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Práxis sonora em tempos de incerteza; considerações sobre os dilemas da investigação musical no Brasil pós-20161

Samuel Araújo

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

samuel.araujo@musica.ufrj.br

Recepción: septiembre 2020.
Aceptación: diciembre 2020.

Resumo

Os movimentos e resistências observados no âmbito da política brasileira desde 1985, após o fim do regime ditatorial implantado por golpe civil-militar em 1964, impressionam tanto por sua diversidade quanto por algumas características que parecem lhes ser comuns e imanentes. Combate à corrupção endêmica ou os embates e acordos táticos entre o neoliberalismo, o neodesenvolvimentismo e o redistributivismo são somente alguns marcadores de tal diversidade de perspectivas, que encontraram respaldo majoritário entre o eleitorado brasileiro, com repercussões decisivas para os rumos da investigação sobre a música e as artes no país. Este trabalho refletirá sobre as implicações para as políticas e práticas de investigação em etnomusicologia das recentes mudanças na conjuntura política brasileira, tendo como marcos o impeachment de Dilma Roussef em 2016 e a eleição em 2018 de um governo liderado por representante da extrema direita.

Palavras-chave: etnomusicologia no Brasil, políticas de pesquisa, relações público-privado, democracia

Praxis sonora en tiempos de incertidumbre; consideraciones sobre los dilemas de la investigación musical en Brasil post-2016

Resumen

Los movimientos y la resistencia observados en el marco político brasileño desde 1985, después del fin del régimen dictatorial implementado por un golpe de estado civil-militar en 1964, impresionan tanto por su diversidad como por algunas características que parecen ser comunes e inmanentes. La lucha contra la corrupción endémica o los embates y acuerdos tácticos entre el neoliberalismo, el neodesarrollismo y el redistributivismo son sólo algunos marcadores de tal diversidad de perspectivas, que han encontrado apoyo mayoritario entre el electorado brasileño, con repercusiones decisivas para la dirección de la investigación sobre la música y las artes en el país. Este artículo reflexionará sobre las implicaciones para las políticas y prácticas de investigación en etnomusicología de los recientes cambios en la coyuntura política brasileña, tomando como hito el empeachment a Dilma Roussef en 2016 y la elección en 2018 de un gobierno liderado por un representante de la extrema derecha.

Palabras clave: etnomusicología en Brasil, políticas de investigación, relaciones público-privado, democracia

Sound Praxis in Times of Uncertainty; Considerations about the Dilemmas of Musical Research in Post-2016 Brazil

Abstract

The movements and resistance observed in the Brazilian political framework since 1985, after the end of the dictatorial regime implemented by a civil-military coup in 1964, impress both by its diversity and by some characteristics that seem to be common and immanent to them. Combating endemic corruption, or the struggles and tactical agreements between neoliberalism, neodevelopmentalism and redistributivism are only some of the markers of such diversity of perspectives, which have found majority support among the Brazilian electorate, with decisive repercussions for the direction of research on music and the arts in the country. This paper will reflect on the implications for the policies and practices of investigation in ethnomusicology of the recent changes in the Brazilian political conjuncture, taking as milestones the impeachment of Dilma Roussef in 2016 and the election in 2018 of a government led by a representative of the extreme right.

Keywords: Ethnomusicology in Brazil, research policies, public-private relations, democracy

Os movimentos observados nos âmbitos mais variados da política brasileira desde 1985 –fim do regime ditatorial implantado por golpe civil-militar em 1964– impressionam tanto por sua diversidade quanto por algumas características que parecem lhes ser comuns e imanentes. Suas múltiplas e, não raro, contraditórias manifestações abrangeram a aprovação de uma nova Constituição em 1988 e o restabelecimento de eleições livres e diretas para a presidência da república em 1989, reaquecendo e ampliando o debate político sobre as bases conceituais e institucionais de sustentação do Estado-nação. Combate à corrupção, por muitos percebida como endêmica, bem como às múltiplas violências e profundas desigualdades estruturais que originaram e perpetuam uma ordem social escravocrata e racista, reconhecimento de direitos de setores da sociedade historicamente sub-representados no espaço político –como mulheres, populações indígenas, afrodescendentes e minoritárias–, o “tamanho” do Estado e a manutenção ou não de seu compromisso em manter políticas públicas em áreas como saúde, educação, emprego, moradia, segurança pública, cultura e meio ambiente, adesão ao ideário econômico e social de correntes como neoliberalismo, neodesenvolvimentismo ou redistributivismo são somente alguns marcadores da diversidade de perspectivas que encontraram eventual respaldo majoritário entre o eleitorado brasileiro, com repercussões decisivas para os rumos da investigação2 acadêmica em geral no país. Destaca-se, nesse percurso, o inédito ciclo de quatorze anos (2003-2016) de governo por uma coalizão de centro-esquerda levada ao poder pelo voto, passando com certa medida de êxito pela crise mundial de 2008 e sendo interrompido em 2016 pelo até hoje questionado impeachment de Dilma Roussef, pertencente ao Partido dos Trabalhadores. No mesmo ano, o governo de transição que assumiu o poder deu início a um programa de desmonte progressivo do legado anterior, com destaque para a Emenda Constitucional No. 95 (EC 95), promulgada em dezembro,3 congelando os gastos governamentais pelo prazo de 20 anos, com efeitos imediatamente sensíveis em áreas de investimento social, como saúde, educação, ciência e tecnologia. Passando por novas e inusitadas eleições4 em 2018, tal processo desembocou finalmente em novo governo eleito para um mandato de 2019 a 2022, liderado por um deputado federal e militar na reserva, com trajetória ostensiva na extrema direita, defendendo como pautas centrais o aprofundamento das reformas econômicas de viés neoliberal, aliado a uma agenda conservadora e com cariz autoritário em áreas como educação, direitos humanos e sociais, cultura e ciência e tecnologia. Com mais de dois anos deste mandato e respectivo programa ainda à frente, constata-se hoje quão profundamente já se encontra afetada a investigação acadêmica no Brasil, tais sinais sendo ainda mais dramaticamente visíveis em campos como as ciências humanas e as artes.

Tratando mais especificamente das implicações de tal conjuntura –agora agravada pela COVID-19– para a investigação etnomusicológica no Brasil, este trabalho se subdivide em três partes. A primeira apresenta um breve apanhado histórico dos diferentes propósitos da pós-graduação no país desde seus primórdios após a Revolução de 1930 e, nesse quadro-geral, a situação das artes e das humanidades, atravessando diferentes conjunturas, aqui reduzidas a dois importantes marcos, o mundo durante a Guerra Fria, tendo como corolário, no Brasil, ideais desenvolvimentistas nos âmbitos civil e militar, e o mundo pós-União Soviética, tendo como um de seus desdobramentos a hegemonia do neoliberalismo. Nesse trajeto, procurarei abordar a estrutura de legitimação e financiamento, bem como os dilemas colocados para a pesquisa em artes e, em particular, sobre pesquisa em etnomusicologia, buscando provocar uma discussão de caráter qualitativo e autocrítico sobre a produção das áreas já referidas, que nos permita pensar de modo consistente seus caminhos, em particular os da etnomusicologia e campos afins, no desafiador momento atual.

A segunda parte refletirá sobre a institucionalização da etnomusicologia como um campo de referência nas universidades brasileiras ainda sob os marcos do regime militar (1964-1985), mas já com características críticas acerca do processo sócio-histórico brasileiro que influenciarão a trajetória posterior do campo a partir da assim chamada redemocratização, em que se destacam as já mencionadas promulgação de uma nova Constituição (1988) e realização de eleições diretas para a presidência da república (1989). Como sugerirei, essa aparente contradição entre um regime ditatorial e a emergência de um campo de estudos assentado em perspectiva crítica acerca dos processos sociais e da práxis sonora (Araújo, 2013) que os permeia, pode ser de alvissareira lembrança sob as atuais circunstâncias, demonstrando ser possível –e essencial– encontrar caminhos para a produção de pensamento crítico mesmo em contextos autoritários e persecutórios, caminho percorrido por uma geração de pesquisadoras e pesquisadores cuja formação em etnomusicologia teve início entre a década de 1970 e o início dos anos 80.

Por fim, na terceira e conclusiva seção, apresentarei algumas premissas e desafios para as políticas e práticas de investigação musical, e mais especificamente para a área de etnomusicologia, das recentes mudanças na conjuntura política brasileira, tendo como marcos o impeachment de Dilma Roussef em 2016, a transição conduzida por seu ex-vice-presidente e a eleição em 2018 de um governo liderado por representante da extrema direita. Sendo fruto de uma comunicação em mesa-redonda apresentada em início de março de 2020, não farei mais que formular algumas questões, em meus comentários finais, sobre os desafios agravados pela pandemia e sobre o cenário ainda incerto que sucederá sua fase atual.

Para a perspectiva aqui apresentada, é notável o fluxo e refluxo de projetos de sociedade não exatamente congruentes, por vezes se sobrepondo de maneira pouco ou nada ortodoxa, refletindo correlações de força momentâneas, buscando se adequar a tendências eleitorais que oscilam consideravelmente entre um reformismo ora mais próximo a ideais de redistributivismo e justiça social garantidos pelo Estado e, no outro extremo, ora à desregulação estatal generalizada, favorecendo o interesse de poderosos oligopólios, indiferentes –e mesmo refratários– a projetos de nação que não lhes privilegiem. Em meio a esse confuso quadro, ressalta-se sobretudo o legado mais recente da etnomusicologia no Brasil, notadamente entre 2003 e 2016 (Lühning e Tugny, 2016), de sólido compromisso com ideais de promoção de ideais mais igualitários, cidadania e justiça social, traduzido em seus focos e modos de fazer, e abordar-se-á possíveis obstáculos e ameaças a sua consolidação em face da ascensão ao poder no plano nacional, em 2019, de aliança relativamente inédita e heterodoxa entre capital financeiro, oligopólios (neo)extrativistas notadamente no setor de mineração e agronegócio, setores das Forças Armadas, mídias corporativas, fundamentalismos religiosos notadamente pentecostais e organizações paramilitares. Este dossiê abre, portanto, uma preciosa oportunidade para se colocar em perspectiva a situação da investigação em etnomusicologia na atual conjuntura política brasileira, quiçá em seu momento mais preocupante dos últimos trinta anos, impondo a esta reflexão buscar uma abordagem e um tom simultaneamente adequados à gravidade e à possível volatilidade de tal situação.

Mas o que há de tão grave na atual conjuntura? Ao menos formalmente, o país passou em 2018 por mais um processo de eleições presidenciais como outros vividos desde 1989, no caso atual, sem que as crescentes contestações à lisura do pleito tenham sido até aqui convertidas em provas. Assim respaldado e como seria esperável, o governo empossado em janeiro de 2019 tem colocado em prática sua plataforma eleitoral, acentuando o esforço do governo de transição pós-impeachment em destruir e apagar da memória todo um conjunto de políticas voltadas à redução das desigualdades e promoção de justiça social notadamente entre 2003 e 2016, para tal demonizando o conjunto de forças políticas que as impulsionaram e defenderam.

É precisamente esse ponto que tomarei como eixo da argumentação a ser aqui desenvolvida: a posição de vulnerabilidade hoje de uma investigação de saberes e práticas musicais que investiu na construção dialógica de conhecimento com setores da sociedade brasileira até então marginalizados da vida política nacional, com vistas à promoção de justiça social. Este diálogo com os referidos setores sobre os mais diversos temas da vida social foi o grande divisor de águas entre os governos federais eleitos por voto direto de 2003 a 2016 e seus antecessores, de 1989 a 2002, alicerçando o reconhecimento mundial obtido pelo país durante os governos Lula (2003-2006 e 2007-2010) e Roussef (2011-2014 e 2015-2016). Creio já haver evidência suficiente de ser esta a memória em rota de destruição e apagamento do imaginário nacional na perspectiva do processo político iniciado com o impeachment de 2016 e que vem sendo aprofundado desde a posse do atual governo federal, a julgar pelos inúmeros e sistemáticos ataques de seus membros e representantes eleitos em todos os níveis aos povos indígenas e afrodescendentes, às mulheres, à população LGBT, à classe trabalhadora em geral, às universidades, ao meio ambiente e, em plena pandemia, a instituições públicas, à ciência e à área de saúde pública.

Tal conjuntura, que coloca como inimigo número um o diálogo com os setores sociais historicamente marginalizados ou sub representados na vida política brasileira, tem implicações sérias para o campo da etnomusicologia brasileira, mas espero poder convencer leitoras e leitores que, se não parece haver motivo para otimismo, tal não nos deve levar ao desespero precoce. Os desafios são muitos e dificílimos, mas revisitar a experiência histórica acumulada pode nos estimular a buscar soluções para o intrincado presente. E é este esforço de argumentação que norteará este texto, buscando argumentos na própria história do campo da etnomusicologia, e particularmente no modo como o mesmo se difunde e gera determinadas tendências no Brasil e, de algum modo, em outras partes da América Latina.

A pós-graduação no Brasil e seu impacto sobre a investigação em música; anotações históricas (1930s-1990s)

Assim como observado em outras realidades nacionais, a investigação sobre música no Brasil passou a contar com apoio institucional mais sistemático e continuado a partir de sua inserção em cursos de pós-graduação e consequente inserção nos programas governamentais de fomento em âmbitos nacional –em determinados casos, também estaduais– à formação de investigadores e à investigação propriamente dita Conforme Miranda dos Santos (2003), os marcos iniciais da pós-graduação brasileira datam do final dos anos 1930, com a implantação de programas de inspiração europeia em faculdades de direito e filosofia no Rio de Janeiro e em São Paulo. Na década seguinte, o termo pós-graduação é pela primeira vez utilizado de forma oficial no Estatuto da Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), observando-se na década de 1950 o estabelecimento de uma série de acordos de intercâmbio entre instituições de ensino superior brasileiras e estadunidenses orientados à implantação de programas de pós-graduação (PPGs) no Brasil. Nos anos 1960, o modelo das graduate schools (como são referenciados nos documentos oficiais brasileiros da época) estadunidenses é adotado sucessivamente em duas unidades da Universidade do Brasil, o Centro de Ciências Físicas e Biológicas e a Coordenação de Programas de Pós-Graduação em Engenharia (COPPE), através de convênios com a Fundação Ford. Esse movimento tem como pano de fundo não apenas o projeto desenvolvimentista brasileiro em busca de relativa autonomia tecnológica e científica, mas também o contexto da Guerra Fria e da visão estadunidense da pós-graduação como fator estratégico de exercício de hegemonia em âmbito mundial. Em tal contexto, o desenvolvimento socioeconômico buscado por países aliados aos Estados Unidos, Brasil incluído, dependeria da transferência de conhecimento estratégico gerado nos centros de produção de conhecimento estadunidenses com participação secundária de pesquisadores de áreas periféricas, o que alguns autores denominaram “parceria subordinada”. Tal panorama de fundo, que afeta o Brasil durante uma sucessão de governos constitucionais e se estende ao início (1964) da série de governos de exceção chefiados por militares, tem pouco a ver –ao menos diretamente– com investimento em artes ou humanidades, mas observa-se nesse período gradativa expansão de pós-graduações em áreas das ciências humanas e sociais, não raro com apoio fundamental de agências de fomento dos Estados Unidos, como foi o caso do apoio da USAID ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ), em que lecionou, entre 1975 e 1982, o hoje reconhecido antropólogo e etnomusicólogo Anthony Seeger.5

No início dos anos 80, década em que já se observa incipiente presença das artes no panorama da pós-graduação brasileira, não são raras as manifestações críticas de prestigiosos pesquisadores brasileiros contra esse modelo de desenvolvimento dependente, como é o caso do físico da Universidade de São Paulo (USP) Ernst Hamburger, que clama por “linhas de pesquisa de maior interesse para o país, libertando-se, na medida do possível, dos modismos e preconceitos internacionais”, definindo “programas e currículos partindo da realidade e das aspirações brasileiras e não somente da tradição em outros países” (apud Miranda dos Santos, 2003, p. 630). O foco de sua afirmativa é, portanto, a capacidade de pensar o mundo a partir de prioridades brasileiras, de modo simultaneamente informado e independente de particularismos encontrados nos centros hegemônicos de produção de conhecimento, procurando não pensar tampouco a realidade brasileira como particularismo autorreferente, mas inserida em relações globais que a afetam tanto quanto são também por ela afetadas.

Mais adiante neste trabalho, comentarei algumas repercussões para a etnomusicologia no Brasil de tal postura de valorização de temáticas e questões brotadas do contexto latino-americano entre as décadas de 1980 e 1990, mas por ora cumpre ressaltar que este movimento em prol de uma política científica autônoma surge em momento de transformação profunda na sociedade brasileira, de derrocada do programa econômico do regime militar e seu progressivo desgaste político. Ele parece igualmente ressoar a importância crescente de um novo ideário econômico mais ou menos no mesmo período por economistas como Amartya Sen, Celso Furtado e outros em importantes fóruns globais. De modo variado, mas relativamente convergente, tais autores sugerem que o pensamento econômico passe a considerar cultura, criatividade e democracia como fatores e índices indissociáveis de processos de desenvolvimento socioeconômico, e não enquanto seus meros subprodutos, como manteria, por exemplo, uma visão economicista ortodoxa, também resultante de debates típicos do pós-guerra sobre o estado de bem-estar social. Aqui já temos, portanto, outro ponto de interesse crucial a nossa discussão, a saber, como os caminhos e descaminhos da pós-graduação e investigação em música e no campo científico-acadêmico como um todo, se articulam entre si (interdisciplinaridade) e interferem os debates mais amplos sobre a sociedade em toda a sua complexidade: por exemplo, as relações entre diferentes contextos nacionais em círculos geopolíticos mais ou menos extensos (internacionais ou regionais.), procurando um ponto de equilíbrio entre um certo complexo de inferioridade (ou “vira-latas”, como mais popularmente aparece no debate público brasileiro) e uma certa obsessão particularista, entre a autonomia nacional e o desenvolvimento periférico etc.

Estes e outros dilemas típicos de um mundo polarizado entre dois projetos amplamente compreendidos como distintos e antagônicos de sociedade, o capitalista e o comunista, serão profundamente reconfigurados, se não diluídos, após a extinção da União Soviética e eventos corolários pelo mundo afora. Ergue-se então a assim chamada “nova ordem mundial”, sob a hegemonia ideológica do neoliberalismo, assentada no primado esquizofrênico e fetichista do econômico sobre a vida humana e social. Isso força uma profunda reconfiguração do papel dos estados nacionais, que se tornam cada vez mais operadores de ajustes fiscais, privatização e desregulação do mundo dos negócios, em favor dos interesses privados de concentração de capital, em detrimento de seu papel como regulador do uso deste mesmo capital para a promoção de bem-estar socioambiental. Talvez seja redundante insistir que, sob tal paradigma neoliberal, esteja descartado o papel estratégico que justificou, como acima destacado, a inserção da música e das artes no quadro da pós-graduação e pesquisa sob o paradigma anterior de desenvolvimentismo subordinado. Mas não devemos esquecer tampouco que as realidades nacionais, ainda que sob essa grande pressão, se comportam de modo diferente, caso a caso, diante da onda devastadora do neoliberalismo. No Brasil, atrever-me-ia a dizer que condições favoráveis permitiram, até os primeiros anos após a crise econômica de 2008, certa resistência à pressão neoliberal, embora com bastante abertura a pressupostos de primado do mercado, numa espécie de fetichismo rotulado jogo de duplo ganho (ou win-win, como preferem alguns de seus admiradores).

De 2010 para cá, no entanto, e principalmente no atual momento, é notória a sensação aparentemente predominante de que o credo neoliberal, tendo ao centro o ajuste fiscal, parece a muitos imbatível (TINA, there is no alternative, slogan-chave ao tempo de Margaret Thatcher). E mais recentemente já se passa a ouvir falar em medidas pós-reajuste, como a eliminação de impedimentos legais ao favorecimento unilateral do setor privado, corte drástico de verbas da educação pública em contraste com garantia de verbas a repasses ao ramo privado do setor educacional, e assim por diante. O corte recente e drástico de despesas de governo estabelecido pela Emenda Constitucional 95 acima mencionada é, portanto, efeito perverso e aparentemente irreversível no orçamento da pós-graduação e pesquisa no Brasil, mas a especulação talvez ainda mais preocupante é aquela sobre o pós-ajuste, sob o manto não raro mistificador da racionalização e moralização das contas públicas. O que pode esperar o campo acadêmico de artes como um todo (não apenas a pesquisa e a pós-graduação) em tal cenário, em que criatividade e inovação só contam quando bem-sucedidos em termos de mercado?6 Devemos esperar por uma melhoria na conjuntura econômica em função da redução das despesas públicas e que tudo volte a ser como sempre foi? Ou seria urgente, diante da iminência de que tais cortes no orçamento sejam mais duradouros –e quiçá ainda mais drásticos para áreas como a de artes–, repensar nossas práticas e prioridades de modo a melhor argumentar e agir em defesa do investimento público em pesquisa nessas áreas?

O campo da etnomusicologia em distintos cenários globais, regionais e nacionais

Uma primeira constatação de caráter mais geral, ou seja, além das particularidades e até divergências que conferem existência ao campo em espaços e tempos distintos, é que a etnomusicologia e outros campos de conhecimento afins, como a musicologia comparada (1885), folclore musical (1846) ou a antropologia da música (nos Estados Unidos, desde final do séc. XIX), promovem o reconhecimento da complexidade e relevância epistêmica de culturas musicais em geral relegadas a um papel subalterno na assim chamada história da música construída na Europa desde o século XIX (ver Nettl, 2002). Já em seus primórdios, aparece como sujeito oculto o diálogo com saberes subalternos, em sua versão europeia do século XIX, fortemente ligada à gestão científica do mundo colonial –tradição que determinados autores creem continuada no século XX pela literatura anglo-saxã produzida nos Estados Unidos e no Canadá, por motivos semelhantes. Em outras palavras, o diálogo com os saberes “subalternos” está aberto, mas em termos impostos, de um modo ou outro, pelos interesses dominantes e neocoloniais.

Se esse foi de fato o caso nessa região da América do Norte, para isso contribuindo o fato de um número significativo de estudiosos europeus ter buscado asilo por lá desde a eclosão da Segunda Guerra Mundial, também foi o observado em tradições afins, mas diferentes, em outras partes do mundo, a exemplo do Brasil e da América Latina. Seria necessário um esforço além do que é possível no espaço deste artigo para inventariar e comentar as eventuais ressonâncias dessa história no Brasil, atentando para as não poucas idiossincrasias de sua institucionalização. Mas é possível destacar sucintamente alguns de seus marcos iniciais, sob a ditadura do Estado Novo (1937-1945), o trabalho de investigação da Missão de Pesquisas Folclóricas (1938), idealizada por Mário de Andrade (Sandroni, 2014) como diretor do pioneiro Departamento de Cultura da cidade de São Paulo, e a abertura, em 1939, na Universidade do Brasil (Rio de Janeiro), de uma cátedra de Folclore Musical Nacional, ocupada mediante concurso por Luiz Heitor Correa de Azevedo (Barros, 2013 e 2018). O esforço pioneiro liderado por Mário de Andrade e Luiz Heitor impôs a ambos manobrar por entre as eventuais contradições e brechas institucionais de um regime autoritário alicerçado em ideologia nacionalista, mas que simultaneamente abria espaço ao ideário modernista sobre o patrimônio artístico-cultural, em sintonia com o pensamento crítico, sobretudo o europeu, de seu tempo. Tal espaço, possibilitou aos dois estudiosos estabelecer profícuo diálogo com referências da musicologia comparada de língua alemã, já consolidada internacionalmente, e com a literatura incipiente que abriu espaço ao que, a partir de meados dos anos 1950, passaria a se denominar etnomusicologia como um campo consolidado nos Estados Unidos e logo em outras partes do mundo.

Seguindo as pegadas desses pioneiros, um diálogo ainda mais intenso e crítico com a musicologia comparada e a etnomusicologia prossegue no trabalho prolífico do compositor, violinista e pesquisador autodidata Guerra-Peixe sobre a música em tradição oral e em partituras para piano editadas comercialmente na cidade do Recife, desenvolvido por sua própria conta e interesse durante sua residência na capital pernambucana entre 1950 e 1952, período de relativa estabilidade democrática (Guerra-Peixe, 2007; Araújo, 2015). Mas sua continuidade no estado de São Paulo, em cuja capital passa residir entre meados dos anos 1950 e início dos anos 60, já ocorre em meio à crescente agitação político-social que precede o já aludido golpe militar de 1964. Não obstante, o pesquisador conta pela primeira vez com uma estrutura institucional mais sólida de apoio à investigação em colaboração com o Museu de Folclore, criado em 1947 por Rossini Tavares de Lima, com suporte do governo do estado de São Paulo. Digna de nota em tal contexto, tendo em vista que uma superestimação da “ameaça comunista” já se faz presente no debate público e será um dos fatores impulsionadores do golpe de estado em 1964, é a forte aproximação de Guerra-Peixe do então unificado Partido Comunista do Brasil, escrevendo uma coluna sobre suas pesquisas acerca da cultura popular, com ocasional destaque para a música, em seu jornal diário, Notícias de Hoje, publicado na capital paulista.

Outro momento em que forças contraditórias se põem em movimento e afetam os rumos da etnomusicologia no Brasil, aspecto esse ainda carecendo exame mais aprofundado à luz da conjuntura política geral do país no período em questão, teve lugar ao início dos anos 1970: a passagem de nomes como Rita Laura Segato, José Jorge de Carvalho e Rafael José de Menezes Bastos por curso de especialização no Instituto Interamericano de Etnomusicologia e Folclore (INIDEF), em Caracas, Venezuela (Carvalho, 2017). Como comenta Carlos Sandroni (2010) em artigo sobre a história da etnomusicologia no Brasil, criado sob a liderança de Isabel Aretz e Luiz Felipe Ramón y Rivera, o INIDEF foi o primeiro foco de institucionalização do campo da etnomusicologia na América Latina. Parece-me importante destacar, embora aparentemente ainda não tratado na literatura, que tal acontece em época marcada por forte repressão política durante o regime militar no Brasil e por regimes autoritários no poder em vários outros países do subcontinente. Desnecessário acentuar a importância desse fato em tempos tão adversos como os de hoje, destacando o exemplo anterior –anos 70– em que estudantes brasileiros buscaram alternativas em favor da ampliação de diálogos acerca da música com setores marginalizados dos processos políticos, em meio a um governo autoritário avesso a tal diálogo. Tal contradição, devemos lembrar, impactaria definitivamente as trajetórias de tais pesquisadores, em cujo trabalho a música se constitui –ou ao menos por um tempo se constituiu (caso de Segato e Carvalho)– em objeto-chave, pesquisadores esses que hoje ocupam lugar de destaque no caminho do diálogo (auto)crítico com setores em grande medida marginalizados da política brasileira, o que não deixa de ser um alento inspirador sob as atuais circunstâncias. Em outras palavras, sugiro que enfrentar e transpor os obstáculos de uma época histórica hostil ao diálogo aqui enfatizado pode ter sido, ainda que involuntária e ameaçadoramente, um fator considerável de formação de perspectivas para a geração em questão.

Rafael José de Menezes Bastos obteria seu mestrado em antropologia social em 1978, com dissertação sobre a música dos kamayurá, povo originário de língua tupi-guarani, fortemente referenciada na etnomusicologia, constituindo um marco na literatura publicada no Brasil. São concluídos em momento posterior, no início da década de 1980, o primeiro doutorado específico em etnomusicologia, Manuel Veiga, e o doutorado de Kilza Setti em ciências sociais. Desde o final dos anos 80 a meados dos anos 90, etapa crítica da assim chamada redemocratização, como também apontado por Sandroni, se adensa a massa crítica. Concluem doutorado na Alemanha Marcos Branda Lacerda, Angela Luhning e Tiago de Oliveira Pinto, os dois primeiros se radicando no Brasil, respectivamente em São Paulo e Salvador. Nos Estados Unidos, Maria Elizabeth Lucas, Martha Ulhoa, Samuel Araújo. Da França, retorna Carlos Sandroni após concluir doutorado em 1995.

Segato e Carvalho regressam de doutorado na Irlanda do Norte, sob orientação de John Blacking –cujo papel como ativista político é menos conhecido nos meios acadêmicos, e muito menos a inter-relação deste envolvimento com sua produção acadêmica (Rodgers, 2012)–, e se fixam na UnB. No Rio de Janeiro, Elizabeth Travassos Lins conclui em 1984 mestrado em Antropologia Social sobre a música da sociedade kayabi, também falando língua do tronco tupi-guarani, sob orientação de Anthony Seeger, Rafael José de Menezes Bastos obtém seu doutorado na USP em 1990 e outros nomes se agregarão aos já citados a partir da atuação destes na formação de quadros em pós-graduações nos campos da música ou antropologia em Salvador, Florianópolis, Recife, Brasília, Rio de Janeiro e Porto Alegre.

Digno de nota é o papel pioneiro e irradiador que a Universidade Federal da Bahia (UFBA) em particular desempenhará inicialmente na formação de quadros como Eurides Santos, primeira doutora em etnomusicologia formada no país e que se radicará como docente na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Sonia Chada e Liliam Barros, que passarão a atuar na Universidade Federal do Pará (UFPA), estado amazônico que também abriga a Universidade Estadual do Pará (UEPA), em que hoje trabalham Paulo Murilo Guerreiro do Amaral, formado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e mais recentemente Jorgete Lago, também formada pela UFBA.

Em 2001, ainda sob o espectro de um governo socialdemocrata com assumida inclinação ao neoliberalismo,7 é realizado pela segunda vez no Brasil e na América Latina um Congresso Mundial do Conselho Internacional para a Música Tradicional (47º ICTM World Congress, Rio de Janeiro), e já é expressivo e diversificado o quadro de professores e estudantes de pós-graduação em universidades brasileiras, bem como o de linhas de investigação etnomusicológica sobre temáticas indígenas, afrodescendentes e acerca das classes trabalhadoras rurais e urbanas localizadas em diferentes partes do país e apoiadas pelos principais órgãos nacionais e regionais de fomento regionais à pesquisa no país. Esse panorama estimula a criação da Associação Brasileira de Etnomusicologia (ABET) durante o referido evento, passo importante para a consolidação do campo em âmbito nacional e internacional.8

Seria obviamente impossível discutir aqui em detalhe o trabalho das diversas gerações que desde esse surto inicial nos anos 1980 e início dos anos 90 consolidam a etnomusicologia brasileira. Como apontado anteriormente, este é um período de intenso questionamento das relações entre produção de conhecimento e perspectivas de condução mais autônoma da política nacional. Mas felizmente a marca desse trabalho cumulativo de gerações está registrada, a meu ver, mais que adequadamente, na coletânea Etnomusicologia no Brasil, co-organizada por Angela Luhning e Rosângela Pereira de Tugny (Lühning e Tugny, 2016): a ênfase que pesquisadoras, pesquisadores e os diversos grupos de pesquisa espalhados pelo país têm colocado em pensar a construção dialógica de conhecimento com as pessoas, coletivos e comunidades com as quais trabalham, em sintonia com a construção de um Brasil verdadeiramente plural, democrático, que mitigue as várias formas desigualdade e violência que o permeiam. Nesse momento de apreensão, para o qual chamamos a atenção ao início deste texto, convém que lembremos que esse acúmulo de diálogo em favor de um modelo mais inclusivo de democracia, que, como faz transparecer a leitura do livro em questão, caracteriza uma etnomusicologia à brasileira, gerou vínculos e movimentos que, muito provavelmente, não se apagarão da noite para o dia. Ao contrário, a tentativa de o destruir e o apagar, como no passado em que a etnomusicologia ensaiou seus primeiro passos no Brasil, tornarão a continuidade e o aprofundamento desse diálogo uma demanda irresistível em face das contradições que fatalmente aflorarão do mascaramento –se é que ainda há algum– das reais intenções e dos reais efeitos perversos que procuram silenciar o pensamento crítico e a construção democrática nesse país.

A “crise” atual no Brasil, desafios e resiliência; uma cena aberta

Em meio às diversas manifestações contemporâneas de crise social, econômica e política (agora também sanitária) em âmbito internacional, é impossível ignorar os grandes desafios –político-conceituais, estéticos, educacionais, socioantropológicos– interpostos à investigação sobre artes, de pouca valia sob a perspectiva utilitária e socialmente predatória à base de tal crise. A percepção desses desafios e tentativas de sua compreensão e ultrapassagem não são, de fato, recentes, embora ainda circunscritas a reduzidos círculos sociais. Debater tais questões demanda uma reflexão aguda e autocrítica sobre os porquês, por quem, para quem, como, onde e quando se conduzir a atividade de pesquisa acadêmica. Nesse sentido, tornam-se cruciais discussões como as que vêm sendo fomentadas no campo da etnomusicologia no Brasil sobre que função tem hoje a pesquisa em música em um mundo exacerbadamente individualista, utilitário e competitivo. Em tal cenário, parece estar em marcha uma incondicional e absoluta reconfiguração do Estado, direitos trabalhistas são subtraídos ou se encontram seriamente ameaçados direitos sociais, e tanto as artes quanto a própria atividade de pesquisa sobre as mesmas, nosso objeto mais limitado neste artigo, passam a ser submetidas de modo imperativo a leis de mercado. Silenciando sobre tais questões, talvez confiando demasiadamente na reprodução eterna de seu presumido estado inquestionável de legitimação social, ainda que sempre mantido de forma material e financeiramente precária num contexto nacional como o brasileiro, boa parte da pesquisa acadêmica sobre as artes no Brasil vê-se hoje em estado de perplexidade.

O mais que preocupante contexto brasileiro a que me refiro aqui é também, como exposto acima, palco de transformações significativas, cuja história seria difícil, se não impossível, sintetizar em conclusão a este breve texto. Atrevo-me, porém, a assinalar um aspecto constante em meio a tais transformações, constante essa que certamente incide, para o bem e para o mal, sobre o campo da pesquisa em etnomusicologia: a disputa entre interesses públicos e privados na definição dos rumos da política brasileira, principalmente no que tange à configuração do Estado e às políticas sob sua competência. As assim chamadas políticas de Estado teriam como meta defender o interesse público, principalmente em casos de transformações profundas de caráter sociocultural e econômico, que podem vir a tornar necessária uma readequação da força de trabalho a novas perspectivas e novas demandas apresentadas pela sociedade e/ou por mudanças tecnológicas (Offe, 1984; ver também Araújo, 2019). A justificativa última da própria existência do Estado residiria no restabelecimento do equilíbrio entre o interesse público e as grandes transformações sociais, levando à recomposição do tecido social de uma sociedade nacional de modo a evitar a instalação de uma situação política caótica e desagregadora. Contrariamente, a prevalecer o interesse privado sobre o público, extraindo dos momentos de crise tão somente um ou outro mecanismo de escape ou até de oportunidades dos setores mais fortes social, política e economicamente, mantendo os mais fracos sob um estado de medo, conformismo e silêncio, estariam dadas as condições para a ruptura do tecido social, mantendo-se operativos, nesse caso, tanto o Estado quanto a ideia de nação, à base de forte repressão, física ou ideológica (qualquer semelhança com o noticiário dos últimos anos não é mera coincidência). Assumindo-se, assim, a mediação desse embate entre interesses públicos e privados como uma dimensão definidora das políticas de Estado, obtemos uma espécie de pano de fundo com o qual retomar, como conclusão, as indagações etnográficas básicas enunciadas anteriormente e avaliar a potencial contribuição de um esforço assim direcionado aos dilemas da pesquisa em música no país.

Por que manter as políticas de apoio à pesquisa, em particular à de viés etnomusocológico, hoje? Talvez seja a pergunta crucial num momento em que, após uma sucessão de reviravoltas na política nacional em que setores minoritários, porém concentrando desproporcional poderio político e econômico, voltam a exercer, aparentemente sem rédeas, um quase absoluto controle das políticas de Estado e se alastram os casos de ameaças ao campo da pesquisa acadêmica como um todo no país, percebido como adversário por tais setores na atual conjuntura. Se os destinos da pesquisa em música se mostrarem irrelevantes sob tais condicionantes, como parece ser claramente o caso da perspectiva crítica e engajada que vem marcando a etnomusicologia no Brasil, não haverá muito terreno para expectativas de reversão desse quadro ameaçador em que se vê hoje o campo aqui em questão, deslocado dos “interesses estratégicos” do atual governo, mormente no quadro econômico recessivo em que nos encontramos.

Em nome de quem deve-se manter o fomento à investigação etnomusicológica? Devemos reconhecer que também há problemas a considerar tal questão do ponto de vista do interesse público. Para que este se mobilize e lute por políticas de Estado em favor da produção de um conhecimento crítico, pluricultural e inclusivo, há de se encontrar também respostas convincentes para as relações históricas dessa atividade com temas como o colonialismo, as desigualdades socioeconômicas, os conflitos de classes, o racismo, a misoginia ou a heteronormatividade, dos quais uma abordagem elitista e preconceituosa de boa parte da pesquisa acadêmica, que se vê como uma esfera neutra, e procura se afastar de tais questões, receosa de contaminação de um ideal de que a produção de conhecimento se basta, não carecendo necessariamente de relação com o interesse público. Desse ponto de vista, seria desnecessário ou mesmo perigoso envolvimento com temáticas de presumido caráter conflitivo ou ideologizado da vida social a sua volta, implicando muitas vezes dar satisfação a um público culturalmente “mal formado”, “desinformado”, “despreparado”. Se, de um lado, a pesquisa em música pouco parece interessar ao Estado brasileiro sob hegemonia privatista, e menos ainda num contexto de recessão econômica e incerteza como o atual, por outro, talvez seja ainda mais crucial hoje que outrora, ao campo, discutir a fundo os problemas de sua relação com o interesse público, e não somente no que tange ao apoio público a algo supostamente autoevidente, a importância da pesquisa em artes e música, mas a seus próprios objetivos num mundo em que os mesmos não parecem mais, se é que algum dia pareceram, se autojustificar.

Quem age hoje na interface entre as políticas para a pesquisa em música e o fazer musical e a que público(s) se dirige? Tal questão requer não apenas mapear o perfil socioeconômico dos quadros atuais da pesquisa em música (aí incluídas questões como classe, renda, raça, gênero, afetividade e outras), mas investigar e problematizar mais a fundo a base ainda colonial e monoepistêmica da formação dos mesmos em instituições públicas ou privadas.

Como esta pesquisa se relaciona com o público? É corolário indispensável da questão anterior, refletir sobre a relação entre pesquisadores e pesquisados e os protocolos de pesquisa que a caracterizam.

Por fim, em que espaços são desenvolvidas tais pesquisas? Igualmente crucial se revela examinar criticamente a localização e características dos espaços, inclusive os virtuais, nos quais se transcorre, é veiculada e debatida a pesquisa, seus condicionamentos e restrições implícitas ou explícitas à participação pública, abrangendo locais de prática e/ou de interlocução, repositórios e outros.

Bibliografía

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» Stein, G. (2019). A autobiografia de Alice B. Toklas. Tradução: Milton Persson. Porto Alegre: L&PM.

Biografia / Biografía / Biography

Samuel Araújo

É Professor Titular de Etnomusicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), coordena o Laboratório de Etnomusicologia, grupo de pesquisa interinstitucional que vem desenvolvendo há cerca de vinte anos um trabalho sistemático sobre a dimensão sonoro-musical na práxis de setores da sociedade sub-representados em instâncias decisórias da política institucional brasileira. Sua produção acadêmica, em autoria individual ou coletiva, tem sido publicada em livros e periódicos no Brasil e no exterior. Sócio-fundador da Associação Brasileira de Etnomusicologia, exerceu a presidência da entidade entre 2006-2008. Atuou ainda como membro dos conselhos respectivos da Society for Ethnomusicology e no International Council for Traditional Music (ICTM), e como Coordenador de Música da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro.


1 Este texto reflete ideias desenvolvidas no âmbito do atual projeto de investigação coordenado pelo autor, Música, Interesse Público e Justiça Social, financiado por meio de Bolsa de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Pesquisas e Desenvolvimento Tecnológico (CNPq), entre 2018 e 2022 (Proc. No. 309684/2017-0). O autor agradece as sugestões contributivas contidas no parecer anônimo.

2 Utilizarei aqui, alternativamente, os termos investigação e pesquisa para me referir à produção reflexiva e conhecimento em geral.

3 De fato, no caso brasileiro, como a população tende a crescer e diante da probabilidade de que a economia cresça, significa uma progressiva redução dos gastos públicos per capita e em relação ao produto interno bruto.

4 Um dos candidatos, que eventualmente seria eleito presidente, não mais participou dos debates eleitorais, após sofrer um suposto atentado logo ao início da campanha, até hoje não elucidado, embora o perpetrador tenha sido imediatamente preso.

5 Havendo participado da assembleia que fundou a Associação Brasileira de Etnomusicologia (ABET) em julho de 2001, durante a realização do Congresso do International Council for Traditional Music (ICTM) na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Seeger foi seu vice-presidente durante a gestão presidida por Maria Elizabeth Lucas (2008-2011).

6 Quiçá não seja redundante recordarmo-nos que pensar a arte a partir do mercado produz imediata contradição até mesmo com a dinâmica de importantíssimos movimentos artísticos que, a despeito de seu insucesso mercadológico inicial, se tornaram bem-sucedidos nesses termos (ver Stein, 2019).

7 Assinale-se que o evento foi realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob o reitorado de um interventor indicado pelo então presidente da república, à revelia do processo eleitoral interno à instituição.

8 A ABET realiza desde 2002 encontros bianuais, sempre contando com convidados e participantes estrangeiros, e, desde 2013, assume as funções de representação nacional do Brasil no ICTM.