Aprendizagem como desajustamento: considerações sobre Resumo de Ana, de Modesto Carone

Wilson José Flores Jr.

Universidade Federal de Goiás, Brasil
wfloresjr@ufg.br

Fecha de recepción: 19/5/2020.

Fecha de aceptación: 20/10/2020.

Resumo

O artigo analisa Resumo de Ana (1998), do escritor brasileiro Modesto Carone, entendendo-o como romance de aprendizagem. As situações narradas no livro estão centradas em duas personagens, Ana e Ciro, mãe e filho, e abrangem um período de cem anos da história brasileira. Para as personagens do livro, Ana em particular, a parca educação estética que alcançam acaba por operar como desajustamento, uma vez que colide com situações históricas e sociais que frustram as aspirações, ainda que moderadas, suscitadas pelo contato com a ópera, a música e com noções elementares de elegância e civilidade. Para situar a discussão, é feita uma apresentação breve do emprego da noção de Bildungsroman no Brasil, frequentemente associada à compreensão não apenas de importantes textos da literatura brasileira como também, a partir deles, dos impasses em que se enreda a própria formação do país.

Palavras-chave: romance de aprendizagem; romance brasileiro contemporâneo; educação estética; desajustamento; crítica materialista.

Apprenticeship as maladjustment: reflections on Resumo de Ana, by Modesto Carone

Abstract

This paper analyses Resumo de Ana (1998), written by the Brazilian author Modesto Carone, based on the concept of apprenticeship novel. The situations which are narrated in the book are focused on two characters, Ana and Ciro, mother and son, and cover a period of one hundred years of Brazilian history. As far as the characters are concerned, particularly Ana, the scarce aesthetic education they acquire ends up bringing forth maladjustment, since it collides with both social and historical events, which frustrate their, even if faint, aspirations, the latter having been caused by their contact with opera, music and elementary notions of elegance and civility. In order to situate the discussion, a brief introduction to the reflexions on Bildungsroman in Brazil is initially made, for it is not only frequently associated with the comprehension of some very important texts produced in Brazil, but also with the impasse of the formation of the nation itself, once such texts are taken into account.

Keywords: apprenticeship novel; contemporary Brazilian novel; aesthetic education; maladjustment; materialist critique.

1

Ainda que a noção de Bildungsroman seja empregada em diversos estudos de maneira extremamente abrangente, de forma a perder seu valor heurístico, a crítica mais rigorosa não sustenta que haja uma tradição do romance de formação na literatura brasileira. A designação costuma ser empregada visando ao reconhecimento de traços e procedimentos associados à formação e deformação de alguns importantes, mas pontuais, personagens e romances. Tais análises costumam ter como ponto de fuga a reflexão sobre a formação do país, uma vez que a própria literatura, assim como ocorre com certa recorrência em países periféricos, possui no Brasil um caráter empenhado. Antonio Candido, em Formação da literatura brasileira (1955), destaca que a “atividade literária” tendeu a ser vista pelos escritores brasileiros, “como parte do esforço de construção de um país livre, em cumprimento a um programa, bem cedo estabelecido, que visava a diferenciação e particularização dos temas e modos de exprimi-los”. A “intenção mais ou menos declarada de escrever para sua terra, mesmo quando não a descreviam”, redundou, como reconhece o crítico, muitas vezes, “em prejuízo e desnorteio sob o aspecto estético” (Candido, 1993: 26). Devido, entre outros fatores, à tardia implementação e consolidação de universidades no Brasil, foi por meio da literatura que o país concebeu suas possibilidades históricas, realizou a crítica de seus limites e problemas, estabelecendo parte das linhas mestras que pautaram ao longo do tempo a reflexão social. A “dialética entre universalismo e particularismo”, fruto da necessária (consideradas as condições concretas do país) dupla fidelidade ao dado local e ao molde europeu, seria a principal expressão desse esforço, exprimindo, como sintetiza o filósofo Paulo Arantes, “não só a lógica específica do sistema literário brasileiro mas também a regra geral de certas linhas evolutivas de nossa sociedade a que o ensaio clássico de interpretação do Brasil deu o nome de Formação” (Arantes, 1992: 17). Nessa direção, em outro texto, Arantes destaca:

salvo em casos flagrantes de autoengano deliberado, todo intelectual brasileiro minimamente atento às singularidades de um quadro social que lhe rouba o fôlego especulativo sabe o quanto pesa a ausência de linhas evolutivas mais ou menos contínuas a que se costuma dar o nome de formação. Que se trata de verdadeira obsessão nacional dá testemunho a insistente recorrência do termo nos principais títulos da ensaística de explicação do caso brasileiro: Formação do Brasil contemporâneo; Formação política do Brasil; Formação econômica do Brasil; Formação do patronato político brasileiro etc. – sem contar que a mesma palavra emblemática designa igualmente o assunto real dos clássicos que não a trazem enfatizada no título, como Casa grande & senzala e Raízes do Brasil. (Arantes, 1997: 11)

No caso específico do emprego por parte da crítica literária da noção de Bildungsroman, Massaud Moisés, por exemplo, cita como sendo “romances de formação até certo ponto”, Amar, verbo intransitivo (1927), de Mário de Andrade, “os romances do ‘ciclo do açúcar’ (1933-1937), de José Lins do Rego, Mundos mortos (1937), de Octávio de Faria, Nome de guerra (1938)” (Moisés, 2004: 56) e, sobretudo, O ateneu (1888)1, de Raul Pompéia (1863-1895), que outro crítico, José Antonio Pasta Jr., considera o “Bildungsroman brasileiro por excelência” (Pasta Jr., 2010: 15), ainda que marcadamente negativo. O romance inicia-se com uma visita feita pelo protagonista e seu pai ao colégio interno num dia de festa. A primeira impressão de ambos é excelente, mas a vida no internato acaba sendo marcada por “um ABC do terror”, para usar a expressão que Marcus Mazzari emprestou de um verso de Rilke para se referir ao romance de Pompéia (Mazzari, 2010: 159).

Também importante é a leitura que Willi Bolle2 faz de Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa (1908-1967). O crítico relaciona o romance à tradição dos “retratos do Brasil”3: “postado à margem do Rio São Francisco, que é o ‘grande rio da civilização brasileira’, o narrador Riobaldo exerce o papel de um investigador dos discursos que falam da história do país, sobretudo daquilo que ela tem de oculto, demoníaco e dissimulado” (Bolle, 2004: 8). O romance de Rosa, defende Willi Bolle, seria “o mais detalhado estudo de um dos problemas cruciais do Brasil: a falta de entendimento entre a classe dominante e as classes populares, o que constitui um sério obstáculo para a verdadeira emancipação do país” (Bolle, 2004: 9). A relação com os ensaios sociológicos e historiográficos que formam a tradição de reflexão sobre o país levou o crítico “à conclusão de que [Grande sertão: veredas] é o romance de formação do Brasil” 4 (Bolle, 2004: 9), na medida em que Guimarães Rosa, “através da invenção da linguagem”, teria refinado “o médium para [o] país pensar sobre si mesmo” (Bolle, 2004: 10).

Cabe ainda mencionar um importante ensaio de Antonio Candido, “Educação pela noite”, em que o crítico analisa dois textos de Álvares de Azevedo (1831-1852)5: “Macário”, um drama que ficou incompleto, quase apenas no esboço, e “Noites na taverna”, um conjunto de cinco narrativas ligadas por “certa comunidade de atmosfera, que as torna aspectos de uma linha ideal de assombramento e catástrofe”, configurando “experiências-limite, marcadas pelo incesto, a necrofilia, o fratricídio, o canibalismo, a traição, o assassínio” (Candido, 1989: 17). O personagem principal de “Macário” é um estudante aborrecido e entediado que encontra, como que por acaso, o diabo enquanto voltava para a cidade onde estudava, São Paulo. Para Candido, o drama representaria a “invenção literária da cidade de São Paulo” (Candido, 1989: 12), por ter suscitado “a noite paulistana como tema, caracterizado pelo mistério, o vício, a sedução do marginal, a inquietude e todos os abismos da personalidade”, “tema que fascinou gerações numa dimensão quase mitológica, repontando em muitos poemas de Mário de Andrade” e em sambas, filmes, quadros e contos de diversos autores (Candido, 1989: 13). “Macário” termina com o protagonista e Satan (personagem inspirado declaradamente no Mefistófeles do Fausto, de Goethe)6, espiando através de uma janela “uma sala fumacenta”, onde “à roda da mesa estão sentados cinco homens ébrios”, enquanto outros “resolvem-se no chão” e onde dormem “mulheres desgrenhadas, umas lívidas, outras vermelhas...” (Azevedo, 1983: 154). A cena remete ao outro texto do autor analisado por Candido, “Noites na taverna”, um conjunto de narrativas em que o crítico vê uma “pesquisa [das] fronteiras dúbias”, cuja “matéria parece concebida e escolhida por Satan como episódio duma espécie de anti-Bildungsroman, que ele propusesse para a formação (às avessas) do seu pupilo [Macário]” (Candido, 1989: 15-16), configurando o que o crítico denomina uma “educação pela noite”7.

Por certo, os exemplos destacados estão longe de esgotar o assunto, mas permitem sublinhar tanto o emprego cuidadoso da ideia de Bildungsroman quanto a recorrente relação entre personagem e país, romance e nação que mencionamos acima.

Apesar do cuidado, não se costuma fazer uma discussão das implicações teóricas e históricas da designação. Sem estender excessivamente o assunto, cabe destacar, como faz Martín Koval, que a noção de Bildung surge no discurso filosófico ilustrado alemão do século XVIII, sendo inerente a ela um conteúdo temporal, racionalista e utópico (Koval, 2018: 33). Além disso, uma vez que é “una expectativa respecto del futuro”, o caráter subjacente à noção de Bildung é otimista e idealista (Koval, 2018: 37). Koval enfatiza também que o emprego do termo Bildungsroman não é consensual. György Lukács, em Teoria do romance8, usa o termo “romance de aprendizagem” (ou de educação; Erziehungsroman), como forma de tomar distância crítica em relação à filosofia da vida de Dilthey (cuja Vida de Schleiermacher é, em grande parte, a obra responsável pela difusão ampla do termo) e de marcar, ao mesmo tempo, um “retorno” a Hegel (Koval, 2018: 64), uma vez que foi na Estética que “por primera vez en la historia de la teoría y crítica del Bildungsroman, se llama la atención también respecto de aquello que pierde el sujeto en su desarrollo y en su integración” (Koval, 2018: 60). Para Lukács, afirma Koval, “la novela de educación se propone como aquella en la que es posible un entendimiento entre el alma y el mundo”, contexto em que surge a categoria de reconciliação do indivíduo com a realidade social, da interioridade com o mundo (Koval, 2018: 64):9

el individuo solitario aparece ahora como una “cosa provisional”, a ser superada por medio de un “proceso educativo” mediante el cual los hombres se adaptan y acostumbran a convivir y cooperar (Lukács, 1988: 400 apud Koval, 2018: 64). Lo que Lukács coloca en primer plano es, así, lo contrario de aquello que resaltaba Dilthey: si este se refería a las novelas de formación como novelas de la individualidad, el filósofo húngaro destaca la sociabilidad, el momento de la trabajosa agregación del individuo a la sociedad. (Koval, 2018: 65)

Em Resumo de Ana, como discutiremos, a aprendizagem assume caráter predominantemente negativo, na medida em que não resulta em convivência, cooperação ou alguma forma de entendimento entre o sujeito e o mundo. De todo modo, como procuraremos argumentar, tal ênfase não encerra completamente os sentidos em jogo no romance de Modesto Carone, uma vez que, ao menos como aspiração, o aprendizado das personagens aponta para uma vida mais autêntica e um país menos nefasto.

2

Resumo de Ana (1998), de Modesto Carone (1937-2019), centra-se em duas personagens, Ana e Ciro, mãe e filho, e abrange um período de cem anos da história brasileira. Para ambas, Ana em particular, sua modesta aprendizagem acaba por operar como desajustamento, uma vez que colide com situações históricas e sociais que frustram as aspirações, ainda que moderadas, suscitadas pelo contato com a ópera, a música e com noções elementares de elegância e civilidade.

Modesto Carone foi professor, tradutor e ficcionista. Deu aulas na Universidade de Viena (Áustria), na Universidade de Campinas (UNICAMP), onde ficou 15 anos, entre 1981 e 1996, e na Universidade de São Paulo (USP). Nasceu em Sorocaba, cidade onde se passa a maior parte dos acontecimentos narrados em Resumo de Ana.

Traduziu diferentes autores, mas o maior projeto de sua vida foi, sem dúvida, a tradução da obra de Franz Kafka para o português. Em 1968, a convite de Anatol Rosenfeld, um importante filósofo, ensaísta e crítico judeu-alemão que migrou para o Brasil em 1937 devido à perseguição nazista, Carone traduziu o livro Kafka: pró e contra, de Günther Anders. A atração que sentia pela obra de Kafka, somada à percepção da pequena quantidade de textos traduzidos para o português, bem como da precariedade das poucas traduções existentes na época, geralmente feitas a partir de versões em inglês e francês, motivaram-no a iniciar a tradução das obras completas do escritor theco em 1983. A única obra de Kafka que Carone não traduziu integralmente foi o romance O desaparecido (América). Desta obra, escrita entre 1911 e 1914 e que ficou inacabada, Modesto Carone traduziu o primeiro capítulo, O foguista, que foi publicado pelo autor tcheco como peça autônoma em 1913. Além disso, a tradução das cartas de Franz para sua noiva, Felice Bauer, ficou incompleta. O trabalho de Modesto Carone não apenas preencheu a imensa lacuna que dificultava o acesso do leitor de língua portuguesa à obra de Kafka, como o fez primorosamente.

A ideia do “narrador insciente” de Kafka que compartilha a perplexidade e a ignorância com personagens e leitor é citada por Carone em diversas ocasiões e é um elemento importante em sua produção ficcional que é formada, além de Resumo de Ana, por quatro volumes de contos: As marcas do real (1979), Aos pés de Matilda (1980), Dias melhores (1984) e Por trás dos vidros (2007).10

Outro autor que se destaca entre as referências do escritor brasileiro é Paul Celan. Em entrevista concedida a Ana Paula Pacheco e Priscila Figueiredo, Carone faz um comentário sobre o poeta judeu de língua alemã, nascido na Romênia que é bastante sugestivo não apenas para pensar a produção do poeta, marcada pelo hermetismo e por uma “obscuridade congênita” (Carone, 2004: 130), mas também para a discussão do estilo do autor de Resumo de Ana. Para Carone, “Celan está falando de uma realidade, procurando não só a frase essencial, como um detalhe essencial e uma contenção essencial” (Carone, 2001: 197). Um dos livros de crítica publicados por Modesto Carone, A poética do silêncio (1979), é um estudo dedicado a Paul Celan e ao poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto. Na análise comparativa, o crítico destaca em ambos a linguagem concentrada que “visa a precisão, não transfigura nem poetiza, procura o âmbito do que é dado e do que é possível”.11 A “contração e o esfacelamento do discurso” em Celan, argumenta o autor, seriam análogos “às abreviaturas e dissonâncias de Anton Webern” (Carone, 2004: 130). Aliás, a ideia do “resumo” é, como declara Carone, inspirada no compositor austríaco, que defendia ser possível reduzir uma sinfonia romântica a um minuto. No caso de Resumo de Ana, a síntese, a busca obstinada pelo essencial (que também se encontra – com as especificidades de cada autor – em Machado de Assis, Graciliano Ramos e Georg Trakl, outras três referências literárias decisivas para o escritor) é vista pelo autor como uma exigência da própria matéria narrada “porque se tratava de vidas mínimas, com um máximo de aspiração” (Carone, 2001: 198).

Carone afirma ainda que em Resumo de Ana haveria algo de “romance de formação”, definido brevemente pelo autor como “uma representação extensiva de toda uma existência, que mostra como o desejo individual colide com o constrangimento social e forma a personalidade” (Carone, 2001: 193). É uma definição rápida, sem dúvida, feita numa entrevista, mas que enfatiza elementos centrais do subgênero e ajuda a definir um ponto de partida para discutir o romance a partir da perspectiva que estamos propondo aqui.

O livro pode ser definido como um romance breve que resulta de duas novelas interligadas. A primeira, “Resumo de Ana” (que dá título ao livro), foi publicada pela primeira vez em 1989 na Revista Novos Estudos Cebrap; “Ciro” permaneceu inédito até sua publicação em livro em 1998. A distinção entre romance, novela e conto, como se sabe, varia muito. Há uma tendência comum que usa como parâmetro a extensão do texto, o que, na prática, pouco contribui para o entendimento de narrativas particulares, uma vez que a definição do limite entre um gênero e outro é sempre muita imprecisa. Apoiando-se, em parte, numa definição que remonta a Ludwig Tieck e Friedrich Schlegel, Carone refere-se à novela como “uma narrativa realista que vai se desenrolando até certo ponto, até que ocorre um acontecimento interveniente, um turning-point, ou Wendepunkt, uma virada que atira a história para o desenlace com a necessidade interna de um drama teatral”, reconhecendo, nas narrativas de Resumo de Ana,um afunilamento para um desfecho” (Carone, 2001: 192), de forma que sua estrutura seria, nesse sentido, trágica.

A primeira narrativa é a história de Ana Baldochi, nascida Godoy de Almeida, avó do narrador que não a conheceu pessoalmente. Tudo o que sabe a respeito dela foi contado a ele, após muita insistência, por sua mãe, Lazinha, filha mais velha de Ana. Apesar de gostar de contar casos da família, ela evitava entrar em detalhes sobre a vida de sua mãe e, sempre que o assunto surgia, encontrava uma desculpa para contorná-lo: “A impressão que me dava, vendo-a passar o dedo em cima de um friso da toalha ou de um veio saliente no braço da poltrona, era de alguém que no primeiro instante se recorda e no seguinte abafa compulsivamente as imagens evocadas” (Carone, 2002:15). Já de início camadas distintas se justapõe: Ana, Lazinha e Modesto eram parentes; as situações narradas no livro aconteceram com Ana; a versão que chega ao leitor é o resultado do trabalho de organização, seleção e articulação feito pelo narrador a partir das histórias que lhe foram contadas pela mãe; e, mais importante, o entrecho, embora fundamental, está subordinado (como ocorre em parte significativa da ficção moderna e contemporânea) a um rigoroso arranjo formal, que condensa a expressão ao máximo, recusando o sentimentalismo.

Algo semelhante ocorre na segunda narrativa, “Ciro”. Foi o único filho homem de Ana e teve duas irmãs: Lazinha, seis anos mais velha, e Zilda, um ano mais nova que ele. Algumas cenas da primeira narrativa retornam também nesta, mas há diferenças importantes entre as histórias. A mais relevante é que nesta é o narrador quem busca conhecer a história de Ciro, chegando a encontrar o tio pessoalmente algumas vezes. A mediação de Lazinha desaparece e o narrador assume um papel mais decisivo na narrativa, tornando-se um personagem da trama, ainda que permaneça diligentemente distanciado.

Em Resumo de Ana, as histórias individual e familiar, mediadas por um cuidadoso trabalho com a forma literária, sem deixarem de ser o que são, articulam-se a uma visão crítica do mundo moderno e, em particular, da história do Brasil, como fica indicado já na epígrafe do livro: “Fiéis servidores da nossa paisagem”, verso do poema “Os bens e o sangue”, parte do livro Claro enigma (1951), de Carlos Drummond de Andrade. Além disso, implicam uma tomada de posição clara e consciente por confrontar as agruras da modernização pela ótica dos desvalidos.

3

Para discutir em maiores detalhes o estilo do autor, tomemos o trecho, logo no início do livro, em que o narrador apresenta as primeiras informações sobre Ana.

Os Godoy de Almeida eram sitiantes de Itavuvu, região já anexada ao município de Sorocaba. Não há documento disponível sobre suas posses, mas é provável que no correr dos anos tenham passado de proprietários a arrendatários de terras e que nas últimas décadas do século XIX tenham vivido da cultura de subsistência. Ana nasceu no sítio da família em dezembro de 1887 e ficou órfã de pai e mãe aos cinco anos de idade. Os dados a respeito dos pais são imprecisos, quando não inexistentes: ao que parece morreram na mesma época, vítimas de alguma epidemia no campo. Com a morte deles os filhos mais velhos, João e Gabriel, decidiram encaminhar a irmã, entregando-a a uma família interessada em criá-la. Ana foi recolhida do sítio em Itavuvu por uma senhora protestante de Sorocaba e a partir dessa data passou a morar na casa dela, localizada na estreita Rua Treze de Maio, hoje área central da cidade. Durante doze anos, ou seja, de 1892 a 1904, foi menos filha de criação, como se dizia, do que criada de Ernestina Pacheco. Aos seis anos de idade já cuidava de trabalhos domésticos significativos: levantava-se de madrugada, acendia o fogão a lenha, preparava a mesa do café, varria o quintal, enxaguava a roupa suja numa tina d’água, passava e engomava com ferro a carvão; para lavar a louça punha-se em pé sobre um caixote de madeira porque ainda não tinha altura suficiente para alcançar a pia. Um pouco mais tarde, depois de adestrar melhor a cria, a patroa também a incumbiu não só de cuidar de uma sobrinha doente, de dois ou três anos, que passou a morar na casa com os direitos devidos a uma parente de sangue, mas igualmente de torrar café, moê-lo no pilão e ir vendê-lo aos familiares de Júlio Prestes que ocupavam uma chácara na Rua Direita, atual Dr. Braguinha, para os quais Ana já na época lavava e engomava roupa; os rendimentos pelos serviços prestados iam para os bolsos de Ernestina, que vivia pobremente mas era proprietária de uma fileira de casas na Rua Treze. A contrapartida pelo trabalho diário de Ana, sem folga aos domingos, era teto, comida, roupa feita em casa e instrução caseira: quem alfabetizou Ana de forma rudimentar foi Ernestina, com os meios e métodos de que dispunha, sem exclusão do poder disciplinador dos coques e da reguada nos nós dos dedos. Além dessas generalidades as informações sobre o período são vagas, mas não é exagero admitir que, da infância ao fim da adolescência, órfã e sem apoio externo (o irmão João ficou muito tempo com o sítio da família e numa crise de desespero ateou fogo na plantação, queimando o dinheiro entesourado numa enxerga), a vida de Ana não foi amena, submetida como estava ao zelo e às conveniências da senhora e do marido. (Carone, 2002: 18-19)

A linguagem, como se observa, é objetiva, apresentando locais, endereços, relações de parentesco, acontecimentos, ao que se somam comentários que visam contextualizar histórica e socialmente a situação narrada. A introdução da informação de que Ana foi filha de criação, embora não altere o tom geral da narrativa, modifica significativamente o sentido do relato que assume caráter mais pessoal e, sem dúvida, mais pujante, obrigando a rever o trecho desde o início e compreender o distanciamento narrativo não como pretensão de objetividade, mas como recurso que, ao recusar o sentimentalismo, busca dignificar uma experiência que de outra forma poderia ser desprezada (uma entre tantas) ou romanticamente mistificada. A tomada de posição realista é tanto mais admirável por se tratar de uma história da família do autor, marcadas, como não poderia deixar de ser, por afeto, decoro, recato, culpa. O esforço para “não literalizar” as vidas das personagens – o que seria, como afirma Carone, “um sarcasmo” (Carone, 2001: 197) – é um modo de evitar a condescendência em relação ao que é narrado sem eliminar a possibilidade de o leitor vincular-se às situações e personagens e posicionar-se criticamente em relação à história. O efeito daí resultante, sem deixar de implicar um vínculo também emocional, não se efetiva para o leitor como catarse, isto é, como purgação das próprias paixões por meio das situações narradas. Tal procedimento remete a Kafka, mas também a Machado de Assis, em cujas obras o elemento mais abjeto é introduzido como um comentário entre outros, uma informação a mais, exigindo do leitor uma atitude permanentemente vigilante para não compactuar com a barbárie nem deixar de reconhecer os pormenores que dão concretude a relações que estão, frequentemente, naturalizadas na experiência cotidiana.

Outro elemento que vai na mesma direção é a completa ausência de diálogos em todo o livro. As personagens “não têm voz” – nem as protagonistas –, suas vozes são sempre referidas. O narrador é, todo o tempo, elemento de mediação entre leitor e história narrada, de forma a inviabilizar uma leitura ingênua que acompanhasse o enredo sem atentar para as mediações narrativas que balizam as complexas e sutis relações entre os “fatos reais” e a construção ficcional. A esse respeito, cabe também destacar os comentários feitos pelo narrador. Embora Resumo de Ana não possua capítulos, o autor abre espaços entre os parágrafos (dezoito ao todo) que interrompem o fluxo narrativo e introduzem interpretações de personagens e situações12, detalham pormenores essenciais para o conjunto da narrativa, apresentam descrições da cidade que colaboram para caracterizar os impasses concretos que as personagens confrontam13, mesclando o factual, a memória, a ficção e a interpretação psicológica, histórica e social.

Sem atenção às escolhas mínimas e à visada micrológica do narrador, a história acabaria por se reduzir a um relato de situações lamentáveis, mas relativamente comuns, e o tom ensaístico direto e sem atavios acabaria por ser tomado como mero distanciamento objetivista. Há elementos do ensaio histórico, sociológico e, mesmo, psicanalítico em Resumo de Ana, mas se o autor explora os limites do texto literário isso é feito em nome da literatura e não contra ela. Em outras palavras, não se trata de questionar as limitações do literário para a representação das vidas a que o autor se dedica, mas de rejeitar com veemência os clichês desgastados, as frases enfáticas, as palavras de ordem e o acúmulo do kitsch que terminam por esvaziar o potencial crítico seja por meio da comiseração emocional seja pela denúncia imediata que apenas reproduz a superfície aparente do problema.

Quanto ao que é narrado no trecho, Vilma Arêas destaca muito acertadamente que “quer sob o ponto de vista da literatura ou dos estudos sociais, Resumo de Ana, pelo tratamento do tema, é uma narrativa inaugural” (Arêas, 1997: 129), entre outros motivos por colocar no centro da cena a figura da filha de criação, muito presente na história social brasileira, mas pouco representada na literatura e pouco analisada pelo pensamento social:

a filha de criação, que não se confunde simplesmente com a agregada [...], nem com a afilhada e outras espécies de laços na constelação familiar brasileira, pode ser entendida como uma forma maquiada das relações escravistas. Até pouco tempo era uma verdadeira instituição, principalmente no interior, mas a prática não deve ter desaparecido por ser extremamente flexível: como a filha de criação não é empregada, não tem salário, e como não é filha, o trabalho é sem tréguas. [...] Ana é um exemplo cabal dessa modalidade de escravização. (Arêas, 1997: 130)

Se já não bastasse, Arêas destaca também que Ana desempenhava ainda “as funções de um negro de ganho”, uma vez que a menina “torrava e moía café, indo vendê-lo a familiares de Júlio Prestes14, para os quais também lavava e engomava roupa” (Arêas, 1997: 131), e os rendimentos desses serviços iam para Ernestina. Por mais cruel que seja, no entanto, isso não significa que não houvesse afeto entre Ana e a mãe de criação. Anos depois, quando estava trabalhando em São Paulo, a jovem chorava “contra qualquer expectativa toda vez que se lembrava de Ernestina Pacheco e de Sorocaba” (Carone, 2002: 25).

Esse misto de intimidade e exploração intensa, afeto e abuso, tão brasileiro sob tantos aspectos, institui relações escorregadias e complexas. No caso de Ana, apesar das humilhações e da exploração despudorada do trabalho, argumenta Arêas, “a fraude familiar não aparou todas as suas aspirações” (Arêas, 1997: 131). Para discutir as implicações da situação objetiva em que a jovem vivia, acompanhemos a história de Ana mais de perto.

4

Em 1904, por indicação de uma vizinha, a jovem de dezessete anos foi trabalhar na casa da família de um professor na cidade de São Paulo. Para Ana, São Paulo representou, de certa forma, uma libertação. A família para quem trabalhava morava num sobrado da Avenida Angélica, em Higienópolis, onde, muitos anos antes, havia uma antiga trilha de eucaliptos, da qual só restara algumas poucas árvores que carregavam o ar de “vestígios do passado”: “Ana respirava aquele cheiro [de eucaliptos] como quem trata da saúde, já que o seu sustento dependia do rendimento do corpo” (Carone, 2002: 20)15. O comentário do narrador é altamente sugestivo: se a condição de cria da casa e de trabalhadora doméstica aproximava Ana, de certa forma, da escravidão, também evocava a exploração a que é submetida a prostituta devido à dependência do “rendimento do corpo”, seja no sentido da capacidade física de realizar uma atividade, seja no sentido da receita que o trabalhadora é capaz de obter por meio dele. Não se imagine, contudo, que essa dependência do corpo leve a alguma erotização, ainda que pontual. Ao contrário, as personagens surgem deserotizadas porque presas a uma cadeia de deveres que resulta em frustrações sucessivas. Mesmo o desejo sexual reponta apenas ocasionalmente, sem ênfase. Um dos poucos destaques do tempo em que trabalhou com essa família refere-se ao fascínio que a “caligrafia exemplar” dos filhos do professor despertava em Ana (Carone, 2002: 21). Essa fascinação pela cultura e pelo refinamento, como veremos, é central para a compreensão dos sentidos do aprendizado da jovem.

Após algum tempo, passou a trabalhar para a família de “mister Ellis”, inglês de nascimento, funcionário da Light16 e “casado com uma brasileira aparentada dos Mascarenhas, sócios dos Pacheco [a família de Ernestina] em Sorocaba” (Carone, 2002: 22). Aos dezenove anos, Ana “aos poucos se introduzia num ambiente próspero que atendia às suas exigências de autoestima” (Carone, 2002: 23). A jovem, além de suas ocupações domésticas, “fazia as vezes de dama de companhia da dona da casa, Judith, uma jovem senhora ilustrada” (Carone, 2002: 23) e passou a cultivar a etiqueta e as formas de amabilidade que aprendia no convívio com os patrões, além de (e isso o narrador assinala como sendo o mais importante) participar dos “hábitos culturais da família” (Carone, 2002: 23): ia ao Teatro Municipal, com “direito a roupa de gala e poltrona na plateia”, onde assistia óperas e espetáculos musicais. O aprendizado de Ana se deu em ambientes domésticos, em que trabalhava com mais ou menos liberdade, mas, de certa forma, sempre confinada. O contato com o teatro representa, para ela, um elemento de “educação estética”, ao mesmo tempo em que define os contornos de seu parco contanto com o mundo exterior, sempre mediado pelas relações ambivalentes de proximidade pessoal e relação de trabalho.

Ana conviveu com os Ellis durante cinco anos (1906-1911), período que se encerra com a prisão do patrão “por desfalque fraudulento na Light” (Carone, 2002: 28). Foi, então que decidiu voltar a Sorocaba e aceita se casar com um antigo pretendente, Balila Baldochi, imigrante nascido em 1886 em Marselha, cujos pais eram italianos da Toscana. O narrador menciona que Ana se incomodava com a “fala arrevesada” do rapaz, mistura mais ou menos indistinta de italiano (falado em casa quando criança), francês (falado na escola) e português, bem como com seu “corpo obeso e [suas] maneiras irremediavelmente toscas” (Carone, 2002: 26). Balila era dono de uma padaria em Sorocaba e o casamento contava com a aprovação de Ernestina Pacheco que “considerava [o rapaz] um bom partido” (Carone, 2002: 30). Ana procurou marcar, desde o início, “alguns limites precisos entre os deveres indiscutíveis e o espaço reservado à autossatisfação”, sobretudo “o que desde a volta de São Paulo considerava como as suas conquistas pessoais”: “reivindicações modestas como ir ao teatro e à ópera vestida com um esmero capaz de alegrar a sua alma ou ver respeitada em casa ou fora dela a etiqueta aprendida e incorporada” (Carone, 2002: 32).

Balila não se opôs a nenhum dos “caprichos” de Ana. Mas, desde o início, a relação entre eles foi relativamente distante, sobretudo porque o marido, aos olhos da esposa, era rude, enquanto para Baldochi as pretensões da esposa equivaliam a uma presunção de “independência e [a] falta de recato” (Carone, 2002: 59). Para piorar o quadro, Ana perdeu os primeiros quatro filhos (Nícia, uma das filhas, chegou a viver até os três anos). Apesar do desespero que a jovem sentiu diante de tantas perdas, com o tempo, a relação entre o casal melhorou ligeiramente, assim como sua situação financeira. A primeira filha, Lázara Edea, Lazinha, nasceu em 1919. Era, como destaca o narrador, “a filha predileta que nos anos finais se tornou arrimo e confidente da mãe” (Carone, 2002: 35). Graças a antigos contatos da mãe, a menina foi batizada por uma “prima-irmã de Júlio Prestes”, “presidente de São Paulo” (Carone, 2002: 37). Por sorte da criança, seus anos de infância “coincidiram com os melhores do casal” (Carone, 2002: 36). O pai havia trocado a padaria por um armazém de secos e molhados e os negócios iam bem. Com o tempo, a filha “assumiu o papel de companheira e aliada da mãe” (Carone, 2002: 36-37), o que fez Balila se sentir livre para dedicar-se a outros interesses, como “a política de Estado”, participando de “reuniões locais de conservadores alvoroçados com o levante de Isidoro”17 (Carone, 2002: 37).

Em 1925, nasceu Ciro, “um menino sadio” que “foi recebido como um triunfo pelo pai” (Carone, 2002: 38). Assim que Ciro cresceu um pouco, Ana, sempre acompanhada de Lazinha, voltou a ir ao teatro, onde ensinava a filha “o que sabia sobre o mundo do espetáculo”. Às vezes, Balila ia buscá-las à saída do teatro, o que, apesar de parecer gentileza, acabava por se transformar em “dissabor”: “ele aparecia invariavelmente de chinelos e em mangas de camisa, num desleixo afrontoso que o fazia andar, no caminho de volta, à frente da mulher e da filha sem a preocupação de reter os gases do corpo cada vez mais redondo. Seja como for a aversão de Ana por Balila só se consumou quando a violência física destruiu o que ainda restava de solidariedade no casal” (Carone, 2002: 38).

Apesar disso, em 1926, nasceu a última filha do casal, Zilda. Pouco depois, as atitudes de Ana começaram a se tornar erráticas: “havia semanas que Ana passava inteiramente alheada” e Lazinha terminou por descobrir que a mãe “bebia às escondidas”, consumindo bebidas estocadas no armazém do marido. Quando Baldochi descobriu e interditou o acesso de Ana ao armazém, ela “passou à bebida barata dos bares da vizinhança” (Carone, 2002: 43). Era Lazinha quem buscava as bebidas para a mãe. Se não bastasse, a menina se afligia vendo “a casa desorganizada, o irmão e a irmã negligenciados e o pai abatido ou colérico diante da mãe embriagada”. Depois que a filha se recusa a continuar buscando as bebidas, a mãe “não hesitou em recorrer à boa vontade de Ciro, então com menos de cinco anos de idade” (Carone, 2002: 43). Ana, comenta o narrador, “anestesiava no álcool as antigas pretensões de elegância” (Carone, 2002: 45-46).

Em meio ao caos doméstico, um passo errado nos negócios tornou inviável “qualquer propósito de afirmação social” (Carone, 2002: 45) da família. Por volta de 1929, Balila decidiu ampliar seu negócio e para isso “recorreu aos empréstimos de um agiota da cidade”. Com a crise que se seguiu pouco depois, os negócios de Balila naufragaram e seu patrimônio foi penhorado “por volta de 1931” (Carone, 2002: 44), ano em que os efeitos da crise de 1929 efetivamente impactaram a economia brasileira. Completamente falido, Balila torna-se caixeiro-viajante e, “ao contrário do que seria legítimo esperar ele nunca se sentiu tão bem como nos quinze anos em que ficou convivendo com os caboclos” (Carone, 2002: 45)

A saúde de Ana piorava constantemente. Além do alcoolismo avançado, recebeu o diagnóstico de uma “tuberculose intestinal [que] não deixava margem a qualquer esperança de cura” (Carone, 2002: 48). Ana morreu em maio de 1933, aos quarenta e cinco anos e cinco meses de idade (Carone, 2002: 49). Após a morte da esposa, Balila tirou “Ciro da escola aos oito anos para treiná-lo como ajudante de viagem e pediu à madrasta Claudina que acolhesse Lazinha e Zilda em sua casa, no que foi atendido sem nenhuma formalidade” (Carone, 2002: 50). Lazinha, “consciente das dificuldades de seus protetores” propôs arrumar um emprego para “dar conta de si mesma e da irmã”, então com sete anos. Foi assim que, aos catorze anos, foi trabalhar na Fábrica Santa Maria, onde “ficava de dez a catorze horas por dia costurando sacos de café”. O narrador encerra a novela introduzindo uma informação que, a princípio, soa quase dissonante, mas que, como veremos, é essencial para a análise dos sentidos mobilizados pela narrativa: a fábrica era a “propriedade industrial da família de Paulo Emílio Salles Gomes, que àquela altura ensaiava em São Paulo os primeiros passos de sua carreira de escritor e militante de esquerda” (Carone, 2002: 50).

5

O narrador, assim como Lazinha, são confessadamente movidos pela tentativa de retomar os fios que ajudassem a pensar o “sentido da vida de Ana” (Carone, 2002: 47) que, obviamente, envolvia ambos e os demais membros da família. Já na primeira página do romance, o narrador destaca que “os anos pareciam beneficiar” a memória de sua mãe “com as reflexões da velhice e a busca silenciosa de um sentido para a experiência” (Carone, 2002: 15). Sobre Ana, o narrador enfatiza que os relatos a seu respeito apontavam “para a persistência de uma alegria quase incompatível com as condições reais de sua existência. Os episódios de melancolia só se manifestaram mais tarde em função de decepções e desgostos sofridos na idade adulta” (Carone, 2002: 19). A melancolia e a ruína do fim da história de Ana, na visão apresentada pelo narrador, resultam da frustração definitiva das aspirações, ainda que moderadas, associadas à cultura, à elegância e a regras elementares de civilidade.

Ana não pertencia à família de Ellis nem à elite da capital e acaba privada da possibilidade de cultivar hábitos que aprendera a prezar. De volta a Sorocaba, perde toda naturalidade e, apesar de muito se esforçar, não encontra satisfação (mínima que fosse) nas condições que lhe eram impostas pelo casamento e pela vida em uma cidade provinciana. A esse respeito, Vilma Arêas destaca que, “quando as circunstâncias não são revolucionadas”, a “incorporação da cultura do rico” pelo pobre, por não ser “constante” e por não “atingir um mínimo razoável”, não se integrando em “um todo orgânico” (minimamente que seja), “transforma-se em traço francamente disfuncional, quando não constrangedor e eventualmente trágico” como ocorre com Ana (Arêas, 1997: 131).

Arêas relaciona o desajustamento de Ana com Brooksmith, personagem do conto homônimo (1891) de Henry James, um criado que participava das conversações com os visitantes da casa de seu patrão ilustrado, falava línguas e apreciava poesia. O narrador afirma que Brooksmith “nascera para gozar esse privilégio ao máximo, como infelizmente aconteceu”:

Uma vez em contato com ambiente adequado, a personagem (o criado) pudera experimentar, segundo o escritor, la beauté parfaite, da qual não podia mais abrir mão sem se consumir. O contraste é feito no texto com aqueles “que possuem a boa fortuna de nunca terem abandonado seu estrato (level) natural”. O drama vivo do pobre Brooksmith era o ter-se tornado instruído (“mas para que estava sendo educado este sensível jovem de 35 anos, da classe subalterna?”). (Arêas, 1997: 132)

Apesar da proximidade, Vilma Arêas destaca uma diferença crucial entre Brooksmith e Ana. Enquanto na sociedade inglesa havia uma “definição clara de classes” que tornava o caso do criado do sr. Offord extremamente peculiar, de forma que o destino trágico do criado seria, de certa forma, “lógico e natural” naquelas condições sociais,

a pouca definição [...], a intimidade patrões/empregados, as particularidades da constituição familiar, a flexibilidade quando não inexistência da lei, sempre uma questão policial e sempre contra os despossuídos, não constituem novidade e tecem uma rede de grande complexidade ao redor das relações de classe. No caso dos escravos de dentro, das empregadas domésticas, dos agregados, das filhas de criação (mais raro no masculino) essa complexidade corre por incontáveis e delicados filamentos. (Arêas, 1997: 132-133)

Outro paralelo importante pode ser estabelecido com Ambros Adelwarth, protagonista da terceira narrativa de Os emigrantes, de W. G. Sebald, que experimenta o contato com a cultura e viaja pelo mundo na condição de pajem e companheiro de Cosmo Solomon, um jovem rico, filho de um banqueiro. A derrocada de Adelwarth é completa e ele termina numa clínica psiquiátrica entregando-se voluntariamente a uma terapia de eletrochoque num sanatório ironicamente chamado Ítaca, por meio da qual um médico que o conheceu acredita que Ambros tenha alcançando seu anseio “por uma extinção o mais completa e irrevogável possível de sua capacidade de pensamento e recordação” (Sebald, 2009: 116). A relação, por suposto, exigiria desenvolvimento, inclusive porque há outros pontos de contato, como o fato de o personagem ser tio-avô do narrador, que, por sua vez, sai em busca dos vestígios da história de seu parente, reconstruindo o que lhe possível no conto. De todo modo, para os objetivos deste artigo, o paralelo entre o tratamento a que Adelwarth se submete e o alcoolismo de Ana não pode deixar de ser sublinhado.

Ana possui uma força que se confunde com uma espécie de recusa renitente da realidade: ela insiste, ela valoriza em certa medida a cultura e a elegância e isso não deixa de ser um contraponto ao provincianismo reinante. Ainda assim, há algo de quixotesco (em tom menor) na atitude de Ana: uma combinação de altivez e resistência, por um lado, e recusa teimosa da realidade, por outro. Há uma obstinação, que a conduz a um fim catastrófico, mas que não deixa de ser ao mesmo tempo admirável. A aprendizagem de Ana não conduz a alguma forma de reconciliação entre ela e o mundo concreto, operando antes como desajustamento irremediável nas condições objetivas em que a personagem vivia.

Parte das aspirações da mãe foi herdada por Ciro que nunca abandonou “as fantasias de melhorar de vida” (Carone, 2002: 99). Mas sua história, desde o início, foi marcada por inúmeros reveses, de tal forma que, quando criança, o choro acabou por se tornar “uma segunda natureza” para ele (Carone, 2002: 59). Na tenra infância, não apenas teve de conviver com a negligência da mãe, como, aos quatro anos, passou a buscar sozinho bebida para ela nos bares mais afastados de casa18. Aos cinco anos, com a rotina da casa desfeita devido o alheamento de Ana, Ciro se submeteu “à falta de horário, às refeições precárias, à roupa encardida e ao quarto desarrumado, onde a poeira grossa cobria os móveis. Mal agasalhado no inverno teve um torcicolo que semanas a fio o fez gritar de dor” (Carone, 2002: 59). A mãe quase nada fazia para ajudá-lo e o pai “resolveu tratá-lo por conta própria com cera quente de terebintina e na pele dos ombros apareceram bolhas que se transformaram em feridas” (Carone, 2002: 59). Quando finalmente as dores passaram, Ciro não conseguia mais “mover a cabeça sem virar também o corpo: do fim da infância à metade da adolescência seu apelido em casa e na rua foi pescoço duro”. Se tudo isso não fosse suficiente, certa vez houve uma epidemia de catapora e, em Ciro, a doença “arrebentou na córnea”, lesando seu olho esquerdo cuja visão ficou prejudicada, acentuando “sua necessidade de fazer meia-volta para enxergar de lado” (Carone, 2002: 59).

Esse, aliás, o lado propriamente trágico tanto da história de Ana quanto a de Ciro. Ressalte-se que trágico, aqui, é entendido como desenvolvimento necessário rumo a um desfecho, sem, contudo, que os “destinos” representados possuam qualquer caráter exemplar, pois vida e morte estão destituídas de sentido. Nas narrativas, com força maior ainda na segunda, o tempo passa aos saltos, mas como que num plano: tudo surge marcado pela repetição, pelo retorno do mesmo, pela imposição de um destino histórico quase inflexível. Não há propriamente evolução, progresso, sequência de incidentes ou conquistas. A débil acumulação de experiências significativas choca-se com um amontoado desnorteante de vivências fragmentárias que conduzem o processo de aprendizado não à síntese, mas ao desamparo, à dissonância, à ruína. Como vimos, Carone afirma que o turning point arrasta a novela a um fim necessário, como num drama. Se no caso de Ana, o ponto de virada ocorre no momento em que ela passa a beber, no caso de Ciro, ele se dá muito antes, quando, aos quatro anos, saía para buscar bebidas para mãe. Desse ponto em diante, o tempo se arrasta negativamente e os eventos históricos, referidos de forma mais constante e direta na segunda novela, são uma espécie de agitação que parece apenas reafirmar a rua de mão única em que se sucedem os malogros do personagem. A história de Ciro desemboca numa espécie de derrota final, cuja expressão mais concentrada se encontra nas últimas linhas do romance: no dia do enterro do tio, no momento em que o caixão era transportado para o interior do cemitério, o narrador “agarr[a] uma das alças e constat[a] que o revés não o abandonou até o fim, pois é numa tumba sem lápide que ele some sob a terra e só no dia seguinte chega a notícia de que o corpo foi enterrado na cova errada” (Carone, 2002: 113).

6

Mas o saldo final de Resumo de Ana não é totalmente negativo. Há momentos pontuais, mas decisivos nas duas narrativas que apontam numa direção outra, abrindo frestas que indicam as aspirações que as personagens nutrem por uma vida mais autêntica, ainda que não cheguem a nomear esse desejo. Considere-se a seguinte cena de “Ciro”:

Mas o fato é que o empenho de Ciro em relação às filhas sempre foi autêntico e não se limitava a idealizações cujo propósito fosse apenas estimular uma autoestima diminuída. Tanto é assim que meses antes do Natal de 1986 ele deixou completamente de fumar para poder dar uma lembrança a todas elas. Essas expansões de afeto inibiam sem desarmar o ressentimento das filhas. Atraídas pela promessa de uma vida de prestígio, tanto as mais velhas como as menores sentiram-se lesadas no cotidiano da casa e mais tarde nos escritórios em que procuravam garantir uma sobrevivência sem brilho. O responsável pela armadilha nunca encontrou o tom certo para oferecer uma justificativa e o resultado previsível foi o isolamento dentro da família, que Ciro considerava mais árduo que o desterro na cidade. Foi nessa época que chegou a fazer a figura do varão solitário diante da mulher e das filhas e ao voltar para casa no fim do dia permanecia horas sentado no quintal olhando as estrelas da sua poltrona de vime e fumando o quebra-peito que dizia ser seu único companheiro. (Carone, 2002: 105)

A atitude de Ciro, sendo também um modo de evasão diante de uma realidade opressiva, é um instante de trégua, um respiro. Ele sofre de uma maneira que, sem deixar de ser um pouco patética, reconhece o sentimento das filhas sem vitimizar-se, assumindo sua cota de responsabilidade, enquanto anseia, em silêncio e sozinho por horas a fio, por uma amplidão distante. Seu sofrimento não o redime, mas também não é usado como desculpa para suas derrotas.

Em outro momento da novela, o narrador e o tio encontram-se na “praça do canhão” em Sorocaba e o sobrinho comenta com Ciro que ali fora o cenário do “último ato do grande drama histórico da cidade: a Revolução de 1842” (Carone, 2002: 108). Ciro “acompanhou a história com interesse” e, ao final, comentou que “um dos prejuízos que sentia por não ter podido estudar é que não conhecia o único lugar onde havia vivido” (Carone, 2002: 109). O comentário condensa os sentimentos que aproximavam os dois. Embora não haja nenhuma familiaridade entre eles, nem lembranças de situações tenham vivido juntos ou mesmo assuntos em comum, há, sem dúvida, um profundo interesse de um pelo outro. Mais do que reconhecimento do quanto os estudos lhe fizeram falta na vida, a resposta de Ciro é um gesto de empatia, respeito e admiração, como é, da parte do narrador, falar a respeito da Revolução, uma vez que se trata de assunto de seu campo de interesses que pode ser compartilhado com o tio, pois é um fato relevante da história do local onde se encontravam. Ainda que o tema não bastasse para embalar uma conversa, permitia a ambos expressarem a satisfação que sentiam na presença um do outro.

Outra passagem particularmente significativa é a menção feita a Paulo Emílio Salles Gomes nas últimas linhas da primeira narrativa do livro,19 citadas acima. Inicialmente, ela opera como contraste acentuado ao restante da novela, uma vez que a menção é feita de chofre produzindo certo descolamento da situação concreta vivida pela filha mais velha de Ana. No entanto, na medida em que Paulo Emílio é um traidor de sua classe, as aspirações dos dois, de certa forma, encontram-se: ambos nutrem esperanças e lutam, cada um a seu modo, por um mundo em que as misérias que destroem vidas como as narradas no livro sejam superadas. Não por acaso, o filho de Lazinha torna-se escritor e intelectual.

A redenção não veio para Ana nem muito menos para Ciro. No entanto, é impossível não reconhecer a obstinação de ambos e suas aspirações, ainda que difusas, por uma vida menos restrita. As personagens do romance estão indiscutivelmente entre os que foram derrotados por uma modernização violentamente opressiva e desigual. Ainda assim, sua tenacidade e suas vidas apontam na direção de um mundo outro, menos estúpido e brutal, mais humano. Não é um consolo, pois não se trata de uma concessão. Trata-se antes de uma visão da literatura como um exercício de lucidez que, profundamente sensível às mínimas variações, dá a ver a persistência teimosa da vida e do desejo de libertação.

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1 Embora O ateneu não tenha, nas últimas décadas, recebido muita atenção da crítica, é um romance importante da literatura brasileira, discutido por nomes destacados dos estudos literários no país, de diferentes filiações teóricas, que dedicaram ao livro estudos específicos. Como referência, além dos citados no corpo do texto, destacam-se Mário de Andrade, Lúcia Miguel Pereira, Alfredo Bosi, Roberto Schwarz, Araripe Jr., Leyla Perrone-Moisés, Silviano Santiago, José Paulo Paes e João Alexandre Barbosa.

2 Willi Bolle (Berlim, 1944), professor titular de literatura alemã da Universidade de São Paulo, veio a primeira vez ao Brasil para se encontrar com Guimarães Rosa, em 1966, quando o crítico tinha 22 anos. Bolle costuma associar seu interesse pela literatura brasileira e pelo país ao imenso impacto que a leitura de Grande sertão: veredas teve sobre ele.

3 Bolle cita nominalmente Euclides da Cunha (1866-1909), Gilberto Freyre (1900-1987), Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), Caio Prado Jr. (1907-1990), Celso Furtado (1920-2004), Raymundo Faoro (1925-2003), Antonio Candido (1918-2017), Florestan Fernandes (1920-1995) e Darcy Ribeiro (1922-1997).

4 Bolle adverte que entende por “romance de formação” não “um gênero centrado no indivíduo, em oposição ao ‘romance social’”, mas o que chama de “ideia original de Goethe ao inventar o paradigma do romance de formação” com o Wilhelm Meister, a saber, a defesa de um “diálogo entre as classes sociais em conflito”, ao invés do “confronto armado” como ocorreu na Revolução Francesa (Bolle, 2004: 10). Outros críticos, como Davi Arrigucci Jr. (Arriguci Jr., 1994), José Antonio Pasta Jr (Pasta Jr., 1999) e Marcus Mazzari (Mazzari, 2010), a partir de diferentes perspectivas e chegando a conclusões diversas, também relacionam Grande sertão: veredas ao romance de formação.

5 Álvares de Azevedo (1831-1852) foi um talentoso poeta romântico brasileiro que produziu seus textos entre os 17 e os 20 anos de idade, quando morreu muito prematuramente devido a uma tuberculose que desenvolveu após quebrar a perna numa queda de cavalo. Sua obra ficou, infelizmente, em fragmentos e rascunhos, com poucos textos completos. Num conhecido texto sobre o poeta, Machado de Assis expressa um juízo compartilhado por boa parte da crítica: “Álvares de Azevedo era realmente um grande talento; só lhe faltou o tempo, como disse um dos seus necrólogos. Aquela imaginação vivaz, ambiciosa, inquieta, receberia com o tempo as modificações necessárias; discernindo no seu fundo intelectual aquilo que era próprio de si, e quanto era apenas reflexo alheio, impressão da juventude, Álvares de Azevedo acabaria por afirmar sua individualidade poética. Era daqueles que o berço vota à imortalidade” (Assis, 1992: 893).

6 A mais direta das referências ao Fausto, de Goethe, em “Macário” ocorre logo após o primeiro encontro entre o protagonista e Satan. Animado, como um jovem deslumbrado, Macário exclama: “O diabo! uma boa fortuna! Há dez anos que eu ando para encontrar esse patife! Desta vez agarrei-o pela cauda! A maior desgraça deste mundo é ser Fausto sem Mefistófeles...” (Azevedo, 1983: 86).

7 A discussão das consequências que Antonio Candido tira dessas observações fugiria do recorte proposto neste artigo, por isso fica a aproximação apenas indicada. A expressão “educação pela noite” é derivada pelo crítico de A educação pela pedra, título de um livro do poeta João Cabral de Melo Neto que, como veremos, é uma referência importante para Modesto Carone que dedicou a ele e a Paul Celan um estudo público com o título Poéticas do silêncio (1979).

8 Koval destaca que Lukács volta ao assunto em outros momentos de sua obra, como em A alma e as formas (1911), no ensaio “El ideal del hombre harmonioso em la estética burguesa” (1938), publicado em Problemas del realismo, e em Goethe y su época (1947). Neste último, “Lukács afirma que el contenido de la novela de formación es ‘la educación del hombre para la comprensión práctica de la realidad’” (Koval, 2018: 27).

9 A edição citada por Martín Koval é: Lukács, G. (1988). Die Theorie des Romans. Stuttgart, DTV.

10 Há proximidades e distinções importantes entre os contos e o romance. Nos contos, não obstante a imensa variedade de assuntos e situações narradas, predomina, no termos de Vilma Arêas, “uma construção convulsa que pode indispor o leitor (a intenção é mesmo esta)” (Arêas, 1997: 121), marcada por metáforas que visam a síntese e a contenção por meio do imagético, do insólito e da deformação, de caráter expressionista.

11 Frase de Celan citada por Carone em “Adorno: um depoimento pessoal” (Carone, 2004: 130). Não há no texto indicação da fonte de onde a frase foi extraída.

12 Em uma dessas interrupções, narra-se uma visita que Ana e Lazinha fizeram a um leprosário. A motivação da visita era agradecer a São Lázaro pela saúde de Lazinha. Ao chegarem lá, “o ato piedoso acabou se transformando em uma vivência traumática, já que na chácara abandonada que abrigava o asilo o que as duas viram por toda parte foram dezenas de mutilados na mais esquálida miséria tentando apalpá-las à sua passagem com os tocos dos braços” (Carone, 2002: 39).

13 Considere-se o seguinte trecho de “Ciro”: “Na fachada que cheira a cal uma placa anuncia a Companhia de Transformação e Energia Elétrica e perto dela salta à vista o aviso de perigo realçado pelo desenho de um raio e de uma caveira. O cenário dos filmes em série, que nos anos 50 alimentava a imaginação dos adolescentes na sala de projeção do Cine São José, então, a trezentos metros dali, é completado pelo zumbido forte que vem dos transformadores. Como eles são visíveis e as ondas vibram no ar, é quase inevitável naquele trecho uma sensação difusa de fantasmagoria. Foi ali que vi Ciro pela primeira vez depois de muitos anos” (Carone, 2002: 101-102).

14 Júlio Prestes de Albuquerque era filho do coronel Fernando Prestes de Albuquerque que foi presidente de São Paulo (cargo equivalente ao de governador de estado), entre 1898 e 1900. Júlio Prestes era advogado e iniciou sua carreira política em 1909, elegendo-se deputado estadual em São Paulo pelo Partido Republicano Paulista (PRP). Reelegeu-se por várias vezes e, em 1924, foi eleito para a Câmara Federal, onde assumiu a liderança da bancada paulista. Em 1927, foi eleito presidente do estado de São Paulo e, em 1929, foi indicado por Washington Luís, presidente da República à época, como candidato do governo à sucessão presidencial. Essa indicação desencadeou uma série de desdobramentos que levaram, em outubro de 1929, à deposição de Washington Luís por uma junta militar que, no dia 3 de novembro, entregou o poder a Getúlio Vargas.

15 Poucas páginas adiante, o narrador faz um novo comentário que reforça o que acabamos de citar: “Estava no auge da saúde, desempenhava suas tarefas com eficiência e leveza [...]” (Carone, 2002: 24). Ana Paula Pacheco e Priscila Figueiredo, na entrevista que realizaram com o autor, destacam em uma pergunta o fato de que essa descrição discrepa do clichê romanesco, uma vez que, sendo “uma mocinha elegante, possivelmente encantadora, a gente esperaria mais algo como ‘Ana estava no auge da beleza’”, ao que Carone responde: “num cotidiano inteiramente regulado pelo trabalho [ou pela falta dele], [...] o princípio do prazer fica mesmo diminuído. Ocorre uma deserotização da vida. [...] é uma perda, mais uma. Como pode ser a perda da linguagem, a perda da perspectiva de uma vida plena, um sonho que acabou” (Carone, 2001: 199).

16 Trata-se da São Paulo Tramway, Light and Power Company, empresa de capital canadense que em 1899 adquiriu, junto ao governo brasileiro, a concessão para a exploração de várias atividades, com destaque para a geração e distribuição de energia elétrica e para o transporte público por bondes.

17 O levante que inquietava os conservadores de Sorocaba foi a chamada “Revolta Paulista de 1924”, uma rebelião militar articulada pelo general reformado Isidoro Dias Lopes e que contou com a participação de vários tenentes. Seu objetivo principal era a deposição do presidente Artur Bernardes e a convocação de uma Assembleia Constituinte. Foi duramente contida por tropas federais que bombardearam a cidade de São Paulo, inclusive bairros residenciais, provocando pânico na população.

18 “O menino saía todos os dias de casa com uma garrafa vazia, atravessava a rua dos Morros e, prestando atenção nos bondes que subiam a ladeira, andava até um botequim onde pedia ao empegado que a enchesse de qualquer marca de aguardente; enquanto acompanhava com o olhar a bebida que escorria de um pequeno funil de zinco até o gargalo e caía espumando em silêncio no fundo da garrafa, ele ficava na ponta dos pés e depositava o dinheiro contado em cima do balcão de mármore” (Carone, 2002: 43-44). A passagem é retomada com algumas variações na segunda narrativa (pp. 59-60).

19 No fim da segunda narrativa, há uma passagem análoga, mas em negativo, uma vez que a narração acentua apenas a exploração econômica e a alienação do trabalho: “Anita chegou pouco depois e ao atravessar a soleira percebeu que Ciro estava tendo um enfarte. Ainda foi capaz de desabotoar a camisa empapada de suor, procurou reanimá-lo chamando-o pelo nome e no momento em que ele abriu os olhos e os músculos do rosto se descontraíram, a única coisa que ouviu direito foi uma pergunta – se ela sabia que ele gostava dela. Anita tinha certeza de que era uma hora da tarde e que por algum motivo estava soando o apito de uma fábrica. Não vinha de longe do barracão onde o marido acabava de morrer nos seus braços: chegava do centro de Votorantim, sede do império industrial da família Ermírio de Morais” (Carone, 2002: 111-112).