María Antonietta Mascolli
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Brasil.
https://orcid.org/0000-0002-8958-3331
Recibido: 25/7/2022; Aceptado: 22/2/2023.
Trata-se de um estudo transversal, descritivo, que teve como objetivo investigar se a pandemia mudou os hábitos de quem utiliza a bicicleta, e de que forma essa prática foi alterada. Foram entrevistados 340 ciclistas no município de São Paulo, Brasil, por meio de um questionário online entre fevereiro e março de 2021; os ciclistas foram recrutados inicialmente a partir do ‘Projeto Pedal’ e, a seguir, pela metodologia bola de neve. Os autores concluem que a bicicleta foi utilizada de modo tático, tanto para evitar aglomerações e manter o isolamento social quanto para praticar exercício físico quando outros locais para a atividade esportiva estavam interditados. A circulação ocorreu majoritariamente na região central da cidade, de classe média e alta e com maior infraestrutura cicloviária. A proporção daqueles que aumentaram ou mantiveram o uso da bicicleta é semelhante àquela que diminuiu, mas com alteração nas motivações para mudança nos deslocamentos. Houve uma adesão significativa ao uso de máscaras, especialmente por parte de mulheres.
Palavras-chave: Ciclismo; Mobilidade; Comportamento; Covid-19; Brasil.
This is a cross-sectional, descriptive study with the objective to investigate how the pandemics changed the habits of those who use bicycles, and how this practice changed. This research interviewed 340 cyclists in the city of São Paulo, Brazil, using an online questionnaire and was carried out between February and March of 2021; the cyclists were initially recruited from the ‘Pedal Project’ and then through snowball methodology. The authors conclude that the bicycle was used tactically, both to avoid crowds and maintain social isolation and to practice physical exercise when other places for sports activities were prohibited. The circulation occurred mostly in the central region of the city, inhabited by the middle and upper class and with better cycling infrastructure. The proportion of those who increased or maintained the use of bicycles is similar to that which decreased, but changing the motivations for commuting. There was a high adherence to the use of masks, mainly by women. Keywords: Cycling; Mobility; Behaviour; Covid-19; Brazil.
KEYWORDS: Cycling; Mobility; Transport; Covid-19; Brazil
A pandemia de COVID-19, decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em março de 2020, já se constitui no maior desafio global do setor saúde dos últimos 100 anos. Questões relacionadas à grande capacidade do vírus Sars-Cov-2 de causar morbidade e mortalidade, com desdobramentos sociais e econômicos complexos, aparecem como preocupação nas agendas de pesquisadores, serviços de saúde, gestores públicos e setores produtivos, entre outros (Chakraborty y Maity, 2020). Entre as múltiplas dimensões da vida cotidiana atravessadas pela pandemia de COVID-19 está a da mobilidade urbana (Bracarense y Oliveira, 2021; De Vos, 2020).
Em várias cidades do mundo, a pandemia teve um efeito disruptivo sobre as dinâmicas habituais de mobilidade e deslocamento. As medidas de distanciamento social e os lockdowns adotados afetaram a circulação de pessoas e de veículos, com uma diminuição drástica do número de automóveis circulantes por vários meses. O transporte público passou a representar um espaço compreendido como potencialmente perigoso para contaminação pela COVID-19 em função da aglomeração de pessoas observada em horários de pico. Um grande número de pessoas passou a trabalhar em esquema de home office, sem necessidade de deslocamento, ou com horários mais flexíveis. Ao mesmo tempo ocorreu o fechamento de academias e parques, o que levou as pessoas a buscarem alternativas para a prática de atividade física (Bustamante et al., 2022).
Os modos ativos de transporte, incluindo o ciclismo, constituíram-se, então, como uma alternativa segura de mobilidade (Rodrigues, 2022; Buehler y Pucher, 2021).
Em São Paulo, durante a adoção de medidas de lockdown e isolamento social, houve mudanças importantes no hábito do uso de transportes coletivos e automóveis; mas ainda não há muita clareza sobre a dimensão do impacto na adoção de modos de transporte ativos. Neste cenário surgiu o interesse em investigar como a pandemia teria modificado especialmente os hábitos dos ciclistas, em uma cidade como São Paulo, com mais de 11 milhões de habitantes, que possui uma estrutura cicloviária de 498,3 Km (Município de São Paulo. CETa). Em 2020, sua frota de bicicletas foi estimada em 1.614.144 unidades, ou 0,13 bicicletas por pessoa, situando São Paulo em 11o lugar no ranking de bicicletas/população entre as capitais brasileiras (Pereira, 2021). Desde 2014, contadores de bicicletas instalados pela prefeitura de São Paulo registram aumento crescente de ciclistas em diversos pontos da cidade (Município de São Paulo. CETb). E, segundo pesquisa realizada em 2018 (Torres-Freire et al., 2018), 3% da população da cidade de São Paulo utilizou a bicicleta para algum deslocamento na semana anterior ao estudo. Por fim, a Pesquisa Origem-Destino 2017 contabilizou 211.991 viagens diárias de bicicleta no município (Governo do Estado de São Paulo. Metrô). Um fator que impulsionou o uso da bicicleta no centro da cidade foi um aumento exponencial de entregadores ciclistas de aplicativo que passaram a utilizar esse veículo a partir de 2015 (Aliança Bike, 2019).
Uma revisão de literatura de revista revisadas por pares realizada em bases integradas da [omitido para não identificar a instituição] utilizando os termos “COVID-19” e “comportamento no uso da bicicleta” (“cycling behaviour”), no período de 2020 a 2022, e no campo “assunto”, retornou 55 publicações. Estes artigos podem ser divididos em quatro temáticas principais:
a) intervenções urbanas realizadas pelo poder público com a adoção de medidas facilitadoras para o ciclismo nas áreas urbanas. Em resposta à pandemia, várias cidades na Europa, na Ásia e nas Américas implementaram medidas para promover o ciclismo, como o aumento de infraestrutura, o fechamento temporário de vias, e o incentivo ao compartilhamento de bicicletas, medidas que podem tornar-se políticas públicas permanentes (De Vos, 2020).
b) a experiência dos ciclistas no período por meio de entrevista presencial ou online para compreender a prática do ciclista no período. Os momentos da pandemia em que os ciclistas foram entrevistados foram bastante diversos; desde uma abordagem pré e “pós-pandemia” - como definida pelos os autores do artigo -, até entrevistas restritas ao comportamento ciclístico apenas durante o tempo de lockdown. Por exemplo, Costa et al. (2022) fizeram entrevistas de 1 minuto antes e após o lockdown em Lisboa.
c) o monitoramento dos deslocamentos de ciclistas por meio de aplicativos como GPS e Strava, por exemplo, ou softwares de inteligência artificial (Lock y Petit, 2022).
d) ensaios teóricos sobre o futuro da mobilidade a partir de lições da pandemia e previsões sobre a adoção ou mudança de comportamento definitivo em relação à bicicleta no “pós-pandemia”, ainda que o real impacto destas medidas durante e após a pandemia ainda esteja por ser compreendido (Peden et al., 2022).
Dessa forma, este estudo se propôs a responder a seguinte pergunta norteadora: a pandemia de COVID-19 mudou os hábitos dos ciclistas em São Paulo em relação ao uso da bicicleta, cidade que não promoveu intervenções para facilitar o uso da bicicleta no período?
Se houve mudança, de que forma ela ocorreu no pior período da pandemia em São Paulo, ou seja, na segunda onda de COVID-19 em março de 2021?
Trata-se de um estudo transversal ou seccional, descritivo, que entrevistou ciclistas no município de São Paulo por meio de um questionário distribuído online por meio da Plataforma Google, no momento da segunda onda da pandemia de COVID-19 no Brasil. A opção pelo formulário online deu-se tanto pela necessidade de manutenção dos protocolos de distanciamento social quanto pelo alcance deste tipo de questionário.
Para poder investigar as práticas dos ciclistas em plena pandemia, porém de forma oportuna e adequada ao contexto, foi elaborado um questionário online para usuários de bicicleta residentes no município de São Paulo. Durante o período em que o questionário permaneceu aberto, entre fevereiro e março de 2021, São Paulo enfrentou sua segunda e pior onda de COVID-19. Em 31/03/2021, o município contabilizava 744.477 casos confirmados e 22.068 óbitos pela doença (Prefeitura de São Paulo. COVISA). A vacinação havia começado há menos de 2 meses. Neste mês, houve o decreto de feriado durante duas semanas para diminuir a circulação de pessoas nas ruas. Vigoravam, então, a obrigatoriedade do uso de máscaras em todos os locais, bem como as recomendações de distanciamento social.
A pesquisa online foi aberta em 18 de fevereiro de 2021 e mantida no ar por 40 dias.
O questionário era composto de três sessões de perguntas fechadas: 1- Uma seção com 11 perguntas sobre a experiência e hábitos com bicicleta antes da pandemia de COVID-19, ou seja, até fevereiro de 2020. 2 - Uma seção com seis perguntas sobre como a bicicleta foi utilizada durante a pandemia de COVID-19, ou seja, entre março de 2020 e março de 2021. E uma terceira seção com perguntas sobre ciclovias e a percepção de segurança de ciclistas que não foram consideradas no recorte proposto neste artigo. Apenas uma pergunta era aberta: aquela sobre os motivos pelos quais o tempo de uso da bicicleta na pandemia foi alterado. Os resultados foram analisados no software R gratuito.
O questionário, com uma breve explicação dos seus propósitos, foi enviado por e-mail inicialmente para todos os ciclistas inscritos no Projeto Pedal - INCOR. Trata-se de uma base de ciclistas, construída e compartilhada pelos pesquisadores do Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina (HCFMUSP), com a proposta de uma “Avaliação Prospectiva das Atividades Diárias e Estilo de vida dos ciclistas de São Paulo”, entre 2014 e 2019. Os ciclistas interessados em participar da pesquisa se cadastraram voluntariamente em uma página no site do INCOR; no cadastro forneceram informações pessoais e sobre sua experiência com a bicicleta e concordam em participar da pesquisa. Foram enviados e-mails para 1000 ciclistas da base do Projeto Pedal que haviam concordado previamente em participar de estudos e que informaram um e-mail de contato; 138 endereços de e-mail não foram encontrados; e um total de 100 pessoas responderam afirmativamente à proposta de participar, por meio do preenchimento do questionário e do consentimento livre e informado.
Posteriormente o questionário circulou entre outros usuários de bicicleta utilizando a metodologia “bola de neve”, ou seja, novos ciclistas foram indicados por aqueles que já haviam participado, totalizando 340 respostas válidas. Segundo Bernard (2005), esta técnica é um método de amostragem de rede útil para se estudar: a) populações difíceis de serem acessadas ou estudadas (Hard-too-findo o hard-too-stud populários), situação que configurava durante a pandemia, ou b) que populações sobre as quais não há precisão sobre sua quantidade, já que não temos uma fonte confiável para o número de ciclistas em São Paulo. Houve várias solicitações de links para a pesquisa em função do contato dos pesquisadores com grupos organizados de ciclistas e cicloativistas.
Dois ciclistas responderam “não aceito participar” após leitura do termo de consentimento.
Para responder à pesquisa o entrevistado deveria ter mais de 18 anos, residir no município de São Paulo, e aceitar participar após a concordância com um termo de consentimento livre e esclarecido.
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em 14/12/2018, como um dos eixos do Projeto “Análise da acessibilidade e da segurança do usuário do sistema cicloviário do município de São Paulo: contribuições da saúde para a política de mobilidade por bicicleta”, sob no. CAAE: 00996318.1.0000.0065.
Um total de 340 ciclistas responderam ao questionário durante os 40 dias em que permaneceu aberto. Destes, 75% se declararam homens e 34%, mulheres. As faixas etárias que concentraram mais ciclistas foram aquelas entre 30 e 39 e entre 40 e 49 anos, com 65% dos respondentes; o segundo maior grupo foi o de 50 a 59 anos, com 19%, embora tenhamos encontrado ciclistas em todos os grupos etários. A grande maioria possui bicicleta própria: 95%.
A maioria dos ciclistas, 68%, declarou utilizar bicicleta até uma hora por dia, nos dias em que pedalam, e 93% utilizam ciclovias. Apenas 4,4% dos ciclistas declaram utilizar o sistema de compartilhamento de bicicletas, isoladamente ou combinado com o uso de bicicleta própria.
Os dados demográficos, e aqueles relacionados à posse e tempo de uso da bicicleta estão representados na Tabela 1.
Tabela 1: Números absolutos e proporção (%) de ciclistas entrevistados segundo variáveis sociodemográficas, utilização de ciclovia, posse e tempo de uso de bicicleta, 2021, Município de São Paulo, Brasil.
Variáveis |
n |
% |
Sexo Feminino Masculino Não declarado |
82 256 2 |
24,12 75,29 0,59 |
Faixa etária 18 a 29 anos 30 a 39 anos 40 a 49 anos 50 a 59 anos 60 a 69 anos 70 a 79 anos mais que 79 anos |
22 110 110 65 31 1 1 |
6,47 32,35 32,35 19,12 9,12 0,29 0,29 |
Propriedade da bicicleta Própria Compartilhada Ambos Ignorado |
324 4 11 1 |
95,29 1,17 3,23 0,29 |
Tempo que pedala por dia < 30 minutos 30 minutos a 1 hora >1 hora Ignorado |
117 115 93 15 |
34,41 33,82 27,35 4,41 |
Utiliza ciclovias Sim Não |
318 22 |
93,52 6,48 |
Fonte: elaboração dos autores, 2022.
Uso da bicicleta no período pré-pandemia no Brasil:
até março de 2020
A maioria dos ciclistas (62%) declarou pedalar na área central da cidade de São Paulo, que corresponde à região centro-oeste. No mapa da Figura 1 é possível observar o número de ciclistas que declararam se deslocar em cada distrito. É importante salientar que cada ciclista podia escolher até três distritos utilizados.
As áreas de maior frequência de viagens - principalmente Pinheiros, Consolação, Butantã e Vila Mariana, em vermelho e marrom- coincidem com a região com maior densidade de infraestrutura cicloviária na cidade, como pode ser observado na Figura 2. Um total de 93% dos entrevistados declarou utilizar a ciclovia em algum trecho do seu percurso.
Figura 1. Mapa com os distritos do município e a sua utilização pelos ciclistas. Município de São Paulo, Brasil. Fonte: Mapa elaborado pelos autores, 2022.
A maior concentração de ciclovias no centro cidade, reflete um pressuposto inicial dos primeiros projetos cicloviários dos anos 1980-1990, onde este equipamento reduziria o tráfego nas regiões mais congestionadas por veículos, e com transporte coletivo insuficiente, em um cenário de alta de combustíveis.
Figura 2. Localização da infraestrutura cicloviária. Município de São Paulo, Brasil.
Fonte: Mapa elaborado pelos autores, 2022. Dados disponíveis no site: CET.http://www.cetsp.com.br/consultas/bicicleta/mapa-de-infraestrutura-cicloviaria.aspx
A partir dos anos 2000, a consolidação da bicicleta como um modo de transporte único ou complementar passa a ser uma das principais políticas do governo municipal. Essa tipologia de transporte expandiu-se para regiões relativamente mais distantes do centro e passou a ser incentivada como um modo de transporte de baixo custo. Como grande parte das ofertas de trabalho encontra-se no centro de São Paulo, a ciclovia constituiria uma alternativa de deslocamento ao trabalho. Neste momento, a questão ambiental entra como forte impulsionador da política pública, pois a bicicleta contribui para a redução da poluição do ar (Malatesta, 2012).
Por fim, o município está situado em uma região de planalto, com relevo acentuado em alguns pontos, sendo a altitude média do município 772 metros. O ponto mais alto é o Pico do Jaraguá, com 1.135 metros de altitude. A topografia acidentada de algumas regiões da cidade desestimulou a implantação de ciclovias nestes locais, sendo o exemplo mais relevante a sua ausência em comunidades de baixa renda com pouca viabilidade física para o equipamento devido à inclinação do solo.
Figura 3: Histórico do uso de bicicleta, por atividade, pré-pandemia. Município de São Paulo, Brasil. Fonte: elaboração dos autores, 2022.
Nota-se que, no período pré-pandêmico, a experiência do ciclista entrevistado, medida em anos de pedal, correspondeu ao uso da bicicleta em determinadas funções. Aqueles com até 10 anos de experiência pedalando são os que referem maiores percentuais de uso da bicicleta em todas as atividades; têm no trabalho o principal motivo de deslocamento (50%), mas referem uso frequente para exercício (49%), lazer (41%), e compras (37%). À medida que o ciclista declara mais tempo de experiência com a bicicleta - acima de 11 anos - aumenta a proporção de pessoas que utilizam a bicicleta para exercícios (45%) e lazer (53%); apenas 22% pedalam para o trabalho. Destaca-se nesta amostra, o fato de que 62% dos entrevistados nunca utilizaram a bicicleta para deslocamento com a finalidade de estudo. Estes resultados estão representados na Figura 3.
Um percentual que variou até 6% dos entrevistados declarou utilizar a bicicleta há menos de um ano para todas as finalidades questionadas, ou seja, iniciou os deslocamentos por bicicleta nos meses anteriores à pandemia de COVID-19.
Para a análise da frequência do uso da bicicleta, classificamos como “uso leve” quando a bicicleta era utilizada uma vez por mês ou quinzenalmente; como “uso moderado” se utilizada de 1 a 3 dias na semana; e de “uso intenso” quando utilizada de 4 a 7 dias na semana.
No período pré-pandemia, os usuários “leves” tinham como finalidade principal compras ou lazer. Os usuários “moderados” mostram uma tendência a utilizar mais a bicicleta pelos mesmos motivos, porém deslocamentos para trabalho e exercícios passam a ganhar maior aderência. Os ciclistas “intensivos” são aqueles que mais pedalam para finalidade de trabalho, embora mantenham a atividade de lazer e exercício, conforme a Figura 4.
Figura 4: Frequência do uso da bicicleta, por atividade, pré-pandemia. Município de São Paulo, Brasil. Fonte: elaboração dos autores, 2022.
Uso da bicicleta durante a pandemia
Aproximadamente 50% dos ciclistas entrevistados diminuíram a atividade com a bicicleta durante a pandemia. A pergunta sobre as motivações para uma mudança no padrão de uso da bicicleta durante a pandemia permitia mais de uma resposta, entre quatro opções, além de um espaço para uma resposta aberta.
Os principais motivos citados para diminuição do tempo de uso da bicicleta foram relacionados à adoção do home office (64%) e evitar aglomerações/ manter isolamento social (61%). Houve citação espontânea à: “medo por ter que ir para o hospital se tivesse um acidente” (três ciclistas), “comprei uma moto ou um carro” (3), “necessidade/dificuldade de uso e troca de máscara” (2), “quarentena” (1), “estou desempregado” (1), “presença de vários ciclistas no trajeto” (1), “ciclovia que uso fechada” (1), “mudança das compras para o online” (1), “motociclistas e ciclistas imprudentes” (1), “acabaram os grupos de ciclistas para pedalar” (1), “medo por desconhecimento da pandemia” (1).
Já entre os 32% que declararam ter aumentado o uso da bicicleta, os motivos mais citados foram relacionados a fazer exercício físico ao ar livre (83%), evitar aglomerações/ manter isolamento social (57%) e home office (26%). Espontaneamente temos menção à: “evitar transporte público” (3), “violência no trânsito” (1), “lazer/relaxamento/passear com a família” (2), “manter condicionamento físico” (2), “mais tempo ocioso” (2). Os dados estão representados na Tabela 2.
Tabela 2: Proporção (%) de ciclistas que alteraram o tempo que utilizam a bicicleta durante a pandemia, com os principais motivos citados. Município de São Paulo, Brasil.
Variáveis |
n |
% |
||
Diminuiu o uso da bicicleta
|
168 |
49,41 64,28 61,20 9,52 7,14 |
||
Manteve o uso da bicicleta
|
63 |
18,53 25,39 47,61 55,55 23,80 |
||
Aumentou o uso da bicicleta
|
107 |
32,06 26,16 57,00 83,17 25,23 |
||
Total |
100 |
Fonte: elaboração dos autores, 2022.
Quando analisamos as respostas para a mudança no tempo dedicado à bicicleta durante a pandemia por gênero, os achados foram semelhantes: 51% das mulheres e 49% dos homens diminuíram o uso da bicicleta, enquanto 34% das mulheres e 31% dos homens aumentaram. Os motivos para a diminuição do uso da bicicleta foram os mesmos para ambos os sexos, a adoção do home office e a necessidade de evitar aglomerações e manter o isolamento social. Da mesma forma, a necessidade de atividade física aparece representada em ambos os grupos que aumentaram o uso do pedal, porém com uma diferença importante: 43% das mulheres alegaram esse motivo, em relação a 10% dos homens.
Para 44% dos respondentes, pedalar durante a pandemia foi uma experiência mais segura do que no período anterior, e 15% consideraram a experiência menos segura.
Durante a pandemia foi relatado um aumento do uso da bicicleta por todos os motivos pelos usuários leves. Os usuários moderados diminuíram o uso da bicicleta em todas as dimensões avaliadas. Os usuários intensos aumentam o uso para lazer (e compras) e diminuíram para as demais atividades, como trabalho. Estas respostas estão representadas na Tabela 3.
Tabela 3: Variação da frequência de utilização da bicicleta no durante a pandemia entre os 340 ciclistas que responderam ao questionário em 2021. Município de São Paulo, Brasil.
Variável |
Motivo do uso da bicicleta |
||||
Frequência de uso da bicicleta |
Trabalho |
Estudo |
Compras |
Exercício |
Lazer |
Usuário Leve |
↑90% |
↑76% |
↑56% |
↑40% |
↑57% |
Usuário Moderado |
↓10% |
↓42% |
↓26% |
↓6% |
↓35% |
Usuário Intenso |
↓58% |
↓64% |
↑5% |
↑10% |
↓24% |
Legenda: ↓ diminuição; ↑ aumento.
Fonte: elaboração dos autores, 2022.
A maioria dos ciclistas declarou utilizar máscara enquanto pedala, seja sempre (51%), ou às vezes (28%). No entanto, a proporção de mulheres que declararam usar máscara sempre foi maior do que a dos homens, como pode ser observado na Figura 5.
Figura 5: Proporção (%) de ciclistas que declararam utilizar máscara durante o uso da bicicleta na pandemia (n=338). Município de São Paulo, Brasil. Fonte: elaboração dos autores, 2022.
Pender et al. (2022:1) apontam que “a pandemia de Covid-19 chamou a atenção para a questão da mobilidade ativa e seus benefícios nas cidades da América Latina”. Fatores exógenos que sabidamente afetam o uso da bicicleta na Cidade de São Paulo como a segurança, o clima e o relevo (Foltram y Nissimoff, 2021) tiveram a adição de mais uma externalidade disruptiva durante a pandemia, como o lockdown, o isolamento social e as mudanças nas dinâmicas de circulação de pessoas e veículos.
Recebemos várias justificativas para o não preenchimento da pesquisa, tais como, como está, de M., que reforçam a sensibilidade da questão da segurança na prática do ciclismo: “Recebi a pesquisa e gostaria muito de participar, mas infelizmente estou sem utilizar a bicicleta desde o fim de 2018. O motivo foi um assalto na ciclovia da Avenida Sumaré, onde fui empurrada pelo bandido enquanto pedalava. Ele levou a bicicleta e eu quebrei o tornozelo, rompi diversos ligamentos e tive outros machucados. Tenho sequelas físicas [...] e emocionais até hoje [...]. Infelizmente parei de pedalar, mesmo fazendo isso desde 2014. Espero conseguir ajudar desta forma na pesquisa. ”
Com base nos resultados do questionário, gostaríamos de discutir os pontos mais relevantes para a análise nesta pesquisa: o perfil do ciclista que participou, e suas implicações; as motivações para alteração no padrão de uso da bicicleta na pandemia naquele momento da pandemia e sem incentivos oficiais; e o uso de máscara ao pedalar.
O perfil do ciclista que respondeu ao questionário em 2021 é predominantemente masculino (75%), com idade entre 30 e 59 anos (84%), proprietário de bicicleta, e que pedala até uma hora nos dias em que utiliza a bicicleta.
A pesquisa Origem-Destino de 2017 caracterizou o ciclista médio no município de São Paulo como: homem em 90% das vezes; jovem - entre 15 e 29 anos - em 40%; com ensino médio completo em 40%, com renda familiar média de 0 a 4 salários-mínimos, e residentes em regiões mais periféricas: Leste, Norte e Sul. As viagens são feitas por motivo de trabalho em 68% das vezes e para a escola em 14%, com duração média de 21 minutos, e utilizam a ciclovia em 50% das viagens (Prefeitura de São Paulo. Secretaria de Desenvolvimento Urbano). O mesmo estudo ressalta, porém, que um novo tipo de usuário da bicicleta emergiu na pesquisa de 2017: homem, de renda média alta, com ensino superior completo e residente nas regiões com melhores condições socioeconômicas: oeste, sul e centro. Entre 2007 e 2017, as viagens de bicicleta cresceram principalmente nessas mesmas regiões, que contam com mais ciclovias.
O perfil do entrevistado desta pesquisa parece assemelhar-se mais a esse perfil emergente, com melhores condições socioeconômicas, que foi delineado na última Pesquisa Origem-Destino. Contribuem para essa percepção: a) o fato de serem proprietários de bicicleta; b) circularem quase que exclusivamente pela região central da cidade, caracterizada por maior Índice de Desenvolvimento Humano - IDH; por exemplo, os quatro distritos com maior circulação de ciclistas apresentam IDH entre 0,93 e 0,96, enquanto os distritos mais periféricos chegam ao IDH de 0,70; c) pela utilização massiva de ciclovias que também estão localizadas nestas mesmas regiões; d) e por fim, o fato de terem sido recrutados também a partir de grupos organizados de ciclistas e cicloativistas.
Tanto o perfil do ciclista desta pesquisa quanto o perfil mais consolidado e tradicional da Pesquisa Origem-Destino são concordantes quanto aos trajetos mais utilizados na pré-pandemia: a maioria das viagens ocorre nas regiões centro, oeste e sul, que coincidem com as áreas que concentram as populações residentes de classe média e alta e também os empregos para as classes mais baixas.
Os baixos percentuais de ciclistas que declararam pedalar antes da pandemia com a finalidade de estudo podem ser explicados pela exigência do respondente desta pesquisa ter completado 18 anos.
Mogaji e Uzundu (2022) comentam em sua pesquisa que a COVID-19 tornou-se uma oportunidade para que as mulheres de Lagos explorassem outras formas de transporte, como a bicicleta. O percentual de mulheres ciclistas observados nesta pesquisa (25%) foi acima daquele identificado entre os ciclistas habituais da cidade; quando questionadas se aumentaram o uso da bicicleta ao longo do primeiro ano de pandemia, metade das mulheres (51%) respondeu que não, em proporção semelhante à dos homens (49%).
Embora nesta pesquisa o grupo de mulheres ciclistas esteja superestimado em relação ao percentual encontrado na Pesquisa Origem-Destino (25% e 10%, respectivamente), as respostas das mulheres foram semelhantes às dos homens em todas as dimensões avaliadas, exceto em relação ao uso de máscara, quando 90% das mulheres declararam utilizar sempre ou às vezes, enquanto 75% dos homens deram a mesma resposta. Quando avaliamos por idade, os percentuais dos grupos abaixo e acima de 60 anos que declararam sempre usar máscara, encontramos 50% e 86%, respectivamente. Este alto número de maiores de 60 anos que utilizam sempre a máscara é relevante, uma vez que tratava-se da pior fase da pandemia e os idosos são considerados mais vulneráveis à COVID-19.
Em Goiânia, um questionário online aplicado em 87 ciclistas com proporção de 49% de homens e 38% de mulheres, e perfil socioeconômico semelhante ao deste estudo, encontrou 62% de ciclistas que declararam utilizar máscara, principalmente abaixo de 50 anos de idade, sem análise por sexo, sendo essa a principal mudança introduzida durante a pandemia na cidade (De DEUS, 2020).
Surpreendentemente, no levantamento realizado neste estudo, o hábito de utilizar máscara enquanto usa a bicicleta não foi avaliado em estudos fora do Brasil. Scheid et al. observaram em estudos empíricos que o uso da máscara, seja de que tipo for, não altera o esforço empreendido em atividades físicas.
O uso da bicicleta na pandemia: motivações
Bracarense et al. (2021) investigaram o acesso às atividades urbanas em contexto brasileiro e concluíram que para todas as atividades a maior redução de mobilidade ocorreu no começo da pandemia. Ainda assim, as mudanças relacionadas ao estado habitual foram sendo reduzidas de modo incremental ao longo do tempo, com alguns períodos de recuperação no intervalo, até 2021.
Em uma perspectiva mais geral, o número de ciclistas em São Paulo que diminuiu a atividade física neste estudo, 49%, foi semelhante à soma daqueles que mantiveram ou aumentaram a prática do ciclismo: 50%. Entre os que passaram a pedalar, um grande estímulo para 83% foi a prática de atividade física.
Ainda que não seja um espelho perfeito da afirmação acima, nota-se que os contadores automáticos de bicicletas localizados em ruas de distritos centrais, por onde circulam nossos ciclistas, reafirmaram essa estabilidade: Gastão Vidigal (Butantã) e Vergueiro (Vila Mariana), registraram um aumento no número de ciclistas que circularam em março de 2021 em relação ao mesmo mês de 2019. O contador da Avenida Faria Lima (Pinheiros) registrou um decréscimo abrupto em 2020 e uma recuperação em 2021, sem, contudo, atingir os níveis de 2019.
As motivações apresentadas para mudança no padrão de uso da bicicleta nesta pesquisa parecem estar relacionadas mais às características da pandemia e da experiência das atividades habituais dos ciclistas, do que como resultado de intervenções no planejamento urbano - estas últimas ocorreram por um tempo menor no Brasil e com menos frequência do que em outros países. Em São Paulo, o home office mudou fortemente o padrão de uso de ciclistas considerados usuários intensos de bicicleta, aqueles que mais se deslocavam por bicicleta a trabalho. Já a interdição a locais de prática de exercícios, como academias e parques, foi um forte estimulante para aderir ao pedalar, principalmente entre os usuários leves.
É interessante notar que percentual semelhante entre os que aumentaram e os que diminuíram o pedal deve-se ao mesmo motivo: evitar aglomerações e isolamento social. Ou seja, não se pedalou para evitar onde havia pessoas, mas também se pedalou para um deslocamento com mais isolamento dos demais.
Entre os 34% de mulheres que aumentaram o uso da bicicleta, as maiores motivações foram fazer exercício físico e evitar aglomerações/ isolamento social. Em pesquisa australiana semelhante com 444 respondentes (Fuller et al., 2020), nota-se que 42% das mulheres aumentaram o uso da bicicleta durante a pandemia, porém 49% responderam que o incremento se deveu à maior confiança pela melhoria do trânsito durante o lockdown. Em concordância com Teixeira e Cunha (2020) em Portugal, o aumento no uso da bicicleta para fins de exercício físico foi quatro vezes maior em mulheres nesta pesquisa do que em homens.
As motivações-chave para a mudança de padrão no uso da bicicleta da nossa pesquisa são majoritariamente 3: a) atender ao lockdown e evitar aglomerações, b) praticar lazer ao ar livre, c) evitar o trânsito.
Porém outras duas chaves que não foram relevantes nesta pesquisa aparecem com mais frequência em estudos fora do país: a segurança e a disponibilidade de compartilhamento de bicicletas.
Pesquisas na Austrália também identificaram a intenção de fazer exercício físico como um grande impulsionador do uso da bicicleta na pandemia (Fuller et al., 2020); mas também relataram a diminuição do tráfego de veículos, com a possibilidade de maior circulação de famílias e crianças, e evitar o transporte público; porém houve grande número de famílias e crianças pedalando e o compartilhamento com ciclistas menos experientes foi um ponto de tensão (Lock, 2020). Em Lisboa, embora o aumento do uso da bicicleta por meio de compartilhamento tenha aumentado no início da pandemia por motivo de isolamento social, a prática persistiu por interesses pessoais e busca de bem-estar (Teixeira et al., 2021).
No cenário brasileiro, onde a realidade das adaptações urbanas foi mais semelhante às de São Paulo, observou-se a persistência em pedalar apesar da pandemia. Na pesquisa em Goiânia (de Deus, 2020) uma parcela significativa dos ciclistas parou de pedalar logo no início da pandemia, porém, segundo seus autores, tão logo “as pessoas se sentiram suficientemente cientes sobre como proceder para evitar a contaminação, somada às notícias/publicações sobre a prática de atividades ao ar livre e o baixo risco nelas envolvido, retomaram a atividade”. Em Uberlândia, 30 ciclistas entrevistados foram indiferentes à influência da pandemia para uso da bicicleta (de Arruda y Jacob, 2021). Foltram (2021) obteve 452 respostas a um questionário online entre novembro e dezembro de 2020 em São Paulo. Segundo o autor, o que chamou a atenção é que o número de novos ciclistas na cidade só cresceu após o início da pandemia de COVID-19 em 2020.
O deslocamento por bicicleta aumentou em cidades da Europa, América do Norte e Austrália entre 2019 e 2020 (Buehler y Pucher, 2021). Os autores especulam que este aumento pode se tornar uma tendência pela expansão permanente na infraestrutura, o aumento de vendas de bicicletas verificado no período, o surgimento de “novos” ciclistas, a retomada de viagens de bicicleta para fins de trabalho e estudo que diminuíram na pandemia e pela potencial retenção de ciclistas que migraram do transporte público para a bicicleta na pandemia. Entre os 15 ciclistas desta pesquisa que declararam ter iniciado o uso há menos de um ano, portanto durante a pandemia, 67% declararam sentir-se mais seguros e todos utilizaram a ciclovia. Stromberg y Wallen, (2022) sugerem que a presença de equipamentos tipo ciclovia é um motivador para começar a pedalar. Costa et al. avaliaram ciclistas com questionários de 1 minuto pré e pós lockdown; os resultados mostram que a queda de atividade durante o lockdown foi recuperada e estimulou novos ciclistas. Assim como no Brasil, não houve a implantação de infraestrutura para ciclismo.
Nikitase et al. (2021) ressaltam que medidas provisórias para o incentivo à bicicleta, como o fechamento de vias e ciclovias “pop-up” podem limitar a expansão do ciclismo como modo de transporte a longo prazo, ao invés de torná-lo um “novo normal”. As ciclovias temporárias foram adotadas em Belo Horizonte durante a pandemia. Em relação a essa iniciativa mineira, França y Faria (2021:503) comentam que este é um exemplo de Urbanismo Tático1: “o Urbanismo Tático surge nesse cenário como forma emergencial para adequar o espaço público às novas necessidades de isolamento físico[...] A inserção do Urbanismo Tático como ferramenta formal no planejamento urbano pode fomentar novas possibilidades locais e estratégias de ação imediata frente a crises como a da COVID-19”.
Facilitar o uso de bicicletas compartilhadas também foi uma estratégia utilizada em outros países que pouco foi adotada no Brasil. Entre os 15 entrevistados que já utilizavam bicicleta compartilhada nesta pesquisa, 13 não alteraram o seu uso durante a pandemia. Em Barcelona, os autores relacionam o compartilhamento de bicicleta na pandemia como modificador de comportamento, o que pode implicar em práticas permanentes adotadas no futuro do planejamento urbano (Bustamante et al., 2022). O mesmo ocorreu em Lisboa (Teixeira et al., 2021), em Chicago (Hu et al., 2021) e Nova Iorque (Teixeira y Lopes, 2020), onde, embora o número de viagens tenha diminuído, o compartilhamento de bicicletas mostrou- se um meio de transporte mais resiliente do que o automóvel, ou mesmo caminhar. Em Seul, em pesquisa com 1590 usuários de bicicletas compartilhadas, observou-se que houve um aumento no seu uso em 44 horas entre aqueles que foram afetados no seu deslocamento entre 30 de julho e 7 de agosto de 2020, principalmente entre mulheres e pessoas em direção ao trabalho Park et al., preprint).
Em La Plata, na Argentina, onde foi imposta a restrição à circulação de veículos e a restrição do transporte público aos trabalhadores de serviços essenciais, observou-se um aumento exponencial do uso da bicicleta por meio de aplicativos de compartilhamento, atribuído ao aumento do delivery com o fechamento de mercados e aumento de desemprego (Wlasiuk et al., 2021). Entre os 12 % de ciclistas que participaram da pesquisa argentina, e que utilizavam bicicleta compartilhada na pré-pandemia, 83% não alteraram a sua forma de pedalar.
Ainda é cedo para saber se a pandemia do COVID-19 provocou alguma mudança na cultura da bicicleta no mundo. Como a pandemia segue em curso, embora mais branda, alguns estudos informam o interesse do ciclista em continuar pedalando ou não no futuro. Esta pergunta específica não foi realizada no questionário aplicado em São Paulo. Entre 25 e 29% dos respondentes a um questionário aplicado no Chile, Uruguai e Argentina declararam disposição de adquirir uma bicicleta após a pandemia, e utilizar menos o transporte público (Rodriguez, 2022). Na Espanha, percentuais semelhantes declararam que têm a intenção de adotar modos ativos de transporte, inclusive a bicicleta (52%).
Nessa perspectiva, De Vos (2020) propõe que, no futuro pós pandemia, possa haver uma diminuição de deslocamentos em geral e que estes se darão menos por transporte público, e mais de modo individual. Mas também sugere que o distanciamento social pode levar a uma diminuição na atividade física, o que não se verificou no grupo de ciclistas deste estudo. Sob outra perspectiva, mais focada na bicicleta, Chen e colaboradores (2022), demonstram que bikesharing é uma opção de transporte que foi bem sucedida na China, tem alto nível de adaptabilidade social, e pode oferecer resiliência à rede de transportes local.
Por fim é importante mencionar que o presente estudo apresenta algumas limitações: a) nosso grupo de entrevistados apresenta um perfil específico, diferente daquele do ciclista habitual em São Paulo, com características que sugerem um ciclista de uma classe econômica mais favorecida e com experiência; adicionalmente, o engajamento de ciclistas envolvidos em movimentos pró-bicicleta também pode constituir um viés na população avaliada, uma vez que são ciclistas frequentes. Esse fato pode ter reflexos nos resultados da utilização da bicicleta na pandemia, por ser uma população que pode adotar mais facilmente o home office e não depende tanto de transporte público; b) o formato online do questionário, com a metodologia de bola de neve para disseminação da pesquisa, pode levar a um viés da população representada; e c) não foi investigada a intenção de manter a prática de ciclismo após a pandemia.
Este estudo buscou investigar se houve mudança no comportamento do uso da bicicleta na cidade de São Paulo, durante o pico da pandemia de COVID-19 por meio da entrevista online de usuários deste modo de transporte.
Em São Paulo não houve investimento do poder público em novas infraestruturas cicloviárias, mesmo que temporariamente, como aconteceu em outros países, ou no incentivo de compartilhamento de bicicletas. O aumento ou a manutenção do ciclismo entre os entrevistados parece ter-se dado por iniciativa pessoal.
O uso de máscara referido durante o ciclismo foi bastante alto; não encontramos analogia em outros estudos.
Como o perfil do ciclista desta pesquisa é o de um usuário regular e diferenciado no perfil sócio-econômico, que pode escolher como utilizar a bicicleta, observa-se naturalmente o uso tático da bicicleta conforme conveniência (fazer atividade física com parques fechados) ou necessidade (manter o isolamento social). Com o encaminhamento da pandemia para seu fim, uma questão que permanece é como se dará o uso da bicicleta em um contexto de diminuição de homeoffice e a retomada de outras formas de atividade física.
Por fim, a prática do ciclismo surge valorizada no contexto da pandemia. Do ponto de vista de política pública, ressaltamos que a adoção de medidas de infraestrutura podem encorajar um número maior de pessoas a utilizar a bicicleta. O empenho de ciclistas ligados a organizações não governamentais, que fomentam essa atividade, foi relevante para o recrutamento da pesquisa, mostrando que o terceiro setor tem feito sua parte.
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María Antonietta Mascolli / mamascolli@usp.br
Médica sanitarista com Mestrado em Medicina (2000) pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e doutorado pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (2016), na área de Saúde Ambiental - com Doutorado Sanduíche na University of Northampton. Pós-doutorado em Saúde Coletiva, na área de Saúde Ambiental/ Saúde Urbana, pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (2022). Foi colaboradora do INCLINE (Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Mudanças Climáticas) da Universidade de São Paulo e do PROJETO SALURBAL (Salud Urbana en America Latina), coordenado pela Universidade de Drexel. Pesquisadora e docente com foco em Saúde Urbana e Mobilidade Ativa.
1 O Urbanismo Tático é uma abordagem para a construção e ativação de bairros usando políticas e intervenções de curto prazo, de baixo custo e de pequena escala. Ele pode ser utilizado por uma variedade de agentes, incluindo governos, empresas e organizações sem fins lucrativos, grupos de cidadãos e indivíduos. Faz uso de processos de desenvolvimento abertos e iterativos, do uso eficiente de recursos e do potencial criativo desencadeado pela interação social Lydon M. Garcia A. APUD França y Faria (2021).