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Remapping Sound Studies

Steingo, G. and Sykes, J. (2019). Durham and London: Duke University Press. 288 páginas.

Lucas Wink

Universidade de Aveiro, Instituto de Etnomusicologia,
Centro de Estudos em Música e Dança, Aveiro, Portugal

lucaswink@ua.pt

As críticas pós-humanistas à antecedente ontologia antropocêntrica desenham novas formulações conceptuais e epistemológicas nos estudos de música no século XXI. Nomeadamente, a passagem do estudo da música ao estudo do som e da escuta, conforme desenvolvido em Sterne (2012), Ochoa Gautier (2014), Titon (2017), Schulze (2018), Domínguez Ruiz (2019) e outros. Neste âmbito, observa-se um esforço não só no sentido de escrutinar processos históricos e políticos basilares que legaram ao visualismo (Erlmann, 2004) uma disposição peculiar nos estudos musicais, mas também de forjar opções no intuito de mapear e elaborar narrativas sônicas e políticas de escuta alternativas, no contexto da modernidade global aqui entendida na acepção de Walter Mignolo (2017). Num viés decolonial, tais opções pretendem (i) a amplificação de diferenças, poéticas, afetos e sentidos silenciados face às narrativas nortocêntricas hegemônicas na produção acadêmica e, mais especificamente, no próprio campo dos Sound Studies; (ii) a desconstrução de discursos que preconizam o som e a escuta em seus universalismos com vista à compreensão de contextos e contingências locais, segundo argumenta Fernando Iazzetta (2018).

Remapping Sound Studies, lançado em 2019 pela Duke University Press, constitui uma produção que substancializa estes esforços. Editado por Jim Sykes, professor assistente de Música na University of Pennsylvania, e Gavin Steingo, professor assistente de Música na Princeton University, trata-se de um volume com 288 páginas, constituído por 13 capítulos em língua inglesa assinados por acadêmicos das áreas da Música, Etnomusicologia, Musicologia, Antropologia, Estudos em Performance e Estudos Pós-coloniais. Na verdade, a publicação consiste numa versão expandida de comunicações apresentadas durante o simpósio Remapping Sound Studies: A Turn to the Global South.1 Realizado em 2016 na Duke University com o copatrocínio do Franklin Humanities Institute, do Departamento de Antropologia Cultural, do Concilium on Southern Africa e do Grupo de Estudos em Etnomusicologia, este evento realizou-se durante dois dias nas dependências daquela universidade. Organizado em três painéis temáticos, incluiu sessões de debate e comunicações apresentadas por nove dos 13 autores cujos textos compõem o presente volume.

Na introdução da obra, assinada em conjunto por Sykes e Steingo, são explicitados o enquadramento teórico, os conceitos operativos, os objetivos, as inclinações e predileções metodológicas, as críticas dirigidas aos Sound Studies e os desafios aos quais os autores convidados atenderão. A proposta de remapeamento dos Sound Studies –arrojado fio condutor que se estende por toda a compilação–, denota logo à partida um ímpeto explicitamente político, quer seja pela natureza da sua argumentação, quer seja pela intenção de se fazer entender como um efetivo gesto que almeja abrir outros campos de escuta, de inquérito e de conhecimento sobre som.

Numa perspectiva que ressoa enunciados da teoria decolonial, os editores clamam por uma reorientação dos Sound Studies em direção ao Sul Global, terminologia nebulosa, reconhecem, e que oscila entre uma categoria empírica e um constructo ideológico. No propósito do livro, Sykes e Steingo enfatizam que antes de ser compreendida como sinônimo estrito de Hemisfério Sul, a designação descreve um conjunto de externalidades globais produzidas pelo colonialismo e pelo neoliberalismo. Embora revelando a intenção de definirem este Sul para além de critérios meramente territoriais, uma rápida análise dos terrenos a partir dos quais são desenvolvidos os ensaios da compilação não deixa de remeter para uma geografia. À exceção do trabalho de Hervé Tchumkam em França, todas as investigações de campo são levadas a cabo em contextos fora da América do Norte, da Europa e daqueles que consideram como países capitalistas avançados do nordeste asiático. Fora do “Norte Global”, portanto. De maneira similar, esta aceção pretende também ser compreendida para além de termos puramente geográficos. Aqui, é a dimensão política e epistemológica do conceito que interessa e que no fundo embasa a crítica e os argumentos do projeto. Norte é compreendido como uma estrutura a partir da qual se produzem e reproduzem práticas, políticas, discursos, lógicas de poder, de dominação e de exclusão; como uma instituição discursiva cujas narrativas hegemônicas ofuscam saberes e visões de mundo.

Partindo de uma breve exploração histórica do clássico Essai sur l’origine des langues de Rousseau (1781), Sykes e Steingo fornecem um categórico exame acerca do modo como desde o século XVIII o pensamento ocidental idealizou e instaurou a figura relacional Som/Sul em oposição a Visão/Norte. Se, de fato, o Norte se constituiu enquanto espaço da racionalidade, da ciência, da objetivação, que vê para conhecer e que tem na escrita um instrumento de amparo, assim se fez porque, do outro lado, atribuiu-se ao Sul o lugar de irracionalidade, do místico e do mágico, da natureza, da música, do calor, da presença e dos sentidos exuberantes. Apesar de assinalarem a existência de evidentes dissemelhanças entre a conceptualização Sul/Som desde Rosseau e aquelas exploradas na presente publicação, não hesitam em apontar a perenidade deste binarismo. Elucidando a necessidade de se tomar Sul e Norte como disposições mutuamente constitutivas, vão localizar e escrutinar narrativas e pressupostos teóricos, temáticos e epistemológicos de cariz nortocêntricos que dizem enformar atualmente a produção acadêmica canônica dos Sound Studies.

Enquanto configuração disciplinar robusta, emergindo mais consistentemente em inícios do século XXI, os editores argumentam que desde então os Sound Studies têm se calcificado em torno de um conjunto de interesses canônicos limitados. Analisando bibliografia específica dentre a qual se inclui, entre outros, os emblemáticos Oxford Handbook of Sound Studies e o Oxford Handbook of Mobile Music, identificam pelo menos três eixos temáticos principais: (i) o desenvolvimento histórico do som no ocidente como um fenômeno e um conceito separado dos demais sentidos; (ii) os processos de secularização e de crescente isolamento do som através da invenção de novas tecnologias; (iii) a crescente divisão entre público/privado. No capítulo que assina individualmente, com um arrebatador senso crítico, Gavin Steingo vai desenvolver estes pontos mais profundamente. A partir de vivências e observações no terreno, designadamente na África do Sul e nos Camarões, o autor desconstrói três premissas que diz serem recorrentes na produção da área: (i) a noção de que as tecnologias de som cada vez mais isolam o sujeito ouvinte em “bolhas individuais” (numa crítica direta aos trabalhos de autores como Michael Bull): (ii) que a música tem se tornado cada vez mais disponível e ubíqua devido aos avanços tecnológicos na sua circulação; (iii) que a escuta é mormente associada com investimento biopolítico e eficiência, numa referência à teoria biopolítica de Michel Foucault operacionalizada em estudos sobre a perda auditiva dos trabalhadores em contextos industrializados europeus.

Com base neste quadro, Sykes e Steingo salientam a necessidade de se pensar o som no e a partir do Sul. Esta é uma proposta cuja realização denota a perspicácia de não transferir simplesmente uma lógica, um modelo analítico, temático e metodológico de um contexto para outro. A integração do Sul no Norte por esta via caracterizaria, suponho, um empreendimento falacioso. Segundo referem, o ponto de partida para superar esta circunstância consiste em desvelar a importância de estudos já existentes sobre o som no Sul. Aqui, os editores fazem um trabalho que aqueles que buscam uma bibliografia alternativa vão julgar muito conveniente. Selecionando 30 publicações de áreas diversas publicadas desde o final dos anos 1970, formulam aquele que se constituiria como “An Imaginary Southern Sound Studies Reader”. Organizadas em seis áreas emergentes –Sound Ecologies; Speechs Acts and Oratory; Race, Ethnicity, Class, and Gender; Sonic Ontologies and Religions; Colonialism and Neo-Colonialism: Encounters and Domination; Technoloy and Media– este Reader indica-nos pelo menos dois aspectos: por um lado, sinalizando a diversidade de relacionalidades, políticas, discursos, ecologias, tecnologias e ontologias do som no Sul, denuncia a tendência excludente dos Sound Studies e a natureza ideológica dos processos conducentes à formulação de um cânone; por outro, ao enunciar uma antologia que presumivelmente não será publicada, os autores preconizam a dimensão imaginativa enquanto combustível fundamental na realização de projetos visando atenuar assimetrias e hierarquizações de saberes.

Tendo em conta as diferentes áreas emergentes deste Reader e as limitações dos Sound Studies, Sykes e Steingo elaboram a proposta de uma nova cartografia da teoria do som. Com uma orientação marcadamente etnográfica, os artigos que compõem o volume vão contribuir para este desafio. Os capítulos aparecem organizados em três grandes secções. A primeira, The Technology Problematic, explora a relação do som com a tecnologia. Reivindica uma mudança de foco relativamente ao sentido e à maneira de se abordar a tecnologia: de uma acepção que a concebe como uma prática moderna ocidental, como um conjunto de invenções que reproduz, isola e idealiza o som, sugere uma abordagem dinâmica e analítica que explore a multiplicidade de objetos e técnicas através das quais a cultura é constituída. Três artigos compõem esta subdivisão: 1) Another Resonance: Africa and the Study of Sound, de Gavin Steingo, 2) Ululation, de Louise Meintjes, 3) How the Sea is Sounded: Remmaping Indigenous Soundings in the Marshalese Diaspora, de Jessica Schwartz.

A segunda secção é intitulada Multiple Liminologies. Aqui, Sykes e Steingo propõem conceber os Sound Studies como um experimento com os limites da audiabilidade. Faz sentido falar/considerar o som para além dos limiares de um listening ear? –é uma das questões levantadas para pontuar que talvez aquilo que entendemos por som não se limite à audição, mas, ao contrário, abrange a propagação de sons por corpos vibrantes anteriormente à audição de um perceptor humano. Preconizando estudos sobre os nexos/modos através dos quais a audição seja arrebatada, excedida ou repelida, argumentam que a proposta de Multiple Liminologies sustenta-se num enquadramento que reconhece tanto a ontologia do som a partir de uma perspectiva não-correlacionada (o som existe enquanto entidade independente, está para além da experiência humana), quanto as diferenças culturais na sua apreensão. Os artigos desta secção são: Antenatal Aurality in Pacific Afro-Colombian Midwifery, de Jairo Moreno; Loudness, Excess, Power: A Political Liminology of a Global City of the South, de Michael Quintero; The Spoiled and the Salvaged: Modulations of Auditory Value in Bangalore and Bangkok, de Michele Friedner e Benjamin Tausig; Remapping the Voice through Transgender Hījṛā Performance, de Jeff Roy.

A terceira parte do livro tem como título The Politics of Sound. Nesta secção, os editores propõem que os Sound Studies teorizem as históricas sônicas como histórias de encontros marcadas por fricções, antagonismos, negociações e integrações. Considerando o som na sua relação com o corpo, descrevem a intenção de explorar a maneira como o som é usado “to listen in and through others” (2019, p. 12) e como produz relações sociais. Enfatizam que tal proposta abre margem para que se produzam narrativas politizadas, historicamente situadas e culturalmente diversas dos encontros sônicos na modernidade global entre grupos humanos e respectivas ontologias sônicas. Os artigos que compõem esta divisão são: Banlieue Sounds, or, The Right to Exist, de Hervé Tchumkam; Sound Studies, Difference and Global Concept History, de Jim Sykes; “Faking it”: Moans and Groans of Loving and Living in Govindpuri Slums, de Tripta Chandola; Disorienting Sounds: A Sensory Ethnography of Syrian Dance Music, de Shayna Silverstein; e Afterword: Sonic Cartographies, epílogo assinado por Ana María Ochoa Gautier.

O presente volume representa um contributo relevante não somente para os estudantes do som, mas, de um modo geral, pode ser do interesse daqueles cujas atividades são orientadas no imperativo ético de atenuar assimetrias de ordem política e epistemológica na produção de conhecimento. Ao reivindicar a alteração de lugares e lógicas a partir dos quais um corpo de conhecimento é construído, tal qual sublinha Ochoa Gautier, esta publicação promulga um deslocamento teórico e acústico que evidencia a condição de marginalidade de espaços, histórias, pessoas e respetivas práticas sônicas nos Sound Studies. Muito mais do que apenas corroborar as pertinentes críticas de Sykes e Steingo, os autores convidados tomam partido de fato na proposta anunciada no título do volume. Quando digo de fato, quero salientar a dimensão política, de compromisso e de ação a que o projeto necessariamente incita e que se traduz na escrita dos capítulos. Amplificando as vozes do, no e a partir do Sul, os colaboradores encenam um efetivo gesto cartográfico de maneira a ouvir e captar dinâmicas, cenários, sentidos, afetos, modos de estar no mundo, ontologias e saberes sônicos cuja presença é menorizada por narrativas, lógicas e critérios de longa data que enformam a tradição do pensamento ocidental.

Por último, mas não menos importante, é preciso referir que a esmagadora maioria dos autores que escreve neste volume assim o faz a partir de instituições do Norte –dos Estados Unidos da América, em específico. Os próprios editores reconhecem nesta circunstância uma limitação, admitindo, em seguida, que a obra apresenta também um desequilíbrio relativamente à predileção pela Etnografia e pela Antropologia. Em sequência, não hesitam em indicar que um exercício de remapeamento abrangente exigiria a inclusão de contributos de autores estabelecidos no Sul, o que demandaria por sua vez a necessidade de organização de conferências em geografias diversas, exigindo escritos e pensamentos sobre som em línguas que não a inglesa e, consequentemente, complexos mecanismos de tradução. Mais infraestrutura, mais dinheiro e mais trabalho, conforme resumem. Todas estas condicionantes têm evidentemente a sua pertinência e não tiram de todo o mérito da obra. Se os editores as expõem com certa franqueza, é precisamente com o intuito de assinalar lucidez frente às fragilidades e limites do projeto. No entanto, não deixa de ser particularmente inquietante que nenhum dos artigos discuta e operacionalize, por exemplo, os contributos incomensuráveis de Boaventura de Sousa Santos em torno das Epistemologias do Sul, do Pensamento Pós-abissal, da Ecologia de Saberes e tantas outras propostas que este sociólogo português traz para a análise das estruturas e da construção do conhecimento moderno. É necessário reconhecer, portanto, que deste livro também ressoam muitas ausências e silêncios, inscrevendo assim questões fundamentais e desafios intrigantes na produção de conhecimento sobre som. De que maneira ouvir e quais as ações e políticas de escuta necessárias para captar ausências e amplificar silêncios no contexto da modernidade global de modo a não cair numa condescendência facilitista frente a percalços de natureza monetária, laboral, institucional e geográfica? De que forma elaborar conhecimento sobre som numa perspectiva que prima pela pluriversalidade das práticas e expressões sônicas sem reproduzir lógicas excludentes de autores e atores discursivos?

Remapping Sound Studies sintomatiza o recente “giro aural” no âmbito da teoria crítica (Ochoa Gautier, 2014) que reconhece a presença cada vez mais crescente do som e do aural enquanto territórios de teorização. Contribuição auspiciosa, o livro de Jim Sykes e Gavin Steingo vai provocar o despertar de ouvidos frente aos complexos enunciados e desafios éticos, estéticos e políticos que ecoam dos Sound Studies.

Bibliografía

» Domínguez Ruiz, A. L. M. (2019). El oído: un sentido, múltiples escuchas. Presentación del dossier Modos de escucha. En A. L. M. Domínguez Ruiz (Ed.). Dossier “Modos de escucha”. El oído pensante, 7(2), 92-110. Recuperado de http://revistascientificas.filo.uba.ar/index.php/oidopensante/article/view/7562/6774

» Erlmann, V. (2004). Hearing Cultures: Essays on Sound, Listening, and Modernity. New York: Berg.

» Iazzetta, F. (2018). Escutas, subjetividades e materialidades. 14º Encontro Internacional de Música e Mídia – São Paulo. Recuperado de https://www.doity.com.br/anais/trabalhos-completos-14musimid/trabalho/80785

» Mignolo, W. (2017). Colonialidade – O lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 32(94), 1-18.

» Ochoa Gautier, A. M. (2014). Aurality. Listening & Knowledge in Nineteenth Century Colombia. Durham and London: Duke University Press.

» Rousseau, J-J. (1781). Essai sur l’origine des langues. Geneva: S/d.

» Schulze, H. (2018). The Sonic Persona – An Anthropology of Sound. New York and London: Bloomsbury.

» Sterne, J. (2012). The Sound Studies Reader. New York: Routledge.

» Titon, J.T. (2017). From Music in its Sonic Context to Music as Sound: Some Theoretical Considerations. For UCLA Symposium on Ethnomusicology in Theory and Practice, in honor of Timothy Rice’s retirement. Recuperado de https://www.academia.edu/33385309/From_Music_in_Its_Sonic_Context_to_Music_as_Sound_Some_Theoretical_Considerations_2017_

Biografia / Biografía / Biography

Lucas Wink

Obteve o título de mestre em música pela Universidade de Aveiro em 2017 (especialização em musicologia). Frequentou, na mesma instituição, o mestrado em ensino da música em 2017-2018 (especialização em bateria jazz). Atualmente realiza o doutoramento em etnomusicologia na Universidade de Aveiro, onde desenvolve uma investigação sobre os bombos portugueses financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (SFRH / BD / 139998/2018). É investigador do projeto Práticas sustentáveis: um estudo sobre o pós-folclorismo em Portugal no século XXI. Toca bateria na Orquestra Bamba Social e colabora em diversos projetos musicais. Este artigo é parte do projeto de investigação “Práticas sustentáveis: um estudo sobre o pós-folclorismo em Portugal no século XXI” (PTDC/ART-FOL/31782/2017), financiado pelo Programa Operacional Competitividade e Internacionalização e o Programa Operacional Regional de Lisboa, na sua componente FEDER/FNR, e pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, na sua componente do Orçamento de Estado (OE).


1 https://humanitiesfutures.org/papers/remapping-sound-studies/