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Metamorfoses do real; pesquisa musical e políticas públicas em tempos de mudanças político-econômicas. Introdução

Samuel Araújo

O trajeto de uma publicação acadêmica dificilmente é linear, há sempre o risco de interrupções, mudanças de rumo ou vaivéns, por motivos os mais variados. Com frequência, as circunstâncias que tornam sinuoso tal percurso são decorrentes de problemas mais básicos de um processo editorial –inconsistências pontuais em determinado trabalho, um parecer manifestando insatisfação ou mesmo contrariedade com um ou outro aspecto do conteúdo, ou ainda o não atendimento de algum prazo ou solicitação de ajustes. Registra-se na literatura, porém, um bom número de situações em que as condições gerais de coexistência humana no mundo real –crises, conflitos, guerras, catástrofes– se modificam de tal maneira que a própria natureza das questões colocadas, assim como a factibilidade de responder às necessárias reconfigurações das problemáticas inicialmente enunciadas, são contundentemente postas em xeque. Neste último sentido, parece exemplar o percurso deste dossiê, cujo título já aponta para a fluidez e fugacidade de seus referenciais iniciais, ecoando sintomas de mudanças sociais, econômicas, ambientais e políticas de consequências ainda distantes de razoável inteligibilidade. Tal situação seria, porém, ainda mais agravada por um fator inesperado, a dimensão global rapidamente assumida pela pandemia de Covid-19, levando o mundo como um todo a um estado ainda mais acentuado de perplexidade e incerteza, para muitos, inimaginável.

As contribuições que compõem o dossiê vieram originalmente a público em uma mesa-redonda realizada em março de 2020 no âmbito do I Encontro do Grupo de Estudos de Música e Dança na América Latina e no Caribe (ICTM LatCar) do Conselho Internacional para a Música Tradicional (ICTM),1 na cidade de Tuxtla, promovido sob os auspícios da Faculdade de Música da Universidad de Ciencias y Artes de Chiapas, México. Sendo esta publicação dedicada ao debate acerca de políticas para investigação em etnomusicologia, é pertinente realçar a importância do ICTM como associação acadêmica que há mais de 70 anos reúne investigadores, entidades e indivíduos de cerca de 100 países distribuídos por todos os continentes, interessados na investigação de sua temática geral, bem como em variadas ações e políticas relacionadas em âmbitos de variada abrangência em termos regionais e mundiais. Pensar e debater, portanto, aspectos intelectuais, históricos, socioeconômicos, institucionais e éticos que marcam de algum modo esse âmbito de estudo levou à organização da referida mesa-redonda, congregando representantes de cinco distintos contextos nacionais no espaço latino-americano e caribenho. Após a provocação inicial de Miguel A. García (Argentina), logo seguida da adesão de Samuel Araújo (Brasil), aceitaram prontamente nosso convite Katrin Lengwinat (Venezuela), Carlos Ruiz (México) e Mareia Quintero (Porto Rico). Tomando como base recortes selecionados das respectivas problemáticas nacionais no campo da investigação em etnomusicologia, e sem perder de vista a temática geral, a variedade de perspectivas que aqui se apresenta busca, portanto, fomentar a continuidade de um debate de relevância acerca da realidade regional, debate esse ainda pendente de consolidação.

Sem a pretensão de fazer aqui um resumo geral mais exaustivo das cinco contribuições, alguns tópicos de discussão parecem-me destacar com bastante clareza a importância de iniciativas como esta. Como o dossiê se concentra no contexto histórico recente da América Latina e do Caribe, é clara a importância central de se equacionar em que medida a realidade regional é afetada pela pressão do neoliberalismo enquanto doutrina econômica em âmbito global e suas implicações político-sociais, ambientais, estéticas e acadêmicas. Entre outros aspectos relacionados e em diferentes graus, os artigos que se seguem abordam o papel corrosivo do capital financeiro e especulativo, neoextrativista, em economias regionais, a crescente tendência à hegemonia de oligopólios e à concentração de renda em nível planetário, austeridade fiscal, cortes orçamentários, as mutações observadas no mundo trabalho, com destaque para a expansão do subemprego e do desemprego estruturais, com a consequente subtração de direitos trabalhistas, se sobrepondo às –e agravando– inúmeras e centenárias desigualdades e violências. Em contrapartida, examinar em fino escrutínio as formas de resistência diante de tal cenário desolador e em que medida as alternativas de enfrentamento –sistêmicas ou revolucionárias– por elas apresentadas se apresentam como viáveis e, em chegando ao poder, efetivas e estáveis permanece(rá) um desafio. Em particular, destaca-se a dificuldade encontrada em, eventualmente no governo, se passar da retórica acerca da cultura como área estratégica a resultados concretos que se convertam em políticas de estado estruturantes ou minimamente estáveis, que possam impactar positivamente a pesquisa em etnomusicologia, preocupação compartilhada de modo geral, embora em diferentes gradações, com as demais áreas de ciências humanas e sociais.

Concluo esta breve apresentação ao final de uma semana em que o espetáculo da invasão do Congresso dos Estados Unidos mostrou ao mundo –sem retoques, de maneira desconcertante para muitos que a negavam por desconhecimento ou artimanha– uma das faces do estado da arte da política em âmbito global. Configurando esses eventos, entre outras motivações, estão, por um lado, conflitos em torno da incontornável realidade da crescente incapacidade do capitalismo –nas acepções aqui enfatizadas (financeiro, neoliberal, neoextrativista)– e de concepções de Estado absolutamente subordinadas ao mesmo em responder às demandas sociais em escala ampla, notadamente aquelas mais prementes, provindas dos parcelas da população mundial em situação de extrema pobreza, alienação dos processos decisórios e mínima ou nenhuma proteção social. A identificação das eventuais causas e mesmo das origens de tal incapacidade, e consequentemente de sua superação sistêmica ou revolucionária, pode gerar divergências e fragmentações com consequências quiçá, neste exato momento, imprevisíveis. Não por acaso, perspectivas sistêmicas e revolucionárias enfatizam a cultura como uma dimensão-chave de mudanças rumo a uma sociedade mais justa e equânime, o que abre espaço a argumentação consistente por apoio mais substantivo e sistemático à pesquisa em etnomusicologia. Mas permanecem os desafios antepostos a caminhar-se, além de um plano retórico genérico, rumo a uma concepção substantiva do campo, conjugada a formas de ação estratégica de mudança capazes de superar de fato as metamorfoses de um real morbidamente subordinado ao primado do lucro e do privado. Interpelar o real em sintonia com sua complexidade e seu permanente movimento exige, portanto, considerável esforço de síntese e (auto)-crítica, bem como desprendimento de conceitos e interpretações que venham a se mostrar demasiadamente rígidos diante de múltiplas e incessantes contradições e antinomias. Na medida de suas possibilidades, é propósito deste dossiê contribuir para que este debate se realimente e que seus eventuais frutos progressivamente se materializem em cenários mais auspiciosos.

Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 2021


1 Definidos a partir de temáticas mais circunscritas, os Grupos de Estudo do ICTM realizam regularmente seus encontros nos anos intersticiais entre os Congressos Mundiais daquela entidade, em periodicidade bianual, após a realização de um primeiro simpósio preparatório. O ICTM-LatCar realizou seu simpósio de lançamento em Salto, Uruguai, no ano de 2018, com expressiva participação de colegas da América Latina e do Caribe, bem como de estudiosos de outras partes do mundo que concentram seu trabalho sobre som, música, dança e movimento em algum aspecto da realidade regional.