Teorias sobre a Guerrilha e a Guerra Revolucionária em Portugal na Primeira Era da Guerra Fria (1945-1960

 

António Paulo Duarte

Universidade Nova de Lisboa, Portugal

apdaviduarte@gmail.com

 

 

Fecha recepción: 8/03/2023

Fecha aceptación: 5/04/2023

Resumo

Este artigo procurar apreender o entendimento que o pensamento estratégico português desenvolveu, na década e meia entre o fim da 2ª Guerra Mundial e o dealbar da Guerra de África, sobre a guerra irregular ou subversiva. Esta leitura será feita, no essencial, com base no estudo de alguns textos que foram publicados em revistas militares da época em consideração e em algumas obras igualmente nesse período publicadas. Analogamente, se aproveitarão algumas sebentas existentes na Biblioteca da Academia Militar de Portugal. Uma parte do texto lidará com a guerra de guerrilha e outra com a guerra revolucionária, em ambos, falando-se dos autores que sobre estas formas de estratégia escreveram, salientando-se as temáticas mais relevantes e as problemáticas mais agudas.  

Palavras-chave: Guerra; Guerra Subversiva; Guerra Revolucionária; Estratégia; Teoria

 

Teorías sobre la guerrilla y la guerra revolucionaria en Portugal en la primera Guerra Fría (1945-1960)

Resumen

Este artículo busca entender la comprensión que el pensamiento estratégico portugués desarrolló en la década y media entre el final de la Segunda Guerra Mundial y el comienzo de la guerra en África, respecto a la guerra irregular o subversiva. Esta lectura se hará, fundamentalmente, a partir del estudio de algunos textos que fueron publicados en revistas militares y algunas obras de la época. También se utilizarán algunos cuadernos existentes en la biblioteca de la Academia Militar de Portugal. Una parte del texto versará sobre la guerra de guerrillas y otra sobre la guerra revolucionaria, hablando de los autores que escribieron sobre estas formas de estrategia, destacando los temas más relevantes y los problemas más agudos.

Palabras clave: Guerra; Guerra Subversiva; Guerra Revolucionaria; Estrategia; Teoría

 

Guerrilla and Revolutionary War theories in Portugal in the First Cold War Era (1945-1960)

Abstract

This article seeks to apprehend the understanding that Portuguese strategic thinking developed, in the decade and a half between the end of the 2nd World War and the beginning of the African War, about the irregular or subversive (insurgency) war. This reading will be done, essentially, based on the study of some texts that were published in military magazines of the time under consideration and in some works also published in that period. Analogously, some manuals existing in the Library of the Military Academy of Portugal will be used. A part of the text will deal with guerrilla warfare and another with revolutionary war, in both, speaking of the authors who wrote about these forms of strategy, highlighting the most relevant themes and the most acute problems.

Key words: War; Subversive War; Revolutionary War; Strategy; Theory

 

Introdução

A presente indagação labora sobre o pensamento estratégico português nas leituras com que procurou tornar inteligível a guerra de guerrilha e a guerra revolucionária – no fundo, aquilo que hoje é conhecido como guerras de insurgência ou guerras insurrecionais na terminologia estadunidense (insurgency wars) (U. S. Department of Defense, 2019: 110)[1] – nos anos que vão do termo da 2ª Guerra Mundial ao dealbar da Guerra de África, de 1961 a 1975, guerra essa, de independência para os movimentos emancipalistas africanos que a travaram contra Portugal, na forma ou molde de guerrilha e de guerra subversiva.

Esta multiplicação de conceitos implica antecipadamente enfrentar a problemática do que é que trata este discurso. Para isso recorremos à conceitos mais ou menos solidificados originadas da ciência estratégica. A estratégia divide-se e divide as guerras em três tipos genéricos – a nuclear (e que remete fundamentalmente para as estratégias de dissuasão), a dita convencional ou clássica e a irregular, de guerrilha ou subversiva. Cada uma destas estratégias e/ou guerras tem especificidades próprias fortes que fundamentam a sua segmentação do corpo geral da estratégia/guerra. Simplificando pode-se dizer que a ação dita convencional se exprime do forte ou forte, ou seja, é o confronto direto entre forças organizadas dirigidas pelo Estado soberano que se defrontam num choque frontal, enquanto a dita irregular ou subversiva se expressa do fraco ao forte, num confronto indireto, numa miríade de pequenas e pequeníssimas ações, por processos lentos de usura, manobrando dimensões militares e não militares (diplomáticas, mediáticas, económicas, sociais, culturais), num choque que procura sempre obviar a um afrontamento frontal, por parte do oponente mais vulnerável (não necessariamente o mais fraco, na verdade, em muitos casos acaba por ser o mais poderoso, porque vence).[2] 

O que neste texto se procurar dilucidar é o entendimento que o pensamento estratégico português desenvolveu, na década e meia entre o fim da 2ª Guerra Mundial e o dealbar da Guerra de África, sobre esta última forma de guerra – a guerra irregular ou subversiva. Esta leitura será feita, no essencial, com base no estudo de alguns textos que foram publicados em revistas militares da época em consideração e em algumas obras igualmente nesse período publicadas. Analogamente, se aproveitarão algumas sebentas existentes na Biblioteca da Academia Militar de Portugal.

O texto esquematiza-se em torno de duas épocas, correspondendo a dois modos de ler a guerra irregular ou subversiva, correlatos com mudanças de perspetiva geopolítica da situação internacional e da posição do país e que se expressa no modo como se denomina e se apreende esta forma de conflito – da guerrilha à guerra revolucionária, uma forma positiva (favorável à estratégia nacional) e outra negativa (desfavorável para a estratégia nacional, espelhando uma ameaça). Uma parte lidará com a guerra de guerrilha e outra com a guerra revolucionária, em ambos, falando-se dos autores que sobre estas formas de estratégia escreveram, salientando-se as temáticas mais relevantes e as problemáticas mais agudas. Um subcapítulo ao primeiro capítulo lida com o tipo de leitura se fazia (ou não se fazia), antes do tratamento do tema da guerra de guerrilha na segunda metade dos anos 40 do século XX. Um subcapítulo, no último capítulo lida com a passagem da guerra revolucionária à guerra subversiva, após o início da guerra em África, em 1961.

Os estrategistas da guerra de guerrilha/contraguerrilha e da guerra revolucionária

Dois autores trabalham substantivamente a guerra de guerrilhas no final da década de quarenta do século XX, no rescaldo da 2ª Guerra Mundial.

O professor catedrático da Escola do Exército (atual Academia Militar), da 6ª cadeira, tática de Infantaria, o futuro general Augusto Manuel das Neves produz nesses anos um conjunto de pequenos textos, saídos na Revista de Infantaria, sobre a guerra de guerrilha (1947a; 1947b; 1948b), fundamentalmente, refletindo a experiência da 2ª Guerra Mundial. Estes textos acabarão por ser reunidos num opúsculo, intitulado também “Guerra de Guerrilhas” (1948a).

Este autor, militar, era à época, como se observou, professor catedrático de tática de infantaria, tendo elaborado para os seus discentes, três sebentas, entre 1944-1947, não obstante, nenhuma lida com a guerrilha apesar de analisarem o combate urbano e a guerra de montanha. O que espelha provavelmente que o interesse do autor por estas temáticas é posterior a esses anos, talvez pelo ano de 1947, ano em que pela primeira vez publica algo sobre o tema, sobre a guerra de guerrilha. Porém, no Curso de Táctica de Infantaria, em três volumes, talvez do início dos anos 50, no 3º Vol., é vertido para o mesmo, com ínfimas modificações, o opúsculo entretanto publicado, tendo os discentes assim acesso ao estudo tático da guerra de guerrilha e de contraguerrilha (Neves, s/d: 219-233).

Um outro autor elabora igualmente sobre a guerra de guerrilha nesta época. Hermes de Araújo Oliveira, Major do Corpo de Estado Maior, publica vários artigos, de variada dimensão, uns, parcas sínteses para um publico mais geral (1947b; 1948), outros mais técnicos, em revistas da especialidade para a opinião pública militar (1947a) consumando esta produção literária com um livro de pequena dimensão, cerca de uma centena de páginas (1949). A última obra é a conclusão dos estudos iniciados com as primeiras obras.

Afora estas obras, praticamente parece ser inexistente o interesse intelectual pela questão da guerrilha na literatura militar portuguesa na época. Um último texto, na época, analisa de uma forma mais aplicativa, a ação da guerrilha, neste caso, no que respeitava à defesa de Moçambique, na altura uma das grandes colónias portuguesas em África, texto que se deve à pena do capitão A. Mendes Correia (1947).

Mas com o fim dessa década, parece na verdade desaparecer o interesse pelo tema da guerra de guerrilha na estratégia portuguesa. Com efeito, o tema desaparece das páginas das revistas da especialidade e não se encontram nem em volumes individuais.  A problemática da guerrilha, sobre outro molde, retornará à mente dos estrategistas portugueses mais para o fim da década de 50, um novo molde para uma nova conjuntura. E na realidade, talvez a palavra conjuntura seja essencial para entender-se estes súbitos interesses e desinteresses.

A questão da guerra de guerrilhas na conjuntura das guerras mundiais na teoria militar portuguesa

Os autores, em Portugal, que no final da década de 40 se dedicam ao estudo da guerra de guerrilhas são efetivamente muito poucos. Não obstante, é preciso tomar em consideração a dimensão modesta do espaço cultural militar português da época, e em consequência, ainda mais acentuadamente o teórico estratégico, num tempo em que de muitas surpresas e novidades se fez a interpretação do que significara para a arte da guerra e da estratégia a 2ª Guerra Mundial, estudadas por outros tantos autores militares nas revistas da especialidade, com destaque para a Revista Militar, criando-se mesmo, no seu rescaldo, um novo termo bélico que depois tombou de uso, a “guerra trifíbia”, termo que expressava a nova modalidade de operações combinadas integrando a terra, o mar e o ar, entre outras inovações, como a guerra mecanizada e a motorização generalizada das forças militares terrestres, a guerra de comunicações (entenda-se, linhas de comunicação transoceânicas) e a dilatação impressionante dos campos de batalha, alargando-se para dimensões continentais e oceânicas (Duarte, 1999; 2005). Ora, durante a conflagração, a guerra de guerrilha não teria sido vista como uma das inovações, só de todo apercebida e apreendida no pensamento estratégico português, nos anos imediatos ao fim da guerra.  

Com efeito, a guerrilha parece quase ausente do pensamento estratégico português no período imediatamente anterior ao desencadear da segunda conflagração mundial, no período dito de entre guerras.

O “Novo Regulamento para o Serviço de Campanha (Provisório)” com a data de 1927 continha, com efeito, um pequeno capítulo de três páginas sobre a “Guerra Irregular”, integrando o Título VII, “Pequenas Operações”, e imediatamente anterior ao capítulo sobre os “Raids”. O texto propõe o uso da guerra irregular, como método de guerra, baseado nas emboscadas e no ataque às linhas de comunicações do inimigo, observando que esta forma de ação bélica pode ser desenvolvida por “forças do exército regular” ou por “corpos irregulares” ou, como diz, “guerrilhas” (Ministério da Guerra, 1927: 452-454). Note-se, que de acordo com esta ótica, a guerrilha é um dos elementos da guerra irregular, que por sua vez é uma das dimensões de algo mais vasto chamado “pequenas operações”. Neste peculiar entendimento, a guerrilha não é, como após a 2ª Guerra Mundial, uma forma de guerra em si, mas apenas um dos elementos, o mais irregular, das formas como que se operacionalizam as “pequenas operações”. No essencial, o “Regulamento” situava a sua posição sobre a guerra irregular como de um método bélico que servia de complemento à ação daquilo a que denominava de exército regular.

Todavia, se ainda nos anos 20 do século XX, pese a redução da guerra de guerrilhas a um método de ação muito limitado e preciso, esta ainda surgia num regulamento para o serviço de campanha, no seu sucessor, publicado em 1935, a guerra de guerrilha ou qualquer outra dimensão similar encontrava-se de todo ausente. O Título VIII denomina-se “Operações Especiais” e seria de esperar nele se encontrar algo relativo a uma qualquer forma de guerra de guerrilha. Não é de todo desse tipo de ações de que trata este título, mas sim de todas as operações “cuja conduta é influenciada em alto grau, já pela existência de obstáculos e máscaras naturais de importância, já por serem levadas a efeito aproveitando a obscuridade” (Ministério da Guerra, 1935: 205). Na verdade, as diversas sessões agregadas ao título VIII tratam de operações em situação de nevoeiro, em bosques e em povoações, na travessia de cursos de água à viva força e em desfiladeiros e terrenos montanhosos (Ministério da Guerra, 1935: 206-223). Ainda mais interessante para se observar o quão a guerrilha é obnubilada, as emboscadas e o ataque a comboios – ações típicas da guerra de guerrilha – são deixadas para um capítulo VIII, dedicado aos “destacamentos” (Ministério do Exército, 1935: 224 e 228). As operações especiais surgem, no regulamento de 1935, como resultando de situações topográficas ou geográficas específicas que perturbam a forma geral da ação bélica – a batalha, em redor do qual se estrutura este regulamento. Na verdade, nem sequer a ideia de “pequenas operações” – que poderia encobrir algum molde ligado à guerrilha – existe neste regulamento, todo ele centrado na lógica da batalha clássica, do choque frontal entre forças militares altamente organizadas e nacionais.

Situação equivalente ocorre com o Regulamento para o Serviço de Campanha, II Parte, Operações, de 1948 (Estado Maior do Exército, 1948), situação que se repete com o Regulamento para o Serviço de Campanha, II Parte, Operações, de 1949 (Estado Maior do Exército, 1949), centrado no essencial na ideia de batalha, com efeito, o título inicial trata da Batalha, não havendo nada que aponte no índice para qualquer ideia em torno da guerra de guerrilha, o que se confirma na sua substância interna. Este manual consegue o feito de não ter sequer referências a formas de ação típicas do método das guerrilhas, sendo estritamente dedicado ao que se denominou de guerra convencional ou clássica, o choque entre massas militares organizadas e hierarquizadas, nacionais.

O futuro General Barros Rodrigues foi professor, na Escola Militar (atual Academia Militar), na década de 30, de “Organização dos Exércitos-Organização Militar Portuguesa-Estratégia-Geografia e História Militar”. As sebentas que nos legou sobre estas temáticas, nomeadamente a sessão IV sobre História Militar, com especial destaque para o volume sobre a Guerra Peninsular, que está destacada do volume sobre a história militar global, transparecem de forma óbvia a pouca relevância dada à guerra de guerrilha. Com efeito, o volume sobre História Militar centra-se no estudo da guerra e da arte militar, desde o Antigo Egito ao período napoleónico, em que em cada tópico, o combate está centrado numa batalha relevante, sigamos a forma como o autor expressa essa linha de ação, no que respeita ao mundo antiguo:

Para darmos a ideia da forma de combater destes exércitos, vamos fazer uma descrição duma batalha que é já fértil em ensinamentos… (Barros Rodrigues, 1935-1936a: 8).

Porém, não deixa de ser muitíssimo relevante, que no volume dedicado à Guerra Peninsular (Barros Rodrigues, 1935-1936b), por excelência, uma conflagração em que a guerrilha está muitíssimo presente (o termo nasce nesse período e nessa guerra [Heuser, 2010, p. 393]), Barros Rodrigues a desenvolva em torno das operações – marchas, manobras e combates – entre os principais exércitos, quase nunca ou mesmo nunca tratando das ações de guerrilha e do seu impacto na campanha, de ambos os contendores. A Guerra Peninsular é trabalhada nesta sebenta, como se de uma guerra estritamente convencional se tratasse – um choque entre forças militares organizadas e hierarquizadas.

Por último, e como que sublinhando de forma contundente o que até agora se abonou, o grande tratado de Tasso de Miranda Cabral, “Conferências sôbre Estratégia. Estudo Geo-Estratégico dos Teatros de Operações Nacionais” (1932) publicado na década de 30 e que informa a estratégia militar de defesa de Portugal até à Segunda Guerra Mundial, incluindo as negociações militares com a Grã-Bretanha, em 1938, ordena toda a ação estratégica em torno da conceção francesa de “batalha metódica” e de “guerra de posições”, nunca nele se referindo alguma forma de utilização de milícias ou guerrilhas. Com efeito, a estratégia marcial de defesa do país, no que se refere à metrópole, dever-se-ia basear numa força militar convencional, com 24 divisões de infantaria, que teria o fito de assegurar a salvaguarda da integridade e da soberania de Portugal imediatamente na raia (Duarte, 2010: 72-77, 108, 137-140).

Na realidade, durante as duas décadas que vão da primeira à segunda das conflagrações mundiais, na teoria, em Portugal, a guerra de guerrilhas e quase todas as formas com o qual ela costuma ser nomeada, estão olvidadas. E mesmo, quando a teoria parece reativar a guerra de guerrilha, na segunda metade da década de 40 do século XX, na prática estratégica portuguesa, como se pode observar, com os regulamentos de campanha de 1948 e 1949, em que neles nenhuma alusão a esta forma de guerra é referida, efetivamente as guerrilhas não saem das páginas literárias onde estão embutidas.

Estrategistas da Guerra Revolucionária e Contrarrevolucionária

A guerra revolucionária salta para as páginas da Revista Militar pela pena do Coronel do Estado-Maior Serzedelo Coelho, que publica no ano de 1957 dois artigos, numa sequência na verdade, sobre o tema, um primeiro de apresentação (1957a), outro mais específico, sobre a sua técnica e tática (1957b). Trata-se na realidade de um artigo de divulgação desta forma de guerra, à altura, a ganhar relevo, pelos sucessos das forças revolucionárias, consideradas como comunistas, na China e no Vietname. Não pode, não obstante, deixar de ser um reflexo da germinação da ameaça emancipalista sobre o Ultramar português, o nome novo pelo qual passou a ser denominado em 1951, o Império Colonial Português, tal qual definido no Ato Colonial, adicionada à Constituição do Estado Novo de 1933, problemática estratégica candente para Portugal a partir de meados da década de 50 do século XX (Rosas, 2018: 112).

Efetivamente, na revista militar, multiplicam-se as análises de teor geopolítico e ideológico-político sobre a questão dos independentismos nos territórios ultramarinos, até então, sob domínio e/ou soberania europeia. O Major Hélio Felgas (1954 e 1956), o Comodoro Gabriel Prior (1956) e o Major Aires Martins (1956) tinham elaborada análises de cariz geopolítico sobre a evolução da África em meados da década de 50, numa conjuntura já marcada pelas teses emancipalistas do nacionalismo afro-asiático, das conferências de Bandung e do “neutralismo”, do sistema comunista sino-soviético e da Organização das Nações Unidas.

Coube a Hermes de Araújo Oliveira, o autor que no final dos anos 40, mais aprofundadamente lidara com a guerra de guerrilha sistematizar de forma muito mais esmerada a questão da guerra revolucionária e do seu contraponto, a guerra contrarrevolucionária. No final da década e posteriormente, em múltiplas obras, Hermes de Araújo Oliveira anatomiza numa ampla dimensão a guerra revolucionária e contrarrevolucionária. Três vastos artigos são publicados na Revista Militar, anteriormente à eclosão da Guerra em África, em 1961, um sobre a ação psicológica (1960b), outro sobre a subversão em África (1960a), ainda outro sobre a defesa de Moçambique, considerando a guerra revolucionária (1959). Este autor tem, contudo, publicado no ano de 60 do século XX, uma muito mais vasta e sistemática obra, dedicada ao tema da guerra revolucionária (1960), exatamente com esse título, edição essa, patrocinada pela Academia Militar (a escola de formação de oficiais em Portugal acabara de assumir esse nome), a rondar umas já apreciáveis 250 páginas.

A centralidade de Hermes de Araújo Oliveira é de salientar, sendo o autor, que de forma sistemática estuda a “Guerra Revolucionária”, antes de depois do início da Guerra no Ultramar, publicando posteriormente novas obras sobre o tema: “A Batalha da Certeza: Acção Psicossocial” (1962) e a “Guerra Subversiva: Subsídios para uma Estratégia de Reação” (1965), entre outros. Hermes de Araújo Oliveira que já fora o autor que mais profundamente estudara no final dos anos quarenta a guerra de guerrilha, retornou à questão da guerra irregular sobre outros moldes, no final dos anos 50 e nos anos 60.

É de observar que este oficial do Exército fora escolhido para um estágio na Argélia no final dos anos 50, exatamente com o propósito de entender a forma de guerra com, julgava-se, agiriam os emancipalistas africanos contra Portugal, e de em sequência, introduzir nas Forças Armadas Portuguesas os métodos da guerra contrarrevolucionária.

Um outro autor se aproximou da teorização sobre a mecânica da guerra revolucionária e da sua oponente, a guerra contrarrevolucionária, numa dimensão mais aplicativa, Hélio Augusto Esteves Felgas, que refletiu sobre estas dinâmicas, no que respeitava à defesa do Congo Português (1959). Curiosamente, seria no Congo português que se daria início à Guerra de África, com a ofensiva da União dos Povos de Angola (UPA) e forte chacina sobre as plantações dos colonos portugueses na área, em março de 1961 (Rosas, 2018: 106-108).[3]

Temáticas: Guerrilha e Contraguerrilha na Literatura Militar Portuguesa (1945-1960)

A substância da guerra de guerrilha e de contraguerrilha

A questão da guerrilha respondia a uma questão prática e que era de forma óbvia expressa no prefácio da obra maior, à época, de Hermes de Araújo Oliveira, pela pena do General Couceiro de Albuquerque, em que enaltece os feitos das guerrilhas ibéricas na Guerra Peninsular e os cita como exemplo para o potencial estratégico da defesa nacional (Albuquerque, 1949: 12). Na realidade, para assegurar à estratégia militar a capacidade de defender o território metropolitano, questionava-se os limitados recursos militares que Portugal dispunha para uma defesa estritamente convencional do território nacional. O que levou a uma reflexão, quiçá mais ampla no seio do Exército, mas posto em forma de escrita por dois autores, Hermes de Araújo Oliveira e Augusto Manuel das Neves, sobre o valor da guerra de guerrilha e a criação de uma força de milícias (modelo Guerra Peninsular), com o objetivo de complementar a principal força de combate, de cariz clássico - convencional, na defesa do território nacional.

Hermes de Araújo Oliveira propõe que se passe da ideia de defesa nacional para a de “resistência nacional”, integrando todos os habitantes de uma dada nação, considerando a possibilidade de manter a luta, mesmo após a ocupação total do território nacional, tornando insuportável a permanência do invasor:

…visto ser altamente desmoralizadora a ação exercida sobre as tropas de ocupação que suportam mais facilmente um perigo desconhecido e reduzido a breves períodos de alerta, contra o qual dispõe de meios diretos de reação, que uma ameaça permanente e insidiosa, contra o qual se sentem impotentes para se defenderem diretamente (1949: 71).

Augusto Manuel das Neves afirma, por sua vez, num interessante paradoxo que merece reflexão, que a “bomba atómica, o mais moderno e científico meio de destruição – veio, paradoxalmente, colocar em primeiro plano a guerra de guerrilhas” (1948: 4).

Porem, a ideia de guerra de guerrilhas como instrumento da defesa militar do país nunca saiu das obras destes autores, nunca tendo sido sequer pensada como passível de implementação (como é observável pelos regulamentos de campanha de 1948 e 1949 nunca a esta se referirem). A ideia de guerra de guerrilhas como instrumento da defesa militar continha uma ameaça, a da “subversão comunista”, a da perturbação popular da ordem instituída pelo regime do Estado Novo. Havia o risco de as guerrilhas passaram de instrumento de defesa nacional a utensílio de sublevação popular, fosse esta ótica correta ou incorreta, ela estava na cabeça da elite governativa do Estado Novo e jamais por isso uma força de milícias irregulares passou de um ideal. Este prisma era observável no texto mais amplo de Hermes de Araújo Oliveira, quando ele, exatamente, considerando este risco subversivo, propõe que se eduque no maior espírito nacional, a futura força de guerrilha, enquadrada e doutrinada patrioticamente (Oliveira, 1949: 92-94).

Acresce que o Exército estava virado para a defesa convencional da Europa ocidental e do “baluarte ibérico” no quadro da reação a uma invasão soviética, primeira coligado com a Espanha, e depois no quadro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN/NATO), o que pressupunha a criação de uma força de grande dimensão convencional, não se justificando, igualmente, armar uma força de guerrilha para a defesa nacional (Duarte, 2010: 249-252).

O termo guerrilha manuseado por estes teóricos militares portugueses correspondia a uma determinada forma de guerra, a do uso de forças ligeiras com vista a operações irregulares nos flancos e na retaguarda do exército ou exércitos inimigos. Esta ideia, tanto pode corresponder à “petit guerre” como à “guerrilla” na leitura que destas ações – dir-se-ia táticas –  faz Beatrice Heuser, correspondendo a primeira àquilo a que se pode hoje denominar de operações especiais e a outra a ações militares efetuadas por bandos de populares insurretos, também conhecida em França e no Sacro Império, antes da Revolução Francesa, por guerras de “partisans”, ou “guerras das partes” (numa tradução livre) (Heuser, 2010: 391-395).

Clausewitz não define esta forma de guerra, efetivamente, de guerrilha, que ele observa como o meio – a pequena ação armada, assimétrica, como contemporaneamente se diz – mas de “o povo em armas” (1989: 479) ou de o “armamento do povo” (2022: 558), considerando, efetivamente, o modo da ação como uma tática de “combustão lenta”, uma fermentação no processo da escalada bélica, infraestruturada numa dimensão político-moral que põe uma “nação em armas” contra o inimigo, em consequência, contendo visceralmente uma natureza revolucionária, irrompendo as barreiras até então existentes na sociedade (1989: 479-483; 2022: 558-564).

Em suma, para Clausewitz, o “armamento do povo” ou o “povo em armas” é um efeito da fermentação bélica produzida pela escalada de politização que a guerra, paradoxalmente aporta. Essa escalada de politização é observada pelos estrategistas portugueses dos anos 40 e como se viu torna-se um dos elementos, se não o elemento, que faz desconsiderar o uso dessa tática pelos altos mandos militares do Estado Novo, como um instrumento da defesa nacional. Na ótica de Gérard Chaliand a guerrilha tem por causas insurreições, em geral, por invasões estrangeiras, rebeliões camponesas e conflitos religiosos (2008: 55), ou seja, no essencial, deriva de factos políticos, resultando em conflitos bélicos, estando eivada de politicidade, mesmo quando esta ainda parece estar oculta, em determinados casos. É a assunção da prioridade à política que faz com que em meados da década de 50 se começa a falar na doutrina estratégica portuguesa em guerra revolucionária.

A ameaça da Guerra Revolucionária e a Contrarrevolucionária

O conceito-chave doutrinal com que se procure interpretar a nova vaga de guerras que derrubam os poderes coloniais nos anos 50 é denominada de “guerra revolucionária”, o seu antídoto, de “guerra contrarrevolucionária”, uma década depois em Portugal, o termo passaria a ser “guerra subversiva” e “guerra contra subversiva”, termo ainda não utilizado de forma doutrinal, na realidade, só mais tarde a doutrina instituiria a ideia de estratégia subversiva e de estratégia contra subversiva.  É de observar que na década de 50 o termo assenta no conceito de guerra, não de estratégia; fala-se de guerra revolucionária e guerra contrarrevolucionária. O termo pode derivar de as experiências mais recentes serem enquadradas ainda em efetivas guerras, com elementos novos, mas com modos de combate dominados pela violência das armas, ou por se observar este modo de guerra como um choque político, que usando a violência armada, de acordo com o significado habitual de guerra, usa igualmente outros elementos de luta para alcançar os seus propósitos. Em qualquer dos casos, axial à ideia de guerra revolucionária é o seu contraponto, a noção de guerra contrarrevolucionária, dois polos na luta, uma polaridade, uma guerra.

A Guerra Revolucionária é uma forma de guerra que combina a ação subversiva de carácter político-ideológico-propagandístico e diplomático – a sua forma indireta – com a ação militar – a sua forma direta, em geral na forma de guerrilha (não declinando os autores de considerar que o uso dos meios militares pode ser convencional).  E podendo, caso as circunstâncias a favorecem, passar-se igualmente à fase final, ao patamar nuclear: Esta é, de acordo, diz Serzedelo Coelho, com a terminologia de Estaline, uma “estratégia integral” que concilia uma “guerra formal” tradicional e militar, com a guerra revolucionária, que é, “uma guerra social”, a luta de classes, a “guerra subversiva”. Neste sentido, afirma o autor, a guerra equivale à política (e em consequência, a política à guerra) (1957a: 454).

Tal qual Serzedelo Coelho, Hermes de Araújo Oliveira trata da guerra, não da estratégia. A guerra revolucionária é para ele, igualmente, uma guerra integral, uma guerra total – uma dinâmica confrontacional, um “choque”, de “carácter vincadamente subversivo”, a “conquista das populações”, “desferindo golpes um a um” (Oliveira, 1960c: 83-84, 93-96). A inexistência de uma ideia de estratégia, a fixação de ambos os autores da ideia de confronto, de combate, de peleja, mesmo que no exterior do choque físico, que não está da guerra revolucionária ausente, imprime ao choque subversivo a forma natural, dir-se-ia, de guerra.  Em ambos os autores, a ideia de guerra revolucionária nasce da natureza própria da dinâmica que examinam e que está repleta de sentidos confrontacionais radicais, por isso violentos, marcados pela luta e, simultaneamente, pela destrutividade, o aniquilar do oponente, e construtivos, a edificação de uma nova realidade política, que consubstancia a vitória de um dos intervenientes.

Esta leitura é muito bem expressa por Hermes de Araújo Oliveira ao anatomizar as múltiplas dinâmicas da guerra revolucionária e da guerra contrarrevolucionária: duas formas principais a mobilizam, a destruição e a criação, note-se a polaridade do duelo bélico, ambos inerentes ao programa da guerra revolucionária (e em consequência contrarrevolucionária). À destruição correspondem os seguintes elementos – desagregação/intimidação (inclui o terrorismo seletivo)/desmoralização/eliminação (dos irredutíveis). São componentes da criação – a formação de bases de quadros/impregnação psicológica das massas/enquadramento das massas/edificação de novas estruturas – a consolidação de um novo poder. A guerra subversiva, seguindo o ideal de Mao Tse-Toung,[4] nomeia-o o nosso estrategista, tem na “mobilização popular […] um exército sólido que mergulha as raízes no povo”. A guerra revolucionária/Contrarrevolucionária é assim composta pelas seguintes fases: 1) alerta da opinião – disseminação das forças subversivas; do “partido” 2) batalha pela cumplicidade - agitação 3) ativação da massa – ações de propaganda combinadas com ações bélicas, 4) a legalidade muda de campo – o controlo da população, 5) o desenvolvimento da luta – contraofensiva geral – governam insurrecional (Oliveira, 1960c: 85-86, 121, 123-139).

A novidade da guerra revolucionária e a guerra contrarrevolucionária reside na integração de dinâmicas não militares com dinâmicas militares, operando simultaneamente na dimensão técnico-tática, mais estritamente bélica e na dinâmica política (ideológica, diplomática, mediático-propagandística, económica e social), não as sequenciando como era uso nas formas convencionais das conflagrações, nos quais, a política agia a jusante ou a montante da luta armada. Na guerra revolucionária e na guerra contrarrevolucionária, a contramedida da oposta, combates armados e combates políticos, ideológicos, propagandísticos, caminhavam em conjunto e interagiam em múltiplas linhas cruzadas.

No quadro da Guerra Fria, numa conjuntura ensombrando a permanência dos impérios ultramarinos europeus, sob pressão da força da vontade das emancipações das populações indígenas, esta forma de guerra despontava como uma prodigiosa prestidigitação “vermelha” a contestar as soberanias imperiais europeias e a portuguesa mais especificamente.

A guerra revolucionária, como o nome precisa, é um processo no essencial revolucionário. Como observava Claude Delmas, em obra, publicada em França, em 1959, a guerrilha tinha em vista um inimigo, o exército, a guerra revolucionária vê outro inimigo, o regime político, a política (1972: 17). Já se observou o quanto mesmo a guerrilha é fermentada pela política, mas a dicotomia que este autor traz, espelha de forma mais clarividente a dimensão política da guerra revolucionária. Este autor vai mais longe e afirma que as guerras revolucionárias são a secularização das guerras religiosas (1972: 29). Tal qual Hermes de Araújo Oliveira, Delmas atribui a expansão do comunismo a difusão das guerras revolucionárias, “a vitória do proletariado dá aos homens a verdadeira liberdade” (Delmas, 1972: 29). Esta guerra caracteriza-se por uma totalização, por um processo totalizante, que resulta de o objetivo atribuído aos revolucionários ser o do aniquilamento total do sistema inimigo, a passagem do sistema capitalista ao sistema comunista, configurando a plenitude da liberdade política.

Ora, como objetou, e bem, Raymond Aron, as guerras ditas revolucionárias, na realidade, guerras de libertação nacional, nunca visaram o aniquilamento do oponente, e, por conseguinte, terminaram sempre por negociações, considerando o seu propósito ser a independência dos territórios – países sob domínio colonial (Aron, 1976: 337-338). Na realidade, essa era a essência da luta revolucionária, de, por exemplo, Vo Nguyen Giap, quando amiudadamente afirma, nos seus escritos, ser a guerra de libertação nacional, uma guerra justa, destinada a reconquistar a independência e a unidade do país (2005: 52) sendo este combate aquilo que justificava e legitimava ser esta o tipo de guerra popular e revolucionária, comparando-a favoravelmente com as guerras de tipo contrarrevolucionário e antipopular (2005: 63).

As teorias da guerra revolucionária despontem no essencial, no final da década de 50, princípios da de 60, do século XX, como um discurso ideológico contra as forças que se opunham ao ocidente, principalmente ao ocidente que pretendia prolongar o domínio colonial. A realidade, porém, armadilhava esse discurso estratégico-ideológico e de algum modo obrigou-o a repensar-se de um ponto de vista teórico e doutrinal, quando o imperativo operacional e praxista emergia no quadro de uma conflagração concreta, levando provavelmente em Portugal à elaboração da doutrina da guerra subversiva.

Da Guerra Revolucionária à Guerra Subversiva – da Ameaça ao Inimigo

Quer a ideia de guerrilha, quer a de guerra revolucionária coabitaram posteriormente com a ideia de guerra subversiva, integrando-se harmoniosamente nesta última, mais abarcante. Com efeito, quer o manual de 1961, quer o de 1963, enquadram a ideia de guerrilha e de guerra revolucionária no quadro da guerra de subversiva: refere o texto de 1961:

Guerra subversiva é uma guerra conduzida no interior de um território, por uma parte dos seus habitantes […] contra as autoridades de direito ou de facto estabelecidas neste território, com a finalidade de lhes retirarem o controlo desse território, ou no mínimo, lhe paralisarem a ação […]. A guerra revolucionária é […] um tipo de guerra subversiva, mas que é permanente, total e universal, e tem em vista a implantação do comunismo em todo o Mundo (Ministério do Exército, 1961: 9).

O manual de 1963 aborda de uma forma mais sistemática estas distinções, distinguindo a guerra subversiva da guerra revolucionária, com direito a uma parte própria, na introdução (generalidades), da de guerrilha. Com efeito, o manual de 1963, na secção A do primeiro capítulo, repete a definição, ipsis verbis, do manual de 1961 (Ministério do Exército, 1963, cap 1: 1), todavia, subsequentemente, define, ao contrário do de 1961, o “conceito de guerra de guerrilhas”, “igualmente ligado aos meios e processos utilizados [dando-lhe] um carácter restrito como o de guerra psicológica” (que lhe está ssociado e que é definida por uma ação de influência), sendo uma “guerra levada a efeito por forças de organização e características especiais, muito ligeiras, dispersas e clandestinas, contra forças que controlam um dado território” (Ministério do Exército, 1963, cap. 3: 1).

A guerra revolucionária é objeto de uma secção própria, a B, interrogando a ideia de guerra revolucionária, comparando, numa forma dialogal, com a guerra subversiva. Aquela foi, diz o manual, apresentada por Marx, subsequentemente trabalhada por Lenine, Trotsky, Estaline e Mao Tsé Tung, sendo considerada uma guerra total, com vista a implantação do comunismo, sendo os seus instrumentos, a totalidade dos meios de que se possa dispor, incluindo-se nestes, diz o texto explicitamente, os meios nucleares. Tendo em consideração as suas distinções, no essencial, a guerra revolucionária manuseia todos os instrumentos da guerra subversiva, o que difere, são os objetivos, com a primeira a ser muito precisa, a tomada do poder pelo comunismo, a segundo imprecisa, sem “objetivos particulares”, em consequência, aquela tem “doutrina própria, rigorosamente estabelecida e constantemente melhorada pela prática”, a outra, “pode ser conduzida por qualquer doutrina, ou até, com nenhuma” (Ministério do Exercito, 1963, cap 1: 5-6).

Não se pode deixar de observar o quanto a ideia de guerra revolucionária, ao contrário da de guerra subversiva está eivada de lógicas ideológicas, podendo ser inserida no quadro da luta ideológica (em curso), que o próprio manual definia, segundo esse modo, como “um combate entre ideologias opostas”. Nesse quadro, o manual não se consegue libertar da ideologia que o elabora, para se tornar num espaço neutral de análise técnica, tecnocrática, da ação bélica, mesmo que num modo ampliado segundo a natureza da guerra subversiva. A relevância que o próprio manual dá a guerra revolucionária, no seu âmago concetual, espelha o peso que a natureza ideológica e política do combate carrega na sua elaboração, um instrumento lógico basilar, que circunscreve a gramática da guerra, usando a famosa distinção de Clausewitz, entre a lógica política que conduz a conflagração e a natureza gramatical do choque de armas (2022: 720), aqui, claro, este último, num sentido mais abrangente, integrando armas militares e não militares.

Nesse sentido, e ao contrário da guerra subversiva que adquiriu um cunho mais técnico, mais praxista, e mais neutral no que respeita ao apuramento do oponente, a guerra revolucionária manteve essa miscigenação entre pressupostos técnicos e ideológicos, espelhando-se mais como uma legitimação política da ação contra subversiva portuguesa, que como um modo de ação estratégico, o que talvez explique o seu progressivo esvaziamento como uma expressão efetiva de uma teoria estratégica.      

Ora, o tempo do discurso sobre a guerra revolucionária é também o período em que uma ameaça se adensa, mas um inimigo concreto – no sentido de com o oponente se defrontar num choque de armas, num choque bélico – ainda não existe. Há um inimigo potencial, fictício, dir-se-ia mesmo, ficcional, mas não ainda um adversário que age concretamente sobre o seu oponente (e que não é, nem será este inimigo ficcional, mas outro, com relações com a ficção, mas muito para lá da ficção). É o tempo da ameaça, do que o advir pode trazer de aniquilador, é certo, espelhada numa realidade concreta, o do comunismo internacional, centrado na U.R.S.S., ainda uma ameaça, fundamentalmente, não o de um inimigo efetivo, um outro concreto (a ação dos movimentos emancipalistas). Pelo contrário, a guerra subversiva e contra subversiva emerge no quadro insurrecional da luta contra os movimentos emancipalistas das colónias portuguesas com vista a impor a Portugal a sua independência. Agora há um inimigo.

O sentido praxista da estratégia, quase instrumental, a que o desvelar do inimigo obriga, a necessidade de conhecer efetivamente o oponente, implica um repúdio, o possível, do enviesamento propagandístico, o qual é muito mais visível na ideia de guerra revolucionária – a ameaça comunista – e sem descurar a importância da propaganda e da mobilização do próprio, conseguir capturar a verdadeira inteligibilidade do inimigo, para melhor o bater, para lhe dar a volta a favor do seu contrário, isso implica uma ideia de guerra mais neutra, mais próxima do verdadeiro real, em suma, a guerra subversiva. Não deixa de ser interessante e talvez sintomático que a ideia de guerra subversiva seja neutra, na perspetiva dos estrategos portugueses – pode ter uma doutrina ou nenhuma, dizem – quando comparada com a carga ideológica que atribuem a guerra revolucionária - precisa e muito bem preparada, no quadro da expansão do comunismo internacional.

 

Conclusões

A questão da guerrilha, mais do que da contraguerrilha, na década de 40, e as da guerra revolucionária e da guerra contrarrevolucionária, em resposta à anterior, espelhavam matérias que tinham interesse e relevância para a defesa nacional e para a estratégia militar de Portugal. Mas não de um modo que as tornasse ainda, à altura, para a defesa nacional essenciais.

As obras então publicadas eram por isso, na verdade, de cunho mais teórico que prático, em boa medida por ainda não terem de ser implementadas efetivamente no terreno.

Os estudos, tendo uma evidente marca praxista e respondendo a questões concretas, de teor militar, de cunho estratégico, tinham um enviesamento ideológico igualmente. Na realidade respondia a problemas que despontavam para a defesa nacional, mas não de uma forma que exigissem medidas práticas efetivas. 

Espelhavam uma visão da forma como a defesa nacional e a estratégia militar nacional se deveria comportar, não respondendo, todavia, a problemáticas concretas com que a força militar se debatia e a que tinha de replicar, no momento em que foram postas em forma escrita.

A guerra de guerrilhas referia-se a fragilidades na capacidade da defesa nacional de Portugal assegurar uma defesa convencional do território metropolitano e a guerra revolucionária ao adensar da ameaça emancipalista aos domínios ultramarinos portugueses em África e na Ásia. Todavia, nem uma, nem outra dessas ameaças ainda se configuravam como atos de agressão efetivos, pelo que jogavam no domínio das hipóteses e por isso no campo da teoria e da teoria não passaram.

Quanto a guerra em África adveio, o termo guerra revolucionária não desapareceu, mas integrou-se no quadro mais amplo da guerra subversiva, como argumento ideológico legitimador da ação contra subversiva, mantendo-se assim no campo das ideias, neste particular caso políticas, não de uma praxis ligada à ação, que passou a praticar a contrassubversão. 

Neste sentido, há alguma racionalidade em distinguir a natureza da guerra revolucionária e da guerra subversiva (contra subversiva) de acordo com o oponente com que se confrontavam, a primeira, jogando no campo das hipóteses, definia-a como uma ameaça e apontava para a U.R.S.S. e bloco comunista, a segunda, enfrentando um inimigo real, os emancipalistas africanos, buscava a sua inteligibilidade, de forma a melhor se bater com ele.

Não obstante, quer a teoria sobre a guerrilha e contraguerrilha, quer a sobre a guerra revolucionária e contrarrevolucionária espelham preocupações sobre ameaças e sobre potenciais inimigos e de algum modo, principalmente, no último caso, preparam os espíritos para o que poderia advir, já não estritamente na forma de ideia, mas em configuração concreta e real.

 

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Sobre o autor

António Paulo Duarte é Doutor em História Institucional e Política Contemporânea pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. É Professor Auxiliar da Academia Militar de Portugal, Investigador do Instituto da Defesa Nacional do Ministério da Defesa Nacional de Portugal e investigador Integrado do Instituto de História Contemporânea (IHC), da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova. Tem como área focal de estudo a estratégia e o pensamento estratégico. Publicou trabalhos no âmbito da história político-estratégica, educação e cultura estratégica e segurança energética.

Picture 1 https://orcid.org/0000-0002-7466-3726

Sobre el autor

António Paulo Duarte es Doctor en Historia Política e Institucional Contemporánea por la Facultad de Ciencias Sociales y Humanas de la Universidade Nova de Lisboa. Es Profesor auxiliar en Academia Militar de Portugal, investigador en el Instituto de Defensa Nacional del Ministerio de Defensa Nacional de Portugal e investigador integrado en el Instituto de Historia Contemporánea (IHC) de la Facultad de Ciencias Sociales y Humanidades de la Universidade Nova de Lisboa. Su principal área de estudio es la estrategia y el pensamiento estratégico. Ha publicado trabajos en los campos de la historia político-estratégica, la educación y la cultura estratégica y la seguridad energética.

About the author

António Paulo Duarte holds a PhD in Contemporary Political and Institutional History from the Faculty of Social and Human Sciences of the Universidade Nova de Lisboa. He is an Assistant Professor at the Portuguese Military Academy, researcher at the Institute of National Defense of the Portuguese Ministry of National Defense and researcher at the Institute of Contemporary History (IHC) of the Faculty of Social Sciences and Humanities of the Universidade Nova de Lisboa. His main area of study is strategy and strategic thinking. He has published works in the fields of political-strategic history, education and strategic culture and energy security.



[1] De acordo com este dicionário, insurgência é: “O uso organizado de subversão e violência para tomar, anular ou desafiar o controle político de uma região (Insurgência também se pode referir ao próprio grupo)” (Insurgency — The organized use of subversion and violence to seize, nullify, or challenge political control of a region. Insurgency can also refer to the group itself).

[2] Sobre esta tripartição, ver Beaufre (2004).

[3] Pelo menos, a data com que oficialmente, hoje, se considera o início da guerra em África. Na realidade, vários incidentes prenunciavam a violência na província do Congo português, em Angola, no início de 1961, a revolta na Baixa do Cassange e os assaltos em Luanda a 4 de fevereiro de 1961 (Rosas, 2018: 99-105).

[4] Sobre a estratégia de Mao Tsé Tung, veja-se por exemplo, Chaliand (2008: 96-98). Não obstante, as duas vezes que este estratego é nomeado neste texto é por o ser pelos autores e textos que aqui se apresentam e se debatem.