Imagens da Guerra no Século XX Português
Imágenes de la guerra en el siglo XX portugués
Images of War in the Portuguese 20th Century
Teresa Nunes
Universidade de Lisboa, Portugal
teresa.nunes@campus.ul.pt
Portada de Ilustração Portuguesa, II série, nº 573, 12 de Fevereiro de 1917
Introducción
O debate historiográfico suscitado pela análise dos factores determinantes da eclosão da Primeira Guerra Mundial evidencia a emergência de premissas estruturantes de particular relevo subjacentes a uma abordagem analítica transversal. Entre essas, sublinhe-se o legado oitocentista e a correlação estreita entre a afirmação dos estados-nação e a beligerância europeia a qual, nessa formulação, adquiria uma dimensão consequente da evolução histórica das vertentes nacionais e institucionais em presença no Velho Mundo reconfigurado paulatinamente no decurso do séc. XIX (Berstein et Milza, 2014: 35). Nessa abordagem, a dinâmica beligerante ocorrida entre 1914 e 1918 revestia-se de uma dimensão compósita por constituir, simultaneamente, o corolário da modernidade europeia, pós 1815, e consubstanciar a dinâmica industrializada subjacente aos novos padrões de desenvolvimento económico, estribados no advento da indústria contemporânea, por extensão, das sociedades industrializadas.
Concebida no laboratório político europeu, esse conceito firmava-se na visão futura privilegiada, sustentada na convicção inabalável sobre o progresso material, intelectual e moral, esteios da capacidade transformadora das sociedades em prol da perfectibilidade tangível (Delalande et Truong-Loï, 2021: 10). Tais postulados vislumbravam-se nos processos revolucionários, como na emanação política e institucional das nações ou, por último, na prevalência da dimensão imperial, fosse essa observante dos cânones arcaizantes, como os impérios otomano e russo, fosse ainda feição reconfigurada, conforme as arquitecturas germânica e austro-húngara. A persistência da expressão imperial apreciava-se ainda na correlação entre o Velho Mundo e as novas geografias, sujeitas, mormente a africana e asiática, às concepções coloniais das potências europeias (Delalande et Truong-Loï, 2021: 18-26).
Assim, a Grande Guerra, qual “verdadeiro dilema”, na definição de Margaret MacMillan (MacMillan, 2014: 22) resultavam de uma transversalidade de ideias e emoções cuja intensidade amiúde permitiu a superação das fronteiras políticas nacionais. Nesse entendimento, a grelha analítica da autora privilegiava o advento do nacionalismo “e os seus detestáveis acompanhantes – o ódio e o desprezo pelos outros” (MacMillan, 2014: 22), secundados por outros factores igualmente determinantes a saber, o medo da perda e ou da revolução, as esperanças benfazejas num mundo melhor, as exigências impostas pela honra e pela virilidade e, não menos relevante, o darwinismo social indutor de uma tipologia qualitativa das sociedades humanas “como se fossem espécies e promovia não só a fé na evolução e no progresso como na inevitabilidade do conflito” (MacMillan, 2014: 22).
Esses postulados genéricos interagiam nos contextos nacionais em função da dimensão idiossincrática e pressões endógenas entre as quais sublinhava os movimentos laborais e respectivas reivindicações, as forças declaradamente revolucionárias e ou subversivas, as apetências dos grupos sufragistas, os intentos independentistas de nações (in)directamente dominadas por outras potências, ou ainda a conflitualidade entre segmentos sociais e intelectuais diferenciados como crentes e anticlericais, civis e militares. Segundo essa leitura, tais dinâmicas exógenas e endógenas conduziram a Europa à queda de um penhasco e ao conflito catastrófico (MacMillan, 2014: 24).
Segundo os pressupostos observados por Robert Gildea, a confrontação bélica na Europa constituía uma fórmula de aglutinação social de largo espectro, capaz de subverter os intentos revolucionários larvares, de maior ou menos intensidade, presentes nas sociedades europeias, subsidiários das dinâmicas económicas e desigualdades sociais correlacionadas (Gildea, 3002: 429). No entanto, as motivações determinantes da eclosão do conflito incidiam sobre as ambições e estratégias das grandes potências como no sistema de alianças. Outrossim enfatizava a precaridade de equilíbrio no processo de decisão política, entre as componentes militar e civis, cujas repercussões se espelhavam numa lógica de polarização institucional. Por outro lado, os estados europeus confrontavam-se com as pressões exercidas pelo nacionalismo e, simultaneamente, pelo antimilitarismo de feição socialista, crescente entre os segmentos operários. Desta feita, a guerra proporcionava uma possibilidade privilegiada de alcançar a integração nacional no sentido pleno, mediante a mobilização das sensibilidades diferenciadas da opinião pública e grupos partidários ou de pressão em prol de uma causa única e transversal às necessidades conjunturais do estado (Gildea, 2003: 429).
O dossier Imagens da Guerra no Século XX Português procura corresponder aos postulados analíticos transversais e proceder à abordagem extensiva do fenómeno beligerante no contexto nacional. Assumindo uma dimensão poliédrica estruturante e aferido a uma temporalidade compreendida entre o advento da Grande Guerra e o dealbar da confrontação bélica no espaço colonial, este conjunto de estudos propicia uma interacção estreita entre vertentes diferenciadas de observação sobre a guerra e ou as respectivas repercussões. Ao invés de privilegiar as visões imediatistas sobre conflitos bélicos, mormente as produzidas pelos agentes primordiais inscritos na estrutura militar, o dossier enfatiza parâmetros distintos de entendimento do fenómeno.
O primeiro artigo, intitulado “Um diplomata na Guerra: as percepções de Augusto de Vasconcelos nas Legações de Portugal em Madrid, em Londres e na Conferência de Paz”, oferece uma análise consubstanciada dos dilemas subjacentes à política externa da República Portuguesa entre 1914 e 1920. O mesmo trabalho traduz a natureza complexa do conflito bélico e as repercussões respectivas nas chancelarias europeias. Por extensão, e ainda assumindo como mote primordial de análise o percurso do diplomata, Soraia Milene Carvalho procede à caracterização crítica do posicionamento português no decurso das negociações de paz.
O segundo contributo, designado “Membros mortos da Igreja há bastantes” - Os objetivos do proselitismo do Pe. Avelino de Figueiredo, capelão do CEP na I Guerra Mundial (1917-1919), faculta-nos uma abordagem sobre a situação dos capelães durante a confrontação bélica ocorrida entre 1914 e 1918. Subjazem a esta abordagem a natureza laica pretendida pelo Estado Republicano e o confronto ocorrido entre as instâncias políticas e os sectores clericais portugueses, desde o início de 1911, com repercussões relevantes de âmbito internacional para a jovem República, implantada em Outubro de 1910. Não menos relevante, Frederico Benvinda oferece-nos uma visão substantiva sobre a situação dos capelães em contexto beligerante.
O terceiro artigo, denominado “Triste Grande Aventura”, centra-se na caracterização do papel desempenhado pelo militar miliciano português na Grande Guerra. Atendendo ao trajecto biográfico, com participar ênfase na dimensão política e partidária, este trabalho procede à indagação sobre a experiência de guerra conforme os testemunhos memorialistas de António Granjo. Assim, Teresa Nunes proceder à análise das percepções sobre a confrontação nas dimensões cosmopolita e dissolvente das estruturas institucionais vigentes, a visão sobre o combatente, sobre o outro (aliado ou adversário) e sobre a condição feminina no contexto bélica de natureza industrializada.
O quarto trabalho, sob a designação de “As consequências sociais do pós-guerra no concelho de Vila Nova de Ourém – 1919-1925”, incide sobre o impacto da beligerância no contexto interno, mais precisamente na dimensão regional. Assim, Fábio Emanuel Oliveira procede ao estudo pormenorizado das alterações suscitadas pela Grande Guerra na estrutura social do concelho de Vila Nova de Ourém, atendendo aos efeitos continuados os quais, sob a forma de crise económica, influíram drasticamente no comportamento e opções das sociedades rurais portuguesas.
O quinto artigo, com o título de Teorias sobre a Guerrilha e a Guerra Revolucionária em Portugal na Primeira Era da Guerra Fria (1945-1960), caracteriza-se pelo estudo sistemático da evolução observada no pensamento estratégico português, desde o final da II Guerra Mundial até às vésperas da eclosão do movimento independentista angolano, em 1961. Nesse trabalho, António Paulo Duarte analisa o legado das guerras industriais na edificação de um enquadramento teórico sobre a confrontação militar, um exercício fundado na análise da imprensa periódica da especialidade e nos manuais utilizados na preparação militar. Por último, o Autor confronta conceitos diferenciados de guerra – a subversiva e a revolucionária – como fórmulas de renovação dos postulados bélicos.
Referências bibliográficas
Berstein, S. et Milza, P. (2014). Histoire de L’Europe. Du XIXe au début du XXIe siècle. Hatier.
Delalande, N. et Truong-Loï, B. (2021). Histoire Politique du XIXe Siècle. Presses de Sciences Po.
Gildea, R. (2003). Barricades and Borders. Europe 1800-1914. Oxford University Press.
MacMillan, M. (2014). A Guerra que acabou com a Paz. Como a Europa trocou a Paz pela Primeira Guerra Mundial. Temas e Debates.