Onde cabe o malandro?: a hipótese Fragoso

Luís Augusto Fischer

Universidad Federal de Río Grande del Sur, Brasil
fischerl@uol.com.br.

Fecha de recepción: 7/6/2021.
Fecha de aceptación: 1/7/2021.

Resumo

O ensaio propõe ler a tese dos “Quatro poderes”, de Fragoso e outros, como ponto de partida para uma nova descrição das posições disponíveis para os letrados, no período colonial e durante o império brasileiro. No contexto dessa hipótese, entra em consideração a figura do malandro.

Palavras-chave: Os quatro poderes; posição social dos letrados; Brasil colônia e Brasil império; o malandro e seu lugar na dinâmica social do Rio de Janeiro.

Where does the malandro fit?: the Fragoso’s hypothesis

Abstract

The essay aims to read the thesis of “Four Powers”, by Fragoso and others, as a starting point for a new description of the positions available to the literature people, in the colonial period and during the Brazilian empire. In the context of this hypothesis, this essay considers the figure of the malandro.

Keywords: The four powers; social position of the literatura people; Colony Brazil and Empire Brazil; the malandro and his place in the social dynamics of Rio de Janeiro.

Seja qual for o conceito que se empregue, o dito malandro parece sempre escapar entre os dedos analíticos. Ele existe, como figura retórica e antes como tipo social, desde tempos – quantos, é matéria controversa. Por outro lado, sua existência nos fatos e na língua não se deixa apreender de modo claro pelos conceitos sociológicos. É sempre o famoso “homem livre” num contexto escravocrata? É um marginal? Um “social climber”, arrivista, ao menos em potencial? Um derrotado pela vida? Alguém sem dinheiro ou relações sociais relevantes, que porém sabe como manter-se à tona? Alguém que está à margem? Mas à margem de quê?

Essa indefinição guarda uma grande riqueza: é como uma pedra no caminho de nosso entendimento da sociedade e da linguagem brasileiras, tendo lugar garantido em uma série nada desprezível de realizações – estão aí a Ópera do malandro, de Chico Buarque, no campo da canção para teatro, “Malandro é malandro, mané é mané”, de Bezerra da Silva, no campo da canção, ou o ensaio de Antonio Candido intitulado “Dialética da malandragem”, no campo da crítica literária, para nem falar da quantidade de ditos e provérbios correntes na fala brasileira – “Malandro é o saci, que não dá rasteira pra não cair”, “Malandro é o gato, que já nasceu de bigode” e tantas outras, incluindo clichês nefastos, machistas e ultrajantes, como aquele que sugere haver um tipo social da “mulher de malandro”.

O ensaio que aqui começa não imagina poder resolver o problema conceitual do malandro, na sociologia, na história ou na cultura letrada. Mas tem uma ideia que pode ajudar a pensar o caso. A volta vai ser grande, mas não é malandragem: vai-se apresentar aqui, em linhas gerais, uma hipótese historiográfica de grande fôlego, que li em ensaio de João Luís Fragoso, em torno da ideia de que o Antigo Regime, em Portugal e no Brasil, se estrutura em quatro poderes. Só aqui já temos alguns termos que vão requerer esclarecimento, a começar por “Antigo Regime”. Mas calma, vai dar tempo para tudo.

Das ideias de Fragoso, homenageado no subtítulo deste ensaio, por minha conta proponho algumas extrapolações, derivações e desdobramentos, que serão capazes, creio, que ajudar a pensar na literatura produzida no Brasil desde o começo da presença portuguesa aqui até pelo menos o final do Império e começo da República. A literatura, aqui, significa muitas camadas: os textos produzidos, seus autores, mas também os caminhos concretos de sua circulação, desde as editoras e livrarias até, não menos, os leitores, os escassos leitores daquela sociedade que de algum modo planejou a ignorância, o iletramento, a exclusão, que apenas agora estamos começando a sepultar.

Se vamos alcançar, com precisão e propriedade, o malandro como figura da sociedade, é até aqui uma dúvida. Mas pode confiar que esse ponto estará o tempo todo em nosso horizonte. Em palavras mais abstratas: trataremos aqui de desenvolver uma ideia para pensar a literatura brasileira, especialmente nos séculos XVI a XIX, a partir de formulações historiográficas novas. A intenção de fundo é, ainda e sempre, desenvolver um modelo conceitual e historiográfico para uma hipotética nova história da literatura no Brasil (e não só no Brasil, mas na América do Sul, na América e no Novo Mundo em geral).

O foco, aqui, é essencialmente buscar uma nova descrição da sociedade brasileira, em sua dimensão social propriamente dita (as classes, os grupos, sua forma e dinâmica, as ideologias), mas também na dimensão política (formação do Estado, posição relativa das classes e grupos sociais na luta pelo poder, em várias instâncias) e na dimensão econômica (arranjos e circuitos de produção), com vistas a considerar a produção literária nesse ambiente – posição social, política e ideológica dos escritores, padrões de circulação de livros e ideias, formas literárias em particular. Procuraremos manter no horizonte e até acentuar a perspectiva não-nacionalista e comparativa, em todos os casos internacionalista, mesmo quando dedicada a matéria local brasileira.

Novas perspectivas

Para pensar a sociedade brasileira entre o século XVI e XIX, de forma a melhor entender a literatura em todas as suas dimensões – sua existência concreta como produção (autor, editor) e leitura (o leitor e os meios disponíveis), assim como sua existência concreta como estrutura –, será preciso uma moldura historiográfica nova.

No campo da história política, habitualmente temos uma macrodivisão, tendo como centro o ano de 1822, com a Independência: até ali não havia Brasil propriamente, mas uma colônia portuguesa na América, e a partir dali passou a haver um país independente, o Brasil. Subdivisões dessa grande distinção ajudam pouco: muda pouco, em termos substantivos, falar do tempo das Capitanias, do Governo Geral, depois das sucessivas alterações de estatuto do futuro Brasil, já na virada do século XVIII para o XIX. Da mesma forma não se avança muito na descrição das condições políticas desta colônia que vira país falar de eventuais guerras civis e revoltas aqui e ali, e o mesmo acontece com as pendengas de fronteira, por exemplo com o Tratado de Madri, de 1750.

Ocorre que há umas estruturas sociais e políticas que atravessam praticamente incólumes todo o largo período, da chegada dos portugueses até a República. Por certo que com a Independência se transfere o centro de poder, de Lisboa para o Rio de Janeiro, e que aqui se estrutura um Estado nacional complexo, precisando lidar com fronteiras, moeda, administração, exército, etc. Até mesmo com um conceito de povo (os indígenas sem contato com a civilização envolvente fariam parte do novo país? Seriam inimigos dele?) precisou ser posto em questão. Mas vamos nos fixar no que permanece.

Neste plano das permanências vamos encontrar duas grandes e fortíssimas instituições, que são políticas e sociais, mas também são econômicas e culturais. Nem sempre são postas em primeiro plano na interpretação da história, em qualquer plano; mas aqui vamos postular que são elas que devem comandar o trabalho de análise.

O que unifica esse tempo longo, que envolve colônia e império independente, e residualmente a primeira República, são basicamente duas instituições – a escravidão e o modo Antigo Regime na estruturação do estado.1 Certo, antes de 1822 estaremos falando do estado português, uma monarquia polissinodal (logo explicaremos o termo), e depois daquele ano em um estado brasileiro, com o império. Tese essencial para compreender o que se vai ler: essas duas estruturas se chocam com a modernidade liberal, com suas exigências ideológicas, políticas, econômicas e também literárias; mas é mais o Antigo Regime do que a Escravidão que se choca com ela (aqui está uma divergência essencial do ponto de vista aqui apresentado com a consagrada tese das “ideias fora do lugar”, de Roberto Schwarz).2

Muita gente de alta qualidade apontava já há tempos para permanências de grande relevo, nas estruturas da vida brasileira, passando por cima da Independência. Fiquemos aqui com dois grandes historiadores e ensaístas. Sérgio Buarque de Holanda, no clássico Raízes do Brasil (1936), apontava já para alguns aspectos, que vão citados aqui de modo sumário. No capítulo 3, o historiador afirma que a única revolução brasileira foi a Abolição, que seria então um verdadeiro marco de mudança. Lembra que houve reformas importantes a partir de 1851 – regulação das Sociedades Anônimas, recriação do Banco do Brasil para crédito e emissão, a implantação de linhas telegráficas e de estradas de ferro. Teríamos aqui, então, outra data para assinalar mudanças de porte, no meio do século XIX, não antes.

No famoso capítulo 5, “O homem cordial”, Sérgio Buarque defende toda uma tese sobre a incompatibilidade entre o Estado (quer dizer o Estado Moderno) e a lógica familista que está na raiz da dita cordialidade. Em outras palavras, o capítulo reconhece, ainda nos anos 1930, a existência de uma figura como esta, o homem cordial, que seria o sintoma de uma concepção arcaica de Estado, compreendido como uma extensão do poder familiar, e por isso mesmo o autor luta, nas entrelinhas, pela modernização do Estado, a favor da implementação de uma lei impessoal e universal, fora do alcance da dita cordialidade.

O outro pensador e Raymundo Faoro. Em Os donos do poder, livro editado em 1958 e bastante aumentado em 1975, o autor aponta fortes fatores de continuidade, muito em particular nas estruturas de mando e controle burocrático, quer dizer, nas instâncias da macropolítica. Uma delas é a continuidade da burocracia de D. João VI para muito além do episódio da Independência, que garantiu a continuidade da lógica do Antigo Regime por sobre essa mudança. Outro dos fatores de permanência apontados por Faoro é a peculiar situação de o monarca do novo país dispor de uma autoridade que preexiste ao pacto constitucional e ao pacto social implicado – sabemos que D. Pedro I jurou condicionalmente aceitar o resultado da Assembleia Constituinte de 1823, que ele depois dissolveria para impor uma constituição toda sua, com aquele nefasto Quarto Poder, privativo do Monarca, fora do alcance de qualquer lei e dispondo de poder de veto absoluto sobre qualquer decisão, legislativa ou judicial.

Além disso, lembra Faoro, a unidade do novo império, o brasileiro, foi obtida não por pacto federativo, mas por lealdade ao monarca, num processo muito semelhante, em essência, ao que vigorava no império português, com sua realidade multicontinental. Finalmente, mas não com menor importância, Faoro trata o alto funcionalismo, chamado por ele de “estamento burocrático”, como uma forma de aristocracia, uma “nobreza funcionária”, que retarda a modernização do Estado, complementando a velha ojeriza ao trabalho manual, à produção burguesa, às chamadas “ocupações mecânicas” que, por exemplo, impediam um indivíduo com essas marcas de ser candidato às câmaras municipais brasileiras.

Em todos os aspectos, Faoro e Sérgio Buarque estão mencionando traços, estruturas, de longa duração, que em nada se abalaram quando da Independência. Com esses elementos, temos mais capacidade de enxergar o que aqui neste ensaio se postula.

Mas ainda antes, vá outro parêntese aqui: pode parecer muito estranha essa postulação, que pula por cima da Independência para enxergar um continuum forte entre os séculos XVI e XIX. Para argumentar com Marx, é preciso ver que as instituições da superestrutura têm ritmo diverso daquele da infraestrutura. Todos lembram da indagação marxista sobre a permanência de sentido de obras como as epopeias homéricas em plena era industrial – ocorreu ao grande pensador distinguir entre esses dois ritmos em grande parte por causa de instituições como a Igreja, a literatura, etc.

Em outra escala e por outra matriz de pensamento, vale a pena conhecer uma postulação cronológica mais ousada ainda. Vamos encontrá-la num conhecido pesquisador, crítico e professor de literatura, João Adolfo Hansen. No recente Agudezas seiscentistas e outros ensaios (editora da USP), Hansen não centra seu interesse em debate historiográfico, quase ao contrário – os vários ensaios ali reunidos se dedicam a estudar a literatura que costuma ser chamada de “barroca”, designação rejeitada enfaticamente pelo autor, que tem uma longa e produtiva história de combate ao que chama de “apropriações anacrônicas”, leituras que tomam de textos daquele mundo e os leem segundo pautas nascidas ou consolidadas apenas a partir de meados do século XVIII.

Hansen tem interesse nas formas da escrita, poética ou não, daquele mundo anterior a Kant, ao Iluminismo, a Pombal, à Independência norte-americana, à Revolução Francesa, à Declaração Universal dos direitos do homem. Um mundo – como o de Gregório de Matos, sua especialidade – em que não cabe pensar no autor como um indivíduo, nem mesmo como um criador, dotado de subjetividade como a que temos nós, mas sim como um conjunto de regras classicistas virtualmente independentes da subjetividade, da liberdade moderna, da história concebida como ação deliberada do homem.

Já em seu clássico A sátira e o engenho (1989) estava esse ponto de vista. Hansen atacava os que queriam ver na poesia obscena de Gregório de Matos qualquer coisa de libertino, quando o poeta estava jogando, diz ele, o jogo da convenção retórica do tempo. A leitura hippie seria anacrônica, uma “ruína do maio de 68 que na pornografia dos poemas erige o desejo absurdo de liberação de toda norma” (p. 307).

Os ensaios do novo livro vão por esse mesmo caminho. São eruditos e inteligentes, mas não pedantes. Mas aqui, longe de querer fazer uma resenha, vamos focar apenas uma postulação que precede os ensaios. Com vistas as debate historiográfico, interessa aqui a proposta de Hansen de “um século XVII que dura cerca de duzentos anos”, vindo pelo menos desde 1580 (início da União Ibérica) até 1750 (Pombal), senão até a Missão Francesa (1816), diz. Um século de duzentos anos, eis a proposta de um rigoroso historicista. Como assim? Por quê?

Primeiro de tudo, porque Hansen quer evitar o termo “barroco”, anacrônico, segundo ele. Segundo, porque o autor está pensando não apenas em estilo, mas numa forma mentis, uma mentalidade que é também uma linguagem. Terceiro, digo eu, porque ele tem uma nítida barreira contra o qual pode medir seu criativo século de 200 ou 250 anos – a modernidade, que se configura na revolução industrial, no liberalismo, no romance, no nacionalismo moderno, no estado burguês.

No debate historiográfico, essa postulação de Hansen ecoa o debate que procura repensar o Antigo Regime na história brasileira. Esse longuíssimo século XVII, lembrando as longas durações de F. Braudel, parece ser o mesmo da vigência do Antigo Regime – o regime denominado assim na guerra retórica da Assembleia francesa em 1789, mas velho de alguns séculos, o regime baseado na agricultura e na expansão marítima europeia, um mundo com grande carga feudal, aldeã, estática, analfabeta, em que o Estado, corporativo, concedia mercês e privilégios, mantendo rígida hierarquia social, com escassa mobilidade social, por fora das, e muitas vezes contra as, leis do mercado burguês.

Dando um pequeno spoiler: esse Antigo Regime encarnou mais uma vez, para nosso azar cósmico, no estado brasileiro organizado no pós-Independência, com o Quarto Poder e todo um arsenal de privilégios e mercês. Tudo isso mais a permanência da escravidão – que porém, não foi, nem nos EUA, incompatível com o liberalismo, como postula, por exemplo, Edward Baptist, o recém-traduzido A metade que nunca foi contada: a escravidão e a construção do capitalismo norte-americano. Só em 1850, com a extinção do tráfico, senão em 1888, com a Abolição, é que o cerne do Antigo Regime será atingido (mas restos dele estão ainda hoje zumbindo por aqui, nas altas Cortes, nos privilégios, nos monopólios).

Ocorre que a partir de 1760 começa a haver novidades no plano da literatura, de mãos dadas com a política, na colônia brasileira. Tomás Antônio Gonzaga e, mais que ele, Basílio da Gama, Silva Alvarenga e Domingos Caldas Barbosa, dão já notícia de uma subjetividade e uma dicção modernas, não mais à moda do Antigo Regime em seu “longo século 17”, este que Hansen postula ter durado 200 anos. Toda a luta pela validação do Romantismo está do mesmo lado, o lado moderno. Ainda haveria um suspiro neoclássico no final do século XIX, um fenômeno algo “barroco”, no Parnasianismo – também ele um jogo de convenções distante da tarefa de representar o real, embora já atravessado do individualismo burguês –, mas era uma batalha perdida.

Assim, a elástica tese de Hansen, com esse século XVII que dura de 1580 até Pombal, em 1750, ou até a Missão Francesa, em 1816, é muito inspiradora. Com essa perspectiva em mente, fica mais nítido pensar na produção literária concebida sob a regra “barroca”, quer dizer, pré-moderna (não, nada que ver com “pré-modernista”, esta categoria imperialista com que a crítica e a historiografia modernistocêntricas paulistas rebaixaram a obra de gênios complicados do Brasil, como Euclides da Cunha, Lima Barreto, João do Rio e outros), assim como se torna muito mais claro o lugar do escritor e, mais genericamente, do letrado, naquele tempo. Por contraste, esse longo século XVII ajuda também a entender o tamanho da virada que começa a ocorrer com certos escritores do chamado Arcadismo, já marcados por uma visão de mundo e uma concepção intuitiva de literatura que devemos tomar como solidárias com a mentalidade romântica, que se desenvolve de então em diante, primeiro na Europa, depois aqui.

No que interessa aqui, este parêntese se encerra com a evocação do estranho, mas consistente XVII e durou uns 250 anos, de 1580 a 1820 ou mais. Hansen, sem atenção ao que aqui se discute, prestigia uma mudança decisiva em todo o Ocidente, que podemos chamar aqui de Modernidade liberal, diminuindo a importância de datas habitualmente tomadas como marcos, seja da história econômica (a extração do ouro no Brasil), da história política (a Independência), da história literária (a data das edições de livros tidos como revolucionários, mudando fases etc.).

Escravidão e antigo regime

Voltemos ao centro da conversa. Falamos acima de duas permanências decisivas entre os séculos XVI e XIX, fortes o suficiente para justificar sua consideração no centro de uma revisão historiográfica: a escravidão e o modo político Antigo Regime do estado, em Portugal e depois no Brasil.

A escravidão é um tema cada vez mais bem descrito, em várias dimensões, pela historiografia atual, impondo a revisão do que se sabia. Algumas coisas já eram óbvias, como a tardança da emancipação no Brasil, apenas em 1888, e a intensa presença de escravizados no espaço urbano cosmopolita, exemplarmente no Rio de Janeiro. Não é pouca coisa, em termos de vida cultural, para ficar apenas nesse plano: a maior cidade brasileira, um dos mais importantes portos das Américas, contava com milhares de escravizados trabalhando em dezenas, talvez centenas de ofícios os mais variados, nas casas e nas ruas, muitas vezes como escravos de ganho, situação em que contavam com a virtualidade da emancipação individual.

Apontemos algumas das novas certezas, agora nítidas, neste assunto:

1) a natureza sul-atlântica da empresa escravagista, portanto uma condição não nacional; essa realidade implica levar em conta uma dinâmica supranacional ao pensar a dimensão local;

2) as significativas variações dos regimes concretos de vida de escravizados, ao largo do imenso território brasileiro, com importantes diferenças entre campo e cidade (nesta havia, por exemplo, certa possibilidade de mobilidade social, via miscigenação, alforrias, etc., assim como possibilidade de contatos e mesmo de organização cultural, religiosa e/ou política, mobilidade virtualmente inexistente no eito);

3) a gerência local da estrutura do tráfico (contra a velha tese de Caio Prado e outros, está claro hoje que o controle do negócio estava no Brasil, pelo menos a partir de fins do século XVIII; também está claro que por muito tempo, ao menos durante o ciclo do ouro e até 1830, era o traficante que estava no topo da hierarquia econômica brasileira, não o fazendeiro latifundiário – o traficante era a elite econômica verdadeira, e o capital escravista tinha grande dinâmica, inclusive para financiar a compra de peças por produtores);

4) a grande difusão da propriedade de escravos, com incontáveis plantéis de poucos escravos (os grandes plantéis eram a exceção).

Todas essas marcas seriam encontráveis em outros lugares, para além do Brasil; mas é bem provável que aqui tenha havido um mix desses traços em escala única – especialmente em dois elementos, a miscigenação e o regime de alforrias, que têm sido apontados como únicos, exclusivos do Brasil, em importância, no contexto amplo da escravidão moderna. E essa combinação característica da vida brasileira deve ser considerada no cenário que estamos aqui reconstruindo.

O outro tema, para nós, aqui, mais importante ainda, é o Antigo Regime. Essa expressão é designação clássica para os estados feudais e/ou pré-revolucionários (sobretudo antes da independência dos Estados Unidos, em 1776, e da Revolução Francesa, em 1789), que foi retomada e ressignificada no momento atual da historiografia sobre o Brasil, para o tempo da colônia (e, acompanhando algumas indicações nessa direção por parte de alguns, eu acho que deve ser estendida para todo o tempo do Império, como adiante comentaremos). Assim:

1) o Antigo Regime vê a desigualdade social como parte da natureza, e, portanto, não se estrutura nem remotamente em função da redução da desigualdade ou da mobilidade social;

2) de fato, ele vive da desigualdade e de sua reiteração no tempo;

3) tem como pressuposto o fato de que o monarca está fora do alcance da lei, dos tribunais, quando existem; por outro lado, ele é a cabeça da estrutura toda, e só ele confere sentido a cada umas das partes – o que tem sido chamado de “visão corporativa”, um conceito de origem aristotélica;

4) não é uma estrutura monolítica: tem vários níveis em sua estrutura, com jurisdições e competências muitas vezes conflitantes, e, portanto, depende de negociações, mesmo entre os planos mais altos e os mais baixos, assim como entre metrópole e colônia; em regra, a cabeça, isto é, o monarca e seus conselhos próximos são instâncias reguladoras decisivas, que subordinam eventuais iniciativas vindas da sociedade aos seus desígnios;

5) ele funciona mediante concessão de mercês, privilégios e monopólios, a indivíduos ou empresas; no longo prazo, sua existência depende da expansão do império, porque na expansão aparecem mais oportunidades de indivíduos realizarem ações merecedoras de mercês, por bravura ou outro motivo, e oportunidades de empresas trabalharem, explorando um novo produto, um novo mercado, uma nova demanda de fornecimento, etc.;

6) ele se opõe, portanto, à dinâmica de mercado (“livre”), ou, em outra formulação e outro nome: o Antigo Regime se opõe à Modernidade.

Esses traços marcam fortemente toda a colonização portuguesa na América e todo o tempo do Império brasileiro: um Estado altamente centralizador que inibe ativamente a dinâmica capitalista, moderna, nascida na sociedade. Definem também o patrimonialismo característico do Brasil, que Faoro definia dizendo que as elites que chegavam ao poder não se sentiam como representativas de um setor social ou de uma visão nascida na sociedade, mas ao contrário passavam a se considerar donos do poder, usufruindo dele para seu benefício próprio.

Completemos essa passagem com duas outras observações, que se ligam a um espaço geográfico específico que nos diz respeito. Portugal, nossa metrópole, obriga a considerar aspectos objetivos muito diversos de outras metrópoles europeias com colônias na América: Portugal era um país pequeno, pobre, sem população nem tecnologia relevante (com exceção daquela de navegação, que foi decisiva num contexto bem específico, na arrancada das Grandes Navegações), tendo-se valido quase que apenas de sua posição geográfica e da singularidade de o país ter conseguido muito cedo organizar uma estrutura de estado nacional, relativamente a outros países da região. Dessas características, que se poderiam somar a algumas outras (como a intensa centralidade da Igreja e a experiência forte de miscigenação racial em seu território), armou Portugal o que hoje vem sendo chamado de “monarquia pluricontinental polissinodal”,3 cuja centralidade está na periferia e que vive de um esquema Antigo Regime que reitera o atraso. São muitos elementos de interesse para nossos fins.

Não custa acrescentar que historiadores falam em um Antigo Regime católico, com este adjetivo a mais, em que a Igreja tem presença forte junto ao poder central, este de todo modo comandado pelo rei (e depois da Independência no Brasil pelo imperador). O centro institucional dessa relação entre rei e igreja está no regime do padroado, de origem medieval, mediante o qual, na prática, o rei português subordinava a igreja à sua administração, incluindo a arrecadação do dízimo e a gestão do pessoal.

A visão caiopradiana e a crítica a ela

Basicamente, podemos dizer que Caio Prado Júnior é a matriz da historiografia e da crítica literárias hegemônicas na universidade brasileira, mormente aquelas que têm como centro gravitacional a USP. Para Candido e Schwarz, é certo que sim. Bem: e como Caio Prado descreve a sociedade brasileira? Há duas dimensões centrais.4

Primeira: o Brasil colonial e o Brasil imperial, para ele, se resumiam basicamente à economia da plantation (latifúndio escravista e monocultor voltado para a exportação). Isso representava uma estrutura social com duas classes básicas, a dos escravos e a dos proprietários de escravos, os latifundiários, com uma pequena franja de livres (esquema que Schwarz reitera sem matizes em sua tese sobre as “ideias fora do lugar”, tratando de Alencar e Machado de Assis, portanto escritores do fim do Império). Fora do espaço da plantation (espaço que vamos chamar aqui de “o sertão”), para Caio Prado só há economia de sobrevivência, sendo, portanto, irrelevante do ponto de vista da vida econômico e social e, naturalmente, como decorrência, também no plano da vida literária.

Segunda: Caio Prado tem uma tese decisiva, a do “sentido da colonização”. Sua ideia era que a colônia brasileira só existia em função da metrópole, que era a razão de ser da colônia. Isso, claro, se baseia na ideia de que o Brasil era apenas a plantation, e o resto era paisagem irrelevante, sendo a vida aqui na colônia administrada e decidida na metrópole e a economia brasileira sendo totalmente dependente da portuguesa. O “sentido” era mesmo uma seta de mão única. Daqui decorrem as noções de que a colônia não tinha espaço de autonomia nenhum (falava-se no “exclusivo comercial”, a exclusividade da relação entre a colônia brasileira e a metrópole portuguesa, como marca desse “sentido”) e de que os ritmos econômicos da metrópole e da colônia teriam correlação positiva (crise lá implicaria crise aqui, e vice-versa). A tese do “sentido da colonização”, podemos dizer, virou um fetiche. Uma vez tomada como verdade, os historiadores nem perdiam tempo em pensar sobre o mundo brasileiro que se organizava para além da plantation, o que quer dizer, entre outras coisas, que apenas o litoral entrava na conta.

Esse modelo tem sido criticado há muito tempo, por muitos trabalhos. Esboçamos aqui uma crítica sumária, acompanhando Fragoso (Homens de grossa aventura, 1990), Florentino (Em costas negras, 1997), Fragoso e Florentino juntos (O arcaísmo como projeto, 2001) e Caldeira (História do Brasil com empreendedores 2009), entre os mais importantes. Com eles, voltamos a alguns pontos acima mencionados de passagem para afirmar que

1) a economia colonial era comandada aqui de dentro, sendo brasileiros ou radicados aqui os agentes que dominavam o tráfico, por exemplo;

2) na virada do XVIII para o XIX o PIB brasileiro era crescente e superior ao da metrópole, que estava em crise;

3) havia desde o século XVII, ao menos, extensas redes comerciais em todos os quadrantes do território.

Ainda, mesmo que a escravidão fosse a modalidade dominante do trabalho, e que o tráfico tenha sido a fração hegemônica da elite econômica até 1830 – eram os traficantes, e não os latifundiários, o topo da vida econômica brasileira –,

4) havia muita variedade nos modos sociais de produção (servidão indígena, parcerias, empreendedorismo difuso segundo Caldeira, etc.), além da evidência de que os plantéis de escravos eram em média muito reduzidos, não sendo raro encontrar até ex-escravos como proprietários de escravos. Isso sem falar que

5) o Brasil parece ter tido duas marcas muito distintivas com respeito à força do escravismo, como mencionado acima, com uma intensa miscigenação, que reposiciona várias coisas relativamente ao mundo estadunidense e caribenho, por exemplo, e um variado e numericamente expressivo regime de alforrias.

Numa palavra, havia uma mobilidade social expressiva, desde o século 18 ao menos, o que desmente a visão de uma sociedade basicamente polarizada entre escravos e proprietários de escravos e uma pequena franja de livres. Finalmente, especialmente com Alencastro (Trato dos viventes, 2000),

6) se configura uma perspectiva que obriga a pensar a escravidão como uma organização sul-atlântica, necessariamente transbordando o espaço do Brasil e mostrando a hegemonia de traficantes brasileiros ou sediados no Brasil no circuito.

Como se pode pensar a estrutura básica da sociedade brasileira a partir de Fragoso?

A Hipótese Fragoso (como a estou chamando aqui) envolve basicamente uma nova descrição da sociedade e da política (mas também alcança algo da economia) brasileiras. Estudando as comunicações oficiais no vasto âmbito do reino português no século XVIII, Fragoso postula a existência de quatro poderes, em Um reino e suas repúblicas no Atlântico: comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVII e XVIII (٢٠١٧). Esses poderes têm jurisdições e lógicas concorrentes, sem convergência ou hierarquia nítida, mas todos eles alcançando sentido com a figura do monarca como cabeça de um corpo.

Por esses traços – jurisdições e lógicas concorrentes, sem total convergência, nem hierarquia linear – se pode perceber que a autoridade e o exercício do poder, no concreto das coisas, dependiam de muita negociação. Para compreender a tese, devemos colocar de lado (e depois, esclarecidos, descartar) percepções naturalizadas sobre um suposto poder absoluto do monarca, assim como um suposto “exclusivo comercial” entre metrópole e colônia, etc.

Aliás, para ajudar a esclarecer, vale uma pequena recuperação da descrição de uma “Monarquia corporativa” em Portugal, conforme a descreve António Manuel Hespanha (2010). Segunda essa hipótese, o poder real divide espaço com níveis inferiores (família, município, corporações) e com níveis superiores (a Igreja); deveres políticos e jurídicos cedem espaço para deveres morais (graça, gratidão, piedade) ou afetivos (amor, amizade). O vínculo colonial é, então, menos centralizado e coercitivo do que se tem pensado, e, portanto, é mais negociado – o que não quer dizer que seja uma negociação moderna, segundo leis impessoais e universais, porque, bem pelo contrário, se trata de modalidades políticas à moda do Antigo Regime. Essas características marcam o Estado português e a vida da colônia brasileira, por um lado, mas – como adiante vamos postular – permanecem vigentes no novo país inaugurado em 1822.

Falta um passo ainda antes de apresentar os quatro poderes – demonstrar por que será importante ler e entender essa tese de Fragoso para estudar literatura. Fico em dois argumentos.

Um: sendo a literatura – os livros, os autores, os circuitos de edição e leitura, os efeitos de tudo isso na visão de mundo de um tempo, assim como as marcas de um tempo na literatura correspondente – um fenômeno social sofisticado, porque dependente de uma série de mediações, das materiais às sutis, e um fenômeno bastante lento, porque produzido e fruído em ritmos tardos, é sempre melhor aprimorar o conhecimento do contexto, sem se contentar com generalidades como, digamos, “o capitalismo”, “a burguesia”, “a ideologia dominante”, “o século XIX”, “o Império”, que ao mesmo tempo nomeiam e obscurecem os objetos estudados. Pequenas mudanças conceituais aqui no presente jogam luz nova sobre muita coisa do passado.

Dois: de modo mais específico ainda, os escritores e os leitores, assim como a vida da linguagem como tal e os valores de época que ela enuncia, vivem preferencialmente perto do poder. Acho que se pode afirmar que mais perto do poder político – os poderes da sociedade, na igreja, no executivo, no legislativo e no judiciário, assim como na imprensa e na escola ou universidade – do que do poder econômico. Este traço aumenta ainda mais a importância de entender a organização política concreta dos tempos estudados: é nesse mundo que circulam as letras, sejam as políticas e administrativas, sejam as religiosas e filosóficas, sejam as poéticas, épicas e dramáticas.

Num exemplo elementar para o Brasil, pode-se pensar no nexo altamente eficaz entre Getúlio e intelectuais modernistas, um Drummond, um Mário de Andrade, um Augusto Meyer; num exemplo mais remoto, mas também óbvio, no nexo entre a igreja católica e o padre Vieira. Agora, trata-se de averiguar, como faremos em seguida, as relações entre intelectuais, escritores, jornalistas, leitores, de um lado, e as estruturas de molde Antigo Regime católico que tiveram força no Brasil entre os séculos XVI e XIX.

Aqui apresento os quatro poderes mencionados por Fragoso, com síntese e comentários meus:

1. A Coroa - poder central, composto pelo Rei e seus conselheiros (Conselho Ultramarino, Conselho de Fazenda, etc.). Fazem parte da administração central do reino. Está aqui a primeira nobreza (a antiga, oriunda da terra, ou a recente, nascida de conquistas, daqueles que ganharam títulos pelo comércio e/ou pela expansão do império). É neste poder, em seu âmbito, que se distribuem graças e mercês e se controlam os cargos das duas instâncias abaixo (a “coroa na conquista” e o “poder local”), especialmente nela. No topo, estão a figura do rei e sua família; não há mobilidade social, salvo uma crise de sucessão de dinastia. Há alguma mobilidade de fora para dentro deste círculo, em função da dinâmica da conquista: um sujeito pode ser apenas um endinheirado, por riqueza própria ou por riqueza que ele administra, e mediante uma mercê se tornar nobre. (Mercê: favor, graça, recompensa, benefício concedido pelo rei para algum súdito. Há uma diferença entre mercê concedida por graça, ao arbítrio do monarca, e aquela concedida por justiça, em reconhecimento de feitos. Fala-se em uma “economia das mercês”).5 O rei é concebido como a cabeça do corpo social, que confere sentido a cada parte.

2. A Coroa na conquista: é a administração periférica, composta pelos governadores, vice-reis, ouvidores, provedores, juízes, escrivães, militares superiores. Administram justiça e proteção militar, mas nisso também há riqueza envolvida. É a alta burocracia na periferia geográfica, portanto gente que circula ou se situa estruturalmente entre a metrópole e a colônia – e é esta gente que costuma ser associada com corrupção, tema de transcendental importância na América Latina. Dizendo de outro modo, são as elites funcionárias na colônia. Um estudo sobre a América hispânica, que por certo pode ser estendido ao Brasil colonial, observa que “a corrupção resultaria [...] da ineficácia de uma legislação arcaica, incapaz de abranger a transbordante complexidade econômica do mundo colonial”, o que se observa por exemplo no choque entre os monopólios e o dito “exclusivo comercial”, de um lado, e a realidade múltipla da economia colonial, multifacetada para muito além dessas premissas, de que forma que muitas vezes não restaria “aos funcionários e agentes instalados no continente americano” alternativa à corrupção, uma forma de mediação entre a lei e a realidade(cit. em Romeiro, 2017, p.64). Os agentes deste segundo nível de poder seriam, então, mediadores entre o mundo da corte e a dinâmica real da colônia, e não foi raro acontecer de essas figuras passarem a dispor de poder maior do que o inicialmente estipulado e previsto, mesmo porque estamos falando de um traço do Antigo Regime que pode passar como inexistente, mas tem força: o “universo normativo das sociedades da Época Moderna [...] não se esgota no direito oficial e nas instituições jurídicas formais, mas é construído por ordenamentos menos formais e por vezes mais decisivos, como a tradição, os costumes, os acordos tácitos, os privilégios, as clientelas” (Ibíd. , p. 86) .

3. O Poder local: aqui uma particularidade de extraordinário valor para analisar o tempo colonial e o imperial, o Poder Local se chamava de “república” – sem relação com a forma de governo nacional de mesmo nome – e constitui o poder em cada cidade, exercido pela Câmara de Vereadores, que era legislativo, judiciário eventual e executivo. Aqui há eleição regular para vereadores e juízes, a cada três anos, com mandatos respeitados e sucessões organizadas. Mas atenção: podiam ser votados apenas os “homens bons”, quer dizer, chefes de família com título de fidalguia (genericamente, donos de bens ou titulares de alguma nobreza) e que não exercessem ofícios mecânicos (que demandam esforço físico). Mas há também, neste âmbito da “república”, o poder exercido pelas corporações (de comerciantes, de artesãos, de médicos, etc.), irmandades e ordens terceiras (como as Santas Casas, que eram hospital mas eram também banco de empréstimo etc.). Aqui ocorre a gestão da rotina da vida em escala municipal.

4. O poder doméstico, ou a “casa”, compreendida como um poder organizado “naturalmente”, é formada pelo patriarca, seus consanguíneos, agregados e escravos, vivendo na cidade ou fora dela. Aqui se produz riqueza, em dimensão elementar, seja primária (no agro), secundária (artesanato e indústria) ou mesmo terciária (serviços especializados). Do ponto de vista marxista, só neste quarto poder haveria um embrião das três classes sociais mais conhecidas – o proprietário (que é o dono dos meios de produção e extrai a mais-valia), o equivalente aos proletários (escravos, trabalhadores expropriados) e ainda uma camada média (artesãos, professores, eclesiásticos, oficiais de alguma especialidade), algo como a pequena burguesia. Mas do ponto de vista das relações sociais concretas há, internamente ao poder doméstico, todo um outro tipo de liga, na forma de deveres mútuos, de solidariedades, de favores, de compadrio, eventualmente de parentesco, compartilhamento de práticas religiosas, etc.

Os quatro poderes não guardam distinção nítida entre si quanto aos seus limites recíprocos, nem respondem linearmente uns aos outros: há entre eles zonas de superposição e de atrito, e, portanto, um espaço de luta e negociação, como vimos antes, com Hespanha. O nível 4 podia ser interlocutor direto do nível 1, sem passar por 2 ou 3, assim como o nível 3 podia se reportar diretamente ao nível 1. As decisões do nível 3 não alcançavam necessariamente os indivíduos no nível 4 ou do nível 2. O rei, nível 1, podia mobilizar um exército, mas não poderia ordenar o modo de organização de um poder doméstico forte, nível 4; por outro lado, este mesmo poder doméstico pode colocar sua energia a serviço de alguma demanda do poder da coroa ou da coroa na colônia, ignorando o poder da república, nível 3. Por isso é que se fala, para o tempo colonial (e creio que para o Império também, em alguma proporção) numa lógica política submetida a constante negociação, sem limites totalmente nítidos entre os âmbitos de um poder e outro.

Essa ideia de autoridade negociada rompe com um quase dogma da tradição historiográfica entre nós, que pressupunha “uma inexorável subordinação das colônias e suas elites locais frente às autoridades europeias” (Fragoso, 2019, p. 40) – e ecoa uma ideia já antiga de Antonio Candido, à frente de uma tradição que conta como uma figura como Roberto Schwarz, que punha ênfase na “aclimatação das formas” literárias, ao chegar da Europa à colônia brasileira, num processo que, no conjunto, ele chama de “formação da literatura brasileira”. Por esse conjunto de características se pode imaginar as diferentes posições sociais e ideológicas que os escassos letrados puderam ocupar, no período em causa, da mesma forma que se pode imaginar o grau de liberdade, mental ou formal, de que cada letrado podia dispor conforme sua posição relativamente aos quatro poderes.

Isso tudo sem dizer o mais óbvio: essa divisão em quatro poderes dá muito maior nitidez para as relações reais de poder e para as possibilidades concretas para o exercício da inteligência letrada, para muito além das tradicionais marcações de nascimento (nasceu na metrópole? Nasceu já na colônia?) ou de trajetória social (estudou em Coimbra?), e para muito além das generalidades de ser religioso ou não, etc.

Em uma tabela sintética, aqui estão os quatro poderes:

Portugal, Metrópole

Brasil, Colônia

1. Coroa, em seu centro, em Lisboa

2

A coroa na conquista, em Salvador, em parte em Ouro Preto no auge do ciclo do ouro e pós-1760 no Rio de Janeiro

3

Poder local – as cidades

4

Poder doméstico – nas cidades e no interior integrado ao mercado

Nota: no nível 2 foram apontadas três cidades (Salvador, Ouro Preto e Rio de Janeiro), quando apenas a primeira e a terceira foram centros administrativos formais da colônia brasileira. Ocorre que Ouro Preto, no tempo do ouro, foi sede de muita burocracia portuguesa, talvez mais do que as duas outras cidades.

Acentuando o que nos interessa, para fins de pensar sobre as artes letradas, poderíamos acrescentar alguns dados, sempre pensando no tempo da Colônia.

Portugal, Metrópole

Brasil, Colônia

1. Coroa, Lisboa: ambiente urbano e letrado nas camadas dirigentes

2

Coroa na conquista (Salvador, Ouro Preto e Rio de Janeiro): ambiente urbano e letrado nas camadas dirigentes

3

Poder local (cidades em geral): ambiente urbano com elites letradas

4

Poder doméstico: ambiente urbano e também rural, com letramento apenas da familia patriarcal e eventuais agregados, mas com forte espaço de transmissão de cultura oral

Pensando nesses termos, 1, 2 e 3 são ambientes marcadas pelo letramento entre as elites dirigentes, com correspondente maior contraste com o iletramento dos de baixo que vivem em Lisboa, nas grandes ou nas pequenas cidades brasileiras. Quanto maiores as cidades, exemplarmente Salvador, Ouro Preto e Rio de Janeiro, teremos ambientes mais complexos: (a) mais abertos às novidades que circulam via mercado e tendentes à especialização do trabalho, das funções, etc.; (b) mais propensos à existência de opinião pública (circulação de impressos, instituições de ensino, bibliotecas, círculos letrados) e por aí de pensamento crítico; (c) com mais concentração de escravidão urbana, com consequente aumento de redes de solidariedade de cunho abolicionista. Em 4, a tendência é de menor presença dessas marcas, dado o cenário social mais claramente patriarcal e antimoderno; mas aqui há relações de proximidade potencialmente muito fortes, seja pela convivência em espaços compartilhados, ou por laços de compadrio e favor, ou por um sentido gregário de tipo feudal, com fidelidades e deveres recíprocos, etc.

Um elemento que fica até aqui de fora do esquema, mas que o futuro tratará de mostrar que é significativo, é o mundo quilombola. Sem pretender resumir a complexidade dessa experiência histórica no Brasil, vale anotar que houve casos de quilombos rurais e sertanejos (como Palmares), assim como houve quilombos de territorialidade bem diversa, mais fluida por assim dizer, por vezes reduzindo-se esse elemento geográfico a espaços urbanos dentro do traçado organizado nas cidades ou em suas margens. Creio que esse espaço social quilombola deve ser pensado para os níveis 2, 3 e 4. Adiante retomaremos esse ponto.

Minha hipótese: outros dois poderes

Aqui vou experimentar umas extrapolações, naturalmente por minha conta e risco. Acrescento então dois outros poderes a essa lista de quatro, com base na observação da realidade dos tempos coloniais, considerando casos concretos de escritores e letrados. Em específico, a extrapolação foi pensada para alcançar experiências históricas de grande relevo para o Brasil, ao menos no longo prazo, de que veremos exemplos em seguida.

Dou exemplo para mim essencial: o mundo do sertão, quer dizer, o mundo do espaço geográfico, social, histórico e cultural existente para além das cidades e da plantation (e obviamente longe da metrópole portuguesa e, depois de 1822, também da corte), assim como o mundo da floresta, são mundos ágrafos, em princípio. Mesmo integrados, em alguma medida, ao mercado, o cotidiano da vida no sertão e na floresta prescinde da letra escrita. Isso os colocaria fora do interesse da reflexão sobre literatura, como tem acontecido desde sempre. Mas ocorre que ele não prescinde da fala nem da imaginação: se trata de mundos com práticas poéticas e narrativas de grande poder sugestivo – e são mundos que, mais hoje, mais amanhã, foram e são alcançados pela letra escrita. Já em meados do século XIX começa a haver o registro desse mundo, na imaginação da poesia indianista, na documentação, por imperfeita que seja, das lendas e causos sertanejos. E daí por diante a cada geração mais e mais as letras escritas vão ser acionadas para registrar esse universo que, com o tempo, fertilizará a obra de figuras de primeiro plano, como Simões Lopes Neto e Guimarães Rosa.

Então o espaço sócio-histórico a ser incorporado ao conjunto dos poderes tem a ver, então, com o mundo interno brasileiro, o sertão e a floresta, para além do nível 4, o Poder Doméstico. O primeiro nível de poder fica fora daqui; o segundo, fica na Corte; o terceiro fica nas cidades, que se concentram no espaço litorâneo, com escassas exceções até o final da monarquia em 1889; o quatro é o nível que aqui interessa expandir, dividir, especificar. Como ficou dito acima, do universo do Poder Doméstico fazem parte as grandes e médias (e ainda as pequenas) propriedades rurais, dedicadas a variados tipos de produção. Aqui se localizam, conceitualmente, desde as fazendas de criação de gado, no Rio Grande do Sul ou no Sertão nordestino, até fazendas de produção de café, cana, tabaco, etc., assim como os sítios, em uma miríade de pontos pelo território. Então, o mundo a ser incorporado nos novos níveis é coisa para além desse Poder Doméstico. Que coisa é essa?

Creio que podemos dizer que se trata, aqui, de prestar atenção ao mundo indígena. Esse mundo vai-se dividindo, ou multiplicando, ao longo do tempo, desde as comunidades originais, passando pela vida já próxima aos brancos colonizadores e chegando a várias formas de integração dos ameríndios ao mundo ocidental. Indígenas escravizados passam a viver num dos quatro espaços anteriores, particularmente o quarto, mas também o terceiro. Contudo, se pensarmos na ação dos bandeirantes e dos missionários pelas entranhas do território, vamos observar uma grande quantidade de arranjos em que viverão caboclos, caipiras, gaúchos, mamelucos, como se chamem, etc., com maior ou menor proximidade das cidades e das unidades de produção organizadas, arranjos que no futuro se transformarão em aldeias, e por aí adiante.

Mas também encontraremos a formação de reduções estruturadas, sob comando jesuítico, algumas da quais chegando a formar cidades de sofisticada urbanização, contando com construções de impressionante requinte, com muita especialização fruto dos arranjos de produção e de vida social. No sul do Brasil, em um regime singular de comunidade com uma série de outras agrupações que ocupam hoje territórios no Paraguai e na Argentina, esse fenômeno atingiu uma apoteose num tempo tão remoto quanto a primeira metade do século XVIII.

Essas duas formas de vida social, agrupamentos caboclos e reduções jesuíticas, escapam ao que está descrito nos quatro poderes de Fragoso. Se essas duas formas são importantes? Certamente são, mesmo que não na mesma proporção e não necessariamente no mesmo tempo histórico das cidades do litoral. Não se pode comparar sem mais os quatro poderes anteriores com essas duas realidades aqui lembradas; mas não se pode esquecer que essas duas realidades são representativas de formas de vida relevantes no Brasil, algumas delas vindo a significar muito – os agrupamentos caboclos deram origem a incontáveis cidades pelo território todo ou, quando menos, se agregaram a elas, com seus costumes e modos de ser e pensar, como será o caso dos caipiras em São Paulo, dos gaúchos no Rio Grande do Sul, e assim por diante. Daqui também saiu arte, não literatura de livro, inicialmente, mas por certo um repertório significativo de lendas, entoações, prosódias, histórias, conceitos, valores, que com o tempo se incorporarão ao mundo letrado brasileiro.

Aqui então a extrapolação do esquema dos quatro poderes: haverá um nível 5, relativo às Missões, espaço ao qual vou agregar outro elemento que guarda certa importância, em determinadas regiões, que é a Fronteira, primeiro entre o império português e o espanhol, depois entre o Brasil e os países vizinhos. Reduções jesuíticas pensadas em seu tempo de formação, apogeu e derrocada, entre meados do século XVII e meados do século XVIII, mas também pensadas como permanência para além desse tempo, como base cultural e social que seguirá ecoando tempos afora (no oeste do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, há toda uma ideia de pertencimento cultural nomeada como “cultura missioneira”); e Fronteiras pensadas como um conjunto de instituições e arranjos organizativos, com projetos específicos de poder, seja para a guerra, seja para a produção, envolvendo poder público (dos níveis 1, 2 e mesmo 3) e poder privado (nível 4), como se poderá comprovar na cultura guerreira da fronteira entre o Brasil e o Uruguai. Nesse nível 5 de poder, o letramento é presente: nas Missões houve um intenso e ainda hoje não claramente descrito mundo letrado, centrado na visão católica e dedicado às práticas doutrinárias religiosas acima de tudo. No mundo da Fronteira, teremos eventual presença de letras basicamente nos registros formais de campanhas de guerra, etc.

E haverá um nível 6, o dos povos originários, seja vivendo em modo tradicional, na floresta ou em outros ecossistemas, sem estrutura de Estado como tal, seja vivendo já em regimes mistos, mesclados com algo da lógica colonizadora, no sertão, em contato com as cidades e os circuitos da mercadoria, como nas rotas do gado entre o sul e o centro, ou nas rotas de escambos e trocas monetarizadas em grande parte do território todo.6 (As rotas comerciais desse mundo do sertão são um elemento de grande interesse para o futuro, porque ao longo delas vão se estabelecer entrepostos, lugares de serviço, vendas, feiras e depois aldeamentos. Este é um mundo basicamente ágrafo.)

Num esquema:

Portugal

Brasil

1. Coroa Central: Lisboa

2

Coroa na conquista: Salvador, Ouro Preto e Rio de Janeiro

3

Poder local

Cidades em geral

4

Poder doméstico: cidades e interior integrado ao mercado

* 5

Reduções e Fronteiras

* 6

Indígenas

Minha hipótese: extrapolação no tempo

Acima ficou já consignada minha percepção e alguns argumentos a favor da ideia de que a Independência representou mudança de importância bastante secundária, vistas as coisas desde o ângulo dessa teoria dos quatro (ou seis) poderes. Aqui proponho um exercício de extrapolação mais radical, dado que os textos de Fragoso praticamente nada falam sobre o tempo do Brasil independente nesse particular, mas também, espero, uma extrapolação cabível, considerando que a divisão em quatro (ou seis) poderes e as marcas de cada um deles praticamente restam inalteradas até meados do século XIX, talvez até a Abolição e a República, já no último quartel do século.

Assim, teríamos a seguinte possibilidade, mantendo a hierarquia entre os quatro (ou seis) poderes mas alterando a geografia dos dois primeiros poderes:

Entre 1580 e a Independência: De 1822 a 1860s

Portugal

Brasil

Rio de Janeiro

Províncias

1. Coroa: Lisboa

1. Corte: Rio de Janeiro

2

A Coroa na conquista: Salvador (Ouro Preto) e Rio de Janeiro

2

A Corte nas províncias: Capitais provinciais

3

Poder local: as

cidades em geral

3

Poder local: as

cidades em geral

4

Poder doméstico: as cidades e o interior integrado ao mercado

4

Poder doméstico: as cidades e o interior integrado ao mercado

* 5

Reduções e Fronteiras

* 5

Reduções e Fronteiras

* 6

Indígenas

* 6

Indígenas

Expliquemos alguns aspectos dessa extrapolação. Primeiro de tudo: a relação entre os níveis 1 e 2 se mantém, depois da Independência – assim como antes Lisboa era o centro de um Império que designava seus representantes no Rio de Janeiro (antes, em Salvador e também em Ouro Preto, centro administrativo de importância central no tempo do ouro), agora a corte carioca o faz para as capitais de província: a mesma subordinação entre as partes e a cabeça do Império, a mesma lógica das nomeações de dirigentes, potencialmente o mesmo descompromisso entre os dirigentes provinciais e os contextos locais, razão aliás de uma série de revoltas das províncias contra a Corte. Nos níveis 3 e 4 (e 5 e 6), praticamente nada se altera de substantivo, na passagem de 1822.

Essa divisão entre os quatro (seis) poderes implica uma variada hierarquia no plano da geografia social e econômica do Brasil. Os níveis 1 e 2 são caracteristicamente palacianos, embora se estabeleçam em cidades grandes, ao passo que 3 tem a ver diretamente com espaços públicos nas cidades – quanto maiores, mais chance de desenvolver uma esfera pública de opinião. O nível 4 é o mais amplo e variado, social e geograficamente: tem cidade grande, cidade pequena; tem campo com produção regular para mercado urbano e campo mais remoto, com pastagens. O nível 5 é, em princípio, sertão, mas nas Reduções jesuíticas houve cidades estruturadas, e cabe lembrar que a fronteira pode converter-se em cidade. O mais remoto, com ligação mais rara com a lógica do mercado, está no 6, na floresta.

Uma dinâmica interessante, embora localizada apenas na região sul do Brasil, será constituída com a imigração massiva de europeus para o Brasil, primeiro com germânicos, depois com italianos e outros grupos (eslavos e em escala menor outros). Não se trata da generalidade das imigrações para o Brasil: há por exemplo uma intensa chegada de portugueses ao país, em diversas conjunturas, mas basicamente para as cidades, e assim também outros grupos, de espanhóis, italianos, etc. O que está aqui em foco são as colônias rurais de germânicos e italianos, que no Rio Grande do Sul constituíram um fenômeno de grandes proporções.

Essas colônias foram marcadas por uma série de traços até ali nada comuns no Brasil. Domina esse cenário um regime de pequenas propriedades rurais, tocadas por mão de obra familiar, com produção diversificada – só aqui, temos três termos de radical diferença para o regime de latifúndios, com mão de obra escrava e monocultura. Acresce que entre esses imigrantes havia um prestígio significativo da cultura letrada, muito ligada ao mundo religioso. Por fim, este é um mundo em que o poder político se estrutura de modo também diverso do mais comum no país: são pequenas cidades organicamente ligadas à produção primária (a qual em seguida se liga a uma produção secundária relevante), com uma prática de organização política aproximada da organização religiosa (católica ou, entre os germânicos, também luterana), em que é visível a perspectiva de representatividade comunitária nas instâncias de poder.

Seja como for, essa experiência das colônias de europeus no Brasil do século XIX, por significativa que seja, não chega a constituir até o final do século XIX e da Monarquia, nosso escopo aqui, uma força que altere a lógica dos quatro (ou seis) poderes no conjunto do país.

Reduções e fronteiras existem geograficamente no sertão mas são quase como o poder de número 2, a Coroa na conquista, e depois de 1822 a Corte na conquista. Nas Reduções, que duraram como tal até por volta de 1750, não é a Coroa em si que está no controle, e sim a Igreja, ou os jesuítas, ao passo que nas fronteiras é o estado, através do exército. Nos dois casos, temos poder centralizado e massa de povo em condição parecida com a de servos, com poder letrado no topo e tradições orais na base, em moldes de Antigo Regime na consolidação de diferenças sociais, com escassa mobilidade social e política.

Se Antigo Regime pressupõe a eternização das desigualdades e a perpetuação das diferenças, sem mobilidade social, e tendo em vista as descrições da pujança do mercado interno brasileiro ao largo da geografia, desde o século XVII e especialmente no XVIII e mais ainda no XIX, será preciso distinguir que os níveis 1 e 2 (e 5) são intrínseca e até ferozmente Antigo Regime (dos começos até 1850), sendo marcados pelo fato de terem pouca ou nenhuma relação com o mundo concreto da produção de bens e serviços. Mas 3 e 4 (e 6, em sentido diverso dos anteriores) não: estes apresentam aspectos dinâmicos mais próximos do mundo moderno, o mundo do mercado, do capitalismo, com desigualdade posta em questão, com bastante mobilidade social e geográfica.

No tempo da colônia, os planos 1, 2 e 5 contam com letrados em grau considerável de importância; 3 também, mas em sentido mais pragmático, de letrados ocupados com a vida real, contabilidade, administração, etc.; 4 também conta com algum letramento, mas é fortemente atravessado por tradição oral; 6 é quase só tradição oral, salvo pelos relatos de padres, viajantes, etc. No tempo do Brasil independente, há uma nova dinâmica potencial: se 1, 2 e 5 se mantêm como espaços com pouca mobilidade, 3 e 4 (e 6) tendem a conhecer maior e mais intensa mobilidade social.

Podemos dizer que 1 e 2 (e 5, nas Reduções) lidam com público letrado, escasso em relação ao todo da população, mas existente; 3 e 4 praticamente não contam com leitores; 6 não conta com leitores. Com o passar do tempo, 3 e 4 tendem a formar condições para a disseminação do letramento. No mesmo sentido, 1 e 2 (e em parte 5) lidam com modelos de texto, hierarquizados e até codificados, seja no âmbito da tradição católica ou da tradição militar, seja da tradição cortesã; 3 e 4 praticamente não lidam com modelos relevantes de texto escrito, mas contam com modalidades estáveis de transmissão oral (causo, relato de valentia, lendas, formas poéticas singelas); 6 lida com oralidade apenas, e talvez haja formas algo estáveis de transmissão.

Teríamos agora um novo passo, para pensar literatura, sempre em sentido amplo. A ponte está nos agentes da literatura: o escritor (sentido amplo, englobando desde o narrador oral até o letrado urbano, mas com o cuidado hanseniano de não tomar escritor na concepção do Romantismo o concebeu, como o sujeito que expressa sua subjetividade); o leitor ou ouvinte; o meio de difusão (impresso, escrito, oral, incluindo as academias de encontro de letrados no Brasil!); e o âmbito do código (escrito, oral, as modas, as exigências do gênero discursivo em causa).

O pressuposto dessa conversa aqui é medir a proximidade social, ideológica, cultural em amplo sentido, entre o escritor (o criador, o narrador espontâneo, o cancionista, etc.) e seu mundo (o de origem, o de destino). Alguns exemplos:

Para 1 e 2, evidentemente se trata de pensar o letrado como parte do mundo do poder (Vieira, Gregório de Matos, Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa antes de 1822, Alencar no século XIX)

Para 3, depois da Independência: Manuel Antônio de Almeida (seu personagem famoso, Leonardinho, vivia numa cidade 3 mas acabou encontrando espaço no escalão inferior de 2, como Sargento); as associações mais ou menos informais a que se filiou o jovem Machado de Assis (como a Petalógica), assim como a Sociedade Partenon Literário, fundada em Porto Alegre, em 1868, dependem vitalmente de viver num ambiente 3.

Domingos Caldas Barbosa sai de 4 para 1, levando consigo uma forma, a canção, que expressa 4 mas passa a fazer sentido em 1;

Basílio da Gama é 2 de origem, mas seu tema é fronteira, as reduções, etc., na guerra levada a efeito em 5 (a Guerra Guaranítica, resultante da implementação do Tratado de Madrid, de 1750), com o detalhe nada desprezível de que ele dá a palavra para gente oriunda de 6.

As lendas e causos que começam a ser escritos por românticos (Alencar, Bernardo Guimarães, Apolinário Porto Alegre, etc.) em meados do século 19, no Rio e em outras cidades (quer dizer, em 1, 2 e 3), são gestados em 4 (mais o rural que o urbano), 5 e 6.

E trajetórias de personagens: Alencar, em Til, mostra um mundo 4, com alguma menção a 3, cidade interiorana, mas com figuras do mundo 6, caboclos e indígenas; Rubião, em Quincas Borba, passa de um 3 interiorano, como classe média-baixa, para 1, em condição de enriquecido, a vida na Corte.

E o escritor, por sua vez, dada sua centralidade na criação das obras que perduram, tem que também ser visto em mais de um aspecto. Pode ser o caso de um escritor cortesão lisboeta criado lá mesmo; mas há algumas possibilidades de trânsito entre uma coisa e outra: Domingos Caldas Barbosa nascendo em 4, no Rio, filho de escrava com um livre branco, reconhecido pelo pai, logo também livre, estuda com padres e migra pra Portugal, 1, mas numa trajetória com percalços, lidando com uma modalidade literária marginal, a canção, embora chegue a publicar um livro.

Na ponta oposta podemos pensar num contador de causo do sertão (ou da floresta), que tem acesso a um nível 4 e ali repete/cria uma história que vai integrar um corpo de lendas, lendas que em algumas gerações serão escritas e impressae. Essa estrutura histórica ganhará corpo na geração de Simões Lopes Neto e terá realização literária superior com Guimarães Rosa. (Naturalmente, tudo isso aqui está sendo cogitado para o tempo histórico anterior aos meios de comunicação massivos a partir do rádio, que vão alterar essa dinâmica fortemente, ainda que se valham desse substrato histórico.)

Tomando a última tabela como referência, podemos notar tendências gerais. No sentido vertical, quanto mais para cima na tabela, teremos um mundo mais letrado, mais impresso, mais convencional, mais áulico; quanto mais para baixo, um mundo mais oral, mais espontâneo, mais artesanal, mais comunitário.

No sentido horizontal, quanto mais para a esquerda, quer dizer, quanto mais para o passado, temos um mundo mais à moda Antigo Regime e menos marcado pela subjetividade moderna, esta que se liga ao indivíduo kantiano; quanto mais para a direita, quer dizer, para o futuro, teremos um mundo mais republicano, mais moderno, com mais mobilidade social, e por isso mesmo mais marcado pela subjetividade moderna.

E o malandro?

Lá no começo deste ensaio ficou consignado o caráter tentativo das ideias aqui expostas, em si mesmas, como uma hipótese nova para pensar sobre a literatura brasileira entre os séculos XVI e XIX, e em relação com o tema do malandro. Hora de passar a régua e finalizar a contabilidade, quanto a este segundo aspecto: a hipótese Fragoso, essa dos quatro (ou seis) poderes, tem alguma luz a oferecer sobre o fenômeno do malandro?

Especificando um pouco: sendo a presente hipótese dedicada a enxergar de modo mais preciso e mais próximo as estruturas da vida social brasileira, desde o ângulo da relação entre os indivíduos em si e as instâncias organizacionais da sociedade colonial e imperial – e estando nós em momento muito diverso daquele em que Antonio Candido pôde, com serenidade, empregar a palavra “malandro” sem nenhum embaraço-, 7 que lugar teria uma figura como o malandro?

Essa figura, seja qual for a sua definição, nascerá basicamente entre homens urbanos livres e não ricos. Homens, porque em regra não se associam mulheres ao conceito. Urbanos, porque se trata de um ambiente essencial para seu florescimento, sendo de cogitar em algum tipo assemelhado no mundo não-urbano, como é o caso do Tatu, figura mitológica no sul, ou do Pedro Malazartes, etc. Livres porque não se cogita, em princípio, de homens escravizados, que ao menos em tese dispõem de pouca, se alguma, mobilidade voluntária. E não-ricos porque, se rico, o sujeito escapa, creio, do escopo do termo “malandragem” – não quer dizer que um indivíduo rico não seja trampolineiro, trapaceiro, espertalhão, fanfarrão ou vagabundo em matéria de empenho, mas simplesmente porque um rico é, antes de tudo, um rico, e essa condição subsome todo o resto.

Vamos a um estudo bem conhecido, de Roberto da Matta. Em Carnavais, malandros e heróis (primeira edição em 1978, contemporâneo do ensaio de Candido acima lembrado, que já é referência para Da Matta), vamos ler uma síntese que associa linearmente os participantes do mundo do carnaval aos malandros, “seres marginais e/ou liminais”, opostos aos “renunciadores”, que participam de procissões, e aos “quadrados” (1981, p. 203), que participam de paradas. Assim:

Desse modo, sabemos que os heróis do Carnaval [...] são os marginais de todos os tipos. Seja porque estão situados nos limites do tempo histórico, como os gregos, romanos e aristocratas do samba [...]; seja porque estão situados nos pontos extremos de nossas fronteiras, como as havaianas, as baianas, os chineses e os legionários; seja porque estão escondidos em prisões, pela política e por nossa ingenuidade, pois aqui temos todos os marginais [...]. Se quisermos reunir todos esses tipos numa só categoria social, e nós fazemos isso muito bem, sabemos que todos eles são malandros. [...] No asfalto da avenida e em pleno ritmo de samba e verão brasileiros, eles estão totalmente deslocados. E o malandro é um ser deslocado das regras formais da estrutura social, fatalmente excluído do mercado de trabalho, aliás definido por nós como totalmente avesso ao trabalho e altamente individualizado, seja pelo modo de andar, falar ou vestir-se. (Ibid., p. 203-4)

Essas hipóteses têm agora um sabor de época já – as figuras de havaianas e legionários correspondem a um estilo carnavalesco que ficou no passado, creio. Mas a convicção de Da Matta é forte e vem corroborada por uma nota de pé de página eloquente:

A definição de malandro foi testada com base num inquérito realizado no Rio de Janeiro, incluindo entrevistas com residentes da Zona Sul (classe média e média alta) e Zona Norte (classe média, média baixa e marginais do mercado de trabalho). [...] Curiosamente, e ao contrário do que se poderia esperar, a definição social de “malandro” e “malandragem” foi absolutamente coerente no caso do Rio de Janeiro, independente das variações de segmento social. Isso justifica, entre outros dados e considerações, a perspectiva aqui adotada de se tomar o malandro como tipo paradigmático ou herói (Ibid., p. 204).

Sem querer fazer tábula rasa desses dois importantes ensaios críticos, é possível mesmo assim apontar a naturalização do conceito de malandro, provavelmente como um sintoma de haver, naquele contexto – ainda estávamos na ditadura militar, a televisão ainda implementando paulatinamente sua integração nacional via satélite, possivelmente com a figura do malandro sendo associada a uma certa condição irresignada, dissidente em relação à lógica moderna do trabalho regulado, talvez potencialmente associável a uma atitude de rebeldia que encontrava na esquerda uma acolhida importante (na linha do “Seja marginal, seja herói”). Do mesmo ano de 1978, aliás, é a Ópera do malandro, de Chico Buarque, cuja ação se passa mais atrás ainda, em 1940, no tempo de Getúlio, em pleno auge do rádio e antes da televisão. Nela, a noção de malandro é tão pacífica que o autor pode lidar com a figura soberanamente, parodiando, imitando, criticando, ironizando. Dizer “malandro” aqui seria tão nítido quanto dizer “bombeiro”, “pescador”, “professor”.

De lá para cá muita coisa mudou. Para os anos 1970, parecia haver essa serena definição repousando tranquila como um lastro histórico elementar. No horizonte deste pequeno ensaio, que vai se concluindo, não há mais essa possibilidade de pressuposição. Então, resumindo: o malandro existe onde, considerados os quatro (ou seis) poderes?

A resposta precisa contar com mais um dado ainda. O objeto de Candido no ensaio “Dialética da malandragem” não poderia ser mais marcado geograficamente: toda a história das Memórias de um sargento de milícias se passa no Rio de Janeiro, “no tempo do Rei”, inicialmente. Roberto da Matta, além de referir-se a figuras do carnaval carioca, apõe aquela nota, reproduzida acima, que registra a unanimidade também carioca acerca do sentido da palavra “malandro”. A Ópera do malandro, de Chico Buarque, se passa adivinha onde? “Estamos no Rio de Janeiro dos anos 1940”, diz a frase de abertura do libreto. Espaço geográfico, protagonistas literários, figuras sociais e intelectuais ou escritores, tudo e todos são cariocas – como o conceito de “malandro” com que lidam.

Bem, é certo que o Rio foi capital brasileira por uns duzentos anos, aliás desde antes de existir o Brasil propriamente dito, e por cima disso se deve colocar o dado nada secundário de que o Rio foi, antes de Independência, a sede da Coroa na Conquista, segundo nível de poder, e depois de 1822 passou a ser a sede da Coroa imperial brasileira. E que estamos falando de uma estrutura política altamente concentracionista, segundo aquela visada corporativista, em que a cabeça – a sede do Poder imperial – confere sentido a cada uma das partes, as quais sozinhas nada significam. Daí por que uma ação ideológica, como aquela realizada pela arte, tende a naturalizar que aquilo que o centro é, é o que o todo é (ou deve se esforçar para ser). Na mesma linha de que a ideologia dominante de uma formação econômica dada é sempre a ideologia da classe dominante. Dá vontade de concluir, então, que o fenômeno da malandragem é circunscrito ao Rio de Janeiro, e os indícios nessa direção não são poucos nem pequenos.

No esquema dos quatro (seis) poderes, então, a rigor teríamos uma restrição do campo de ação do malandro ao segundo nível de poder, a Coroa na conquista, antes de 1822, e à sede da Corte, o primeiro poder, a partir de então. O malandro, deste ponto de vista, seria uma brotação do Rio de Janeiro, cidade grande que é também um porto aberto ao mundo e que conviveu com uma intensa escravidão urbana, aquela em que a proporção de escravizados na população tenha sido a maior em seu tempo. Como visto antes, essa estrutura básica foi modulada por duas experiências sociais também peculiares, uma a intensa miscigenação, outra a variada modalidade de alforrias. Miscigenação e alforrias que de algum modo estão associadas à emergência de um grupo social novo, o chamado mulato, homem pobre livre com chances de mobilidade social.

Tudo isso ainda refratado por outra marca que o esquema dos quatro poderes mostra ou ao menos insinua: trata-se de uma estrutura social ao mesmo tempo muito excludente, dada a evidência da duração da escravidão até 1888, convivendo com uma estrutura política igualmente excludente, elitista e antimoderna, ao modo do Antigo Regime – mas também coexistindo com as modulações da miscigenação e das alforrias, em um porto dinâmico de importância mundial. Forças grandemente reacionárias dominam o cenário, mas são atravessadas por forças com alguma dinâmica que permite alguma ascensão social, ao menos para certos indivíduos.

Seria hora de dar um passo adiante, que aqui não será dado: hora de repensar a tese das “ideias fora do lugar”, na célebre frase de Roberto Schwarz. Penso (e tentei demonstrar, em meu livro Duas formações, uma história) que a atraente tese de Schwarz – de que haveria uma incompatibilidade essencial entre escravidão e liberalismo, que porém conviviam cotidianamente no Brasil, gerando uma coexistência esquisita, que Machado de Assis teria flagrado e transformado em regra de composição de suas estruturas narrativas mais sofisticadas, como em Memórias póstumas de Brás Cubas – incorre no erro de não considerar justamente a dimensão política concreta do Estado no Brasil: para mim, não é a tensa relação entre escravidão e liberalismo o problema central que gera o fenômeno real das “ideias fora do lugar”, e sim a incompatibilidade entre o liberalismo, mencionado no enunciado das leis pós-Independência e de alguma forma praticado nas artes, como por exemplo na narrativa de Alencar, e o modo Antigo Regime que rege o Estado nacional brasileiro, que se escancara na existência do Poder Moderador, prerrogativa do Imperador, que não é alcançado pela lei. E isso é verdade basicamente para o e no Rio de Janeiro, e muito menos, se existente, na generalidade do Brasil. O Rio que é, antes de 1822, a sede da Coroa na Conquista, e depois a sede da Corte depois.

Se há alguma particularidade brasileira nessa figura do malandro, como algo distinto das várias modalidades de burla à autoridade e de resistência ao trabalho regular que existem mundo afora, ela será explicável pelos elementos mencionados, que se especificam numa cidade que é sede de poder central (poder 1) em monarquias altamente centralizadas, nas quais as instituições modernas, como a escola para todos, a imprensa livre, a livre iniciativa, a mobilidade social (como realidade empírica ou ao menos como valor), são constantemente solapadas, seja pelo estilo Antigo Regime do governo, seja pela manutenção da escravidão e suas consequências.

Bibliografia

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1 A ideia de que o Antigo Regime persista para muito além da modernidade nada tem de nova. Um clássico como La persistance de l’Ancien Régime, de Arno Mayer, apresenta essa ideia em sua abertura: Mayer postula a ideia de que as duas guerras mundiais da primeira metade do século XX é que dão fim ao Antigo Regime, o qual se choca com o capitalismo industrial desta época.

2 Para um detalhamento dessa discussão, ver Duas formações, uma história, livro em que examino em detalhe o tema. Neste estudo, há um detalhado acompanhamento das teses de Caio Prado, especialmente em Formação do Brasil contemporâneo (primeira edição em 1942), e das críticas a essas teses, muito particularmente à perspectiva caiopradiana do “sentido da colonização”.

3 Estrutura Polissinodal: “a direção política na sociedade decorre da concorrência de poderes, e nessa dinâmica o rei desponta como centro” (Dicionário da república). “Governo por conselhos, numa monarquia pactuada” (Marcelo Loureiro, https://www.historia.uff.br/7mares/wp-content/uploads/2015/11/v03n05a041.pdf) Vale lembrar que “sínodo” quer dizer “assembleia”, “reunião”, “instância”.

4 Ideias expostas em Formação do Brasil contemporâneo.

5 Por exemplo, “A economia das mercês: apontamentos sobre cultura política no Antigo Regime português”, de Estevam Henrique dos Santos Machado. O termo “economia das mercês” foi cunhado por Fernanda Olival.

6 Um bom lugar para ter uma ideia sumária desses circuitos é História do Brasil com empreendedores, de Jorge Caldeira, especialmente no capítulo inicial, “Um cenário, duas leituras”.

7 “Digamos então que Leonardo não é um pícaro, saída da tradição espanhola; mas o primeiro grande malandro que entra na novelística brasileira, vindo de uma tradição quase folclórica e correspondendo, mais do que se costuma dizer, a certa atmosfera cômica e popularesca de seu tempo, no Brasil”. Frase de abertura da terceira seção do ensaio “Dialética da malandragem” (1970).