Germano Mathias e um legado da nossa malandragem

Rachel D’Ipolitto de Oliveira Sciré

Universidade de São Paulo, Brasil
rachelscire@gmail.com

Fecha de recepción: 7/6/2021.
Fecha de aceptación: 1/7/2021.

Resumo

O artigo recupera a trajetória de Germano Mathias, sambista paulistano que se tornou expoente do samba malandro entre o final dos anos 1950 e a década de 1970. Ao se debruçar sobre a sua carreira, é possível avançar na compreensão do lugar do samba malandro na indústria cultural. Da mesma forma, o estudo da obra do intérprete, a partir de uma perspectiva fundamentada na crítica cultural materialista, favorece a discussão das representações do malandro na sociedade brasileira, com destaque para o seu caráter violento, e também aponta para os desdobramentos da ideia de malandragem, diante de algumas transformações observadas em nossa realidade urbana ao longo do século XX, em paralelo ao desenvolvimento local do capitalismo. Este último ponto é debatido a partir da análise da letra do samba “Jerônimo”, de Eduardo Gudin e Carlos Mello, gravado por Germano Mathias em 1986, para a trilha sonora da novela Cambalacho, da Rede Globo.

Palavras-chave: música popular brasileira; samba; malandragem; Germano Mathias

Germano Mathias and a legacy of our malandragem

Abstract

This article recovers the trajectory of the singer Germano Mathias, who became an exponent of samba malandro between the late 1950s and the 1970s. By focusing on his career, it is possible to advance in the understanding of the place of samba malandro in the cultural industry. In addition, the study of the singer work, from a perspective based on materialist cultural criticism, allows the discussion of the malandro represantations in Brazilian society, highlighting its violent character, and also points out the transformations of the idea of malandragem, considering changes in brazilian urban reality throughout the twentieth century, in regard to the local development of the capitalism. This last point is discussed based on the analysis of the lyric “Jerônimo”, by Eduardo Gudin and Carlos Mello, recorded by Germano Mathias in 1986, for the soundtrack of the soap opera Cambalacho, by Rede Globo.

Keywords: Brazilian Popular Music; samba; malandragem; Germano Mathias

Germano Mathias, nascido em 1934, é um sambista paulistano, branco, que se tornou expoente do samba malandro1 em São Paulo. Sua formação artística foi determinada pela participação nas rodas de batucada, em que engraxates e outros trabalhadores informais praticavam o samba e a tiririca (jogo de pernada semelhante à capoeira), em diversos espaços públicos da cidade, como na Praça da Sé, na Praça da República ou na Praça João Mendes. Ao mesmo tempo, foi influenciado pelas gravações de Ciro Monteiro, Jorge Veiga, Ari Cordovil, Risadinha, Caco Velho, Aracy de Almeida, Moreira da Silva, que escutava pelo rádio na época.

Por sugestão do sambista Toniquinho Batuqueiro, então engraxate, Germano tenta a sorte como calouro e ganha o primeiro prêmio do programa Aí vem o pato, da Rádio Nacional de São Paulo, em 1953, com “Na Barra Funda”. A composição de sua autoria já o associava à figura de um malandro, por meio de um narrador em primeira pessoa que se vangloriava por ter abandonado a rotina de trabalho dos antigos bambas do Largo da Banana para viver como sambista, vadio e rufião. Ao participar do concurso “À Procura de um Astro”, do programa Caravana da Alegria, da Rádio Tupi de São Paulo, em 26 de outubro de 1955, incrementa a sua apresentação com um número de batucada na tampa de lata de graxa, técnica oriunda das rodas dos engraxates. Vence a disputa e é contratado pelas Emissoras Associadas de São Paulo – com carteira de trabalho assinada – como “cantor e executante de instrumentos exóticos” (Ramos, 2008).

Diante disso, é compreensível a transformação da tampinha da lata de graxa em uma marca registrada do sambista, no momento em que desponta na indústria do Rádio e do Disco. O instrumento dos engraxates seria bem aproveitado nos sambas do tipo sincopado, estilo que se acomoda bem à imagem do malandro que ginga e no qual o intérprete também se destaca, devido à habilidade na divisão do canto. Esses atributos fariam de Germano Mathias o proclamado “sambista diferente”, slogan que batiza seu primeiro LP, lançado em 1957, pela Polydor. Tais adjetivos, inclusive, o apresentariam como uma novidade de mercado, justificando o consumo musical ao explorar distinções, entre as quais o lugar de sambista malandro ocupado por um paulistano com suas características físicas e técnicas percussivas.

O emprego do novo instrumento também faria parte dos paradoxos que permeiam a transformação dos malandros em sambistas, como a passagem do “folclore” (para usar um termo empregado pelo próprio Germano2) ou de uma manifestação cultural popular a um gênero musical do mercado. No entanto, para além de um apelo midiático ou mercadológico, o som agudo da latinha de graxa demarca as “raízes” do samba de Germano, assimilado através dos estilos em evidência no Rádio, mas cultivado em meio às rodas de engraxates. Para o biógrafo do sambista, Caio Silveira Ramos, mesmo ao cantar sambas de compositores do Rio de Janeiro e de outros Estados

sua maneira de dividir as sílabas e seu modo de atacar as notas remete muitas vezes ao gingado e às rasteiras da tiririca, mesmo que o sincopado não perca sua predominante coloração carioca. Isso sem contar que a batucada que Germano faz com sua lata de graxa reflete os desenhos rítmicos das batucadas da praça da Sé e rua Direita, mesmo que tais batucadas, na década de 1950, igualmente recebessem pelo rádio os eflúvios do samba carnavalesco carioca (Ramos, 2008, p.373).

Na biografia, também é lembrado que Germano caminhava para a marginalidade quando aceito nas rodas de samba. Na mesma época, frequentava gafieiras, “bailes de porão” e a zona do meretrício – primeiro no Bom Retiro, posteriormente, nos Campos Elísios. Nesses espaços, estabelece um convívio diário com prostitutas, rufiões, boêmios, vagabundos, traficantes, valentes e outros frequentadores do submundo paulistano. Além disso, nunca teria engraxado para sobreviver, mas “vivia de expedientes”, passando o chapéu nas rodas de samba, aventurando-se no jogo, vendendo produtos como ambulante ou se aproveitando de relações com mulheres3. Portanto, a identificação de Germano Mathias com a malandragem e com o samba sincopado não surge como uma representação artificial, meticulosamente pensada, ou como uma simples estratégia mercadológica, mas como uma “exteriorização natural de sua opção de vida, fruto do universo que frequentava” (Ramos, 2008, p.425), ainda que possa ter sido aproveitada pelas indústrias do Rádio e do Disco.

Desde os anos 1930, a “moda” da malandragem começava a dar sentido às imagens idealizadas de malandros, além de favorecer o sucesso comercial, como lembra Carlos Sandroni (2001), ao apontar o “caminho do malandro ao compositor” que se abria para quem fizesse samba e não tivesse “muitas opções de sobrevivência”. Mas não se pode esquecer das encruzilhadas desta vereda, que sinalizavam interesses muitas vezes conflitantes entre sambistas, intérpretes e gravadoras. E também ter em mente, como discute Maria Clementina Pereira Cunha, como essas dinâmicas fariam do samba “crescentemente objeto de compra e venda, mercadoria cada vez mais valorizada que circulava naquele ambiente de transgressão” (Cunha, 2015, p.195).

Sobre a sua contratação pelas Emissoras Associadas de São Paulo, Germano conta que a oportunidade surgiu para ocupar o lugar do sambista Caco Velho4 (que teria deixado São Paulo para uma temporada em Paris), já que ficava caro trazer com frequência os sambistas do Rio para se apresentar na capital paulista5. Ou seja, Germano Mathias teria preenchido um nicho de mercado, e o investimento em sua carreira se mostraria certeiro desde o início. No primeiro ano de contrato, em 1956, grava três discos de 78 rotações – vende 21 mil cópias com o primeiro e, com o último, conquista o troféu Roquette-Pinto, como revelação do ano, e o prêmio Guarany, pela vendagem. Em 1957, seu salário na Rádio Tupi já seria aumentado de Cr$ 3.000 para Cr$ 5.000, revelando uma aposta em seu potencial.

Na indústria cultural, Germano seria alvo de especulações. Já no segundo LP, em 1958, muda da Polydor para a RGE, numa movimentação que se segue ao longo da fase áurea da carreira – ao mudar da RGE para o Odeon, no começo da década de 1960, além do contrato, ganha um automóvel da gravadora. Na época, também sai das Associadas para a Rádio e Televisão Record, se torna atração de programas televisivos musicais e de variedades, assina com a TV Paulista (Rede Globo), em 1967, para um programa exclusivo, o Nosso Ritmo É Sucesso. Até ao mercado publicitário o artista emprestaria o seu rosto e a sua voz, como garoto propaganda de diferentes produtos e cantor de jingles.

Possivelmente, Germano se beneficiou ao se dedicar a um estilo de samba já consolidado, inclusive antes do início de sua carreira. Por isso, mesmo no âmbito musical parece problemático circunscrever a malandragem ao Rio de Janeiro. De modo geral, o samba malandro teria nascido e se desenvolvido no Rio, como um produto da recém-surgida indústria cultural, mas seria difundido para todo País, encontrando ressonâncias que ultrapassariam as dinâmicas da realidade carioca. Ele se tornaria mais um “jeito de fazer samba”, relacionado ao gosto pessoal dos compositores e a sua familiaridade com o universo apresentado nas letras das canções6.

Germano foi inscrevendo São Paulo na malandragem e incorporando um malandro paulistano por meio dos temas das canções, da interpretação, da indumentária e de suas performances. É perceptível a identificação do conteúdo das letras, dos motivos melódicos, do ritmo e do modo de cantar às características da personagem representada. A voz de Germano ginga, ao dividir de maneiras diferentes os versos nos sambas sincopados, as palavras engasgam e de repente atropelam o ouvinte, em outros instantes as sílabas perduram ou são articuladas de modo mais contido. Quem escuta fica desnorteado e sem condições de cantarolar a letra enunciada – afinal, a posição do malandro não seria para qualquer um. Tal hesitação, que também se nota por meio da oscilação entre a fala e o canto nas narrativas cantadas, ajuda a formalizar a ambiguidade que caracteriza o discurso malandro.

Por mais que o talento de Germano Mathias como intérprete de samba seja notório, o fato de um paulistano com ascendência europeia ter sido escolhido em São Paulo como representante do gênero é intrigante. Sem que isso fosse proposital (dado o seu pertencimento às comunidades de samba), Germano desempenharia um papel de mediação, como mais um entre os diversos filtros que a cultura negra precisaria passar para ganhar visibilidade e reconhecimento em uma sociedade racista. Ao mesmo tempo, a figura do artista ajudaria a contestar a imagem de modernidade que as elites desejavam construir para a cidade e seus habitantes. A vocação para o trabalho ou a exemplaridade da mão de obra imigrante, tão apregoadas em São Paulo, seriam subvertidas pelo gesto malandro do sambista, inserido em uma realidade marginal, povoada por desocupados, subempregados, delinquentes diversos, e animada por sons e danças de negros, bem rente aos trilhos da “locomotiva do progresso”.

Como se escuta no LP Em Continência ao Samba (1958), Germano assume um lugar tanto de porta-voz quanto de representante de segmentos marginalizados, que rompe com as tentativas de silenciar experiências étnicas e sociais de alguns grupos da população paulistana. As canções tematizam o universo das camadas populares por meio do samba (“Guarde a Sandália Dela”7), da religião (“Feitiço fracassado”8), dos espaços de sociabilidade (a rua Direita, em “Figurão”9). Também contestam opressões, como o despejo da favela, em “Audiência ao Prefeito”10, ou a repressão aos trabalhadores informais e suas práticas culturais, em “Lata de Graxa”11, grande sucesso do disco. Além de tomar a categoria profissional dos engraxates como base para discutir um perverso e recorrente processo de higienização urbana, este último samba sugere outras perspectivas ao revelar interações entre a ocupação e o lazer – espaços idealmente delimitados para as figuras do trabalhador e do malandro.

A concepção artística do “malandro paulistano” também se nota pelo trabalho do intérprete ao presentificar ou transpor as narrativas cantadas para o universo da cidade. No último verso de “Maria Espingardina”, samba de Zé da Glória e Jorge Costa, gravado no LP Ginga no Asfalto (1962), lançado pela Odeon, um bairro da capital é referenciado no breque final: “Porque no meu barraco já está morando/ A Maria Espingardina da Conceição/ Lá na Vila Carrão”. No mesmo álbum, em “Esculacho na Bonifácia”, de Jorge Costa e Durum Dum Dum (pseudônimo de Germano Mathias), o sambista cria uma ênfase nos versos finais (“Se você fosse condução, Bonifácia/ Eu viajaria a pé”) com o breque: “Da Penha até a Praça da Sé”. Em “O Assalto”, samba do carioca Zé Kéti, gravado por Germano e lançado pela Polydor, no LP Samba de Branco (1965), Germano altera um trecho da letra para fazer uma referência às Rondas Unificadas do Departamento de Investigações (Rudi), que faziam o policiamento noturno da cidade (“Eu fiz uma oração e a dona Rudi chegou”).

Nas letras de samba, a personagem do malandro coloca em evidência contradições dos próprios indivíduos e do sistema social, como a separação entre a obrigação e o prazer, entre a casa e a rua, entre a pobreza e o luxo, entre a Justiça e os injustiçados. A malandragem deve ser lida em viés, pelas frestas, sendo o malandro uma figura que cruza e se adapta. Com seu movimento dinâmico, que carrega as potências de Exu, teria a capacidade de produzir redefinições, romper determinismos e inventar possibilidades (Simas e Rufino, 2018). Neste sentido, a obra de Germano Mathias também se mostra significativa, uma vez que atualiza alguns estereótipos, permitindo avançar o debate sobre a ideia de malandragem na sociedade brasileira.

De fato, ao pesquisar o noticiário paulistano do início do século XX até a década de 1970, é possível reconhecer como a noção de malandragem ultrapassa as imagens cristalizadas pelas letras de samba. No jornal O Estado de S. Paulo, por exemplo, eram chamados de “malandros” personagens tão diversas quanto um japonês que falsificava molho de pimenta com terra, um rapaz negro que aplicava golpes por saber falar inglês, um soldado do exército que cometia furtos em ônibus, batedores de carteira chilenos, curandeiros discriminados como exploradores da “credulidade popular”, vendedores de maconha ou de cocaína, desordeiros, assaltantes, exploradores na zona do meretrício, entre outros tipos, que agiam amparados na esperteza ou no uso de armas brancas ou de fogo. Citado na imprensa como sinônimo para vigarista, vagabundo, ladrão, entre outros contraventores e criminosos, o malandro correspondeu a uma figura de marginalidade ao longo de um período de nossa história. Portanto, há que se considerar o significado que as narrativas cantadas sobre malandros possuíam à época em que tais notícias ocupavam as páginas dos jornais e como se transformaram na medida em que outras personagens da violência urbana foram ganhando relevância (Sciré, 2019).

Essa abordagem permite levar adiante pontos pouco explorados nos estudos sobre o tema, como o caráter violento do malandro e a dimensão sombria da malandragem. O aspecto despojado, de “crônica de costumes”, das narrativas cantadas, a alegria provocada pelo ritmo do samba e o recurso ao humor como forma de realizar a crítica social (Matos, 1982) colaboram para uma relativização das situações violentas apresentadas nas canções sobre a malandragem. Mas em nuances diversas, a violência atinge ou é praticada por todo rol de personagens desse estilo de samba, seja por meio da ridicularização ou intimidação verbal (o irrefletido insulto ao “otário”), por diferentes formas de coação (como a da mulher explorada pelo malandro, a do indivíduo oprimido por agentes da lei ou por outros valentes), e por níveis escalonados de brutalidade que incluem ardis, agressões físicas e o uso de armas brancas e de fogo.

A obra de Germano Mathias, que ganha corpo quando o samba malandro já estava consolidado pelo mercado musical, concentra exemplos, a começar pelo sucesso de estreia, “Minha Nega na Janela”12, que hoje o artista não canta mais, devido aos conteúdos de racismo, machismo e violência doméstica apresentados na letra. No mesmo álbum, a faixa “Senhor Delegado”13 permite experimentar a violência policial, por meio da prisão arbitrária de um suposto malandro. As disputas violentas por poder, prestígio e rendimentos no universo marginal são tematizadas em “Baiano Capoeira”14, samba que também ecoa a memória do próprio gênero musical e das figuras urbanas associadas à violência. Já o samba “O Assalto”15 coloca em cena a criminalidade patrimonial, sugerindo pistas a respeito da passagem nebulosa do malandro ao marginal como protagonista da violência urbana. Malandros com graus de periculosidade diversos (e categorias próprias16) transitam no universo de “Zé da Pinga”17, samba que narra a dinâmica dos acertos de contas na esfera marginal, a partir de noções particulares de ética e justiça, e que permite vislumbrar a diversidade de tipos no mundo da malandragem, pouco antes que a cortina do Espetáculo se fechasse, deixando em cena somente o malandro simpático.

Em todas essas canções18, a violência aparece não apenas por meio de crimes e de contravenções, mas de maneira estrutural, como em nossa sociedade. O modo como as personagens se relacionam, seja entre pares afetivos, amigos, desconhecidos ou adversários, é pautado por um uso instrumental da violência, em que as diferenças entre os indivíduos são reafirmadas e sustentadas por princípios de dominação. Essa lógica atravessa o cotidiano narrado nas letras, por exemplo, em situações de desavença, de prisão arbitrária ou de busca de artifícios para sobreviver (do ponto de vista econômico e literal). Além disso, a violência da polícia, da justiça, das “autoridades” e das instituições oficiais é tematizada de maneira objetiva. Também são violentas as desigualdades sociais, a pobreza, a inserção precária na estrutura produtiva, entre outros mecanismos econômicos e políticos que forjam a marginalidade, dando chão à ideia de malandragem.

Os sambas malandros cantados por Germano Mathias formalizam esteticamente processos sociais complexos, que vêm se desenrolando em paralelo à longa carreira do artista19 e tensionam a temática da malandragem na música popular brasileira. As obras permitem entrever uma série de transformações da realidade urbana ao longo do século XX, entre as quais, o incremento da violência20 e o desenvolvimento do capitalismo. Para comentar este último ponto, vale a pena se debruçar sobre o samba “Jerônimo”, gravado por Germano Mathias em 1986, quando tanto a figura do malandro quanto o próprio intérprete pareciam já não ter lugar garantido na indústria cultural21.

Jerônimo é um herói
Anônimo
Cheio de homônimos
Mas não perde o pique
A vida é sempre uma rebordosa
Mas ele é o rei da prosa
Ele é o pai do trambique
Na hora H
Do xeque-mate
Inventa um biscate
Escapa por um triz
Jerônimo
Na maré do asfalto
Sempre sai incauto
Por isso é feliz
Quem quer vencer
Na Pauliceia
Aposte numa ideia
Com engenho e arte
Malandro de segunda linha
Ladrão de galinha
Sempre fica à parte
Pois só descola o de comer
Quem é do métier
E nunca dá xabu
Jerônimo
Nem esquenta a cuca
Pois em arapuca
Ele é hors-concours
L’argent toujours

A música foi composta por Eduardo Gudin e Carlos Mello22, sob encomenda para a trilha sonora da novela Cambalacho, de Silvio de Abreu, transmitida pela Rede Globo às 19 horas, em 198623. O título do samba faz referência à personagem interpretada por Gianfrancesco Guarnieri (Jerônimo Machado, o Gegê), um tipo que gostava de jogar e apostar em corridas de cavalos, assíduo do bar, que se virava como podia para sobreviver, dividindo peripécias – os tais cambalachos – com a comadre Naná, interpretada por Fernanda Montenegro24.

A canção parece mesmo ter sida feita “sob encomenda para a bossa de Germano Mathias”, conforme o biógrafo do sambista (Ramos, 2008, p.256). Além de seu formato de samba sincopado, no qual o intérprete sempre se destacou, possui uma narrativa que descreve o perfil de um típico malandro e sua habilidade em inventar trambiques para sobreviver na “maré do asfalto”, especificamente em São Paulo (Pauliceia).

Apesar da correspondência nominal (Gegê) entre a personagem da novela e o intérprete de sua música-tema, neste samba, Germano Mathias não encarna o malandro, como de costume, mas assume o lugar de um narrador que apresenta o protagonista de forma objetiva. Ele demonstra possuir um conhecimento íntimo da personagem da canção ao descrever sentimentos (“é feliz”), pensamentos (“nem esquenta a cuca”) e reproduzir expressões que pertencem ao seu vocabulário (“pique”, “xabu”, “arapuca”). Porém o narrador não se confunde com a figura narrada, o que também pode ser observado a partir de certo distanciamento na voz de Germano e uma interpretação mais “lisa” do que o habitual para um samba sincopado.

Com traços épicos25, a estrutura da narrativa cantada se mostra interessante para discutir tanto a ideia de malandragem quanto a representação do malandro, em um momento diferente da nossa História. A figura do malandro é fixada com base na recorrência de atributos positivos, como o entusiasmo (“não perde o pique”), a capacidade de se livrar de situações-limite (“na hora H do xeque-mate”) e a esperteza (“em arapuca ele é hors-concours”). A linha melódica executada dá os contornos das artimanhas do personagem, como no trecho em que ele “escapa por um triz”. Seu dinamismo também é recriado no canto, por meio do prolongamento de algumas vogais, como em “não perde o pi-i-i-que” ou “só-ó-ó descola o que come-er”, ao passo que outras sílabas são cantadas com uma curta duração, como em suspensão, por exemplo, em “Aposte numa ideia/ Com engenho e arte”, na primeira repetição da parte B do samba.

À época da gravação, marcada por recessão e desemprego em massa (SINGER, 2011), não só o malandro Jerônimo precisava se virar para garantir o sustento básico. Na história econômica brasileira, o ano de 1986 é lembrado pela adoção do Plano Cruzado, que congelou preços e salários e introduziu uma nova moeda26, como uma resposta à alta inflação27 que se acumulava desde a metade da década de 1970, com a desaceleração do crescimento econômico do país. A crise gerou um desarranjo social que reverteu a tendência de melhora da pobreza, verificada desde os anos 1950. A proporção de pobres no Brasil aumentou no início dos anos 80, atingindo 41,9% da população em 1983 – mesmo nível de 1960. Em 1985 e 1986, foram criadas iniciativas emergenciais, como os Planos de Prioridades Sociais, para o combate à fome, ao desemprego e à miséria. Entre 1981 e 1989, o país apresentou piora da distribuição da renda – o índice de Gini28 saltou de 0,572 para 0,652 (Draibe, 1993).

No final da década de 80, 48,6% da força de trabalho ganhava até dois salários mínimos e 27,2% da população ocupada recebia somente um salário mínimo; estima-se que 57,9% dos trabalhadores integravam o mercado informal, em 1988. Ao descrever as peripécias de um malandro que vive de ocupações eventuais e de ideias ardilosas que possam lhe garantir um prato de comida (destaque para a rima comer-metiér), a canção parece condizente à realidade de boa parte da população do período.

Como se sabe, a “esquivança em relação ao mundo do trabalho” é uma das principais características dos malandros (Sandroni, 2001). A exaltação à vadiagem cantada nos sambas teria suas bases em nossa experiência histórica, inicialmente, marcada pela escravidão que, além de estigmatizar o trabalho braçal, impediria a criação de alternativas que fixassem produtivamente os indivíduos livres ou libertos, desvinculados dos processos sociais, a quem só restaria a ocupação ocasional, a atividade de subsistência, a dependência do favor ou a perambulação pelos campos e cidades (Kowarick, 1994; Vasconcellos e Suzuki, 1984). O conceito de malandragem ganha força nas primeiras décadas do século XX, durante a mudança para o regime assalariado e o desenvolvimento de novos setores da economia urbana – não à toa, mesmo período em que a música popular e seus criadores começam a se profissionalizar.

O exercício da malandragem requer uma recusa à inserção na produção. O canto do vadio tem como pano de fundo a substituição do trabalho servil pelo livre, momento em que as relações capitalistas tomam corpo e se articula, embora de maneira incipiente, a polarização entre capital e trabalho assalariado (Vanconcellos e Suzuki, 1984, p.623).

Nota-se assim uma correspondência entre o percurso histórico da música popular brasileira e a formação da classe trabalhadora, em que a ideia de malandragem se constitui em oposição à ideia do trabalho, sendo o malandro contraposto ao trabalhador. Nesta perspectiva, o samba malandro contestaria as ideologias trabalhista-nacionalista e pequeno-burguesa (Matos, 1982). As tensões entre otários e malandros nas letras de samba ecoariam também uma circunstância estabelecida a partir da consolidação das leis do trabalho (CLT) e da criação de um sistema de proteção social29. Essa estrutura instituiria um modelo peculiar de cidadania, em que os direitos sociais surgem dissociados de um quadro universal de valores políticos, mas vinculados ao registro profissional, como uma recompensa ao cumprimento do dever do trabalho. O cidadão como sujeito moral e soberano nas suas prerrogativas políticas na sociedade não encontraria lugar na realidade brasileira. Sua certidão de nascimento cívica seria a carteira de trabalho, também sinal de honestidade e de respeitabilidade. Aqueles que não a possuíssem seriam transformados em “pré-cidadãos”, logo, sujeitos às formas puras de repressão. Desse modo, em vez de universalizar e garantir direitos, a lei reproduziria as desigualdades do mercado e criaria fraturas entre os trabalhadores e os que se encontrassem fora desta condição (Telles, 2001).

Os embates que surgem estilizados nos sambas em que malandros recusam o papel de trabalhador, procuram se afirmar diante de otários ou representantes da lei, impõem respeito à força configurariam então uma resposta à violência da sobrevivência no cotidiano. Apresentada por um viés de escolha individual, como uma forma de resistência e como uma preferência por um modo de vida alternativo, a malandragem parece apontar, na realidade, para uma situação social relacionada ao modo de inserção nas estruturas de produção e de cidadania, caracterizada por reduzidas possibilidades para uma parcela da população e também por certa descrença diante das compensações oferecidas aos pobres em nosso sistema socioeconômico.

Diante disso, no samba “Jerônimo” é possível perceber uma alteração no sentido da malandragem. A letra destaca a sagacidade de um malandro que vence as adversidades econômicas do cotidiano. A subsistência fora do mundo do trabalho é apaziguada pela valorização das competências do protagonista, que também não trava um conflito com um oponente objetivo (o otário, o agente da lei).

De forma ambígua, é citado o nome do malandro e a sua condição de herói anônimo, para indicar o estatuto vulgar, comum, de seus feitos. A ideia de anonimato também abarca um sentido de ausência de autoria, que parece se relacionar com o trecho seguinte, quando há uma referência aos “homônimos” da personagem30. Em sentido figurado, a menção pode sinalizar uma reprodução de indivíduos se comportando como malandros, ou seja, uma popularização do “uso de expedientes” entre a população, que apontaria também para um alargamento do campo da malandragem na sociedade. Essa leitura se reforça com o verso seguinte (“Cheio de homônimos / Mas não perde o pique”), pois a conjunção “mas” estabelece uma relação de oposição e de diferenciação, e o “pique” diria respeito tanto ao ânimo da personagem quanto, por alusão à corrida, à disputa, ao seu lugar de destaque entre os vários concorrentes.

A segunda repetição desta primeira parte do samba, realizada por um coro, formaliza o reconhecimento do heroísmo do malandro, exaltado por uma coletividade. O uso da antonomásia em “rei da prosa” e “pai do trambique” o situam como uma autoridade nas trilhas da malandragem, assim como o adjetivo hors-concours. Aparentemente, os feitos de Jerônimo não são dignos de louvor (lábia, trambique, biscate, arapuca), porém, são apresentados com naturalidade pelo narrador e parecem adquirir valor perante à comunidade talvez por força de identificação, tendo em vista a perda da identidade de trabalhador, pois o fim do vínculo empregatício, num cenário de crescente informalização, é uma situação que joga o indivíduo “na condição genérica e indiferenciada do não-trabalho, na qual se confundem as figuras do pobre, do desocupado, da delinquência ou simplesmente da ociosidade e da vadiagem” (Telles, 2001, p.101).

Ao contrário de um mero artifício para escapar de um enquadramento por vadiagem, como seria usual nas narrativas do samba malandro, a invenção de um trabalho ocasional (biscate) por Jerônimo se mostra determinante para que a personagem salve a si mesma. Como a parte B da canção especifica, é a circunstância de privação, diante da necessidade de “descolar o de comer”, a grande adversidade enfrentada pelo protagonista, e talvez por isso também a moralidade de suas ações não seja cogitada.

Tanto o emprego da metáfora (“maré do asfalto”) quanto da antonomásia (“Pauliceia”) remetem aos rodeios e evasivas do comportamento e do discurso malandro, assim como a comparação de sua sobrevivência a um jogo. Além da referência específica ao xadrez, outras passagens do samba apontam para situações competitivas que envolvem perdas e ganhos. Jerônimo nunca “perde o pique”, nem “dá xabu” (azar). E para quem deseja “vencer na Pauliceia”, o narrador do samba sugere: “Aposte numa ideia/ Com engenho e arte”.

Na malandragem, o jogo (do bicho, de sinuca, de baralho, de dadinho ou chapinha...) sempre foi um expediente corriqueiro. Mas “malandro não conhece azar ou sorte”, não ocupa a posição de jogador, no máximo, só representa esse papel, já que a ilusão do otário alimenta a sua trapaça. Na letra do samba, ainda que sirva de modelo, Jerônimo se diferencia dos demais, seu posto não é alcançado por qualquer um, mesmo que a sua estratégia de sobrevivência pareça invejável em um contexto de cartas embaralhadas, como discute Waldenyr Caldas:

O malandro tanto pode ser trapaceiro, jogador, “profissional” de sinuca, baralho etc., como também, sob a óptica mais conservadora, um trabalhador não inserido no mercado formal de trabalho. É o caso de subempregados como dos camelôs das grandes cidades, do cambista que vende ingressos com ágio fora das bilheterias de teatros, estádios, casas de espetáculos em geral e outros lugares públicos. Por imposição do mercado de trabalho, o desempregado e o mendigo também podem, ainda que indevidamente, ser interpretados como malandros (Caldas, 1995, p.34-35).

As adversidades do emprego e do desemprego tendem a se confundir com os azares de cada um, quando o mercado parece operar com a aleatoriedade própria dos fenômenos da natureza, aponta Vera da Silva Telles (2001). Para além da sorte, é possível então considerar outra força invisível influenciando os destinos, que na narrativa cantada dialoga com a ideia de que “A vida é sempre uma rebordosa” ou com a comparação do cotidiano a uma “maré do asfalto”, sujeita a altos e baixos.

A contraposição de palavras ou expressões coloquiais com estrangeirismos ou termos cerimoniosos, como maré do asfalto/incauto; comer/metiér/dá xabu; cuca/arapuca/hors-concours, reflete a “farsa paródica” do malandro (Wisnik, 1997), que manipula a linguagem como o próprio traje, na tentativa de sustentar uma posição pela aparência. O recurso também serve como indício das desigualdades sociais que justapõem a todo momento o alto e o baixo, o rico e o pobre, na realidade urbana. Assim, para além da vagabundagem, a condição do protagonista se religa a outro contexto, marcado pela má distribuição de renda e pela funcionalidade da pobreza no sistema econômico.

Ao pensar sobre as parcelas de trabalhadores que não conseguem vender no mercado formal a força de trabalho, Lúcio Kowarick (1977) discute como a marginalidade econômica, mais do que um desvio, se trata de uma contradição necessária à dinâmica da sociedade capitalista. O “marginal” não se constituiria em oposição a um polo “integrado”, nem como resultado de uma assimilação insuficiente de valores, normas e conhecimentos inerentes ao desempenho de papeis urbano-industriais e modernos. Na medida em que o capitalismo se expande, e domina a economia, estabelece um conjunto de mecanismos que originam a marginalidade (desempregados, subempregados, trabalhadores intermitentes, modalidades produtivas arcaicas), sem que isso signifique uma dualidade entre formas produtivas, mas uma mesma lógica estrutural.

O que caracteriza esses últimos [trabalhadores marginais] é que sua inserção no sistema produtivo supõe tipos de exploração distintos daquela parcela “integrada” da classe trabalhadora, ou seja, os assalariados que na economia urbana estão presentes no setor fabril e no setor terciário organizado sob a forma de empresas. Constituem a força de trabalho que não é absorvida pelas formas típicas que o capitalismo no seu processo de expansão tende a generalizar, isto é, a venda da força de trabalho que passa a ser comprada e submetida pelo capital. O que está em jogo, por conseguinte, é uma diferenciação no seio da classe trabalhadora decorrente do processo de acumulação capitalista que gera certas modalidades de trabalhos passíveis de serem conceitualizadas como marginais (Kowarick, 1977, p.85).

Ao estudar o discurso do samba malandro, Claudia Matos (1982) identifica uma questão fundamental na maior parte das canções que diz respeito à integração do indivíduo à sociedade ou à sua permanência como marginal. De fato, no horizonte de expectativas da sociedade brasileira das décadas de 1930 e 1940, em um momento de estruturação do modelo trabalhista, faz sentido pensar a malandragem nestes termos. Porém, ao levar a questão adiante, como a análise de “Jerônimo” requer, é possível notar como o dilema se transforma conforme a possibilidade de integração pelo trabalho também vai se esfacelando, em uma perspectiva maior do que a local.

O malandro é uma figura associada ao grupo social que acumula desvantagens na divisão das riquezas produzidas, em uma ótica de longa duração. A condição de exploração revela um lastro histórico entre trabalhadores e malandros, mas as camadas populares vêm protagonizando novas rotas, subjetividades e condutas, com as mudanças nas formas de circulação financeira e a precarização do trabalho. Em linha com o pensamento de Vera da Silva Telles (2015), mais do que uma atitude associada à viração popular, as práticas passam a apontar para outros jogos de poder e campos de força, em que traços persistentes de nossa história se redefinem – como parece ser o caso da malandragem.

Perderia a força explicativa a ideia de que tal cenário seria somente resultado das incompletudes da nossa modernidade e da má estruturação de nosso Estado. Outras lógicas foram se desenhando alinhadas às lógicas dominantes, diante da falta de projetos que efetivamente colaborassem para superar os desníveis sociais, econômicos, políticos e culturais – o que nem parece ter sido de fato buscado, dado a funcionalidade das populações marginais no sistema vigente. Ao contrário do que se poderia esperar, o encaminhamento das carências e privações que afetam a sociedade brasileira não parece ter se dado dentro do âmbito da integração ou adaptação a um modelo superior almejado, mas por meio da criação de modos peculiares de pertencimento. Como explica Francisco de Oliveira (2003, p.60): “A expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações novas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no novo”.

Neste sentido, é possível compreender a disseminação das “formas malandras” de ganhar a vida, como sugerido na letra de “Jerônimo”. De fato, a parte B do samba se apresenta como uma “sugestão prática” feita pelo narrador, dentro de uma dimensão utilitária, que aconselha “sobre a continuação de uma história que está sendo narrada” (Benjamin, 1987, p.200-201), ultrapassando a trajetória do protagonista, para apontar desdobramentos da própria malandragem. Isso, durante um momento em que a busca pelo ganho cotidiano passa a se impor como desafio coletivo, um imperativo nas mais diversas cidades, inclusive fora do âmbito nacional, com a busca generalizada por alternativas (mesmo ilegais/ilícitas) diante do aumento da informalização no mercado de trabalho.

Esse alargamento do que antes seria o mundo da malandragem favorece a relativização da marginalidade do malandro Jerônimo, agora reconhecido como exemplo a ser seguido. Ainda que o conceito de marginalidade discutido por Lúcio Kowarick (1977) se restrinja aos trabalhadores precariamente inseridos no sistema produtivo, também pode ser associado à prática de delitos. Não porque eles decorram necessariamente da marginalização do indivíduo na estrutura produtiva, como se as atividades criminosas fossem determinadas pela pobreza e pelo desemprego, mas porque faz sentido listar a delinquência como uma dentre outras alternativas de sobrevivência num contexto de populações incorporadas de maneira limitada no mercado de trabalho e na estrutura geral da sociedade.

Por mais que a violência exista no mundo da malandragem, ela sempre foi vista com reservas, sob risco de “desagregar a comunidade pela luta interna pelo poder” (Matos, 1982, p.71). Na visão dessa comunidade, que fala pela boca do sambista, o malandro não seria o bandido ou criminoso comum, nem o sujeito que lança mão da violência por qualquer motivo (Matos, 1982, p.72). A oscilação entre atitudes mais ou menos criminalizadas e violentas, que perpassa a malandragem, se estabelece textualmente no samba “Jerônimo” na aliteração malandro/ladrão. Positivamente marcado, Jerônimo parece se encaixar no papel de “malandro da leve”, noção adotada pelo próprio Germano Mathias, já que arranja um biscate com criatividade ou arma arapucas, ao contrário dos “da pesada”, que adotariam outras práticas para conseguir dinheiro (Sciré, 2019). A concepção de “sorte”, mobilizada pela dinâmica do jogo na letra, e um certo ar aventureiro reservado à personagem e transmitido pela narrativa cantada também ajudam a inspirar simpatia pelo malandro.

Essa conotação positiva do malandro parece se encaixar no contexto apresentado por Michel Misse (1999), no qual a valorização da malandragem, idealizada e limpa de traços de violência, colidia com seu passado marginalizado e não se adequava à crescente precarização de seu tipo social nas áreas urbanas pobres. Além disso, diria respeito a uma ideia de generalização da malandragem nas classes médias e elites.

Como na famosa canção de Chico Buarque, o antigo “barão da ralé” vai subindo na escala social, tornando-se malandro “oficial”, enquanto o tipo social que compunha o malandro tradicional “cai” no trabalho precário ou na marginalidade. A oposição que põe o marginal do lado da violência, reservando ao malandro a posição da astúcia ou do ardil, é já o produto do “aparecimento” do marginal. A antiga ambivalência do malandro, que nunca favorecera a sua representação social como “bandido”, encaixava-se melhor, agora, com as ilegalidades astuciosas das classes médias e superiores, dos funcionários públicos e da polícia civil, enquanto aos contraventores e criminosos das áreas urbanas e dos extratos sociais representados como socialmente marginais cabia adequadamente o novo sentido do banditismo urbano [grifos do autor] (Misse, 1999, p.189-190).

Assim, em “Jerônimo”, o fato de o personagem sair incauto não indicaria exatamente imprudência, mas uma despreocupação (“não esquenta a cuca”) de quem sabe se garantir sem precisar pegar no pesado (tanto no trabalho quanto na malandragem), que nada conforme a maré do asfalto, sem correr risco de ser pego pela polícia – agora interessada em outros “tipos sociais de sujeição criminal” (Misse, 1999). Fora do alvo policial e com menos recursos de periculosidade, frente aos avanços da criminalidade urbana, é natural que Jerônimo passasse a ser visto como inocente (sentido também dado pelo adjetivo “incauto”), assim como seus atos parecessem inofensivos, até justificáveis.

O cenário dialogaria com a noção de “mundo sem culpa”, em que “a avaliação das ações é feita segundo a sua eficácia” (Candido, 1993, p.48), mas também com a acomodação de carências na sociedade brasileira. O saber-viver de Jerônimo, que salva a si mesmo no contexto da narrativa cantada, explicaria em alguma medida um olhar favorável para a malandragem, a partir de uma ênfase em seu aspecto de marginalidade econômica. Apesar da tolerância, a normalização da malandragem, no mesmo ritmo do rebaixamento da vida da população, se configuraria em uma dimensão sombria, tendo em vista o grau de violência imposto por essa luta cotidiana pela sobrevivência.

O domínio que Jerônimo demonstra de suas condições de existência reflete também seu grau de distinção como malandro do “metiér”, categoria especializada da malandragem, que ironicamente evoca um corporativismo, ao mesmo tempo em que atesta a disseminação de lógicas empresariais em vários âmbitos da sociedade, inclusive no universo marginal. O malandro sempre representou uma figura singular, cujas práticas e atitudes não eram acessíveis aos demais indivíduos, no que também residia parte de seu encanto. As particularidades de Jerônimo carregam um pouco desta perspectiva, mas a sua especialização soa como um atributo frente à concorrência com outros indivíduos, que da mesma forma passariam a apostar na malandragem em nome da manutenção material da própria existência. Para dizer o mínimo, a maestria de quem conhece as “inúmeras possibilidades de vida nas frestas” (Simas e Rufino, 2018, p.83) se tornaria uma inspiração.

Na narrativa cantada, os verbos no presente demarcam como a malandragem ainda é uma façanha possível para alguns indivíduos. Mas é preciso ter “engenho e arte”, em que “engenho” também pode ser sinônimo para “estratagema ardiloso”, segundo consta no dicionário Houaiss, que exemplifica a acepção com a seguinte frase: “O engenho dos espertos ludibria os tolos”. No dicionário Michaelis, a palavra também é definida como “ação com o objetivo de enganar alguém ou prejudicar alguém ou algo; ardil, tramoia”.

Para subsistir, Jerônimo lança mão de diversas estratégias que fazem dele mais do que um “malandro de segunda linha”. O verso supõe justamente uma linhagem ou genealogia da malandragem, implícita ainda nas alusões ao protagonista como “pai” e “rei”, que também sugerem uma antiguidade, reforçando o sentido percebido na letra do samba sobre as mudanças nas representações da malandragem ao longo da nossa História. Assim, o personagem da canção é alguém que desempenha suas atividades com superioridade, sem se equiparar nem a um reles e inexperiente gatuno, nem a quem recorre ao seu legado para vencer ou, melhor dizendo, ganhar a vida na Pauliceia.

A experiência do protagonista, transmitida pelo narrador, parece ter atingido um grau de acúmulo prestes a se dissipar – descontinuidade que também fica sugerida pelo prolongamento das vogais na pronúncia do nome do malandro (Tatit, 2016). Desde a introdução musical, é possível perceber um tom desconcertante, que passa pelo canto comedido de Germano Mathias. Aliás, há que se reconhecer o acerto da escolha do intérprete (representante por excelência de uma figura de malandragem paulistana) para dar voz e, de certa forma, incorporar vestígios à narrativa cantada. Com o passado evocado e o presente bem marcado, nos resta imaginar quem seriam os herdeiros ou sucessores de Jerônimo no futuro.

Diante do quadro apresentado, parece não fazer sentido pensar ainda nos termos da “malandragem tradicional”. É como se a canção flagrasse um último momento antes das transformações provocadas pela consolidação do neoliberalismo, que apontariam para outras relações com o capital em vários âmbitos, inclusive nas modalidades da malandragem. O último verso da letra, “l’argent toujours” ou “sempre o dinheiro”, em tradução livre, seria uma pista da direção para onde a “malandragem da leve” de Jerônimo e a sociedade se encaminhariam.

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1 Samba malandro é uma denominação utilizada por Cláudia Matos (1982) como uma das vertentes temáticas e estilísticas na produção de sambas, que toma forma a partir das décadas de 1930 e 1940. Essa expressão poético-musical é responsável por promover a ideologia e a linguagem malandras, associadas, no plano melódico, à perícia rítmica e à levada sincopada que produzem a ginga característica da personagem malandra.

2 Entrevista ao portal Gafieiras, em 2002. Disponível em: http://gafieiras.com.br/entrevistas/germano-mathias/1/. Acesso em 2 de maio de 2021.

3 “Memória: a malandragem paulistana”, Rosa Bastos, in: O Estado de S. Paulo, 9/2/2003, p. C4.

4 Caco Velho, nome artístico de Matheus Nunes, foi um sambista gaúcho, negro, que ganhou notoriedade pela sua “técnica vocal, seu domínio rítmico e a capacidade de improvisação”, que influenciaram o canto de Germano Mathias (Ramos, 2008, p.58). Em 1962, o malandro paulistano também assumiu o lugar de seu mestre no Brazilian’s Bar, casa noturna localizada na rua Peixoto Gomide (RAMOS, 2008, p.67). Juntos, compuseram “O Toró Já Chegou”, que entra no LP Samba é Comigo Mesmo (CBS/Entré), de Germano, lançado em 1971, mesmo ano da morte do ídolo gaúcho. Em 2005, Germano o homenageia com o álbum Tributo a Caco Velho, da Atração Fonográfica.

5 Entrevista ao portal Gafieiras, em 2002. Disponível em: http://gafieiras.com.br/entrevistas/germano-mathias/1/. Acesso em 2 de maio de 2021.

6 Outros sambistas que se destacaram ao cantar a malandragem, como Geraldo Pereira, natural de Juiz de Fora (MG), e Bezerra da Silva, nascido em Recife (PE), também não eram cariocas, mas se formaram artisticamente em meio ao “mundo da malandragem” no Rio de Janeiro.

7 “Guarde a Sandália Dela”, de Sereno e Germano Mathias, Em Continência ao Samba (1958), RGE.

8 “Feitiço Fracassado”, de Wilvio Sá e Germano Mathias, Em Continência ao Samba (1958), RGE.

9 “Figurão”, de Doca e Germano Mathias, Em Continência ao Samba (1958), RGE.

10 “Audiência ao Prefeito”, de Orlando Líberó e Tobis, Em Continência ao Samba (1958), RGE.

11 “Lata de Graxa”, de Mário Vieira e Geraldo Blota, Em Continência ao Samba (1958), RGE.

12 “Minha Nega na Janela”, Doca e Germano Mathias, Germano Mathias, o sambista diferente (1957), Polydor.

13 “Senhor Delegado”, Ernani Silva e Antoninho Lopes, Germano Mathias, o sambista diferente (1957), Polydor.

14 “Baiano Capoeira”, Jorge Costa e Geraldo Filme, Ginga no Asfalto (1962), Odeon.

15 “O Assalto”, Zé Kéti, Samba de Branco (1965), Polydor.

16 Por exemplo, o “malandro da leve”, denominação adotada pelo próprio Germano Mathias, que indicaria um tipo de malandro considerado inofensivo (ao menos do ponto de vista da integridade física dos alvos de suas ações), mas associado a delitos como o punguismo, o rufianismo, a gatunagem, a aplicação de golpes, a jogatina, e que também se confundiria, na tradição malandra, com a própria figura do sambista (SCIRÉ, 2019).

17 “Zé da Pinga”, Padeirinho da Mangueira, Germano Mathias (1974), Beverly.

18 Para análises mais detalhadas sobre as letras das músicas citadas, ver a minha dissertação de mestrado, Ginga no Asfalto: figuras de marginalidade nos sambas de Germano Mathias e nos raps do Racionais MC’s (2019). Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/31/31131/tde-19122019-125645/pt-br.php. Acesso em 6 de maio de 2021.

19 O álbum mais recente de Germano Mathias, Sambas de Morro – Inusitado Peculiar Sui Generis, foi lançado pela Tratore em 2016. O sambista se apresenta esporadicamente em bares – as duas últimas apresentações que tive a oportunidade de assistir aconteceram em 2019. Em 2020, Germano Mathias participou da faixa “Bordado da Cortina”, do músico Guilherme Lacerda.

20 Ver, por exemplo, a faixa “Malandro Não Vacila”, gravada com Manu Lafer, no álbum Meu Samba É de Futebol!, pela Tratore (2014).

21 “Sei das minhas qualidades artísticas, mas hoje cantar é um ‘bico’ para mim”, afirmava Germano Mathias em uma reportagem que ocupava toda a página 30 do jornal O Estado de S.Paulo, em um domingo, 19/06/1983. Lá se iam quase dez anos da gravação do LP Germano Mathias (1974), pela Beverly BLP, que pode servir como um marco do fim da fase áurea do sambista, quando gravava um disco por ano ou a cada dois anos, em média. Com o título “Anonimato, ascensão, fama. Esquecimento”, o texto de Waldo Claro, Ana Ligia Petrone e Alexandre Bressan discutia o caso de artistas “consagrados”, que “fizeram muito sucesso”, “ditaram moda”, “ganharam muito dinheiro”, “ajudaram as gravadoras a faturarem”, mas que perderam o espaço no mercado musical e foram “ludibriados” quanto aos direitos autorais. Na reportagem, Germano é colocado ao lado de cantores da “música jovem”, como Ronnie Cord, Tony Campelo e Wilma Bentivegna. Mas em um box, no meio da página, o crítico musical Zuza Homem de Mello diferenciava-o dos demais, explicando que à exceção do “bom sambista de bossa de São Paulo”, os cantores citados fizeram sucesso “por tabela”, baseados em versões que as gravadoras lançavam como estratégia para preparar o público para os hits internacionais. Por sua vez, a reportagem comentava que, para Germano, a bossa-nova e o iê-iê-iê “foram os responsáveis para que as gravadoras e os programadores esquecessem do sucesso que fez com ‘Minha Nega na Janela’, ‘Guarde a Sandália Dela’ e ‘Malvadeza Durão’”, o que nos leva a pensar também sobre o valor comercial do samba malandro durante um período e a sua perda de mercado. Mas o sambista também atribuía as suas dificuldades ao fato de ter gasto todo o dinheiro que ganhou quando fazia sucesso em “farras” e de ter “perdido o lugar” – seu posto de trabalho –, depois de um afastamento motivado por um acidente, quando viajava em turnê pelo Sul, em 1975. Parece história de malandro (e não é?), mas entre outros bicos, Germano atuou como Oficial de Justiça e, à época da reportagem, era fiscal de execução do Escritório Central de Direitos Autorais (Ecad). Segundo o texto, se sentia injustiçado, mas não desanimava: “sempre que solicitado, não hesita em se caracterizar com o estilo que interpreta, o ‘samba de morro, malandro, de muita ginga’.”

22 Terceira faixa do lado A, “Cambalacho” Nacional (1986), trilha sonora da novela da Rede Globo, gravadora Som Livre.

23 Cambalacho é uma das sete novelas mais vistas da história da Rede Globo, estreou em 10 de março de 1986 e foi a primeira produção das 19h a bater uma trama das 20h. No mês de maio de 1986, no Rio de Janeiro, “liderou com 91,1% de participação sobre o total de aparelhos ligados, enquanto o remake de Selva de Pedra, que ocupava o horário das oito, ficava com 83,9%. A novela das seis, Sinhá Moça, tinha 83,5%. Já em São Paulo, no mesmo período, Cambalacho alcançava 84,4% de share, enquanto Selva de Pedra ficava com 81,3% e Sinhá Moça tinha 74,9%”. Em 16 de março de 1986, o colunista Artur da Távola, do jornal O Globo, destacava que Silvio de Abreu havia descoberto uma fórmula e começava a caracterizar um estilo próprio de telenovela das sete. Conforme matéria de Thell de Castro publicada no portal UOL em 30/8/2015: “Em 1986, Cambalacho deu mais audiência do que a novela das oito”. Disponível em: https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/televisao/em-1986-cambalacho-deu-mais-audiencia-do-que-a-novela-das-oito-9046. Acesso em 10 de maio de 2021.

24 Recordando Memórias de um Sargento de Milícias (1854), de Manuel Antonio de Almeida, romance que segundo Antonio Candido (1970) apresenta o “primeiro grande malandro” da novelística brasileira, não parece eventual que Silvio de Abreu tenha escolhido o nome de “Leonarda Furtado” para a protagonista trapaceira e que ela tenha como parceiro em suas tramoias um “compadre”. O enredo de Cambalacho apresenta diferentes tipos de golpistas e a ideia que é possível levar vantagem em tudo perpassa os núcleos da trama: a personagem principal vive de trambiques, mas possui um orfanato em casa, para “aliviar a culpa” pelos atos que comete; a vilã se casa com um milionário cobiçando a sua herança, mas no testamento o legado é deixado a uma filha desparecida; uma impostora e seus dois comparsas tentam ficar com a fortuna; um advogado comete atos ilícitos para favorecer a amante... A universalidade da conduta das personagens parece se tratar mais da conformação de uma dinâmica do que de um desvio, ainda que Silvio de Abreu buscasse “criticar o comportamento condescendente frente a falcatruas e à corrupção”, de acordo com as informações oficiais disponíveis no portal “Memória Globo” (Disponível em: https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/novelas/cambalacho/. Acesso em 20 de maio de 2021). O folhetim, primeiro trabalho do autor a não sofrer censura, foi exibido no final da ditatura militar, quando começam a vir à tona histórias de corrupção durante o período. Vale lembrar que a Globo apoiou o Golpe Militar de 1964, fato reconhecido como um erro no editorial publicado no jornal O Globo (https://oglobo.globo.com/brasil/apoio-editorial-ao-golpe-de-64-foi-um-erro-9771604) em meio à onda de manifestações em 2013 contra a “corrupção generalizada”, entre outras pautas – momento, portanto, nada ocasional, como também não deve ter sido casual a reexibição de Cambalacho entre 24 de agosto de 2015 e 19 de março de 2016, no canal por assinatura Viva, que pertence à emissora.

25 Conforme Anatol Rosenfeld (2004, p.18-19), os termos lírico, épico e dramático podem ser entendidos em sentido adjetivo, como traços estilísticos observados em qualquer obra e mesmo em produções extraliterárias. De acordo com o autor, os traços épicos se revelam a partir de um narrador que possui uma atitude objetiva e fala com serenidade sobre situações e personagens das quais parece já conhecer o futuro, mas de maneira distanciada, sem estar identificado ou fundido com elas.

26 A mudança aconteceu pouco antes da estreia de Cambalacho. Como as cenas da novela já haviam sido gravadas, a solução foi mostrar na tela letreiros com a correspondência dos novos valores. Conforme o portal “Memória Globo”. Disponível em: http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/cambalacho/galeria-depersonagens.

htm. Acesso em 10 de maio de 2021.

27 De acordo com o índice geral de preços da Fundação Getúlio Vargas, a inflação atingiu uma taxa anual de 517% nos meses de janeiro e fevereiro de 1986. Verbete “Plano Cruzado”. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).

Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/plano-cruzado. Acesso em

10 de maio de 2021.

28 O Coeficiente ou Índice de Gini é uma medida de desigualdade, que varia de 0 a 1, em que 0 corresponderia à igualdade total.

29 A respeito das relações entre o samba da década de 1930 e a CLT, ver a dissertação de mestrado de Martin Loffredo Nery (2017): O samba pelo viés da ordem do trabalho - inflexões: 1930-43, apresentada ao Instituto Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/31/31131/tde-23112017-105333/pt-br.php. Acesso em 10 de maio de 2021.

30 A imagem também remete a uma legião de “Zés”, termo usado para ser referir aos despojados, aos excluídos, e que dialoga com a própria linha da Malandragem na Umbanda, guiada por Zé Pelintra.