano Português, vulgo Partido Democrático, ver Leal (2008: 43-50).
[2] Sobre o Partido Republicano Unionista, ver Leal (2008: 55-57).
[3] Sobre o Grupo Intransigente, formado em torno de António Machado Santos, ver Leal (2008: 34-40).
[4] Sobre Manuel Brito Camacho, ver Rollo e Pires (2015).
[5] Entre outros, destaquem-se as obras seguintes pela leitura holística do conflito no contexto nacional: Pires et al. (2019), Ventura (2018), Lousada e Silva Rocha (2018), Telo et al. (2017) e Fraga (2010).
[6] Ver Leal e Nunes (2012: 15-33).
[7] Sobre Adelino Samardã, Antão Fernandes de Carvalho, António da Silva Correia, José Mendes Guerra e Vítor Macedo Pinto, ver Sequeira (2015).
[8] Sobre António José de Almeida, ver Pires (2011).
[9] Sobre Afonso Costa, ver Guinote (2014).
[10] Tais funções foram exercidas por António Granjo entre Março e Julho de 1920; novamente entre Novembro de 1920 e Junho do ano subsequente.
[11] “Processo Individual de António Joaquim Granjo”, 3ª divisão, 7ª secção, Caixa 1472. Lisboa: Arquivo Histórico Militar. PT/AHM/DIV/1/35A/1/03/0539. Disponível em https://ahm-exercito.defesa.gov.pt/details?id=123523&detailsType=Description
[12] “Se o destino lhe foi descaroável, se a História nem sequer o encontrará como uma unidade combatente e precisará de ir buscar aos outros batalhões a notícia dos feitos dos seus oficiais e soldados, que ao menos fique esse glorioso número 19” (Granjo, 1918: 5-6).
[13] “Surgem dois soldados, detrás de um través, com um pequeno caldeiro suspenso dum pau que seguram aos ombros. É o chá. Pousam o caldeiro em cima de uma banqueta e os soldados do pelotão vão-se chegando, com os copos e os cantis. Um deles traz uma lata com algumas sopas de pão no fundo; outro engrunha os ombros, olhando desdenhosamente o grupo. – Se fosse vinho… (Granjo, 1918: 60-61).
[14] “Enfia-se para o abrigo por uma estreita abertura, em rampa, escavada no terreno. O abrigo é uma abóbada canelada de ferro, protegida por sacos de terra. Há uma pequena janela para receber a luz e o ar. De cada lado, dois leitos – quatro travessas de madeira, às quais se prendeu uma rede de arame, e o sistema alteado meio palmo do chão por uns pés arrancados aos troncos das árvores vizinhas. Por baixo da janela, uma mesa feita de madeira de caixotes” (Granjo, 1918: 61).
[15] “Esses nem ao menos têm à beira de um caminho uma sepultura talhada por mãos piedosas, com uma cruz relembrando a acção em que morreram e algumas flores secas metidas nuns cacos de granadas ou nuns frascos de conserva” (Granjo, 1918: 84).
[16] “Sublinhe-se, aliás, a conflitualidade prevalecente entre Portugueses e Australianos, durante a presença respectiva na frente ocidental. A escalada de animosidade ocasionou confrontos físicos entre os dois contingentes e implicou a regulamentação escrupulosa de espaços e áreas de circulação, fosse em serviço, fosse em período de licença (Granjo, 1918: 14).
[17] As referências a alguns dos demais contingentes subordinavam-se às vivências de retaguarda para definir o cosmopolitismo suscitado pela Grande Guerra. A título de exemplo, “Desembocámos na Rue de Paris. Portugueses, ingleses, escoceses, australianos, canadianos, franceses, russos, belgas cruzam as fardas e as continências, sorriem para as mulheres, para junto das monstras e vitrines, elevando-se no ar uma massa confusa de sons, feita de todas as vogais, de todas as consoantes, de todos os ditongos, como um cântico longínquo entoado por uma multidão cosmopolita” (Granjo, 1918: 39).
[18] Sobre o papel feminino no contexto de beligerância portuguesa, numa perspectiva comparada, ver Monteiro (2022).