Um certo silêncio bibliográfico (sobre a “influência”)

Flávio Brayner

Universidade Federal de Pernambuco (Brasil).
flaviobrayner@hotmail.com

Kelma Beltrão

Universidade Federal de Pernambuco (Brasil).
beltraokelma@yahoo.com.br

Fecha de recepción: 30 de marzo de 2020.
Fecha de aceptación: 29 de mayo de 2020.

Resumo

O que queremos dizer, exatamente, quando falamos da “influência” que um autor sofreu ou exerceu? Neste ensaio, sustentamos que intelectuais dos anos 1920-1930, pouco ou nenhuma vez citado por Paulo Freire em suas obras, como Mário de Andrade e Gilberto Freyre, tiveram incidência decisiva na definição de um campo temático e de objetos de investigação retomados pelo educador nos anos 1950. Concluímos que as temáticas gestadas por estes intelectuais (um modernista e outro regionalista), em especial a abordagem sobre cultura e povo, ajudaram Paulo Freire a compor os elementos de seu ideário pedagógico, seus métodos e seus sujeitos.

Palavras-chaves: influencia, modernista, regionalista, povo, cultura.

Un cierto silencio bibliográfico (sobre “influencia”)

Resumen

¿Qué queremos decir, exactamente, cuando hablamos de la “influencia” que recibió o ejerció un autor? En este ensayo, sostenemos que intelectuales de los años 20/30, como Mário de Andrade y Gilberto Freyre -rara vez o nunca mencionados por Paulo Freire en sus obras-, tuvieron un impacto decisivo en la definición del campo temático y de los objetos de investigación desarrollados por el educador en la década de 1950. Concluimos que los temas generados por estos intelectuales (uno modernista y otro regionalista), especialmente el acercamiento a la cultura y las personas, ayudaron a Paulo Freire a componer los elementos de sus ideas pedagógicas, sus métodos y asignaturas.

Palabras clave: influencia; modernista; regionalista; pueblo; cultura.

A bibliographic silence (about “influence”)

Abstract

The purpose of this text was to construct the notion of influence, showing that investments made in the 1920s by intellectuals such as Mário de Andrade and Gilberto Freyre did not necessarily need to be cited by Paulo Freire in order for his ideas to be present in the educator’s work. We conclude that the themes generated by these intellectuals (a modernist and a regionalist), especially the approach to culture and people, helped Paulo Freire (in the 1950s and 1960s) to form a certain idea of people and culture among those he intended to teach with his method.

Keywords: Influence, Modernist, Regionalist, People, Culture.

O tema

Quem lê a obra de Paulo Freire (sobretudo as obras mais “ensaísticas”, e não as entrevistas ou trabalhos acadêmicos) encontra alguma dificuldade na remissão bibliográfica: raramente Freire citava e, ainda mais raramente, encontramos uma bibliografia sistemática ao fim de seus inúmeros livros. Isto, evidentemente, gerou entre os pesquisadores e estudiosos de sua obra, uma pergunta crucial: “O que ele leu durante a vida e quais destas leituras tiveram efeito decisivo na formulação posterior de suas idéias?”. É claro que, para um investigador mais atento e intelectualmente mais equipado, é possível identificar, aqui e ali, suas “influências”. E isto porque, segundo uma esclarecedora indicação do professor Paulo Rosas, “impelido, talvez, pela independência de suas idéias, pela consistência lógica inteiramente irrepreensível de seus pontos de vista, Freire não se sente constrangido a citar (...)”, o que levou o próprio Rosas a lançar, um opúsculo com o revelador título “Fontes do Pensamento de Paulo Freire” (Rosas, 2004), provavelmente premido pela mesma questão acima lavrada, mas cuja “resposta”, sendo dada por alguém que havia freqüentado Paulo, conhecido sua biblioteca e, sobretudo, dispondo daquele equipamento erudito necessário para identificar fontes e influências, nos forneceu um importante indício “arqueológico” (nada a ver com o “foucaultianismo pop” que viceja em nossas universidades!) sobre a questão.

A obra de Rosas, embora de pequeno porte, revelando um acervo de leituras que, afinal, marcou a geração intelectual de Freire, é o sintoma daquele silêncio bibliográfico. E por mais original, inédito, inovador, revolucionário que seja um autor, seu pensamento não é uma creatio ex nihilo, tal qual um deus na aurora da criação! Imerso numa tradição intelectual, numa linguagem, numa “circunstância”, numa biblioteca..., nenhum autor é autor de si mesmo (é neste sentido que Paul Ricœur pode afirmar que “Todo autodidata é um impostor!”) e qualquer que seja a ruptura que ele promova, ela só é possível e inteligível no interior de uma tradição intelectual. A genialidade de um autor não reside em seu radical ineditismo, mas na forma como ele recebe, se apropria e oferece uma nova semântica a uma tradição da qual ele se toma por “herdeiro”, nem sempre completamente consciente deste legado. Como “Nossa herança não é precedida de nenhum testamento”, como diria o poeta René Char, cabe aos herdeiros refazê-la e, assim, inovar. Sua originalidade está na sua leitura, na recepção que realizou, nas relações que fez com outras tradições e, a partir daí, na qualidade das respostas que ofereceu às grandes inquietações de sua época. Com isto eu quero dizer que a noção romântica de “Gênio”, como alguém dotado de uma qualidade intelectual ou de uma sensibilidade elevadíssima e que a explora através de um mergulho em sua interioridade, sob o signo da inspiração e da espontaneidade, retornando de lá com uma obra original e indiferente à tradição, não passa —de fato— de um mito romântico!

No entanto, um primeiro problema começa logo a mostrar as unhas: o que entendemos por “influência”? Penso que é necessário que se diga que a influência que um ou vários autores podem exercer sobre um determinado pensador, não pode ser medida nem pelas citações que faz em suas obras (que são apenas um recurso de argumentação, procurando encontrar apoio em uma autoridade intelectual. Aliás, não raras vezes, a acumulação de citações apenas demonstra a insegurança e a frágil autonomia de quem escreve), nem na bibliografia, que é a lista das autoridades (e seus livros lidos) que participaram —nem sempre como “dialogantes”— das referências (que é diferente de influências).

Ironizando esta idéia de “influência”, o ex-professor de Literatura Comparada da Universidade de Cambridge, o romancista David Lodge, em um romance a respeito da vida universitária chamado Um pequeno mundo (Small world) conta a história de um obscuro (e inescrupuloso) professor que teve um artigo recusado por uma revista e, pouco tempo depois, viu seu artigo sendo lido por uma importante autoridade literária, em um Congresso internacional, como se fosse de sua autoria! Denunciando o impostor, aquele obscuro professor praticamente assume o lugar daquela autoridade e, perguntado, certa vez, pelo tema de sua pesquisa (que nunca existiu!), responde que estuda a influência de Walter Benjamin (1892-1940) sobre Charles Baudelaire (1821-1867)! Ora, Benjamin é posterior a Baudelaire e seria um non sense imaginar um autor posterior exercendo uma ação qualquer sobre outro que lhe é anterior cronologicamente! De forma alguma, responderia nosso charlatão universitário: “Falo influência no sentido de que, as pessoas que antes de lerem Baudelaire leram o longo e famoso ensaio de Benjamin Um lírico no auge do capitalismo, fazem a leitura de As flores do mal ou o Spleen de Paris segundo olhos benjaminianos! Assim, um autor posterior pode exercer influência sobre um anterior: influenciando o modo de leitura de seus leitores”.

A boutade é desconcertante, mas nos ajuda a pensar a noção de “influência”. Fundada em uma concepção linear do tempo, a noção de influência contrariaria a idéia de “ruptura” e “descontinuidade”: ela supõe que o influenciado é uma espécie de “sucessor” do influenciador, mesmo que por outras vias e escolhas e, assim, a história das idéias não passaria de um tecido acumulativo de narrações sucessivas, em que a próxima narração dá continuidade à anterior. Isto provocaria uma questão de natureza metafísica que é a remissão à origem ou à fundação (contestada pelos historiadores): quem foi o primeiro “influenciador”, o pai primordial de uma idéia? Este retrogradum ad infinitum daria à noção de influência uma conotação não apenas transcendente, mas essencialmente cosmogônica. Eis a razão pela qual os Românticos inventaram a idéia do Gênio (da mesma família lingüística de gênese, geração): aquele que funda e que, por sua vez, não é fundado.

Visto que não é porque um autor foi citado numa obra que necessariamente ele exerce uma influencia sobre outro, uma vez que ter lido é diferente de se deixar influenciar, sugerimos a hipótese de que quanto menos referências aparecem numa obra, mais o autor se tornou impregnado da atmosfera intelectual, do “horizonte de expectativas” (Jauss), da linguagem e conceitos de uma época, da sensibilidade moral para perceber os dramas humanos e converter toda esta imersão numa cultura herdada em forma e conteúdo novos. Este nos parece ser o caso de Paulo Freire.

Isto significa dizer —se quisermos ainda insistir na noção— que uma influência é tão mais decisiva quanto mais ela é... imperceptível, inclusive para o próprio autor. Como naquele conceito de “cultura” de Elias —“uma segunda natureza”—. Não é porque uma pessoa usa termos como “frustração”, tão comum em nosso vocabulário, ou expressões como “exploração” ou “alienação”, que podemos afirmar suas dívidas intelectuais com Freud ou Marx, que possivelmente nunca leram. E, no entanto, há aqui uma “influência”: se esses autores não tivessem tematizado aqueles termos, provavelmente nós não os usaríamos da mesma forma. Assim como não é porque um agente de trânsito usa a expressão “conscientização”, referindo-se à incivilidade de nossos condutores e à necessidade de uma mudança de comportamento, que necessariamente ele é um freireano! Ítalo Calvino sugeriu, certa vez, que um “clássico” era aquela obra que, mesmo sem que as pessoas a tivessem lido, sua idéia impregnaria nossa linguagem cotidiana e permaneceria através dos tempos: mesmo sem ter lido O Processo, todo mundo sabe usar a expressão “kafkiano”. Um clássico marcará com sua linguagem própria nossa relação futura com as coisas, a influência torna-se uma espécie de presença inconsciente.

Que áreas de nossa alma esta filiação a uma tradição (influência) atinge? Temos razões para supor que filiar-se a uma tradição intelectual “crítica” não significa aceitar integralmente a conseqüência moral que às vezes a acompanha. Como, por exemplo, compreender que um autor como Heidegger, herdeiro daquela tradição e tendo mostrado os profundos embaraços criados pela experiência moderna e pela metafísica tradicional, propondo uma ontologia fundamental, uma analítica do presente e um resgate de nossa capacidade de pensar, pudesse aderir ao Nazismo (sem nunca ter se retratado)? Eis como uma fortíssima tradição intelectual (influência) crítica (no domínio da epistemologia, da teoria do sujeito e do “esquecimento do ser”) se faz acompanhar de uma conduta moral e política que emprestou seu apoio à barbárie do extermínio. Como foi possível que Sartre, um dos maiores “moralistas” do século XX, filósofo da liberdade e da responsabilidade individual em situações de opressão, pudesse encarar o conhecimento que tinha dos crimes do stalinismo, escondendo-os para “não prejudicar o movimento comunista mundial”? Exemplos como o de Camus, aliando um temperamento crítico implacável e sem condescendência e uma obra romanesca e filosófica de grande envergadura são cada vez mais raros. Em Camus, coragem moral e correção intelectual conheceram uma excepcional harmonia. Este também foi o caso de Paulo Freire.

O que sugerimos fazer, não é garimpar, aqui e acolá, na obra de Freire, nomes de pessoas que ele, por ter citado possam se credenciar como “influentes” na sua obra. Mas buscar na atmosfera intelectual de uma época, quer dizer, na “contaminação” do ar com certas idéias, alimentando expectativas políticas e sociais, oferecendo conceitos e categorias de análise e explicação, compatíveis com as circunstâncias —ou entendidas como tais— e provocando numa certa intelectualidade as supostas “respostas” que tais conjunturas demandavam. Eis nossa proposta de trabalho.

* * *

É sabido que os anos 50 foram altamente devedores intelectuais dos anos 20 e da discussão teórica (de agudas conseqüências práticas) entre modernismo e regionalismo, discussão completamente banhada nas águas do nacionalismo cultural, da identidade nacional, da cultura popular e na definição cultural e política do “povo”. Se esta “tradição” (ainda recente nos anos 50) foi metamorfoseada em populismo, desenvolvimentismo, revolução social, etc., não podemos, no entanto, negar que suas origens se situam naqueles agitados anos 20. Dois grandes intelectuais se debaterão naquela conjuntura oferecendo ao cenário cultural uma interpretação original de nossa “brasilidade”, seja vincada em molde mitológico —Gilberto Freyre—, seja através de sua tentativa de fornecer novas bases lingüísticas a partir da “cultura popular”, nos oferecendo uma nova concepção do intelectual e de sua função político-ética, como foi o caso de Mário de Andrade.

A tese que aqui defendemos não tem, admitamos, nenhuma novidade: José Eustáquio Romão, em uma das apresentações que fez de Educação e Atualidade Brasileira, observava que “Quando um autor consegue realizar uma síntese original de idéias e concepções adequadas a seu tempo (...), numa síntese epistemologicamente superior, deve ser respeitado como grande pensador”. No entanto, Romão parece não considerar a importância decisiva que certa visão da cultura e do intelectual, florescente nos anos 20, terá sobre aqueles que atingirão a maturidade nos anos 50, como é o caso de Freire.

A pergunta que segue nos parece inevitável: seria possível uma concepção pedagógica como a de Paulo Freire, assentada no trinômio PROBLEMATIZAÇÃO-CONSCIENTIZAÇÃO-TRANSFORMAÇÃO sem que certos motes tivessem sido anteriormente tematizados, tais como as questões cruciais “o que é o povo?”; “que tipo de consciência ele necessita para vir a ser o que ele é?”; “qual o papel do intelectual numa sociedade em transição”?

A atmosfera criada por Mário de Andrade

Sabemos que o termo intelectual sofreu uma radical remodelagem semântica após a publicação, por Émile Zola, do libelo J’accuse, exigindo do presidente da França a revisão do caso Dreyfus, injustamente condenado por traição à prisão perpétua na Ilha do Diabo. Até então a palavra “intelectual” não se referia a nenhum personagem social específico: antes de ser um substantivo, representava a qualidade adjetiva de uma prática. A partir dali, o termo ganhará nova investidura semântica, aliás, negativa: o “intelectual” era alguém que utilizava de seu prestígio no mundo das letras para intervir nas questões sociais, políticas etc., de seu tempo. Ou, em outras palavras, alguém que se metia no que não era de sua conta! O escritor podia perfeitamente fabricar personagens envolvidos com os embates de seu tempo, mas ele mesmo, o escritor, situava-se naquilo que os franceses chamavam de Tour d’ivoire (Torre de Marfim): um afastamento ascético do social (que, em geral, ele detesta!), projetando em seus personagens ressentimento, oportunismo, ceticismo e crítica... Pensem, por exemplo, no modelo de ceticismo e ironia da obra de Machado de Assis (e a acidez crítica de alguns de seus personagens, perfeitamente descrentes no progresso espiritual de nossa gente), ou no oportunismo carreirista de um Julien Sorel em O Vermelho e o Negro de Stendhal. E, no entanto, seus autores permaneceram pessoalmente afastados dos embates ideológicos e políticos que seus personagens enfrentavam.

Exilar-se para produzir uma obra ou engajar-se para transformar seu mundo pareciam, até então, práticas excludentes. Este embate vai ecoar com nitidez nos anos 20: em Karl Mannheim (na sua discussão sobre o lugar social dos intelectuais no interior de uma Sociologia do Conhecimento: o “intelectual” como alguém situado nos “interstícios do social”); em Julien Benda na sua tentativa de devolver aos intelectuais seu papel “clerical”: os intelectuais como homens cuja função era defender os valores eternos e desinteressados da justiça, da razão, da verdade e que traíram tais ideais em função de interesses pragmáticos, políticos e ideológicos; em Max Weber e seu opúsculo sobre As duas vocações —o político e o cientista—, cada uma requerendo uma ética particular, seja de convicção seja de responsabilidade, e defendendo a “neutralidade axiológica” da ciência social.

Sartre, que teve vasta e decisiva influência sobre os intelectuais brasileiros dos anos 50 —Paulo Freire incluído— colocou a pá-de-cal derradeira neste embate agonístico: a ocupação da França pelos Nazistas lhe deu a oportunidade filosófica de definir o “engajamento” como expressão da responsabilidade e da liberdade a que estamos todos condenados. A partir daí o “intelectual” é alguém que pode ser visto distribuindo pasquins nas portas das indústrias, fazendo comícios, assinando petições, participando de passeatas... Em suma: ele se torna um agente político “engajado” e “comprometido”. Vale agora a idéia cara às filosofias da existência do “homem-em-situação”, do “homem e suas circunstâncias” à la Ortega y Gasset, autor tão influente na formação de Freire.

Um destes homens de cultura que foram capazes de criar um ambiente, uma atmosfera intelectual semeadora dos conceitos que marcarão a forma de pensar e as temáticas de gerações que lhe sucederão, foi Mário de Andrade (1893-1945).

Na segunda metade dos anos vinte, Mário de Andrade realizou duas viagens “etnográficas”: uma para a Amazônia e outra para o Nordeste, anotando e fotografando expressões, ritos, estilos e falares da “cultura popular” em busca dos elementos que pudessem oferecer novas bases a uma brasilidade lingüística e cultural. Andrade foi um típico “intelectual orgânico” gramsciano: envolvido diretamente com as classes mais modernizantes do país, pensava a modernidade nacional, não como racionalização burocrática e administrativa de nossas instituições, mas como uma resposta “genuinamente nacional” aos nossos problemas. Problemas que ele identificava, especialmente, na nossa “falta de caráter”, não no sentido moral a que nos acostumamos, mas na acepção de uma nação cuja alma é inautêntica e por isso incapaz de dirigir seu projeto nacional.

O Movimento Modernista, iniciado naquela semana de 22, tinha na letra e no espírito, a prática cultural como forma de libertação dos valores e significados reprimidos e excluídos. Isto dava à “cultura popular” a incumbência de libertar a atividade artística do academicismo, derrubando a segregação entre arte e vida: “abrasileirar o Brasil” significava para Mário de Andrade, desenvolver a memória histórica para fazer coincidir a realidade individual com a entidade nacional: a consciência nacional passava pela superação dos Gonçalves Dias e dos Alencar (poetas brasileiros do século XIX ligados ao movimento romântico) intelectuais divorciados do “seio popular”.

Comentando a obra do compositor Marcelo Tupynambá (1889-1953), pseudônimo de Fernando Álvares Lobo (e autor do Hino Constitucionalista de 1932, O Passo do Soldado), Mário percebe ali, na produção cultural do “povo”, as coordenadas da identidade nacional autônoma: “tudo o que é nativo nasceu e formou-se no seio do povo inconsciente” (prestemos atenção a esta idéia de “povo inconsciente” que, se em Mário de Andrade tem uma semântica cultural —os costumes ou o modo de vida que praticamos sem perceber—, pouco mais tarde ganhará uma conotação político-ideológica com visíveis exigências pedagógicas). Era preciso, como ele mesmo afirmava “criar uma nova práxis”! Utilizando a psicanálise, o marxismo e as teorias antropológicas correntes de Frazer e Tylor, Andrade começa a ampliar seu conceito de cultura popular, indo além das obras artísticas do “povo” e abrangendo um modo de vida, linguagem, costumes, crenças e instituições.

Mário de Andrade detinha uma aguda consciência do nosso subdesenvolvimento, expressa, por exemplo, em um de seus prefácios a Macunaíma: “Depois de pelejar muito, verifiquei que o brasileiro não tem caráter. E com a palavra caráter não determino apenas uma realidade moral não, em vez entendo a entidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes, na ação exterior, na língua, tanto no bem como no mal. O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional”. Surge um Macunaíma sensual, risonho, arlequinal, ambíguo e postiço, mas incapaz de vencer as forças com que luta.

Tudo isto passava por um resgate da língua falada pelo povo, que ele mesmo praticaria em seus escritos (e que gerou muitas críticas e desentendimentos). Numa carta a Carlos Drummond, ele diz que “Não estou fazendo regionalismo. Não estou pitorescando meu estilo. O povo não é estúpido quando diz ‘eu vou na escola’, ‘me deixe’, ‘besta ruana’, ‘farra’, ‘futebol’. É antes inteligentíssimo nessa aparente ignorância porque sofrendo as influências da terra, do clima, das ligações e contatos com outras raças”. No entanto, nesta valorização da cultura e do falar popular, Mário de Andrade evita toda forma de “rousseauísmo ingênuo” em que, segundo ele, caíra Oswald de Andrade.

No entanto, permanece no autor de “Paulicéia Desvairada” os problemas intrínsecos ao uso dos termos “povo” e “popular” que, para além dele, preservará uma ambígua fortuna semântica. Inicialmente adquirindo a notação psicológica do “substrato nacional” (a velha discussão da “alma nacional” ou da “psicologia nacional”), só mais tarde, quando Mário mostrará sua simpatia pelo marxismo, é que o conceito se vinculará a questões de classe e de hegemonia. De qualquer forma, permanece sua crença de que nas formas populares da cultura residem os materiais que iriam transformá-la numa forma de significação artisticamente autêntica e brasileira. O Brasil estava para ser (re) descoberto!

Mas esta (re)descoberta do Brasil que ele anuncia desde sua primeira viagem à Amazônia, também pode ser considerada uma “viagem ao inconsciente coletivo e pessoal, silenciado por tão longo tempo pelo lado ‘doutor” oficial do Brasil”, como assinala numa carta a Manuel Bandeira (1986-1968). A viagem objetiva era também uma viagem interior, como nos melhores Bildungsromanen!

Era o fim, para Mário de Andrade, daquelas concepções pitorescas do “popular”, onde, como diria Antônio Cândido, “tudo termina no exótico, no gorduroso, no apimentado!”. Inicia-se uma nova definição do “popular” que resultaria da constituição de uma nova ordem em que, com o desenvolvimento do capitalismo, o povo e sua cultura, como diz Vivian Schelling, estariam sujeitos a um processo de reeducação, onde a luta, a resistência e a dominação dos grupos envolvidos determinariam a natureza e o significado da “cultura popular” (Schelling, 1991). Não havia, portanto, nenhuma idealização do “popular”, e sua crítica ao “progresso” (que mais tarde se identificará com crítica ao capitalismo) tampouco o levou a separar cultura e progresso material da sociedade. Sua viagem ao Nordeste o fez perceber as condições miseráveis da região, a indiferença do governo, a migração para o Sul sob o flagelo da seca, o que ele expressa através de sua simpatia e solidariedade com a cultura camponesa.

A partir de 1928, após a segunda viagem (ao Nordeste), Andrade entrara numa nova “fase”: redefine o papel do intelectual, do projeto nacional, adere progressivamente ao socialismo e manifesta uma crescente preocupação com a função intelectual e com a relação entre arte e sociedade: a Arte aparece, agora, como “remédio do social”, assim, como a educação aparecerá para Freire como instrumento de libertação. Muda, assim, o papel do artista e sua relação com o público: “o artista socialmente organizado, principalmente nas épocas de grande transformação social, há de sempre contrariar o público, porque por amor desse público pretende transformá-lo e elevá-lo”. Assim como o do “intelectual”, agora definido em termos da classe a qual pertence, participando dos movimentos sociais e elaborando ideologias: “hoje mais do que nunca o intelectual ideal é o protótipo do fora-da-lei. O intelectual é o ser livre em busca da verdade (...) e deve reconhecer a verdade da miséria do mundo. Da miséria dos homens. O intelectual verdadeiro, por tudo isto, sempre há de ser um homem revoltado e um revolucionário, pessimista, cético e cínico: fora-da-lei”.

Mas, que “povo” era este —no entendimento de Mário de Andrade— que precisava de um tipo de intelectual modificado? Tendo nas mãos as teorias antropológicas de Frazer e Lévi-Bruhl (além de Freud), Mário conclui que a “psique coletiva” do povo era estruturada por uma “mentalidade pré-lógica”, responsável pelo caráter mágico do seu pensamento, ao invés de crítico e racional! Eis aqui, um tema recorrente em nosso “progressivismo” político, cultural e pedagógico: a crença em um povo libertador que precisa ainda ser libertado.

Andrade devotou sua vida à construção de uma cultura onde o intelectual e o artista estivessem organicamente articulados com as tradições coletivas de sua comunidade inclusiva nacional: vendo a “cultura popular” como uma forma de conhecimento, como visão de mundo de onde emergem as produção da alta cultura (concepção próxima a dos Românticos alemães do Sturm und Drang), ele se identificou com a cultura do povo, embora fosse um intelectual urbano de elite. Rompia, assim, com a tradição cultural dominante e lançava as bases do projeto nacional-popular, ao qual Paulo Freire oferecerá sua contribuição pedagógica.

Da Arte Moderna à Casa Grande e Senzala

É importante reter que entre 1922 e 1933, quer dizer, entre a Semana de Arte e a primeira edição de Casa Grande e Senzala (Gilberto Freyre) ocorreu uma profunda e duradoura modificação de nossa sensibilidade para as coisas do Brasil. O fato é que, rompendo com aquela “sociologia de gabinete”, execrando nossa cultura e “macaqueando a Europa”, é com Mário de Andrade (mas também com Oswald, Roquette Pinto, Câmara Cascudo) que se inicia uma, digamos, “virada cultural” entre nós e que lançará seus estertores para além de sua época. Praticando Etnografia sem ter formação para tal, mas dispondo de uma sensibilidade elevadíssima para, como músico, perceber as diferentes sonoridades dialetais do português brasileiro, Andrade pode perceber na cultura popular e na língua falada pelo povo, não apenas o esteio de nossa brasilidade —que Gilberto retomará e os dois terminarão por se indispor sobre questões de “paternidade” e “precedência”—. Aquilo que ficou conhecido em nossa história cultural como a “redescoberta do Brasil”, não passou, convenhamos, de uma correção... “oftalmológica”: olhávamos “para cima” (Europa) mirando um alvo inatingível (ou entendido como tal) e passamos a olhar “para baixo” (para o povo).

A idéia de inconsciência permanece presente em nosso ideário e repercutirá nas idéias pedagógicas de Freire sob a forma (despida de seus elementos antropológicos ou psicológicos) de “consciência ingênua” ou “intransitividade”; permanece também a idéia do intelectual como homem de ação, devendo exercer sobre sua época a “função” de elevar aquela cultura popular a patamares mais altos de elaboração, em contato com as classes subalternas, o que faz de Mário de Andrade um típico “intelectual orgânico” e que corresponde aquele ideário elaborado pelo Movimento de Cultura Popular (MCP) do Recife, que teve em Freire um de seus animadores.

É curioso, repitamos, perceber que nesta “virada cultural” ocorre uma transição na forma de ver a cultura do povo, que vai do desprezo às formas folclóricas e arcaicas de que se reveste, às formas paternalistas de relação entre intelectual e massas. Paulo Freire em grande medida tenta evitar este paternalismo, mas ele se torna inevitável em função do próprio papel “esclarecedor” que os intelectuais agora atribuem a si mesmos. Mário de Andrade, no entanto, foi o nome da transição entre o intelectual que descreve (negativamente) o país e aquele que quer transformá-lo pela obra da cultura e que crê num povo capaz de, se alçado aos patamares da “consciência nacional”, orientar nosso “processo histórico”.

Os anos 1950/1960 vão traduzir este conjunto de temas e provocações em programas: seja ele político-ideológico (isebianismo, desenvolvimentismo, nacionalismo), seja ele pedagógico (como “ação cultural para a liberdade”). Mas, aqui, as circunstâncias locais tiveram peso decisivo: em 1955 realiza-se no Recife (Nordeste do Brasil) o Congresso de Salvação do Nordeste, denunciando o “subdesenvolvimento do subdesenvolvimento” e subscrevendo em sua Resolução Final, a “valorização da cultura popular” e a “elevação do nível cultural das massas”; também em 1955, o Recife recupera o direito de eleger diretamente seu prefeito, elegendo um socialista —Pelópidas da Silveira—; em 1958, Pernambuco rompe temporariamente com a tradição coronelística ligada à agropecuária e elege pela Frente do Recife (uma coligação de tendências “progressistas”, apoiada pelo Partido Comunista), o empresário “modernizante” Cid Sampaio; em 1959, além da criação da SUDENE, Miguel Arraes se elege Prefeito do Recife e, pouco depois, inaugura o Movimento de Cultura Popular (do qual Paulo Freire participará inicialmente); em 1962, o Reitor da Universidade do Recife (João Alfredo da Costa Lima) cria o Serviço de Extensão Cultural e convida Freire para dirigi-lo; em 1962, o mesmo Arraes se elege Governador de Pernambuco e interioriza o MCP, desenvolvendo um amplo programa de valorização da cultura popular e de alfabetização de adultos. Assim, da elevação da dignidade simbólica da cultura popular à educação popular, temos um processo relativamente previsível: o Brasil passa a ser entendido como um “problema” (desigualdade, subdesenvolvimento, alienação cultural, dependência); o “bloco histórico” povo-intelectuais (o próprio MCP é uma clara expressão disto) é a etapa necessária para que o povo tome “consciencia” de sua situação histórica e social, preparatória da grande “transformação”. Não estamos longe do tríptico pedagógico freireano!

Mário de Andrade, talvez o mais penetrante e profícuo intelectual brasileiro da primeira metade do século XX, criou, com seus artigos, poemas, pesquisas, rapsódias e estudos um clima de interrogação a respeito de nossa identidade que teve em Paulo Freire um “continuador” por vias pedagógicas próprias e originais. Mário não definiu o jogo, muito menos o seu resultado. Apenas distribuiu as cartas!

A atmosfera “regionalista” (Gilberto Freyre)

As mesmas perguntas feitas por Mário de Andrade (“Quem somos nós brasileiros?”) também foram feitas por Gilberto Freyre (1900-1987), outro intelectual cuja influência também incide na formação das idéias de Freire.

No caso de Freyre e Freire, podemos dizer que o fato deles serem pernambucanos, de terem convivido no mesmo ambiente (Paulo Freire atuou entre os anos 1957/1962 no Centro Regional de Pesquisas Educacionais do Recife dirigido por Gilberto Freyre) pode temperar a história desses dois contemporâneos, mas nossa intenção não é apontar para a ‘influência’ de uma sobre o outro —Freyre sobre Freire: Gilberto Freyre nos anos 1950/1960 já é um autor consagrado (o que não era o caso de Paulo Freire!). Freyre tinha status e poder, construídos através do reconhecimento de suas teses sobre a formação da sociedade brasileira e assim, seus temas —já apresentadas desde os anos 20— possibilitaram um ambiente favorável ao desenvolvimento de outras idéias, inclusive educacionais.

Freyre atuou na formação de um movimento regionalista que mostrava que a “verdadeira identidade brasileira” estava no povo da região nordeste (possuidor de uma cultura “original e autêntica”), o que gerará a tensão entre Freyre e os “modernistas de 22” (o caloroso debate entre Gilberto Freyre e Joaquim Inojosa nos jornais pernambucanos): no Manifesto Regionalista (1926) ao comparar os regionalistas (Recife) aos modernistas (São Paulo), Freyre observou que no Recife houve uma união dos contrários, não “contradições berrantes”. Foi essa união que possibilitou chamar este movimento de “Regionalista-Tradicionalista-Moderno”, pois unia valores tradicionais, regionais com os valores modernos (Freyre, G., 1967: 18). Já os modernistas, dizia Gilberto Freyre, se deixavam envolver pela cultura européia! “Moderno” era seu movimento regionalista, que mudava a forma, porém conservava a substância. Se no movimento modernista era importante digerir cultura européia (Oswald de Andrade) para produzir algo novo, no movimento regionalista gilberteano era prioritário preservar o ‘folclórico’ (Albuquerque Junior, 2009).

E foi com este espírito que Freyre também se aventurou na área de educação. Em 1923, Gilberto se colocava, em artigo publicado no Diário de Pernambuco, contrário à alfabetização de adultos: pensando o analfabeto como “um ser útil e interessantíssimo” (…), preferia “um menestrel dos nossos sertões a toda a legião de poetas meio-letrados cá do litoral”. Para Freyre, o analfabeto guardaria o que existe de genuíno na nossa cultura, e quando chegaram anos 1950-1960, Freyre, espírito conciliador que era, percebeu que suas idéias regionalistas poderiam ser adotadas pela discussão educacional da época e pleiteou, finalmente, a necessidade da alfabetização da população. Ao elaborar uma certa idéia de educação, o fez, no entanto, com contornos bastante peculiares: um sistema educacional com práticas que conciliassem os valores urbanos e rurais; uma professora com habilidade em “extrair” das populações a sobrevivência de “culturas primitivas” que ajudassem a despertar o gosto pelo que era autenticamente “seu”; um ato de ensinar que levasse em conta o aproveitamento das “superstições” da população e, em contrapartida, desprezasse outras. Breve: uma educação “ao seu modo” que supunha que as populações analfabetas (em especial do Nordeste) guardavam um estoque ainda inexplorado de originalidade, onde residia o melhor de nossa brasilidade!

E foi nessa idéia de “preservação cultural” que Paulo Freire foi buscar seu leit motiv educacional, no sentido de preservar algo de genuíno e original existente na ‘cultura’ do povo que precisava ser alfabetizado. E para isso seria necessário ‘extrair’ palavras que fizessem parte do cotidiano desse povo. Foi assim que se instituiu o Método do professor Paulo Freire, base para formulação do seu Sistema.

Entre a conciliação e a originalidade

Gilberto Freyre era reconhecidamente um hábil negociador e conseguia conciliar perspectivas divergentes (Albuquerque Junior, 2009): foi assim com o Movimento Regionalista (tradicionalista e moderno), e com isso ele não só conseguiu produziu o efeito de uma união adocicada dos contrários, mas também conseguiu passar a idéia de originalidade do próprio movimento (distanciando-se dos modernistas). E foi nessa atmosfera de conciliação e originalidade onde se moldou o método e o sistema Paulo Freire.

O professor Jarbas Maciel (assessor de Freire no Serviço de Extensão Cultural da antiga Universidade do Recife) elaborou a fundamentação teórica do “Sistema Paulo Freire” tentando conciliar áreas de conhecimento bastante... contrastantes (Lógica, Cibernética, Semiótica, Antropologia, Sociologia, Teoria Sistêmica, Teoria do Reflexo Condicionado etc), num amálgama ideológico onde comparecia, inclusive, preceitos e crenças religiosos (Maciel, 1983)!

Desde os objetivos1 do Serviço de Extensão Cultural (SEC), instituição que Paulo Freire ‘criou’, dirigiu, pôde fazer às experimentações do seu método, as questões culturais foram recorrentes. Mas não se tratava de uma abordagem cultural qualquer, mas algo que visava levar a Universidade a agir junto com o povo, desenvolver sua ‘”cultura e a mentalidade regional”. E foi vaticinando uma educação voltada para o local que o método (situações e palavras geradoras) e o Sistema Paulo Freire foram elaborados. Mas o método (inserido no sistema), e sua preocupação de uma educação voltada para o contexto, formulou uma certa ideia de região, de cultura e de um povo (que precisava ser educado), ajudando a compor e consolidar o ideário regionalista freyreano.

O método inicia a partir de encontros informais entre “educadores e analfabetos”, necessários para coletar o “universo vocabular do grupo”. Se “extraí”, nesses encontros, palavras que fazem sentido para o povo, mas não qualquer palavra, de qualquer povo, mas d um povo que, supostamente, tinha “exuberância na sua linguagem”. Os encontros/entrevistas eram cheios de “anseios, frustrações e descrenças” e evidenciavam “certos momentos estéticos da linguagem do povo” (Freire, 1963: 16-17). Um povo “judiado” pela seca do sertão, que vive dias duros na região Nordeste, que tem uma fala, uma linguagem peculiar. Um povo que traz autênticas palavras, pois vivem em “localidades diversas de Pernambuco” (Cardoso, 1963: 74).

Fez-se necessário também selecionar as palavras, pois os vocábulos precisavam constituir um “engajamento”, uma ligação com o contexto local, regional e nacional. O vínculo local dos analfabetos ajudava a torná-lo mais crítico (discutir os problemas, conscientizar-se e politizar-se) e conduzia não só à alfabetização (letramento), mas a ter uma consciência crítica. Aurenice Cardoso citou as palavras consideradas regionais escolhidas em diversos locais de Pernambuco: tijolo, voto, siri, palha, biscaite, cinza, doença, chafariz, máquina, emprego, engenho, mangue, terra, enxada, classe..., palavras mais “autênticas”, mais ligadas ao mundo em que os analfabetos viviam (Cardoso, 1963).

A terceira fase do método tratou da “criação de situações existenciais, típicas do grupo que se vai alfabetizar”. Estas situações eram propícias e desafiadoras para que o grupo de alfabetizandos pudesse discutir os problemas regionais e nacionais. Cada situação era conduzida por “Fichas” (de roteiro e de decomposição das famílias fonêmicas) para facilitar a discussão do grupo (Cardoso, 1963: 75-76).

O método do professor Paulo Freire, através das palavras geradoras e situações existenciais, ganhou repercussão nacional, e chegou a ser proposto para ser efetivado pelo Ministério da Educação em todo o território brasileiro. Pode-se perceber que, através do que evidenciou sobre região, povo e cultura, Paulo Freire, aceitando e acompanhando o ideário regionalista que Gilberto Freyre propusera desde os anos 30, cunhou também uma identidade para um povo analfabeto que precisava ser alfabetizado e libertado de sua condição subalterna: um povo idealizado pelos intelectuais, povo “típico”, original, autêntico, que só existiria aqui, na região Nordeste!

Conclusões

No livro A angústia da influência: uma teoria da poesia (1991), Harold Bloom observou que há autores que são curiosamente influenciados por alguns de seus próprios livros, livros que alcançaram uma tal notoriedade que o autor se torna “prisioneiro” deles, numa estranha situação em que não são outros autores ou outras obras que exercem poder sobre um autor, mas a sua própria obra: impossível, depois de tê-la escrito, escapar ao poder de sua influência. Pedagogia do Oprimido (1968), mais do que qualquer outra obra de Freire, parece que exerceu sobre seu autor uma carga e um peso que fez com que tenhamos a impressão de que toda a obra anterior a ela pareça ser uma “preparação” de seu advento, e toda a obra posterior pareça um desdobramento, uma reflexão sobre ela, complementada com outras “pedagogias” (da autonomia, da esperança, da indignação...). Assim, o problema da influência que certas idéias, atmosferas ou autores podem exercer sobre intelectuais que lhes são pósteros é mais complexo do que a simples linearidade histórica pode insinuar (“quem veio antes influencia quem veio depois”).

Supomos, neste ensaio que se encaminha para o fim, que uma determinada apropriação de uma tradição fornece a singularidade intelectual de uma obra. Reunidas estas influências ou tradições temáticas por um autor —no caso, Paulo Freire— nossa “angústia” foi mostrar que os ingredientes que ele usou não estavam simplesmente “aí”: eles foram produzidos e selecionados para servir a um determinado programa político-cultural. Mário de Andrade e Gilberto Freyre foram dois destes intelectuais que criaram um território, um continente de investigação temática, envolvendo uma determinada ideia de povo e da sua cultura, banhada na legítima preocupação de se obter uma “brasilidade autêntica” e sugerindo que isto poderia ter efeito decisivo na definição de um projeto político nacional. Ambos viram no povo e na sua cultura os elementos indispensáveis a esta tarefa. Paulo Freire lhe deu uma feição pedagógica inovadora.

Referências

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» Andrade, M. (1983). O turista aprendiz. São Paulo, Duas Cidades.

» Albuquerque Junior, D. M. de (2009). A invenção do Nordeste e outras artes. 4ª ed. São Paulo, Cortez.

» Bloom, H. (1991). A angústia da influência: uma teoria da poesia. São Paulo, Imago.

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» Freyre, G. (1967). Manifesto Regionalista. Recife, Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais/MEC.

» Freyre, G. (2016). Tempos de Aprendiz. E outros tempos. São Paulo, Global.

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» Rosas, P. (2004). Fontes do pensamento de Paulo Freire. Recife, Editora Universitária.

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» Toledo, C. N. (1978). ISEB. Fábrica de ideologia. São Paulo, Ática.

» Veras, D. B. (2010). Sociabilidades letradas no Recife: A Revista Estudos Universitários (192-1964). Dissertação (Mestrado em História). Recife, UFPE.

Flávio Brayner

Professor Titular de Filosofia da Educação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE, Brasil). Doutor e Pós Doutor em Sciences de l´Education. Université de Paris V. Sorbonne. Ex Maître de Conférence Invité da Université de Montpellier III-Paul Valéry. Ex-Secretário Adjunto de Educação da Cidade do Recofe-Pernabuco. Brasil. Membro do Grupo de Trabajo de Educação Popular da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED). flaviobrayner@hotmail.com

Kelma Beltrão

Doutora e Pós-Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco. Coordenadora educacional da Secretaria de educação da Cidade de Jaboatão (Pernambuco, Brasil). Prêmio Antônio de Brito Alves da Academia Pernambucana de Letras. Melhor Ensaio de 2018) Membro do Grupo de Trabajo de Educação Popular da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED).
beltraokelma@yahoo.com.br


1 Ver Boletim de Atividade do SEC, 1962 apud Veras, 2010.