Educação como prática da democracia: Paulo Freire antes do Golpe civil-militar de 1964 no Brasil

Taís Araújo

Universidade de São Paulo (Brasil).
taisaraujo@gmail.com

Fecha de recepción: 26 de diciembre de 2020.
Fecha de aceptación: 31 de marzo de 2020.

Resumo

O objetivo deste artigo é analisar textos de Paulo Freire escritos no início dos anos 1960, antes da publicação de seus primeiros livros, Educação como prática da liberdade e Pedagogia do Oprimido. Nesse momento, o autor apresenta-nos uma concepção de educação atrelada a finalidades exteriores ao ato pedagógico, no caso, ao desenvolvimento nacional e à consolidação da democracia no Brasil. Diferentemente das suas concepções políticas do final da década, no início dos anos 1960 Freire propõe um conceito de educação alinhado à ideia de mudança por dentro da ordem, pois, no seu entendimento, estava em curso uma transformação estrutural no país operada por governos nacional-reformistas. Procuramos compreender, assim, como Freire articulava um ideário do Nacional popular aos conceitos da filosofia existencialista apropriada pelo ativismo católico, com o qual o educador partilhava, além de afinidades, espaços de atuação.

Palavras-chave: Paulo Freire, Democracia, Nacional popular, Existencialismo.

Education as a practice of democracy: Paulo Freire before the 1964 civil-military coup in Brazil

Abstract

This paper aims to review Paulo Freire’s works written in the early 1960’s, before his first books —Education as The Practice of Freedom and Pedagogy of the Oppressed— were released. At that moment, the author presents a concept of education linked to the Brazilian context, i.e., to the idea of National Development and consolidation of democracy in Brazil. Unlike his political views from the end of the decade, at early 1960’s Freire proposed a concept of education aligned with the idea of change from within the social order. He understands that a structural transformation was underway in the country through elections of nationalist-reformist governments. Therefore, we try to understand how Freire articulated an ideal of Popular National to the concepts of Existentialist Philosophy appropriated by the Catholic activism, shared by the educator in his interests and workspaces.

Keywords: Paulo Freire, democracy, Popular National, Existentialism.

La educación como práctica de la democracia: Paulo Freire antes del golpe cívico-militar de 1964 en Brasil

Resumen

El objetivo del artículo es analizar textos de Paulo Freire escritos a principios de la década de 1960, antes de la publicación de sus primeros libros, La Educación como práctica de la libertad y Pedagogía del Oprimido. En aquel momento, el autor presentaba una concepción de la educación relacionada a propósitos más allá del acto pedagógico, en este caso, vinculada al desarrollo nacional y a la consolidación de la democracia en Brasil. De modo diferente de sus concepciones políticas del fin de de esa década, a principios de la misma Freire propuso un concepto de educación alineado con la idea del cambio dentro del orden, porque, en su opinión, se estaba llevando a cabo una transformación estructural en el país operada por gobiernos nacional-reformistas. Así, tratamos de entender cómo Freire articulaba una idea de lo Nacional Popular con los conceptos de la filosofía existencialista apropiados por el activismo católico, con los que el educador compartía, además de las afinidades, espacios de acción.

Palabras clave: Paulo Freire, Democracia, Nacional popular, Existencialismo.

Introdução

A partir dos anos 1980, a aspiração pela concretização do “Método Paulo Freire” seria consolidada como a principal tarefa da educação. Nesse momento, com a releitura dos primeiros livros de Paulo Freire, Educação como prática da liberdade (1965) e Pedagogia do Oprimido (1968), o seu método, surgido de um contexto próprio dos anos 1960, imbricou-se com os acontecimentos da década de 1980, em razão da aspiração por uma vanguarda política inserida nas massas populares, do conceito de “cultura popular” atrelado à mobilização política e da demanda pela formação de sujeitos autônomos e críticos, pautas do ativismo social católico dos anos 1960 (Napolitano, 2011: 307), com o qual Freire identificava-se. Essas ideias políticas que procuravam pôr em prática a participação popular nas decisões do país, a serem tomadas de “baixo para cima”, seriam articuladas ao “Método Paulo Freire”, que viria, então, ao encontro dos novos movimentos sociais, críticos à mediação dos tradicionais intelectuais comunistas.1

Se, de fato, os primeiros livros de Freire apresentavam uma defesa da participação popular de forma mais radicalizada, alinhada à busca de alternativas para o “Terceiro Mundo”, o mesmo não ocorria em escritos anteriores, justamente aqueles que foram frutos de sua reflexão sobre a prática das experiências em alfabetização popular. Por esse motivo, nesse artigo, nos propomos a problematizar um olhar contemporâneo para a atuação de Freire que transporta ideias posteriores, mais radicais politicamente, para o momento das experiências de alfabetização, nos anos 1960. Esse gesto ocasiona o risco do anacronismo e do entendimento da biografia intelectual de Freire como linear.

Nosso objetivo é analisar brevemente a atuação institucional do educador, nesse momento, a fim de cotejá-la aos seus escritos para investigar como os conceitos existencialistas surgiram no seu pensamento, antes da “virada” do autor em relação ao ideário libertário do final dos anos 1960, ainda imbricados às ideias do Nacional popular. Assim, propomo-nos a analisar três artigos dessa fase com o intuito de compreendermos como Freire concebia a educação como instrumento para a consolidação de uma sociedade democrática em vias de se estabelecer no Brasil.

Breve síntese da atuação institucional de Paulo Freire no pré-Golpe de 1964

Entre 1947 e 1964, Paulo Freire integrava-se a instituições em graus de formalidade diversos. Entender esse momento anterior ao do “educador libertário” não é um gesto de condenação do seu passado, nem de modo algum diminui o valor de sua obra ou de sua prática, mas, pelo contrário, contribui para a compreensão do caráter eclético da formação do pedagogo, de um período marcante na história do país e para a vasta bibliografia sobre o educador. Diferentemente dos seus escritos posteriores, o vínculo entre educação e democracia é determinante no seu pensamento, nesse período. O pedagogo desenvolveu seu trabalho na educação de forma prática e, ao mesmo tempo, dedicou-se ao estudo teórico dessas experiências, nas instituições a que pertencia.

Em 1947, Freire iniciava sua atuação na educação formal, compondo a Divisão de Divulgação, Educação e Cultura do Serviço Social da Indústria de Pernambuco (SESI-PE). Uma de suas principais atribuições na instituição era a coordenação da formação das professoras do ensino primário, sobretudo em relação a orientações sobre o que elas deveriam transmitir aos pais dos alunos.

As preocupações de Freire não focavam somente o conteúdo das palestras que as professoras ministrariam, mas sobretudo como deveria ser o seu formato, prezando pela forma do “debate”. Esse aspecto da sua atuação no SESI nos indica que se tratava de um espaço que proporcionou a Freire começar a colocar em prática sua concepção de educação, ter contato com experiências pedagógicas diferenciadas e aprofundar-se teoricamente na área da educação. Por meio desse trabalho, em 1953, Freire conheceu Ariano Suassuna, diretor do Teatro do SESI, com quem desenvolveu experiências sobre meios de interação entre palco e plateia (Vale, 2005: 20). Freire pôde também viajar para diversos estados brasileiros e inclusive conhecer pessoalmente Anísio Teixeira, a quem reconhecia, nesse momento, como uma das “figuras máximas da educação nacional”.2

Em relação à sua atuação política, Freire participava indiretamente da Ação Católica (AC), em meados dos anos 1950, organizando ações educativas protagonizadas por grupos de casais pertencentes à AC.3 Os grupos investigavam a situação das escolas na zona da Paróquia do Bom Jesus do Arraial, região periférica do Recife. Dessa intervenção, resultou um relatório não só diagnosticando os problemas das escolas da área, mas também propondo ações para sua melhoria.4

Freire leciona também no ensino superior, na Escola de Serviço Social, junto com Anita Paes Barreto, psicóloga e pesquisadora de educação popular, com quem ainda fundou o Instituto Capibaribe, em 1955. O objetivo do órgão era propiciar recursos para a formação de professores, a partir da pesquisa de recentes teorias pedagógicas e psicológicas, imbricada à prática da educação popular (Freire, 2006: 77).

A atuação de Freire na pesquisa acadêmica desenvolvia-se, de forma mais sistemática, na Escola de Belas Artes da Universidade do Recife, onde lecionava desde 1953. Em 1959, defendeu a tese Educação e atualidade brasileira, com o fim de prestar um concurso para efetivar-se na cátedra de História e Filosofia da Educação. Apesar de aprovado, não teve a pontuação necessária ao cargo. Assim, continuou na Universidade, em 1961, como “professor assistente” na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, sendo que, meses depois, foi nomeado pelo reitor como “professor livre docente” da Escola de Belas Artes, a fim de assumir, em 1962, a direção do recém-criado Serviço de Extensão Cultural (SEC).

Nesse momento, é perceptível o interesse de alguns governos pela instituição de políticas públicas voltadas à diminuição das desigualdades sociais. Os movimentos de organização política no campo aumentaram a percepção do nordeste como uma região tomada por problemas sociais, exigindo das autoridades políticas a implementação de medidas mais efetivas. Assim, em 1959 foi criada a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), com o fim de buscar soluções para os problemas estruturais da região, como a seca. Entre 1955 e 1962, ocorreram duas eleições representativas de governos comprometidos com a instauração de tais políticas: de Pelópidas Silveira para prefeitura do Recife e de Cid Sampaio e Miguel Arraes para o governo de Pernambuco, gestões que representavam os esforços na implementação de mudanças estruturais em âmbito econômico e social, além da educação. Em 1961, tivemos a chegada à presidência de João Goulart com uma extensa pauta de reformas de base.

Nesse contexto, tendo em vista os alarmantes índices de escolarização da população, sobretudo a taxa de 50% de brasileiros analfabetos, a educação é uma das principais demandas sociais, o que leva à elaboração de projetos por pesquisadores da área. Em 1956, Freire compôs o Conselho Consultivo de Educação Municipal do Recife, como um dos nove “notáveis da educação”. Em 1963, com Miguel Arraes à frente do governo de Pernambuco, Freire é convidado, por Anita Paes Barreto, a integrar o Conselho Estadual de Educação.

Ainda nesse contexto, em 1960, é fundado um dos movimentos de educação de maior repercussão antes do golpe civil-militar de 1964, o Movimento de Cultura Popular (MCP). É digno de nota que os intelectuais fundadores do MCP eram educadores envolvidos de alguma maneira com o ativismo social católico. Os anos 1960 caracterizaram-se pela forte atuação de grupos de intelectuais com tal formação, cuja atuação dividia-se entre a educação formal, os movimentos populares de educação e cultura, a ocupação de cargos institucionais na burocracia governamental, além da pesquisa acadêmica. O próprio MCP foi uma iniciativa integrada à prefeitura do Recife durante o governo de Miguel Arraes, no qual Freire participou como diretor dos Projetos de Educação de Adultos.

O MCP ganhou rápida projeção devido aos anseios de uma juventude preocupada em forjar meios eficazes e politizados para expandir a alfabetização popular. A inspiração do MCP veio de um movimento francês denominado Peuple et culture de base socialista-cristã, surgido da Resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial, voltado à educação de adultos, com a perspectiva de levar cultura aos “resistentes” (Rigby, 1989: 141). A apropriação de um movimento preocupado em garantir a expansão da cultura com o objetivo de conscientização nos mostra como, na década que se iniciava, os movimentos de educação popular irromperam para efetivar a participação política das classes baixas, a partir da constituição de sujeitos políticos.

A atuação de Freire no MCP, no entanto, reduziu-se aos primeiros dois anos do movimento, em razão dos constantes conflitos sobre o uso do Livro de Leitura para Adultos. Freire, que já realizava experiências esparsas de alfabetização de adultos sem o uso de manuais, sustentava o objetivo de ter no “diálogo” o principal método pedagógico, com o fim de potencializar a autonomia dos adultos, para a formação de indivíduos que se inserissem autenticamente no processo de democratização (Freire, 1959: 13). Com base nesses princípios, Freire também participou da campanha De pé no chão também se aprende a ler, de 1961, porém, também nesse projeto deu-se preferência ao Livro de Leitura do MCP.

Desse modo, somente com o apoio do Serviço de Extensão Cultural (SEC), Freire teve a possibilidade de desenvolver seus próprios projetos na alfabetização de adultos, sem o uso de cartilhas ou livros. Essas experiências despertaram o interesse do secretário de educação do Rio Grande do Norte, Calazans Fernandes, que o convidou para um projeto-piloto de um programa regional de alfabetização. Em 1963, Freire realizou o projeto 40 horas de Angicos, obtendo a repercussão do que se denominaria, a partir de então, “Método Paulo Freire”.

A projeção da experiência foi tamanha que o presidente João Goulart, presente no último dia de aula, interessou-se em estendê-lo nacionalmente, tendo em vista a sua rapidez. Assim, seu ministro da educação, Paulo de Tarso Santos, convidou o educador para o cargo de presidente da Comissão de Cultura Popular, que deveria elaborar um Plano Nacional de Educação (PNA). O Plano foi oficializado em 21 de abril de 1964, dias antes do golpe civil-militar que cassaria não só Paulo Freire como também centenas de educadores envolvidos nos movimentos de cultura popular, além de suspender o PNA e pôr fim aos movimentos como o MCP.

Nesse período, Freire escreveu seus primeiros textos, entre relatórios, a tese e artigos acadêmicos, revelando um conceito de “educação” atrelado à exigência de finalidades sociais, exteriores ao ato propriamente de aprendizagem. Especificamente, a educação é concebida como portadora de um papel fundamental no desenvolvimento do país, sobretudo na formação de indivíduos preparados para o agir democrático, uma das principais preocupações do meio intelectual da época.

Até o golpe de 1964, as ideias do Nacional popular eram recorrentes nas pesquisas acadêmicas sobre a realidade brasileira, inclusive na área de educação. No início de sua atuação, vislumbramos em Freire um conceito de “educação”, em que se encontravam as ideias do Nacional popular com as da Escola nova, sobretudo até 1963. A partir desse momento, após a experiência de Angicos e com o desenvolvimento do seu trabalho no âmbito do SEC, notamos um redimensionamento dos conceitos utilizados em suas reflexões, em que o Nacional-popular e o escolanovismo não desaparecem, mas se transformam a partir de uma linguagem fincada numa tendência do “existencialismo”, cara aos ativistas católicos.

Nesse artigo, partimos da análise de Vanilda Paiva, para quem o trabalho do educador no pré-Golpe de 1964, foi uma “síntese pedagógica do período”, por ter amalgamado as principais correntes filosóficas em conflito: católica, escolanovista e nacional desenvolvimentista (Paiva, 1980: 18). Em relação à corrente católica, a autora identifica como sua base teórica Emmanuel Mounier, Teilhard de Chardin, Jacques Maritain e Pe. Louis Joseph Lebret, o “existencialismo cristão”. Para a autora, das três tradições de pensamento, a do existencialismo cristão seria a mais relevante no pensamento de Freire.

Percebemos também a influência dessas ideias em Freire, mas com diferentes ênfases. Num primeiro momento, notamos as premissas da Escola nova na sua concepção de educação, ao tratar da formação das professoras do SESI. Já na sua tese, o Nacional popular estrutura seu pensamento, fortemente entrelaçado ainda ao escolanovismo. A partir dos anos 1960, percebemos uma linguagem mais próxima do “existencialismo cristão”.5

Entretanto, embora a linguagem existencialista apareça com mais ênfase em textos do início de 1960, Freire mantém uma leitura própria desses autores pelo viés do Nacional popular. Esse termo refere-se a uma ideologia, na qual se buscava a efetivação do projeto reformista-desenvolvimentista para o Brasil. Intelectuais afinados com essas ideias, de diferentes áreas de pesquisa, reuniam-se no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) cujo objetivo era constituir e lançar bases de um pensamento brasileiro “autêntico” e “não alienado”. O nacionalismo era um componente fundamental de tal projeto, sendo objetivo dos intelectuais isebianos “levar uma comunidade à total apropriação de si mesma (...) um ser para si” (Corbisier, em Mota, 2008: 197).

O ISEB era composto por um núcleo de intelectuais com o objetivo de elaborar instrumentos teóricos para estimular e promover o desenvolvimento nacional, a partir da sua própria intervenção na gestão governamental. A partir de 1960, sob a direção de Álvaro Vieira Pinto, o seu discurso radicalizou-se em favor das reformas de base, aproximando-se do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Do ponto de vista do ISEB, a política significava o planejamento do Estado e a cultura seria uma aliada dessa tarefa, tendo em vista que vislumbravam a emergência de uma crise na sociedade brasileira, causada pela industrialização, sendo, portanto, necessário recompô-la sob novas bases.

Partimos do pressuposto de que não se podem considerar o Nacional popular e o existencialismo como tendências teóricas paralelas em Freire, no início dos anos 1960. O autor apresenta uma leitura do existencialismo imbricada às principais concepções dos intelectuais do ISEB, tendência que só desaparecerá de seu pensamento com a escrita de Pedagogia do oprimido.

Desse aporte teórico, ressaltamos a importância da articulação do contexto à ação pedagógica. Na tese de 1959, o educador busca entender o papel da educação em meio às transformações que aconteciam no Brasil, em razão do processo de industrialização. Assim, identificava que o país se tornava “autêntico” por inserir-se num processo histórico de maior abertura de consciência aos problemas nacionais. Esse movimento permitiria o diagnóstico de tais problemas e da ameaça representada pelo perigo de se colocar impedimentos à industrialização, em nome de uma suposta “vocação agrícola” do país ou devido ao abandono da política de monopólio estatal da exploração do petróleo (Freire, 1959: 50)

Um dos aspectos desse “arcaísmo” que insistia em permanecer, em meio às mudanças que ocorriam no país, seria a forma como a educação estruturava-se. Freire condenava a perpetuação de uma “educação ornamental e literária” no lugar de uma científica e técnica. Por “técnica”, o autor propunha que a educação se fizesse instrumental, com o fim de estabelecer relações de organicidade com o seu contexto. Por sua vez, “instrumental”, significaria ser força de mudança, ao se identificar com o contexto, fazendo-se autêntica. (Freire, 1959: 51).

Percebemos assim como o Nacional popular estrutura seu pensamento, a partir da ideia de que o desenvolvimento industrial estaria provocando uma nova fase para o país, que poderia, a partir daí, tornar-se “autêntico” e autônomo na resolução de seus próprios problemas. E como a educação teria uma tarefa própria destinada a tal contexto, a partir de uma concepção instrumental derivada do existencialismo de Maritain. Ou seja, Freire apropria-se de uma concepção do filósofo católico com o objetivo de aplicá-la à sua tese a respeito da tarefa da educação no contexto específico do Brasil, em meio às expectativas nacionalistas de então.

A relação entre contexto e educação passa, assim, pela atribuição de uma função às instituições nacionalistas em disciplinar o processo social e em promover conscientemente a mudança cultural (Paiva, 1980: 38). “Estar consciente” significava que os agentes históricos deveriam ter conhecimento do contexto social no qual se situavam a fim de conseguirem agir dentro das normativas apresentadas, ou seja, dentro da ordem, numa transição pacífica e direcionada entre uma situação de “atraso”, marcada pelos resquícios coloniais, e uma nova realidade, a democracia industrial.

Nas próximas sessões desse artigo, verificaremos como essas ideias apresentaram-se em três escritos do autor, após a publicação de sua tese, quando o Nacional popular, antes estruturante nos seus escritos, encontra-se agora mais enfraquecido. Essa perspectiva passa a se entrelaçar a uma preocupação com a formação da pessoa humana, que ocupa maior espaço nos seus escritos, reservando à educação uma tarefa mais abrangente do que a questão específica do desenvolvimento nacional.

O existencialismo nos artigos de Paulo Freire entre 1961-1963

Escola primária para o Brasil, 1961

Em 1960, Freire realizou a conferência que daria origem ao artigo “Escola primária para o Brasil”, publicada em 1961 na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. A comunicação teve lugar no Centro Regional de Pesquisas Educacionais do Recife (CRR), instituição voltada à pesquisa em educação, dirigida por Gilberto Freyre e subordinada ao Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), gerido por Anísio Teixeira.

No início do artigo, Freire parte das ideias do livro Ideologia e Desenvolvimento Nacional, de Álvaro Vieira Pinto, no qual o autor isebiano identifica dois tipos de sociedades opostas em relação à sua capacidade de determinar a si mesma. Existiriam, assim, aquelas que atingem ou se aproximam de sua etapa de autodeterminação, a fim de serem “sujeitos de seus próprios pensamentos” e, por sua vez, as “alienadas”, que se estagnam numa posição fatalista, por culparem o próprio povo pelos problemas sociais, fracassando em encontrar soluções e oscilando entre os sentimentos de desesperança e acomodação.

Essa classificação supõe a existência de um movimento de transição das sociedades do estado de “alienação” em direção à autodeterminação. Nesse processo, a tendência seria a substituição, na população, do sentimento de desesperança pelo de otimismo crítico. A característica de “criticidade” esperada da sociedade que se quer atingir indicaria a integração às suas “verdadeiras condições”, ou seja, a partir desse momento a sociedade “sabe o que pode e o que deve fazer”, os indivíduos que a compõem passam a ser atuantes e dinâmicos e substituem a “acomodação” aos problemas sociais pela “integração”. Estar integrado à própria sociedade a qual pertence significaria realizar intervenções visando a solucionar as suas defasagens econômico-sociais.

Freire baseia essa concepção dual de “sociedade” no filósofo Karl Jaspers. Tendo por base o autor, Freire afirma que, para a passagem de uma sociedade alienada para uma que se autodetermina, o diálogo seria a “forma autêntica de comunicação, sem o qual não haveria criticidade e integração”. Desse modo, incentivar um certo tipo de comunicação —aquela que provém da razão— seria a principal tarefa dos que desejavam a mudança de um tipo de sociedade para outro: “A comunicação que não venha da razão e não provoque razão é mero comunicado, imposto ou doado. É domesticação” (Freire, 1961: 16).

Complementando a concepção acima, Freire apropria-se da tipologia de Karl Popper em relação à identificação de dois tipos de sociedades: as fechadas e as abertas. De acordo com essa ideia, o Brasil estaria num processo de transição de uma a outra. O trânsito dar-se-ia das suas formas “alienadas” para as “autênticas”. Assim, Freire utilizava os conceitos de Popper de “sociedade fechada” ou “tribal” para caracterizar a herança colonial, as mazelas sociais, a desigualdade, o abuso de autoridade, a falta de espaço público na sociedade brasileira até os anos 1950, quando a eleição de governos desenvolvimentistas teria operado na sociedade fechada uma “rachadura”. Assim, em 1961, o Brasil ainda não seria ainda uma sociedade aberta, mas sim uma “aprendiz” dessa forma (Freire, 1961: 17).

Essa nova sociedade brasileira, que se origina da “rachadura”, deveria assentar-se em bases racionais, humanas e democráticas. O período de “trânsito” seria de tensão entre dois tipos de “elite”: de um lado, as “manchas de reação”, a elite temerosa da promoção popular, do aclaramento da sua consciência sobre as novas tarefas de cada um numa sociedade democrática e da amplitude do diálogo. Essa elite lutaria para manter a sociedade em trânsito numa forma “desumanizada”, na qual as classes populares não conseguiriam realizar o movimento de “emersão”, mantendo-se “alienadas”. Já o outro tipo de “elite” seriam as “diretoras”, que buscariam a “intimidade” com o povo para poderem “receber o selo de sua autenticidade e conseguirem a indispensável e inadiável promoção de consciência popular” (Freire, 1961: 18).

Como exemplo de “elite diretora”, Freire utiliza o MCP, cujos esforços seriam visíveis na ação de diminuir o que ele designa como a “distância” entre os homens brasileiros. Na visão do autor, o MCP e seu fundador, Germano Coelho, “são de importância incalculável no trânsito em que vivemos”, assim aceitá-los ou repulsá-los seria um “teste à mentalidade”: ou a escolha racionalmente progressiva associada à “sociedade em formação” ou a “reacionariamente irracional” da “velha sociedade”. Novamente temos a referência a dois tipos de sociedade que seriam fruto de uma escolha realizada nessa fase do “trânsito”. Nesse caso, a dualidade entre uma sociedade “racional” contra a “irracional” é baseada numa referência a George Lukács (Freire, 1961: 19).

Ao tratar do ensino primário, Freire analisa os números da evasão escolar tanto na rede do SESI quanto na pública regular. Em nota de rodapé, explicita o número de matrículas no primeiro ano, bem superior à quantidade de crianças inscritas na escola nas últimas séries. Essa defasagem alarmante seria causada, em parte, pela necessidade do trabalho infantil6 para o sustento familiar, mas sobretudo por uma característica própria à escola, seu aspecto “verbalista”, responsável por não “fixar” os alunos das classes populares na instituição. Menciona uma pesquisa que fez enquanto trabalhava no SESI, em que se deparou com uma criança para quem a escola era um lugar de descanso do trabalho, um “menino apático e tristonho. Sempre sentado. Quase ‘demitido’ de sua aula (...) Era um menino a quem a escola realmente nada oferecia, senão repouso de suas canseiras de homem antecipado” (Freire, 1961: 24).

Assim, no artigo, o tema da escola é abordado numa relação intrínseca entre educação e desenvolvimento nacional, tanto do ponto de vista da organização interna à escola, sobretudo em relação ao conteúdo do ensino que deveria ser mais “técnico” e objetivo, com metodologias ativas de ensino, priorizando o diálogo nas práticas pedagógicas, quanto em relação às problemáticas externas à escola como a pouca disponibilidade de vagas na rede escolar e as desigualdades sociais que contribuem para afastar as crianças da escolarização. Freire realiza essa análise da sociedade brasileira, integrando os conceitos de autores como Vieira Pinto, Popper, Jaspers e Lukács a fim de sistematizar a “fase de transição” brasileira, num viés dualista de análise social, para definir a tarefa da educação frente à situação específica do Brasil, de transformações operadas pela industrialização: “Somos hoje uma sociedade para a qual o desenvolvimento econômico, a industrialização é um imperativo existencial” (Freire, 1961: 21).

Diante dessa exigência, Freire pontuava que era uma necessidade incorporar o povo critica e conscientemente ao processo. Para tanto, o desafio apresentado por uma sociedade em transição como a brasileira seria a reforma do inadequado sistema educacional. Tal reforma aconteceria em duas partes: na formação de técnicos e cientistas de vários níveis e de mão de obra qualificada e na constituição de disposições “mentais críticas” nos indivíduos, a fim de que aderissem ao desenvolvimento, evitando seu “desenraizamento”, ou seja, o estado de alienação frente ao fato incontornável da industrialização.

Desse modo, ao formular o quadro geral marcado pelo desenvolvimento econômico, pontua o papel da educação nesse contexto. Para Freire, nos anos 1960, a escola atual seria “ininstrumental” para a sociedade de trânsito. O educador apresenta críticas à escola tradicional a partir da “constatação de sua insuficiência quantitativa e de sua dolorosa inadequacidade faseológica”. Vemos, então, dois motivos diferentes de crítica ao sistema escolar. De um lado, o autor aponta o “quantitativo”, ou seja, a falta de escolas, explicada em razão do subdesenvolvido do Brasil e do histórico descaso do governo com a educação pública. Por outro lado, a “inadequacidade” da escola refere-se a um fator “qualitativo” do ensino, sendo o tema principal de sua análise e de suas preocupações:

A inadequacidade de nossa escola primária consiste na sua verbosidade, no exagero da memorização, na sonoridade da palavra, com que fugindo à realidade em que se situa, se superpõe a ela. Daí por que, sem a ‘inserção’ no seu contexto que a faria autêntica, é uma escola que não infunde esperança. Consiste na falta de diálogo de que resultam a inexistência de ‘comunicação’ e a exacerbação do “comunicado”. É uma escola que, em regra, vem ‘domesticando’ o educando, precisamente quando, no trânsito que estamos vivendo, mais se precisa de capacidade crítica, somente com que será possível a integração com o ritmo acelerado de mudanças. Uma escola que dita, que impõe, que faz “doações” é uma escola inadequada com o clima cultural de uma sociedade que se desaliena e busca sua promoção de “objeto” a “sujeito”. É inadequada com o surto de democratização, em que está inserido o país. (Freire, 1961: 21)

O trecho acima sintetiza as principais críticas de Freire à escola brasileira, sobretudo quanto ao seu caráter “verbalista” e “oral” pautado por métodos como a memorização. Mas é a ideia de falta de diálogo que aparece como um dos principais problemas da escola, já que seria responsável pela “domesticação” dos alunos e pelo excesso de comunicados impostos pela escola. O alarme em relação a esse ponto se justifica por se tratar não só de um problema pedagógico, mas de uma condição para a passagem de uma “sociedade em trânsito” para a “sociedade aberta”. Essa caracterização da escola seria incompatível com uma sociedade que estava em processo de se “desalienar”.

Assim, para Freire, a escola deveria adequar-se ao período de “trânsito”, buscando atrelar-se ao trabalho, ao diálogo, à participação e à comunicação. O sistema escolar encontrava-se ainda “fechado” e “assistencializador”, longe de aproximar-se da fase da sociedade “aprendiz da democracia”, de “abertura” (Freire, 1961: 31). Ou seja, por ser “livresca” e superposta à realidade local, regional e nacional, a escola não se caracterizava como um “agente de câmbios sociais”. Esse desprezo pela realidade nacional, por parte da escola, teria como resultado tanto a permanência da “alienação” enquanto perspectiva social, quanto o baixo número de operários qualificados, em relação a necessidades práticas da “sociedade em trânsito”. De acordo com Freire, as escolas nos centros urbanos deveriam conhecer as necessidades do mercado de trabalho, tendo em vista que grande parte da mão de obra passaria por ela. A escola deveria “oferecer um conhecimento básico aos clientes7 para que se identifiquem com seu meio e nele atuem”. Esse seria o papel da escola primária, o de estar “voltada para uma constante do momento nacional (...) o seu desenvolvimento” (Freire, 1961: 28, grifo nosso).

A partir das passagens ressaltadas acima, percebemos a preocupação de Freire com a tarefa da educação em relação a proporcionar as condições econômico-sociais estruturais para romper o “ciclo vicioso” do subdesenvolvimento. Ou seja, o Brasil seria subdesenvolvido pelas condições precárias de educação e saúde, porém essas áreas se mantinham inadequadas às mudanças da “sociedade em trânsito”, por causa do subdesenvolvimento. Assim, a industrialização seria o fator condicionante para romper com o ciclo e colocar o país em vias de desenvolver-se, já que a democracia precisaria da escola para a formação de cidadãos “desalienados” para fazer-se plena e orgânica.

Desse modo, Freire propõe a união de esforços entre sociedades beneficentes, clubes recreativos, sindicatos, associações religiosas, centros urbanos, comunidades rurais brasileiras e poder público para a elaboração de respostas aos desafios dos novos tempos. Como exemplo, cita o Movimento de Cultura Popular. O que nos mostra que a educação, de forma ampla e não só a escolar, teria um papel imprescindível no preparo dos indivíduos para o desenvolvimento econômico, pautado pela atuação do poder público em “alimentar a apetência educativa das populações”.

O estímulo a uma educação que provocasse a desalienação vem descrito como um combate à “doação”, termo que aparece pela primeira vez nesse artigo: “E sem essa ‘apetência educativa’, a escola, ao invés de reivindicação, é doação. Motivo por que sua instrumentalidade decresce” (Freire, 1961: 229). Antes, em sua tese, a postura de “assistencialismo”, presente em programas governamentais e, sobretudo, nos métodos pedagógicos da escola regular, era enfaticamente condenada. No artigo de 1961, Freire denomina o “assistencialismo” de “doação”, termo mais afinado com a crítica à sociedade “alienada”, pois o ato de “receber uma doação” acentuaria a passividade imprópria a uma sociedade que se autodeterminaria.

Nesse momento, enfim, o significado de educação, para Freire, atrelava-se à ideia de que a escola regular deveria servir de um instrumento para a promoção do desenvolvimento nacional, a partir da formação de indivíduos preparados para a industrialização e para assumirem a responsabilidade por uma “sociedade aberta”, superando a posição de “acomodação” em prol de uma posição crítica.

O professor universitário como educador, 1962

O artigo “O professor universitário como educador” foi publicado quando Freire já ocupava a função de diretor do SEC em 1962, na Estudos Universitários: Revista de Cultura da Universidade do Recife. O tom desse texto difere consideravelmente dos textos anteriores. Inicia-se com um conceito ontológico de educação, ao afirmar que a atividade docente se enraizava no processo de “individualização”, processo pelo qual teria passado o ser humano. Freire argumenta que “esta atividade docente, de que jamais se afastou é um dado de sua própria existência. Ela está essencialmente ligada à sua qualidade espiritual, que o faz um ser capaz de discernir e transcender” (Freire, 1962: 15, grifo nosso).

Notamos que termos como “transcender”, “espiritual”, “existência” e “ser humano” seriam os conceitos estruturantes nesse texto. Se no artigo anterior, a argumentação centrava-se na preocupação com o desenvolvimento nacional e as tarefas necessárias para tal empreendimento, neste o conceito de “pessoa humana” assume-se como o cerne da sua concepção de educação, de um modo mais subjetivo. Aliada a essa noção, a distinção entre os seres humanos e animais, em que sublinha a capacidade criadora e comunicativa dos homens, surge também nesse artigo. Assim, a educação, de tarefa ou instrumento para o desenvolvimento nacional, passa a ser concebida como um “esforço de transmissão precisamente porque humano e portanto espiritual, ser também formador e não simples e puramente informador ou catalogador” (Freire, 1962: 15).

Essas novas referências teóricas do artigo de 1962 não significam, entretanto, uma superação com o diagnóstico realizado anteriormente sobre a sociedade brasileira, pois o autor retoma a caracterização da sociedade brasileira como uma “transição” da forma “fechada” para a “aberta”. Aparece ainda uma nova citação de Karl Popper, mas agora se entrelaçando o racionalismo filosófico da expectativa pela “sociedade aberta” com a transcendentalidade: “Minha insistência em que nós é que fazemos as decisões e carregamos a responsabilidade, diz Popper que não deve ser tomada como implicando em que não possamos ou não devamos ser auxiliados pela fé ou inspirados pela tradição” (Freire, 1962: 15). Ressaltamos que a dualidade antes apresentada em relação à opção a se fazer por uma sociedade aberta e racional ou fechada e irracional mostra-se, no artigo de 1962, numa nuance em que a racionalidade tão almejada admite a sua coexistência com elementos relacionados à fé, transcendência, espiritualidade.

A linguagem do Nacional popular retoma espaço no artigo, mas de forma discreta, numa referência ao compromisso da educação com o contexto: “o professor se faz educador autêntico na medida em que é fiel a seu tempo e a seu espaço. Sem esta fidelidade, mesmo bem intencionado, se compromete a sua atividade formadora”. Assim como em textos anteriores, a educação autêntica seria aquela voltada aos problemas do seu tempo: “É que não pode haver formação do educando se o conteúdo da formação não se identifica com o clima geral do contexto a que se aplica. Seria antes uma deformação” (Freire, 1962: 46).

Um último aspecto a se ressaltar desse artigo é que pela primeira vez aparece o termo “conscientização” nos escritos de Freire8, o que nos mostra uma radicalização em seu pensamento, mesmo que sem romper ainda com o Nacional popular. Sobre a “conscientização”, Freire propõe ao professor universitário e seus alunos analisarem juntos as causas da “rebeldia juvenil”, referindo-se possivelmente ao fortalecimento das entidades estudantis e ao surgimento de diversos novos grupos políticos no meio universitário. A análise desse momento daria condições à “conscientização do problema e se marcharia para a sua exata compreensão”. Assim, postula que “as universidades brasileiras cumprirão sua fundamental missão na medida em que seus professores nos integremos às novas condições do país e nos tornemos na verdade o que devemos ser: educadores e não transmissores de comunicados” (Freire, 1962: 46).

Assim como, no artigo de 1961, Freire ressaltou o papel do MCP no processo de desalienação da sociedade brasileira e na sua tese de 1959 havia ratificado a função do SESI diante do processo de democratização do país, nesse artigo de 1962, o autor valoriza o papel da Revista Estudos Universitários na “busca do autêntico em que se empenha a Universidade do Recife”. Notamos um esforço de Freire em referir-se positivamente à sua própria experiência em instituições comprometidas com a estabilização da democracia brasileira, como se o seu trabalho prático fosse a prova empírica do acerto de suas proposições teóricas. Assim, ele mesmo estaria cumprindo as proposições missionárias, que se atribuía ao intelectual do seu tempo, em relação às intervenções dos pesquisadores em políticas estatais do início dos anos 1960.

Conscientização e alfabetização: uma nova visão do processo, 1963

No artigo “Conscientização e alfabetização: uma nova visão do processo, de 1963, também publicado na Estudos Universitários”, Freire inicia seu texto novamente com a distinção entre homens e animais, com o fim de ressaltar a capacidade criadora dos seres humanos no mundo. Reitera as referências ao aspecto transcendente dos homens, a diferença entre “acomodação” e “integração” e a relação entre tempo e espaço como dimensões das relações que o homem trava com o mundo. Retoma o atributo de “sociedade de trânsito” da situação brasileira, assim como a passagem de formas “fechadas” para “abertas” e o papel do educador perante essa situação nova. Freire cita Karl Jaspers e Gabriel Marcel logo no início desse texto, evidenciando a relevância que o tema da “formação da pessoa humana” adquiriu em seu pensamento. As referências espirituais também são atualizadas, com a menção à palavra “Criador”, pela primeira vez, ao afirmar que o homem teria a capacidade de transcender por “relacionar-se com o Criador” (Freire, 1963: 99).

Do mesmo modo que nos outros artigos, Freire aponta temas do Nacional popular diluídos numa linguagem mais próxima do “existencialismo cristão”. Assim, os termos “nação”, “antinomia” e “desenvolvimento” não são mais centrais na sua análise. Mas a ideia geral de que o país passaria de uma forma de vida para outra, indicando a democratização das instituições mantém-se. Em vez de identificar a “antinomia fundamental” como na sua tese, a partir dos conceitos de Álvaro Vieira Pinto, retoma os termos de Popper de sociedade aberta/sociedade fechada e os de Jaspers em relação à alienação/autenticidade. Reafirma que as alterações econômicas pelas quais passou o país foram responsáveis pelos fatores desse processo de “abertura”.

Uma ideia que volta a aparecer é a de “rebelião popular”. Na sua tese de 1959, Freire tinha dedicado mais atenção ao tema, que desapareceu nos artigos de 1961 e 1962. Nesse texto de 1963, voltava a afirmar que: “Sem passado de experiências decisórias, dialogais, emerge o povo em rebelião” e a consciência resultante desse processo é fortemente ingênua (Freire, 1963: 105). Assim, com a mesma perspectiva que desenvolveu em sua tese, identifica rebelião à “subversão” como sendo o contrário de “revolução”. A “subversão” seria a ação das classes dominantes que procuravam contrariar o “trânsito”, assim como a atuação da “consciência ingênua” do povo à medida que não contribuiria para a formação de sujeitos responsáveis pelas transformações da sociedade. Já a “revolução” seria a própria situação de “trânsito”, que se desenrola como um destino previamente determinado a se estabelecer. Assim, a atuação popular deveria ser observada e dirigida pelos indivíduos críticos, para que a “revolução” tão necessária ao país, ou seja, a consolidação da democracia, não se aviltasse em “rebelião”. Em outras palavras, se as mudanças sociais fossem dirigidas pelo que Freire denominava “formas de consciência ingênua”, seriam perigosas para o futuro da democracia/sociedade aberta.

Sendo assim, nesse artigo, a educação “criticizadora” surge como forma de evitar esse perigo da “rebelião popular”, pois “a emersão um tanto brusca feita pelo povo de seu estágio anterior de imersão em que não realizara experiências de participação, deixa-o mais ou menos atônito diante das novas experiências em que engaja: as da participação” (Freire, 1963: 105). A educação, na sua concepção, mantinha-se com a tarefa de orientar o país na sua fase de “trânsito”, a fim de se alcançar a sociedade aberta, dotando a população, nesse momento, de “consciência transitiva crítica”. Esse é o sentido da “revolução” esperada por Freire. Percebemos uma ideia de “mudança social” atrelada a um controle prévio instaurado pelas tarefas exteriores que se impunham para uma sociedade classificada na tipologia do “trânsito”, caracterizada pela fase intermediária entre um modelo de “sociedade fechada” e “aberta”.

A “comunicação”, central nos artigos de 1961 e 1962 a partir da noção de “diálogo”, nesse texto também se apresenta constitutiva da definição de educação ideal:

Por isso mesmo a educação de que precisamos, em face dos aspectos aqui apontados e de outros implícitos nas várias contradições que caracterizam o trânsito brasileiro, há de ser a que liberte pela conscientização. Nunca a que ainda mantemos em antinomia com o novo clima cultural –a que domestica e acomoda. A que comunica e não a que faz comunicados. (Freire, 1963: 110)

Notamos que Freire não só mantém o repúdio aos “comunicados” na educação, como reitera a ideia de seu artigo anterior de que a educação deveria libertar pela “conscientização”. No artigo de 1962, o termo aparece diluído no texto. Já na passagem acima, de 1963, a “conscientização” tem por meta a “libertação”, que é, por sua vez, finalidade última da educação, central na definição de seu conceito.

Esse artigo tornou-se célebre para os comentaristas de Freire por ter sido escrito logo após a experiência do projeto 40 horas de Angicos. No texto há uma breve exposição do método, após as considerações teóricas apontadas acima. Freire ainda conclui que a forma de levar o analfabeto à “superação de suas atitudes básicas, mágicas diante da realidade” seria por meio de um “método ativo, dialogal e por isso crítico e criticizador”. Ou seja, após identificar que um dos mais graves problemas da educação brasileira seria a falta de diálogo, propõe que a solução seria um método semelhante ao que ele mesmo havia aplicado no projeto de Angicos.

Freire afirma que havia “superado o professor” com a figura do coordenador de debates, assim como a escola noturna daria espaço para o “círculo de cultura”, e, em vez de aluno, haveria o “participante do grupo”. O artigo acabou funcionando como um meio de promover o método, por meio de afirmações como: “Trezentos homens eram alfabetizados em Angicos em menos de 40 horas. Não só alfabetizados. 300 homens se conscientizavam e se alfabetizavam em Angicos. Trezentos homens aprendiam a ler e a escrever, e discutiam problemas brasileiros” (Freire, 1963: 124). Essa passagem mostra que o mérito do método não seria simplesmente ensinar a ler, escrever ou contar. Fundamentalmente, a educação deveria adequar seu conteúdo e procedimentos didáticos ao processo de desenvolvimento econômico que estaria em curso, frisando, nesse momento, a possibilidade em “conscientizar” as classes populares por meio dessa experiência.

Um último aspecto de nota seria o fato de Freire praticamente não se referir ao sistema escolar formal, nos artigos escritos em 1961 e 1962, delimitando-se assim sua relação com a educação popular, com a conquista de um espaço no SEC para a realização de suas experiências. A escola aparece somente com o fim de se reafirmar a sua “inadequacidade” e a sua necessária superação, por meio de um novo modo de se pensar a educação.

Considerações finais

A análise dos três artigos acima nos possibilitou ressaltar que, nos escritos iniciais de Freire, o conceito de “nação” cedeu espaço para o de “pessoa”, ainda que seu arcabouço teórico em relação à preocupação com o processo de democratização da sociedade brasileira, “em trânsito”, tenha permanecido como seu referencial de análise mais amplo.

Tendo a sua tese de doutorado como referência, percebemos que a menção ao “existencialismo cristão” não era inédita nos artigos, pois o filósofo Maritain já havia sido citado em 1959. Porém, na tese, a linguagem é fortemente determinada pelos conceitos do Nacional popular isebiano. Situação que se transforma com a escrita dos artigos, nos quais novas referências aparecem com centralidade como é o caso de Jaspers e Popper, filósofos existencialistas fundamentais para o ativismo social católico.

A partir de 1960, o envolvimento de Freire com instituições como o MCP e o SEC nos revela que a sua experiência mais direta com os movimentos organizados de cultura e educação popular pode ter contribuído para o redimensionamento dos conceitos centrais da sua perspectiva teórica, sistematizada nos artigos. O MCP teria sido fundado motivado pela “falta de consciência das camadas populares nordestinas quanto a suas potencialidades” (Coelho em Souza, 2014: 81), tratando a cultura popular como um instrumento de condução das classes populares para a participação política, de forma crítica ao “assistencialismo” das políticas públicas direcionadas à população mais pobre.

Nesse contexto, Freire reelabora seu conceito de “educação” como formação da pessoa humana e instrumento de “conscientização”, termo fundamental no seu pensamento posterior a 1968, que aparece pela primeira vez no artigo de 1962. Crítico do “assistencialismo” já na escrita da tese, pois, do ponto de vista do Nacional popular, o assistencialismo seria o principal fator de obstáculo ao desenvolvimento de um país autodeterminado, Freire mantém essa preocupação, mas ressaltando o agravo produzido pela imposição da passividade à população. Nos artigos, esse tema é explorado a partir de suas implicações mais profundas como a renúncia ao desenvolvimento das potencialidades humanas. Assim, em vez de “assistencialismo”, Freire foca-se na contraposição entre “comunicação” e “comunicados” e na recusa em ratificar políticas públicas que se valessem da “doação” de melhorias à população.

Desse modo, articulando conceitos do Nacional popular e uma concepção ativa de educação ao existencialismo e à preocupação com a formação da pessoa humana, temos em Freire o objetivo de “conscientizar” as classes populares, por meio da educação, relacionando-a ao desenvolvimento nacional e à democracia em curso. Essas diferenças, em relação aos escritos anteriores aos anos 1960, mostram que o cargo adquirido no SEC e a consequente liberdade dessa posição consolidou um estilo de escrita próprio em Freire.

Apesar do idioma do Nacional popular aparecer diluído, tendo em vista que os termos “nação” e “desenvolvimento” não se encontram em evidência nos artigos, a ideia geral de um dualismo entre um passado colonial e um futuro industrial ainda se mantém. A diferença fundamental é que a descrição da sociedade em trânsito, da mudança de uma forma arcaica para uma moderna e o papel da educação perante esse novo quadro são retomados numa linguagem permeada por termos do existencialismo apropriado pelo ativismo cristão, no qual se centraliza a pessoa humana e não mais a nação, que se torna um pano de fundo.

Referências

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Taís Araújo

Mestra em História Social, Universidade de São Paulo; Licenciada em História, Universidade de São Paulo; Doutoranda em Filosofia da Educação, Universidade de São Paulo. Brasil. taisaraujo@gmail.com


1 Referimo-nos à “novidade” das greves do ABC de acordo com Sader (2010).

2 Essa citação aparece em relatório de Freire ao SESI (Freire, 2006: 73).

3 A Ação Católica foi uma entidade laica formada em 1935 com o objetivo de cristianizar a sociedade católica em crise, a partir do trabalho social.

4 Em relatório, o grupo enumera as mudanças a serem implementadas na região. Uma das propostas é a “ingerência dos pais nos negócios da escola a fim de criar atitudes de participação” (Freire, 2006: 83).

5 Para maior detalhamento dos escritos iniciais de Freire, consultar Araújo (2015).

6 Freire levanta o tema da reforma agrária e das outras reformas de base para promover a passagem de uma sociedade de trânsito para a sociedade aberta.

7 É de se notar que o termo “educando” ainda não é utilizado por Freire em relação à escola, reiterando a expressão que faz referência à “clientela escolar”.

8 Na tese de 1959, Freire trabalha com o termo “consciência”, apesar de não se deter sobre “conscientização”. Na tese, a educação seria o meio de promover consciência crítica na população, o que significava “aumentar-lhe o grau de consciência dos problemas de seu tempo e de seu espaço. É dar-lhe uma ‘ideologia do desenvolvimento’. E o problema se faz então um problema de educação. ‘De educação e organização ideológica’, acrescentaria o professor Hélio Jaguaribe” (Freire, 1959: 28).