Apresentação do Dossiê: “Figurações da malandragem na literatura brasileira”

Carlos Augusto Bonifácio Leite1

Universidad Federal de Río Grande del Sur, Brasil
guto.leite82@gmail.com

Não é simples precisar o lugar da malandragem na cultura e na literatura brasileiras – também no teatro, na canção e no cinema, como linguagens afins. Para além da recuperação de certa genealogia malandra, como faz Antonio Candido, em “Dialética da malandragem”, da figura folclórica de Pedro Malasartes a algumas das principais narrativas do modernismo paulista, Macunaíma e Serafim Ponte Grande, é possível identificar momentos em que o malandro figura como certo herói nacional popular, sobremodo associado à construção do samba como o gênero musical brasileiro por excelência, até o momento em que a recusa ao trabalho não se mostra como militância suficiente e as forças progressistas vão questionar a validade do malandro como figura de resistência.

O caminho das formas estéticas é menos direto do que o de análises mais ou menos críticas do malandro e da malandragem, portanto mais profícuo. Amparada em sua relativa autonomia ante o processo social, e ante ideologias dominantes ou recessivas, as obras nos delegam figuras mais ambivalentes e que, ao mesmo tempo, operam além dos limites literários. O ângulo mesmo de pensarmos por meio de figuras evoca, numa perspectiva benjaminiana, um olhar para aqueles que, como o flâneur, a passante, o dândi, dentre outras, restam quando da aceleração das forças materiais rumo a uma sociedade de classes stricto sensu, um modo de flagrar a história não em razão de seu fim, mas num instantâneo. Logo, impressiona que sejam tantas, tão longevas e com tanta força as figuras na literatura brasileira do século XX: o malandro, o caipira, o retirante, o gaúcho. Seriam indícios de que nunca fomos, com efeito, uma sociedade de classes? Ou acompanhamos, na realidade, a ação de críticos e autores quanto a isso, por meio de seus ensaios e obras?

Este dossiê começa justamente com uma pergunta análoga no ensaio “Onde cabe o malandro?: a hipótese Fragoso”, de Luís Augusto Fischer. Em seguida, em “Memórias de um sargento de milícias: ninguém aprende samba no colégio”, elaboro algumas hipóteses sobre a possibilidade de pensarmos no romance de Manoel Antônio de Almeida como um romance de formação. Depois, em “O Espírito da Escola de Samba nos corredores da Rádio Nacional”, Walter Garcia aborda as relações entre formas e figuras relacionadas ao samba no filme Rio Zona Norte (1957), de Nelson Pereira dos Santos. No quarto ensaio, rumamos para os subúrbios, isto é, fora da dicotomia entre praia e morro, para encontrar o teatro rodrigueano, em “Gatinhos em transe e o patriarca atroz: um drama de Nelson Rodrigues”, por Homero Vizeu Araújo. Por fim, em “Germano Mathias e um legado da nossa malandragem”, Rachel Sciré analisa alguns aspectos da obra desse importante compositor, e por que não dizer?, malandro paulista, sobremodo a maneira como é elaborada a noção de malandragem em suas canções.

A excelência dos ensaios aqui reunidos (salvo o meu próprio, evidentemente) acaba se tornando indício inconteste do vigor que esse recorte possui para pensarmos literatura e cultura brasileiras. É provável que não estejamos mais em tempos de bossa e astúcias, que seriam permitidas por certa margem ao balanço que o liberalismo concede em seus modos de produção. A radicalização neoliberal, por sua vez, caminha para o conflito aberto, o que o malandro, para bem e para mal, evita a todo custo. De toda forma, ensaiar seu cabimento e suas variações ao longo dos séculos dezenove e vinte talvez nos ajude a encontrar a melhor maneira de intervir no presente com fito a uma sociedade mais justa; este que é, desde o princípio, o espírito da teoria crítica.


1 Professor de Literatura Brasileira (UFRGS). E-mail: guto.leite82@gmail.com Pesquisador na área de canção popular, modernidade e cinema. Compositor de dois álbuns autorais e poeta de seis livros publicados.