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Luis Carlos Fridman
Universidade Federal Fluminense, Niteói, Brasil
lcfridman@globo.com
O artigo discute o tratamento de Adorno conferido ao jazz e à música popular, a partir de sua formulação que distingue a “música séria” da “música ligeira” (ou consumível), com repercussões sobre a própria estrutura das obras e canções. Esse estudo implica também na apreciação crítica do que o filósofo e sociólogo alemão chamou de “regressão da audição” na música popular. Estende a discussão sobre tal atribuição ao blues, ao jazz e ao rock em uma abordagem que valoriza os gêneros musicais como relevantes e significativos na experiência artística contemporânea.
Palavras-chave: Adorno, sociologia da música, blues, jazz, rock
El artículo analiza el tratamiento que hace Adorno del jazz y la música popular, basado en distinción entre “música seria” y “música ligera” (o música consumible), con repercusiones en la estructura misma de obras y canciones. El estudio también incluye una apreciación crítica de lo que el filósofo y sociólogo alemán llamó “regresión de la audición” en la música popular. La discusión se extiende sobre tal atribución al blues, jazz y rock en un enfoque que valora los géneros musicales como relevantes y significativos en la experiencia artística contemporánea.
Palabras clave: Adorno, sociología de la música, blues, jazz, rock
The article discusses Adorno’s treatment of jazz and popular music, based on the distinction between “serious music” from “light music” (or consumable music), with repercussions on the very structure of works and songs. This study also implies a critical appreciation of what the German philosopher and sociologist called “regression of hearing” in popular music. It extends the discussion of such attribution to blues, jazz and rock in an approach that values musical genres as relevant and significant in the contemporary artistic experience.
Keywords: Adorno, sociology of music, blues, jazz, rock
As conhecidas objeções de Theodor Adorno à música popular estavam baseadas na concepção de que essa produção artística não escapava das exigências do mercado interessado na fabricação de sucessos para consumo de massa. Para ele, a dinâmica comercial determinava a estandardização das composições e impunha padrões musicais que não ensejavam a elevação da audição do grande público. Em oposição ao rebaixamento do gosto musical, Adorno considerava que as verdadeiras qualidades artísticas estavam no legado dos clássicos, nos arrojos da vanguarda europeia das primeiras décadas do século XX e na música dodecafônica, onde se destacava a obra de Arnold Schoenberg. A crítica se aprofundou durante sua estadia na América a partir dos anos 1940, em um período inicialmente marcado pelo prestígio popular das big bands e do swing, quando rechaçou a “música ligeira” e o jazz, atribuindo-lhes a veiculação da “regressão da audição” aos admiradores e fãs.
Os efeitos da indústria cultural, incluído o monopólio das forças que centralizavam e dirigiam a música de entretenimento, submetiam a “golpes de martelo” estilos que deixavam inalterados os padrões “familiares”, isto é, aqueles que as plateias já estavam acostumadas. Com isso, “a banalidade da atual música ligeira, implacavelmente controlada devido à vendagem, marca a ferro e fogo o que há de decisivo em sua fisionomia: o vulgar” (Adorno, 2017, pp. 95-96). Essas fórmulas de atração do gosto reduziam-se a ornamentos variados para uma mesma canção (Gracyk, 1992, p. 529).
Através do exercício da “dialética negativa” –movimento da razão que consiste no resgate das dimensões reprimidas para ultrapassar as limitações do presente– Adorno, em contraposição às imposições da indústria cultural, buscou resgatar no mundo cultural e na música as potências criativas que permitiriam “postular a liberdade, a felicidade, a realização espiritual, se não realizadas no presente, pelo menos prometidas para o futuro” (Freitag, 1986, p. 68). Gabriel Cohn explicita o sentido empenhado na reflexão:
Para ele importa expor a negatividade intrínseca às condições que critica, ao levá-las aos seus limites. Assim, dizer que algo é impossível nas condições dadas não significa para Adorno simplesmente afirmar a impossibilidade, mas assinalar os limites das condições que a engendram (Cohn, 2017, pp. 244-245).
Na música popular, o destino último das operações da indústria cultural era a fabricação de hits para alcançar os primeiros lugares nas listas dos mais vendidos, com incidências na estruturação da linguagem musical:
Quando uma determinada canção alcançava um grande sucesso, centenas de outras apareciam, imitando aquela que obtivera êxito... A concentração econômica em larga escala institucionalizou a estandardização, tornando-a imperativa (Adorno, 1986, pp. 121-122).
O jazz não escapou dessa apreciação, ressalvada a sofisticação que Adorno não deixou de reconhecer. No livro Introdução à sociologia da música, se encontra a seguinte caracterização:
Arroga-se ousado e vanguardista, quando, em verdade, seus excessos mais extremados foram ultrapassados e levados às últimas consequências pela música séria. Entretanto, em aspectos decisivos, como a harmonia impressionista ampliada e a forma simples padronizada, o jazz permanece, em momentos decisivos, limitado a um estreito raio de ação. O predomínio indiscutível do tempo a que todas as artes sincopadas devem obedecer; a incapacidade de pensar a música em seu sentido propriamente dinâmico, como algo que se desenvolve livremente, concede a este tipo de ouvinte o caráter do vínculo à autoridade (Adorno, 2017, pp. 73-74).
O jazz era regressivo, destituído do caráter “dinâmico” da música de vanguarda e uma vulgarização das realizações duradouras encontradas na “música séria”. A generalização de Adorno não se deteve apenas nos exemplos notórios ou caricatos da indústria cultural e englobou tudo o que, sob o emblema de “música popular”, era atribuído à falta de qualidade artística e de liberdade de criação. Em vista do rigor e dos exageros presentes nessa concepção, que ignoram conquistas relevantes que foram incorporadas à cultura atual, não nos parece que a “música ligeira” e o jazz recaem necessariamente no “mínimo estandardizado” da indústria cultural e na correlata banalização da audição.
A reflexão de Gabriel Cohn, baseada em fenômenos mais recentes, não assevera o predomínio inconteste da indústria cultural sobre a assimilação da música pelo público:
Neste caso, o argumento básico seria o de que nas condições contemporâneas seria equivocado não dar o devido relevo a uma dimensão desse processo que, sustenta-se, sempre foi subestimada pela teoria crítica. Isso porque os consumidores que a teoria crítica veria como meramente submetidos ao império das grandes organizações da indústria cultural estariam na realidade equipados, por diferenças de socialização e de inserções grupais, não só para efetuar seleções no interior da massa de material simbólico oferecido no mercado cultural como também, e principalmente, para submeter o material selecionado a interpretações eventualmente discrepantes daquelas esperadas pelos controladores da sua produção e difusão (Cohn, 2017, p. 252).
Os jazzistas de várias gerações foram mestres em avançar por regiões harmônicas, melódicas e rítmicas que se diferenciaram do que havia sido realizado até então. Eles encarnaram uma história e fontes culturais que ultrapassaram fronteiras musicais e geográficas. O historiador Eric Hobsbawm, em Pessoas extraordinárias: resistência, rebelião e jazz, recompõe esse trajeto:
O jazz é, entre outras coisas, a música da diáspora. Sua história é parte da migração em massa do Sul antigo, e, por razões econômicas (e frequentemente psicológicas), é feita por pessoas desimpedidas que passam grande tempo na estrada. Certamente não teria se tornado tão cedo a música nacional norte-americana, se homens com trompetes não a tivessem levado a lugares onde não era conhecida (Hobsbawm, 2016, p. 415).
Músicos pobres, desenraizados, descendentes mais e menos próximos de escravos, traziam as dores da opressão sobre a população negra e transformaram essa dor em arte. Não desfrutavam da acolhida que a América oferecia ao cidadão branco, nem da possibilidade de que com o trabalho duro seria possível encontrar um lugar ao sol, quiçá enriquecer e ter a sua parte nas benesses do grande país. As restrições eram parte do cotidiano, quando não a miséria e a fome, e se algo em suas condutas se assemelhava ao comedimento e ao ascetismo da ética protestante é porque a vida já lhes oferecia muito pouco. Seguiam para o Norte em busca de emprego, alguma estabilidade e muitos traziam na bagagem as habilidades para tocar o blues em variados instrumentos.
O jazz não se igualou ao “luxo do lixo” da indústria cultural e aos estoques de trilhas e canções estandardizadas produzidas aos borbotões segundo as estratégias de vendas para o mercado. As big bands, com seus ritmos e sucessões melódicas dançáveis, fizeram um sucesso estrondoso. No entanto, as conquistas do jazz, em sua grande maioria, ocorreram em ambientes mais restritos, para além dos salões de dança da época, protagonizadas por músicos empenhados em exercer uma liberdade de criação que dispensava o atestado de “vendável”. Muitos deles tiveram suas carreiras vinculadas às big bands para garantir a sobrevivência, mas a história que se seguiu mostrou a expansão das fronteiras e um lugar definitivo na música. Mesmo a comercialização intensiva não impediu que nas diversas formações da banda de Duke Ellington (um dos maiores, entre os grandes), ao longo de décadas, se possa ouvir até hoje as mais envolventes e vibrantes fontes da música americana, com a marca decisiva do blues e as influências melódicas e harmônicas de Claude Debussy e de outros compositores clássicos. Uma parte importante da cultura americana está ali concentrada, com os metais, a bateria, o baixo, o piano, a voz aveludada e a vaidade de seu chefe de orquestra fazendo as apresentações dos seus componentes.
Adorno viveu até o final dos anos 1960 e se mostrou impermeável aos desenvolvimentos do jazz e à explosão do rock que acompanhou os movimentos de contestação da década. Não se rendeu às mudanças sucessivas então ocorridas e à densidade alcançada na música popular, e, portanto, não aventou a possibilidade de ser surpreendido para além da regressão da audição. A sua detalhada investigação sobre as estruturas de arranjo e composição –onde ele opôs a música erudita ou de vanguarda à música popular– suscita um debate fértil, ainda que a reflexão não tenha se aproximado suficientemente das potências criativas encontradas no jazz e no blues e, por extensão, nos grandes momentos do rock.
Os elementos reflexivos e críticos presentes na música popular dos anos 1960 atestam que a demarcação dos campos entre “música elevada” e “música ligeira” foi constantemente borrada, pois a inovação aconteceu de maneira mais que episódica. Um fato marcante, como o Prêmio Nobel de Literatura concedido a Bob Dylan em 2016, culmina o trajeto crítico da música popular e do rock. Este artigo desenvolve uma argumentação que se afasta das concepções de Adorno, ao valorizar as contribuições culturais do blues, do jazz e do rock, em uma abordagem que as vê de maneira relevante e significativa na experiência artística contemporânea.
Em sua sociologia da música, Adorno partiu do pressuposto metodológico do par produção/recepção, ao invés da formação do gosto e do deleite da arte porventura suscitados pela “propriedade intrínseca à coisa mesma”. De forma mais detida escreveu:
Partindo-se do princípio de que a problemática e a complexidade sociais também se expressam por meio das contradições presentes na relação entre a produção e a recepção musicais, na estrutura da escuta inclusive, não se deve esperar, pois, nenhum continuum ininterrupto desde uma escuta perfeitamente adequada a uma escuta desconexa e sub-rogada, mas, ao contrário, que tais contradições e oposições também sejam refletidas na própria natureza da escuta musical, bem como nos hábitos de escuta (Adorno, 2017, p. 57).
Na mesma reflexão, pontuou que “as propriedades estruturais e objetivas da música determinam, por certo, as reações dos ouvintes” e indagava sobre “a adequação ou inadequação da escuta em relação ao que é escutado” (Adorno, 2017, p. 58). Ressaltou as tensões entre os padrões estabelecidos e as obras que se diferenciavam das estruturas tradicionais de assimilação “familiar” na audição. Ao acentuar as contradições entre a “música consumível” e a “música reflexiva”, tinha como horizonte os processos de cognição das estruturas das obras pelos ouvintes. Por conseguinte, contestava a validade da apreciação segundo a legitimação pública do que é consumido.
Adorno não associava a verdade na arte como um absoluto, o belo ou a capacidade de entreter (Paddison, 1982, p. 205). Definiu o conteúdo de verdade da arte –seu truth content– pela negação, pelo que não era. Assim, ao postular a arte autêntica, nela incluía as linguagens específicas da atividade, e, no interior delas, o exame da oposição entre a alienação (por força das relações sociais gerais) e sua negação (pela organização de estruturas de sentidos que sacudiam o “familiar”). A evolução crítica dos sistemas estabelecidos na arte não prescindia das estruturas tradicionais como seu material, assim como uma “nova cultura” só poderia surgir a partir da “velha cultura”, ao invés da projeção hipotética de uma cultura isenta das contaminações do mundo existente.
Para Adorno, a música consumível é o material obsoleto e “degenerado” da arte da música (Paddison, 1982, p. 202). Imposta no terreno monopolizado pela indústria cultural, a música consumível favorece a regressão da audição pela estandardização dos produtos oferecidos ao público que encorajam a demanda pelo “familiar”, pelo facilmente reconhecível. A regressão da audição caracteriza-se pela escuta passiva que registra eventos musicais isolados a partir de fragmentos melódicos, desempenhos instrumentais marcantes, ritmos repetitivos etc. As composições apoiam-se em fórmulas de aceitação prévia do que é proposto, em uma repetição do mesmo.
A negação da estandardização e dos sentidos aceitos, que merece a qualificação de arte autêntica, não se deixa aprisionar pelos padrões do sistema dominante mesmo situada em seu interior. A música de vanguarda, por exemplo, ultrapassa as convenções e as estruturas tonais, daí o elogio à obra de Schoenberg pelas incursões na atonalidade, que Adorno qualificou como a negação “definitiva” da regressão. A aventura musical de Schoenberg requere a “escuta estrutural”, em que o ouvinte relaciona as partes com o todo da composição e assim se habilita a reconhecer o significado de suas demandas e associações, ao invés do registro de eventos isolados (Paddison, 1982, p. 207). Em Introdução à sociologia da música, a “escuta estrutural” ganha a seguinte definição:
Ao seguir espontaneamente o curso de uma música intrincada, ele escuta a sequência de instantes passados, presentes e futuros de modo tão contíguo que uma interconexão de sentido se cristaliza. Ele apreende distintamente até mesmo as tramas complicadas da simultaneidade, como a harmonia e a polifonia (Adorno, 2017, p. 60).
Trata-se, portanto, de uma maneira de ouvir em concatenação preciosa dos efeitos e dos sentidos empenhados na composição, em cognição mais elevada. Na música consumível, ao contrário, Adorno sugere um rebaixamento congênito desfalcado dessa engenhosidade. A estandardização, derivada da “imposição externa, comercial” dos pilares harmônicos presentes nos hits das paradas de sucessos, garante que “nada de fundamentalmente novo será introduzido” (Adorno, 1986, p. 117) e resulta em uma “audição facilitada” (Adorno, 1986, p. 116). Um hit apresenta os seguintes traços:
A principal diferença entre um hit e uma canção séria, ou, conforme o belo paradoxo da linguagem de tais autores, uma canção standard, estaria no fato de que a melodia e a letra de um hit teriam de ficar limitadas a um esquema inflexivelmente estrito, ao passo que canções sérias permitiriam ao compositor uma configuração livre e autônoma (Adorno, 2017, p. 92).
Na estandardização prepondera o “simples” e, do lado dos ouvintes, a regressão da audição. Em linguagem psicanalítica, Adorno definiu a estandardização como uma dimensão musical onde se propaga um “estado infantil” de docilidade e abdicação da vontade livre e racional do ouvinte que estranha ou recusa o “novo” e o “não familiar”. Assim se consolida “o fetichismo na música e a regressão da audição”, título de um de seus importantes textos sobre o tema. Daí resulta o diagnóstico de que o “caráter contrastante da padronização do todo e da parte proporciona um cenário rudimentar, preliminar, para o efeito sobre o ouvinte” (Adorno, 1986, p. 117). Na relação entre a estrutura geral e o detalhe, “o ouvinte fica inclinado a ter reações mais fortes para a parte do que para o todo” (Adorno, 1986, p. 117). A “audição facilitada” é resultado da desconexão entre a parte e o todo, onde os efeitos individuais se transformam na fonte do enlevo, e não solicitam do ouvinte a ambientação (ou a compreensão através da sensibilidade) com o novo. Daí a nítida preferência de Adorno pela riqueza da música clássica em suas obras mais elevadas, pela música de vanguarda e pelo atonalismo que força os limites das linguagens estabelecidas. Isso se traduz no reconhecimento complexo de toda a trajetória da combinação de linhas melódicas, o papel dos instrumentos, andamentos e a sucessão das cargas dramáticas envolvidas. O teor do argumento é explicitado na apreciação da obra de Beethoven:
Cada detalhe deriva o seu sentido musical da totalidade concreta da peça, que, em troca, consiste na viva relação entre os detalhes, mas nunca na mera imposição de um esquema musical. Por exemplo, na introdução do primeiro movimento da Sétima sinfonia, de Beethoven, o segundo tema (em dó maior) só alcança o seu verdadeiro significado a partir do contexto. Somente através do todo é que ele adquire a sua peculiar qualidade lírica e expressiva, isto é, uma construção inteiramente contrastante com o caráter como que de cantus firmus do primeiro tema. Tomado isoladamente, o segundo tema seria reduzido à insignificância. Um outro exemplo pode ser encontrado no começo da recapitulação sobre a indicação de pedal do primeiro movimento da Apassionata de Beethoven. Por seguir-se à explosão precedente, ele alcança o supremo momentum dramático. Se se omitisse a exposição e o desenvolvimento e se começasse com essa repetição, tudo estaria perdido (Adorno, 1986, p. 117).
Cantus firmus, em definição sumária, é um tema curto e simples que se repete do princípio ao fim, misturado com a polifonia. Em harmonia, chama-se “pedal” ao som prolongado sobre o qual se sucedem diferentes acordes. Fica assim ressaltada a complexidade da criação em sua totalidade, além, por parte dos ouvintes, do possível ou hipotético acesso às intensidades ali presentes. A composição oferece uma maneira elevada de ouvir música, que contrasta com a “engenhosidade de fórmulas” da estandardização derivada de motivações comerciais:
Nada equivalente pode ocorrer na música popular. O sentido musical não seria afetado se qualquer detalhe fosse tirado do contexto; o ouvinte pode suprir automaticamente a “estrutura”, na medida em que ela é, por si mesma, um mero automatismo musical. O começo da parte temática pode ser substituído pelo começo de inúmeras outras. A inter-relação entre os elementos ou a relação dos elementos com o todo não seria afetada. Em Beethoven, a posição é importante só numa relação viva entre uma totalidade concreta e suas partes concretas. Na música popular, a posição é algo absoluto. Cada detalhe é substituível; serve à sua função apenas como uma engrenagem numa máquina (Adorno, 1986, p. 118).
Na música popular a ênfase do evento musical não é colocada no todo, pois os detalhes não alcançam um significado inextricavelmente associado ao desenvolvimento da composição. O “automatismo” gerado pelas fórmulas aceitáveis e vendáveis deriva em regressão, pois “a estandardização estrutural busca reações estandardizadas” (Adorno, 1986, p. 120), onde “os ouvintes se tornam tão acostumados à repetição das mesmas coisas que reagem automaticamente” (Adorno, 1986, p. 125). Adorno associou essa experiência estética àquela que correspondia “ao comportamento do prisioneiro que ama a sua cela porque não lhe é permitido amar outra coisa” (Adorno, 1980, p. 174). A audição da música popular é manipulada não só por aqueles que a promovem, mas, de certo modo, também pela natureza inerente dessa própria música, num sistema de mecanismos de resposta totalmente antagônica ao ideal de individualidade numa sociedade livre (Adorno, 1986, p. 120).
Para Adorno, a repetição, recurso para a assimilação de standards, “corrompia” a audição. Nesse terreno não germinava o novo, que somente poderia ser incorporado pelo ouvinte através da conexão complexa e expansiva entre as partes e o todo da composição, para além do “familiar”:
Todos os elementos reconhecíveis estão, na boa música séria, organizados por uma totalidade musical concreta e única, da qual eles derivam a sua particular significação, no mesmo sentido em que uma palavra num poema deriva a sua significação a partir da totalidade do poema e não do uso cotidiano da palavra, embora o reconhecimento desse caráter cotidiano da palavra possa ser o necessário pressuposto de qualquer entendimento do poema. O sentido musical de qualquer peça de música pode, de fato, ser definido como aquela dimensão que não pode ser captada só pelo reconhecimento, por sua identificação com alguma coisa que se saiba. Isso só pode ser construído pelo espontâneo conectar dos elementos conhecidos –uma reação tão espontânea por parte do ouvinte quanto espontânea ela foi no compositor–, a fim de experimentar a novidade inerente à composição. O sentido musical é o Novo –algo que não pode ser subsumido sob a configuração do conhecido, nem a ele ser reduzido, mas que brota dele, se o ouvinte vem ajudá-lo. É precisamente essa relação entre o reconhecido e o novo que é destruída na música popular. Reconhecer torna-se um fim, ao invés de ser um meio. O reconhecimento do mecanicamente familiar na melodia de um hit não deixa nada que possa ser tomado como novo mediante a conexão entre os vários elementos. É um fato que na música popular a conexão entre esses elementos é tão ou mais dada a priori que os próprios elementos. Assim, reconhecimento e compreensão precisam coincidir aqui, ao passo que, na música séria, a compreensão é o ato pelo qual o reconhecimento universal conduz ao surgimento de algo fundamentalmente novo (Adorno, 1986, p. 131).
Na relação entre as partes e a totalidade da composição, para além do reconhecimento do que se gosta ou do que já se sabe de antemão, a invenção musical precisa ser dotada de um sentido que agrega seus elementos formadores, os alça a uma outra dimensão e os requalifica: assim como ocorre na relação entre o poema e o uso cotidiano das palavras. A indústria cultural, que persegue a fabricação de hits, cristaliza o reconhecimento da banalidade através da multiplicação de uma mesma canção e suas diversas maquiagens, como aponta Gracyk (1992). A música consumível não oferece algo novo, apenas reafirma o que é confortável para os ouvidos. Para Adorno, trata-se de uma arte que, em seu domínio específico, contribui para a passividade, o conformismo e mesmo a reprodução ideológica por promover um rebaixamento do sentir pela inibição da cognição.
Nos anos 1920 e 1930, Adorno apontou os sucessos das big bands como a trilha sonora dessa alienação, caracterizada como “jazz”. O filósofo não se deteve na distinção dos gêneros no campo da música popular, pois em torno da denominação “jazz” estava incluída uma ampla gama de manifestações relegadas à condição de mercadoria musical. A crítica focava o sucesso comercial das big bands, com salões repletos de gente disposta a dançar ao som das orquestras de Benny Goodman, Guy Lombardo ou Artie Shaw. Discos eram vendidos aos milhares, os fãs se compraziam em reconhecer os primeiros acordes de cada canção e as exclamações de entusiasmo ecoavam nos bailes e nas festas quando as bandas começavam a tocar. Adorno concebia esses fenômenos como a desistência de elevação estética que supostamente podia ser oferecida pela música “séria” e, desse ponto de vista, Benny Goodman e Guy Lombardo eram tratados como marcas comerciais para diferenciar o que era indiferenciado. Adorno chegou a afirmar que “música popular é, para as massas, como um feriado em que se tem de trabalhar” (Adorno, 1986, p. 137), isto é, entretenimento que não descortina inspirações para além das condições da labuta e da dominação cotidianas. O mesmo se aplicava às diversas vertentes do jazz:
A função social do jazz afina-se com a sua própria história, a saber, a história de uma heresia absorvida pela cultura de massa. Sem dúvida, dormita no jazz o potencial de uma sublevação musical a partir da cultura por parte daqueles que não foram por ela aceitos, ou, então, irritaram-se com sua desonestidade. Mas o jazz terminou por ser cada vez mais aprisionado pela indústria cultural, e, com isso, pela conformidade musical e social; famosas palavras-chave atinentes a suas fases, tais como swing, bebop e cool jazz, constituem a um só tempo slogans publicitários e momentos de tal processo de absorção (Adorno, 2017, pp. 104-105).
O “jazz” igualava-se à música oferecida no circuito das vendas, mesmo que por momentos Adorno tenha percebido a riqueza nele existente ou lamentado as possibilidades desperdiçadas pelas imposições do mercado. Ao reconhecer o talento de Charlie Parker, definiu as proezas do Bird no saxofone como “some good bad music” (Witkin, 2000, p. 160), o que remete à observação de que tudo que o jazz havia produzido já havia sido superado desde Brahms (Gracyk, 1992, p. 528). Outros compositores receberam o mesmo tratamento:
Ela [a música ligeira] usa ao máximo o estoque depravado do romantismo tardio; o próprio Gershwin é uma transposição talentosa de Tchaikovsky e Rachmaninoff à esfera do entretenimento. Até hoje, a música ligeira não teve muita participação na evolução, que se realiza há mais de cinquenta anos, no material da música elevada. É claro que ela não se interdita certas nouvautés. Todavia, destrói-as em termos de função e de livre desenvolvimento, à medida que as acrescenta como meros borrões coloridos, como refinamento da linguagem rigidamente tradicional, o que se vê, inclusive, nas dissonâncias aparentemente arriscadas de algumas vertentes do jazz (Adorno, 2017, p. 91).
Para Adorno, o jazz padecia de parasitismo musical enfeitado com novidades. Como mostra a evolução histórica do gênero no século XX, essa crítica não se confirmou. Charles Mingus, apenas um exemplo entre tantos, foi incansável em desenvolver tempos variados e flutuações rítmicas improváveis que exigem do ouvinte muito mais do que a passividade e o conforto de sucessões já conhecidas ou “familiares”. Marcado pela criação coletiva, o jazz dispensa os roteiros prévios e deflagra sucessões que alcançam uma complexidade que não fica atrás das “composições pensadas” em seus detalhes e efeitos. O jazz sempre foi uma arte de performance, exercida por músicos em liberdade de criação.
Em História social do jazz, o historiador marxista Eric Hobsbawm se contrapõe à interpretação de Adorno ao definir o jazz como “de forma mais ou menos diluída, a linguagem básica da dança moderna e música popular da civilização urbana industrial” (Hobsbawm, 2009, p. 34). Chamou o jazz “de fato, a música clássica dos Estados Unidos”. Sua evolução derivou da “simplicidade” do blues e, fazendo uso da imagem de Adorno sobre a relação entre o poema e o uso cotidiano do vocabulário, pode-se dizer que o blues era a “palavra” do jazz:
No entanto, foi nessa região que se produziram dois importantes desenvolvimentos do jazz: a fusão do blues local com a música popular dançante e a apresentação de arranjos preparados junto a jam sessions, criando a banda clássica de swing e o mais poderoso laboratório experimental do jazz. Kansas City produziu não apenas Count Basie, mas também Charlie Parker (Hobsbawm, 2016, p. 430).
Essa base foi sucessivamente sofisticada através da expansão melódica e harmônica desenvolvida por grandes talentos como Thelonius Monk, Ornette Coleman, Lester Young, Miles Davis, John Coltrane, Bill Evans e outros, que criaram os seus “poemas”. O novo aí se produziu por décadas, estabelecendo novas fronteiras musicais.
A trajetória de B.B. King, um mestre do blues cuja carreira se limitou às plateias negras por três ou quatro décadas e somente alcançou reconhecimento mundial nos anos 1970, ilustra essa ligação. King iniciou na música na década de 1940, quando era um garoto magrelo que chegou a Memphis proveniente das fazendas de algodão do Delta do Mississipi e não tinha dinheiro para comprar um ingresso para entrar no Jones Night Spot, clube onde ele escutou os maiorais do jazz atrás de ripas de madeira que permitiam ver o seu interior. No Spot ele pôde ouvir Count Basie, Lester Young e sofrer o impacto das apresentações de Coleman Hawkins, um gênio pioneiro que trouxe o saxofone como instrumento solo. Sonny Boy Williamson, o célebre gaitista e compositor de blues, também se apresentava por lá, cujo estilo ecoa até hoje na gaita de Mick Jagger e de outros músicos de rock.
Em um encontro nos anos 1950, em Houston, o saxofonista Charlie “Bird” Parker, que figura no Olimpo do jazz ao lado de Louis Armstrong, Miles Davis, Duke Ellington e outros, disse para B.B. King: “Sou um músico de blues. Todos somos músicos de blues. Só que escutamos o blues de maneiras diferentes. O dia em que nos afastarmos do blues, será o dia em que deixaremos de fazer sentido”. Em suas memórias, B.B. King completa: “Aquilo fez todo o sentido do mundo para mim. E foi dito pelo homem visto como o messias pelos músicos modernos de jazz” (King & Ritz, 2013, p. 113). A conversa foi possível porque os dois se encontravam na cidade, Parker tocando na banda de Dizzy Gillespie enquanto B.B. King acompanhava Nat King Cole, Stan Kenton e Sarah Vaughan. Em suas passagens por Nova York, King adorava ir ao Birland, a lendária casa de jazz, e sentar-se ao fundo para ouvir Oscar Peterson, Sarah Vaughan, Count Basie e ainda o impressionante quinteto formado por Miles Davis, John Coltrane, Red Gardland, Philly Joe Jones e Paul Chambers.
O vocabulário do blues está na ausência de pretensão de “Rock Around the Clock”, de Bill Haley e seus Cometas, até atingir a sofisticação de “poemas” como “Lucy in the Sky with Diamonds”, dos Beatles, ou “Good Vibrations”, dos Beach Boys. Na sequência histórica, a partir do blues, as fontes de criação se ampliaram e amalgamaram tradição e inovação em experiências singulares. Na adolescência e no início de suas carreiras, John Lennon e Paul McCartney eram fascinados por Elvis Presley e pela Motown, a gravadora de artistas negros da América. Nos anos 60, a célebre dupla assimilou, entre outras, a influência das obras de Karlheinz Stockhausen e de Luciano Berio (de filiação comunista), ambos compositores eruditos da vanguarda europeia. Frank Zappa, também um ícone do rock e líder da banda Mothers of Invention, era um profundo conhecedor de jazz e admirador de Igor Stravinsky. Ao recordar as linhas de continuidade em sua formação, Keith Richards, o guitarrista e compositor dos Rolling Stones, recorre a conexões semelhantes àquelas de B.B.King sobre as confluências musicais em Memphis e Houston:
Todos passam isso adiante. Se Chuck (Berry) passou para mim, por exemplo, quem despertou o interesse de Chuck? Louis Jordan e Nat King Cole. Quem despertou o interesse de Nat King Cole?... Essa história vai cada vez mais longe, provavelmente até Adão e Eva (Richards apud Cohen, 2017, p. 119).
O blues foi a matriz da revolução harmônica, rítmica e melódica do jazz. Dessa base proliferaram ideias musicais que conduziram as plateias para a audição de algo novo, muitas vezes apresentado em escala torrencial. Adorno entende de outra maneira a sofisticação do jazz:
No jazz, o ouvinte amador é capaz de substituir complicadas fórmulas rítmicas ou harmônicas pelas esquemáticas que aquelas representam e ainda sugerem, por mais ousadas que possam parecer. O ouvido enfrenta as dificuldades do hit encontrando substituições superficiais, derivadas do conhecimento dos modelos padronizados. O ouvinte, quando se defronta com o complicado, ouve, de fato, apenas o simples que ele representa, percebendo o complicado somente como uma parodística distorção do simples (Adorno, 1986, p. 120).
Não era bem assim que as coisas aconteciam. No jazz, as variações sobre um tema (ao vivo ou em gravações de estúdio) podiam se estender sem limitações de tempo ou fugir das regras de duração exigidas pela comercialização de discos. A interpretação instrumental transportava os ouvintes para regiões sonoras, harmônicas e rítmicas nada familiares aos “regredidos” ou “infantilizados” pela estandardização. Thelonius Monk, Charles Mingus, Miles Davis e outros trabalharam em espaços abertos de invenção produzindo enredos que alcançavam a atonalidade e ombreavam com as experiências de vanguarda.
Adorno menciona que a supressão dos detalhes (o começo da parte temática ou a sua nova entrada depois da parte intermediária), ou a substituição por outros, não alteraria a estrutura das canções na medida em que eles obedeciam ao “automatismo musical” (Adorno, 1986, p. 118) das fórmulas consagradas de sucesso. “A Day in the Life”, canção que fecha Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (considerado o disco de rock mais importante já produzido), não é propícia a alterações nos ambientes conjugados que compõem sua intensidade dramática. Basta lembrar que George Martin, o produtor do quarteto de Liverpool e apelidado de “quinto Beatle”, dotado de sólida formação clássica e cérebro dos arranjos do grupo, desenvolveu inovações melódicas e instrumentais que ocuparam lugar definitivo na história da música popular. Nas fileiras do jazz, o piano de Thelonious Monk podia evoluir pela canção “My favorite things”, de The sound of music, e transformá-la em uma peça de vanguarda (Witkin, 2000, p. 161). O que saía das mãos e do cérebro de Thelonious Monk era dotado de uma complexidade que em nada favorecia a audição fácil:
Ele tocava cada nota como que ainda maravilhado com a anterior, como se cada toque de seus dedos no teclado estivesse corrigindo um erro, e esse toque, por sua vez, se tornava um erro a ser corrigido, e com isso a música nunca saía exatamente da forma como ele pretendia. Às vezes era como se a música tivesse sido virada pelo avesso ou composta do começo ao fim somente de erros. As mãos dele eram como dois jogadores de basquete que tentassem pegar um ao outro no contrapé; ele estava sempre se pegando no contradedo. Entretanto, havia uma lógica nisso, uma lógica muito própria de Monk: se alguém sempre tocasse a nota menos esperada, surgiria uma forma, uma impressão em negativo do que tinha sido previsto inicialmente. Você sempre sentia que no âmago da peça havia uma bela melodia que saíra de trás para frente, invertida. Ouvi-lo tocar era como ver alguém tomado de agitação nervosa: a gente se sentia incomodado até começar a fazer a mesma coisa (Dyer, 2013, p. 53).
As “notas menos esperadas” eram o oposto da domesticação da linguagem musical. Eram um drible, uma fantasia de momento que desconcertavam o movimento esperado. A maneira de compor de Thelonius Monk impelia o ouvinte (ou o público de suas apresentações ao vivo) a acompanhar o “jogo do contrapé”, isto é, a caminhar por um terreno onde a sucessão de notas “retificadas em seu erro” alcançava dimensões melódicas e harmônicas surpreendentes e elevava os padrões da sensibilidade da audição. Tais aquisições possibilitaram novas fontes de criatividade à música popular e permitiram, em muitos casos, o rompimento de barreiras à “ditadura do sucesso comercial” (Adorno, 1980, p. 168) e suas formas estandardizadas de produzir sucessos. É praticamente impossível listar a quantidade de temas e performances, gravados ou não, que jamais puderam ser domados por exigências comerciais.
O jazz, encarnado em anônimos ou nos artistas que alcançaram prestígio ou admiração pública, revelou uma massa de sentimentos projetados na música que acabou por ocupar um lugar insubstituível na cultura americana. Tais expressões estiveram presentes nas palavras de Martin Luther King no discurso de abertura do Festival de Jazz de Berlim em 1964, quando destacou a luta dos negros pelos direitos civis, que encontrava paralelo no trajeto dos músicos de blues e de jazz para terem a sua arte reconhecida. Na ocasião, o reverendo King acentuou o papel desempenhado pela música ao articular “o sofrimento, as esperanças e as alegrias da experiência negra muito antes que a tarefa fosse assumida por escritores e poetas” (Dyer, 2013, pp. 204-205).
Ainda B.B. King: com seis ou sete anos de idade, ele já ordenhava vinte vacas na plantation de Frank Cartledge, um proprietário branco que não tratava seus empregados com as doses de crueldade comum aos fazendeiros racistas do Delta do Mississipi. O bisavô de B.B. King, Pop Davidson, nascera escravo. Sua mãe, uma jovem amorosa e trabalhadora dos domínios de Cartledge, morreu com vinte e cinco anos e sua avó um ano depois. Desde os doze anos, Riley (o nome original de B.B. King) viveu sozinho trabalhando no campo, muito solitário e conversando com os animais. Nas plantações de algodão, ele se habituou a ouvir as vozes potentes de homens e mulheres que entoavam canções que aliviavam a labuta árdua ou alertavam para graves ameaças aos trabalhadores:
Minha bisavó, que também tinha sido escrava, falava sobre antigamente. Falava sobre o começo do blues e de como cantar ajudava o dia passar. Cantar sobre a sua tristeza tirava o fardo da alma. Mas os cantadores do blues falavam mais do que sobre estar triste. Se o mestre estivesse vindo, eles cantavam um tom de aviso oculto aos outros no campo. Talvez alguém quisesse sair do caminho dele ou se esconder. Isso era importante para as mulheres porque o mestre podia ter qualquer coisa que quisesse. Se gostasse de uma mulher, podia tomá-la sexualmente. E ela só teria duas escolhas: se submeter às exigências dele ou se matar. Não havia meio termo. O blues podia avisar você do que estava chegando. Pude perceber que o blues tinha a ver com sobrevivência (King & Ritz, 2013, p. 7).
A acumulação do sofrimento por longas sérias de gerações tinha a música como companhia constante. Não é de se estranhar que Charles Mingus considerava o blues “uma música tocada para os mortos, chamando-os de volta, mostrando-lhes o caminho de volta à vida”, ou mesmo “o desejo do próprio músico de estar morto, um meio de ajudar os vivos a achar os mortos” (Dyer, 2013, p. 132). Como evocado no discurso de Martin Luther King, o jazz relata a saga das dores dos negros da América, em suas versões mais líricas, melancólicas ou nas explosões mais enérgicas de instrumentistas e compositores. O gênero contém a história desse povo, sua labuta diária, suas perdas permanentes, a sucessão ininterrupta de humilhações, a carga de opressão nas interações cotidianas e as revoltas que marcaram episódios marcantes da história americana. Adorno deixou escapar à percepção que o jazz não se compunha apenas das big bands que traziam divertimento para todos; era um manancial de expressão da vida dos subalternos que alcançou patamares elevados. Uma rápida descrição da arte do saxofonista Ben Webster revela facetas dessa bagagem:
Quando Ben toca um blues ou “In a Sentimental Mood”, entende-se como é irrelevante aquela velha ideia de sentimento barato. Ele nunca se tornava meloso, porque, por mais suave que fosse seu som, lá estava sempre o urro, oculto em algum lugar (Dyer, 2013, p. 109).
Charles Mingus, que jamais teve parentesco com a moderação, foi definido em um tribunal como “músico de jazz”. Em resposta, ele vociferou: “Não me chame de músico de jazz. Para mim, a palavra ‘jazz’ quer dizer crioulo, discriminação, cidadãos de segunda classe e todo o lance de ficar no fundo do ônibus” (Mingus apud Dyer, 2013, p. 122). A música de Mingus foi impulsionada por radicalidade política e existencial misturada às harmonias, escalas e ritmos de seus temas:
Sua música era tão transbordante de vida, tão cheia do ruído da cidade que, passados trinta anos, alguém que escutasse “Pithecanthropus Erectus”, “Hog-calling Blues” ou alguma outra dessas peças do tipo rolo compressor, não saberia dizer com certeza se o lamento e o grito eram de um instrumento de sopro na gravação ou da sirene vermelha e azul de uma radiopatrulha que passasse sob a janela. O simples ato de ouvir a música seria uma forma de participar dela, enriquecê-la (Dyer, 2013, p. 123).
As restrições de Theodor Adorno à música popular, com o elenco admirável de recursos que ele tinha para analisar a estrutura das canções, não incorporaram essa fonte inesgotável de inovações derivadas de uma inserção histórica na vida americana. O jazz mostrou-se uma linguagem avançada que alcançou o status de uma forma de arte superior. Nesse sentido, se encaixa a observação de Eric Hobsbawm em História social do jazz:
[...] a ambição ‘respeitável’ do músico de jazz moderno não é mais, simplesmente, ser aceito como um executante de Bach ou um compositor clássico, mas como alguém que toca uma música tão complexa quanto Bach, porém fundamentalmente em raízes negras, o blues (2009, p. 274).
Em resumo, os músicos de jazz podem e devem ser levados tão a sério quanto Arnold Schoenberg e o relevo de sua obra.
Os juízos estéticos de Adorno subestimaram a gramática artística do jazz, de origem popular, que inaugurou possibilidades até então não experimentadas e educou sucessivamente gerações de ouvintes em novas direções. A história do jazz mostra uma arte cujas realizações podem ser comparadas às influências da “música séria”. No âmbito da indústria cultural (aí incluídas a vastidão das soluções artificiais e a produção rasteira destinada à grande vendagem), o jazz mudou padrões estabelecidos e influiu sobre os ouvidos do público para além do “automatismo”. Gravações “difíceis”, como as da vanguarda erudita, não são raras de encontrar e propiciaram o surgimento de uma erudição própria. O jazz não se reduz à vulgarização da música “elevada”, mesmo que, como assinala Hobsbawm, a indústria cultural se alimente das práticas surgidas na expressividade cotidiana do povo para assimilá-las aos padrões estéticos que rendem dividendos no mercado.
Fredric Jameson, estudioso marxista da Escola de Frankfurt, salienta um aspecto que incide sobre a nossa discussão sobre a música:
Parece claro que tal relato sobre a mercantilização tem imediata relevância para a estética, no mínimo porque implica em que tudo na sociedade de consumo assumiu uma dimensão estética. A força da análise de Adorno-Horkheimer sobre a indústria cultural situa-se, entretanto, em sua demonstração da inesperada e imperceptível introdução da estrutura mercantil na própria forma e conteúdo da obra de arte em si mesma. Não obstante, isso é algo como a definitiva quadratura do círculo, o triunfo da instrumentalização sobre essa “finalidade sem fim” que é a própria arte, a constante conquista e colonização do definitivo reino da não-praticalidade, do puro jogo e antiuso, pela lógica do mundo dos meios e fins. Mas como pode a mera materialidade de uma sentença poética ser “usada” nesse sentido? (Jameson, 1994, p. 4).
Há, portanto, uma dimensão da criação artística que não resta aprisionada nessa ordem de relações onde tudo vira mercadoria. Nesta passagem, Jameson (1994) se refere à sentença poética, mas o exemplo permite que se estenda a consideração para outras linguagens artísticas. Essa dimensão, do “reino da não-praticalidade”, pode ser encontrada tanto na alta cultura como na cultura de massa. Daí resulta a intenção de:
[...] apreender a cultura de massa não enquanto distração vazia ou “mera” falsa consciência, mas sobretudo como um trabalho transformador sobre angústias e imaginações sociais e políticas, que devem então ter alguma presença efetiva no texto cultural de massa, a fim de serem subsequentemente “administradas” ou recalcadas (Jameson, 1994, p. 16).
Jameson lembra que Shakespeare, Dom Quixote, a tragédia grega ou mesmo Dickens foram capazes de reunir ampla audiência “popular” (Jameson, 1994, p. 7) e discute a pertinência das interpretações da Escola de Frankfurt sobre as obras de alta qualidade estética de Charles Chaplin, John Ford, Alfred Hitchcock e Georges Simenon, entre outros, que duradouramente foram incorporados ao gosto de massa. Na música, Adorno menciona a intenção de Beethoven em despertar o fogo da alma do homem em suas sinfonias e, no entanto, não aventou que o blues e o jazz (ao que se pode adicionar, seguindo a linha do tempo, o samba e o rock) pudessem ter o mesmo impacto sobre as mentes e os corações. Em situações corriqueiras e não menos desprovidas de significado, é comum que grandes momentos de inspiração da música popular sejam cantarolados por gerações das mais diversas culturas e nacionalidades através das canções de Dylan, dos Beatles, dos Stones e de outras bandas. Esse gostar despreocupado, que dispensa a inteligibilidade sobre a estrutura das composições, não é regressivo e se enraíza nas maneiras de sentir e de pensar que alçam os ouvintes a uma experiência artística densa.
No interior do amplo estoque de inutilidades da indústria cultural, os produtos musicais solicitam interpretação, de forma a compreender como as “angústias e imaginações sociais e políticas” também estão ali presentes. Na visão de Adorno não se observa tal inclusão, pois apenas a “música séria”, desafiadora das linguagens estabelecidas e das atribuídas soluções banais, possibilitaria à audição um passo além da regressão e do fetichismo das mercadorias musicais. No entanto, a dinâmica da indústria cultural não dilui inescapavelmente a bagagem musical de grupos e classes subalternas baseada em práticas estéticas derivadas da experiência cotidiana que ocorrem nas margens desse processo (Witkin, 2000, p. 166). Tais práticas não são controladas de antemão, nem os tentáculos do mercado já as captura antes que elas possam estabelecer seus nichos de formação de gosto. A rígida hierarquização conceitual entre “música séria” e “música ligeira” operada por Adorno restringe a análise do material bruto que provém do mundo da vida, recaindo em juízos estéticos marcados pela parcialidade e pela valorização unilateral da alta cultura. Como salientam Witkin e Hobsbawm, a exploração comercial não dispensa essas fontes quando as formas estabelecidas se exaurem. A indústria cultural faz a sua parte e continuará a fazê-lo, visando o lucro e oferecendo o seu estoque sempre renovado de produtos consumíveis. No entanto, isso não é tudo e a crítica estará pela metade se, como quer Adorno, a qualificação da “autenticidade” dispensar as práticas estéticas oriundas da vida cotidiana que alimentam o gosto popular.
Apesar do jazz ter servido a versões estereotipadas destinadas a um consumo ligeiro, de verniz, e que pode servir de “prova” aos argumentos que sugerem seu caráter de música “padronizada” ou a serviço da “colonização do gosto”, seu alcance ultrapassa grandemente tais alegações. O jazz não nasceu sob a marca de um produto destinado à comercialização, nem submetido às fórmulas consagradas para a aceitação no mercado. Resultou da experiência de longas séries de gerações do povo negro da América e da expressão de suas agruras, infortúnios e esperanças e, como legado cultural, expandiu as fronteiras até então existentes da criação musical. A ênfase exclusiva na ótica mercantil, desatenta ao percurso histórico dessa arte, acaba por minimizar seu vigor estético e suas extensões sobre a renovação do gosto. As forças predominantes da indústria cultural sempre estarão prontas para aproveitar as oportunidades de diluição se isso significar mais dividendos, no entanto elas não são capazes de se impor como um bloco inexpugnável. Esse é o caso do jazz, como também de linguagens que, ao longo do tempo, renovaram o campo da música popular. O sofrimento e a melancolia do blues não foram originários dos produtores que sabiam as receitas do sucesso, nem também inventaram a rebeldia do rock nos gritos de Little Richard. A rígida distinção de Adorno entre a “música séria” e a “música popular ligeira” está na base de equívocos como aquele que torna indistinta a música popular de qualidade da “mera manipulação, pura lavagem cerebral e distração vazia”. Não é um axioma que os ouvintes da música popular estejam destinados a serem capturados pela “banalidade”. Fredric Jameson toca diretamente nesse ponto ao discutir o “domínio intemporal do juízo estético absoluto”, de traços elitistas, amparado na valorização unilateral da alta cultura (Jameson, 1994, .6).
O jazz e o blues, assim como uma parcela de seus sucedâneos, alcançaram um lugar insubstituível na cultura americana. Nos anos 1960, o rock esteve associado às utopias existenciais, estéticas, sexuais, sociais e políticas do período, junto com uma impressionante explosão de criatividade. Tudo isso remete a uma linhagem estendida durante todo o século XX, que começou com os escravos e filhos de escravos e contou em suas fileiras com Duke Ellington, Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Dizzy Gillespie, Charles Mingus, Miles Davis, Chuck Berry, Little Richard, Ray Charles, Stevie Wonder, Aretha Franklin, Otis Redding, Jimi Hendrix e tantos mais. Sem esquecer os músicos ingleses brancos de rock, muitos deles com origem na classe trabalhadora, que adotaram o blues como base de tudo o que alcançaram a seguir. Essas gerações de músicos trouxeram um sentimento do mundo, um aguçamento da sensibilidade e uma história contada de forma bem diversa dos padrões estabelecidos até então pela indústria cultural. Não foram poucas as vezes que a indústria fonográfica se rendeu à inventividade desses artistas. A “Europa” de Adorno, referida à grande tradição clássica e às vanguardas musicais do início do século XX, não se deixou tocar pela “América” do blues, do jazz e do rock e suas fontes na cultura popular.
» Adorno, T. W. (2017). Introdução à sociologia da música. São Paulo: Editora Unesp.
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Biografía
Luis Carlos Fridman
Professor titular e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense. Escreveu os livros Vertigens pós-modernas – configurações institucionais contemporâneas e O jardim de Marx, além da organização da coletânea Socialismo – Émile Durkheim e Max Weber. Publicou, entre outros, os artigos “Próximos ou separados? Ideias de Giddens e Bauman sobre as motivações para a política” na Revista Lua Nova, “Mundo desencantado e mundo desengajado” na Revista Sinais Sociais, “Delegação de poder discricionário: o sonho de paz” na Revista Dilemas, “Rock and Roll, John Lennon e a esfera pública” na Revista Sociologia & Antropologia, “Amor e frieza na obra de Zygmunt Bauman” e “A música que merece ser ouvida”, na Revista Insight-Inteligência e “Rock e insurgências nos anos 1960”, na Revista Antropolítica.