Portos do Rio de Janeiro e Buenos Aires: paralelos e diferenças


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Cezar Honorato

Universidade Federal Fluminense, Instituto de História. Niterói, Brasil.
https://orcid.org/0000-0003-4212-7395

Juliana Oakim

Universidade Federal Fluminense e servidora da Prefeitura
da Cidade do Rio de Janeiro. Brasil.
https://orcid.org/0009-0008-9061-3017

Recibido: 10/3/2023. Aceptado: 25/4/2023.

Resumo

Rio de Janeiro e Buenos Aires são cidades fundadas como portos para escoamento da produção das colônias portuguesa e espanhola nas Américas. Ambas cidades, em dado momento, e em grande parte, em função da importância de uma cidade portuária diante do mecanismo do colonialismo, tornaram-se capitais.

Ademais, ambas as cidades, viveram a implantação do porto industrial capitalista na virada para o século 20, assim como viveram sua decadência em meados da década de 1960 com a modernização da tecnologia portuária e a consequente obsoletização das instalações construídas décadas antes – processo compartilhado com diversos portos pelo mundo.

Tanto em Buenos Aires como no Rio de Janeiro, políticas de revitalização das antigas áreas portuárias foram debatidas em meio ao processo de redemocratização com o fim das ditaduras do Cone Sul. No entanto, é neste momento que os caminhos, que seguiam em grande parte paralelamente, se diferenciam. Puerto Madero tornou-se uma importante referência de revitalização ainda na década de 1990, mesmo com seus acertos e erros. Já o Rio de Janeiro demoraria mais de duas décadas para iniciar um processo ainda incipiente de revitalização da sua antiga zona portuária.

São estes paralelos e diferenças que este artigo explora.

Palavras-chave: Rio de Janeiro, portos, Buenos Aires, planos urbanos

Ports of Rio de Janeiro and Buenos Aires: parallels and differences

Abstract

Rio de Janeiro and Buenos Aires are cities founded as ports for shipping production from the Portuguese and Spanish colonies in the Americas. Both cities became capitals at a given moment and largely due to the importance of a port city in the face of the mechanism of colonialism.

Furthermore, both cities had the capitalist industrial port implanted at the turn of the 20th century, as well as experienced its decline in the mid-1960s with the modernization of the technology and the consequent obsolescence of facilities – a process shared with several ports around the world.

In Buenos Aires and in Rio de Janeiro, policies to revitalize the old port areas were debated in the midst of the redemocratization process and the end of the Latin American dictatorships. However, at this moment, the paths, which were largely parallel, differ. Puerto Madero became an important reference for revitalization in the 1990s, despite its successes and failures. Rio de Janeiro, on the other hand, took two decades to start a still incipient process of revitalizing its old port area.

It is these parallels and differences that this article explores.

Keywords: Rio de Janeiro, ports, Buenos Aires, urban plans

O Objetivo central deste trabalho é refletir, embora de forma breve, acerca dos paralelos e diferenças entre as cidades do Rio de Janeiro e de Buenos Aires no que tange à relação cidade-porto e seus vários planos urbanísticos visando a modernização urbana.

Desde há muito foi sendo elaborada uma historiografia articulando a importância dos atracadouros em algumas cidades, como Rio de Janeiro, Montevideo e Buenos Aires como locais fundamentais na articulação entre a produção colonial e a importação de produtos através das metrópoles européias. Os principais portos coloniais nas Américas, por serem sítios de fácil acesso, bem protegidos de ventos e grandes ondas e - talvez mais importante - por centralizarem produtos de exportação e distribuírem para o interior os importados, também foram, em grande parte, eleitos como locais para a instalação dos controles alfandegários.

O que observamos no período colonial é que, para além disso, as principais cidades coloniais se transformaram em bases para o comércio de cabotagem e reexportação, tanto de forma legal - considerando o período da União das Monarquias Ibéricas, entre 1580 a 1640 - como de forma ilegal, especialmente após a Restauração Portuguesa.

Dentre essas cidades, Rio de Janeiro e Buenos Aires foram fundadas como portos para escoamento da produção das colônias portuguesa e espanhola nas Américas. Inicialmente, o Rio de Janeiro escoava o ouro, enquanto Buenos Aires a prata para terras europeias. Ambas cidades, em dado momento, e em grande parte, em função da importância de uma cidade portuária diante do mecanismo do sistema colonial , tornaram-se capitais.

Ademais, ambas as cidades, viveram a implantação do porto industrial capitalista na virada para o século 20, assim como viveram sua decadência em meados da década de 1960, com a modernização da tecnologia portuária e a consequente obsoletização das instalações construídas décadas antes – processo compartilhado com diversos portos pelo mundo.

Nunca é demais apontar que a chamada revolução dos contenedores tornou obsoletas várias instalações, principalmente armazéns, deixando enormes áreas urbanas abandonadas ou subutilizadas, gerando um certo cemitério urbano ao mesmo tempo que passou a necessitar de novas áreas para o seu retroporto.

Tal fenômeno tem sido motivo para vários projetos de reutilização desses territórios e, em muitos casos, implicando em transferir a operação portuária para outros sítios, como no caso de Barcelona e mesmo, Buenos Aires, ou refazendo o território portuário existente com um mix de operação portuária e revitalização para fins de serviços naquelas que não mais serviam para embarque e desembarque de mercadorias.

Tanto em Buenos Aires como no Rio de Janeiro, políticas de revitalização das antigas áreas portuárias foram debatidas em meio ao processo de redemocratização com o fim das ditaduras do Cone Sul. No entanto, é neste momento que os caminhos, que seguiam, em grande parte paralelamente, se diferenciaram. Mesmo tomando como referência a experiência de Barcelona, os destinos destes portos seguiram caminhos distintos a partir da década de 1990.

São estes paralelos e diferenças que este artigo pretende explorar. O texto se estrutura em cinco momentos: 1. a construção dos portos industriais; 2. a contratação dos urbanistas estrangeiros; 3. o planejamento autoritário dos regimes militares; 4. a redemocratização e o planejamento participativo, e 5. a revitalização dos portos e o planejamento estratégico neoliberal.

1º momento - a construção dos portos industriais

A localização dos portos aqui estudados, Rio de Janeiro e Buenos Aires, tem origem no período colonial, após mudanças implementadas nos locais originais, que eram relacionados à fundação da cidade. No caso carioca, o porto, anteriormente próximo à sede do poder colonial, foi transferido, em fins do século 18, para a região do Valongo, hoje conformada pelos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo. Já o porto de Buenos Aires, na região próxima à Praça de Mayo, teve seus primeiros diques construídos já no século 19.1

Em meados do século XIX, a modernização destes dois portos coloniais afirmou-se como uma necessidade para o início do processo de internacionalização de sua economia. Em resposta, Buenos Aires construía, já em 1857 a Aduana Nova de Taylor e uma estação férrea integrada ao porto, uma obra significativa sobre a costa que evidenciava a importância que aquele local já tinha para a economia argentina. É interessante destacar que a Argentina já era um país independente desde 1816 e que, portanto, este projeto portuário já se configurava como um projeto nacional.

Sem embargo, esta aduana teve vida curta, cerca de três décadas, e foi substituída para a construção de Porto Madero. A construção de Porto Madero foi um empreendimento ousado, encabeçado pelo empresário argentino Eduardo Madero. Este projeto de um porto industrial argentino tinha uma forte dimensão simbólica e representava não somente um projeto nacional de porto e de economia, mas também a imagem da finalmente capital do país, após décadas de lutas internas entre as províncias.2

Madero encomendou o desenho do novo porto da capital federal que se queria modernizar a um escritório de engenheiros britânicos. O projeto, cuja construção foi uma das mais custosas do mundo, se constituiu em uma sequência de diques e armazéns, que proporcionavam águas calmas para o atracamento das embarcações e local para estocagem de produtos - em um modelo de arquitetura de características inglesas que foi popular nas cidades latino-americanas, inclusive no Rio de Janeiro. As obras se iniciaram em 1888 e foram desenvolvidas em diferentes etapas, que se estenderam por nove anos: o Dique 1 foi concluído em 1889; o Dique 2 em 1890, o Dique 3 em 1892 e, finalmente, o Dique 4 e a Doca Norte em 1897.

Apesar do projeto ambicioso, em poucos anos, a estrutura do Porto Madero não conseguia mais atender às demandas. Assim, em 1907, apenas dez anos após a conclusão da quarta etapa, era realizado um concurso de projetos para uma expansão das atividades portuárias em direção ao norte, em uma área que seria denominada Porto Novo. As obras foram iniciadas rapidamente e, entre 1911 e 1919, foi construída a estrutura que contava com diversos diques dentiformes. Somados os dois portos, o Porto Novo e o Porto Madero, formaram uma barreira que segregou a zona central da ribeira do Rio da Prata, separando a cidade das águas.3

Processo semelhante ocorreu em diversas cidades portuárias do mundo, inclusive Rio de Janeiro e Montevideo, cidades que, posteriormente, em fins do século XIX e início do XX, iriam implementar diversos projetos e reformas para tentar reverter este processo. Mas isso é assunto para ser tratado mais à frente neste texto.

A capital brasileira compartilha algumas semelhanças com as transformações vividas pela vizinha argentina em fins do século XIX. No entanto, no Rio de Janeiro, as primeiras propostas de reformas para a construção de um porto industrial apareceram um pouco mais tarde. Assim, na década de 1870, era inaugurado o armazém das Docas Pedro II, um projeto ainda imperial. Mas seria, algumas décadas depois, já em 1890, que um grupo de engenheiros se organizaria em torno da Comissão de Melhoramentos para projetar um porto nacional industrial da República Brasileira.4

Cabe destacar, aqui, a particularidade do processo brasileiro de independência em relação a seus vizinhos latino-americanos. Enquanto a independência dos países de colonização espanhola foi decorrente de levantes armados ocorridos no início do século 19, o Brasil recebia, em 1808, a corte portuguesa fugida das guerras napoleônicas fazendo com que a antiga capital da colônia se tornasse capital do Império Português. Ademais, a independência brasileira não se dá em conflito entre as burguesias locais e aquelas europeias, mas sim em um acordo entre as famílias imperiais - cabe destacar que aquele que assume como imperador do Brasil em 1824, iria, poucas décadas depois, assumir o trono do império português, deixando no Brasil seus herdeiros, que seriam depostos pela proclamação da república somente em 1889. Toda essa particularidade do caso brasileiro reflete-se nos projetos de melhorias do porto de sua capital.

Mas retornemos ao projeto dos engenheiros para o porto carioca. A partir das primeiras iniciativas da Comissão de Melhoramentos estruturou-se uma grande intervenção no porto e na cidade, no que ficou conhecido como Reforma Pereira Passos. As obras começaram em 1903 e tiveram como principal objetivo a construção de um porto moderno, capaz de ficar à altura daquela que era, na época, a capital do principal país produtor e exportador de café do mundo; um projeto que materializou o funcionalismo econômico da distribuição de mercadorias na forma de um projeto urbano que implementou uma série de vias retificadas projetadas sobre o solo criado a partir de um enorme aterro sobre a Baía de Guanabara. A execução do aterro, cuja implementação retirou os antigos trapiches particulares e criou uma linha de armazéns em um cais retilíneo de atracação de 3,5 quilômetros de extensão controlados pela autoridade alfandegária, apagou da região a linha antiga de orla, isolando-a da cidade - processo semelhante ao mencionado no caso de Buenos Aires. Ademais, este grande cais contava com um ramal ferroviário, em uma estrutura necessária para a distribuição e recebimento de mercadorias de todo o país.5

2º momento - a contratação dos urbanistas estrangeiros

Em fins da década de 1920, um outro paralelo seria compartilhado pelas duas capitais federais quando ambas as cidades contratariam planos diretores de expoentes estrangeiros da arquitetura e urbanismo; mais precisamente, de dois profissionais franceses: os arquitetos Le Corbusier e Donat Alfred Agache.6 Naquele momento, as cidades cresciam cada vez mais e fazia-se necessário um planejamento maior da circulação de pessoas e transporte de mercadorias. Ambas cidades viviam, então, a questão da adequação dos seus espaços à nova realidade, com terrenos cada vez mais valorizados, principalmente nas áreas centrais. Ademais, havia outra dimensão, as novas dimensões dos movimentos sociais e o debate sobre a incorporação do proletariado (ou não) neste novo espaço da cidade. Cabe destacar, que em ambas as cidades, este proletariado habitava, historicamente, as áreas centrais, locais tradicionais de concentração da oferta de trabalho.

Diante deste dilema, as duas capitais latino-americanas aqui estudadas contrataram os já mencionados urbanistas franceses, de posicionamentos políticos e estéticos distintos. A Argentina opta pela ousadia e radicalidade modernista de Le Corbusier, enquanto o Brasil seleciona Agache, nos limites de um ideal de modernismo bem-comportado, abarcando a estética art-déco.7

É interessante explorar as diferenças entre estas duas opções. Le Corbusier representava o mais radical do modernismo. Um pensamento que se propunha preparar as cidades para um futuro mecanicista, industrial. Sua arquitetura traduzia uma ruptura formal com a sociedade anterior. Ademais, o arquiteto defendia a abolição de fronteiras nacionais e de classe, um futuro em que um estilo internacional abarcasse as cidades humanas. Já o art-déco de Agache também representava um futuro que vinha de um diálogo com a industrialização e com as transformações que esse processo acarretou nas cidades. Assim, propunha uma valorização do industrial, no entanto, em harmonia com as técnicas artesanais do passado. Ou seja, não tão radical quanto aquela proposta por Corbusier.

A contratação do projeto de Corbusier para Buenos Aires iniciou-se em 1929, quando o arquiteto francês visitou a cidade a partir de um convite da Associação Amigos da Arte de Buenos Aires.8 Na verdade, o arquiteto passou cerca de três meses em excursão por cidades latino-americanas, período em que também visitou o Rio de Janeiro. Em sua primeira visita à cidade portenha, Corbusier elaborou um estudo que propunha a execução de uma plataforma de concreto sobre pilotis que faria a interligação entre os dois territórios: cidade e porto. Aproveitando o desnível da barranca entre a cidade e seu porto, ali o arquiteto imaginou a construção de um novo centro de negócios para a cidade, em um terreno artificial, que não eliminaria o antigo.

O entusiasmo argentino com o projeto de Le Corbusier foi grande e, na década seguinte, o arquiteto elaborou um plano diretor para toda a cidade. O plano, concluído em 1938, evocava as ideias apresentadas em 1929 e propunha uma remodelação de 24 quadras na direção norte-sul e de outras 27 quadras na direção Leste-Oeste. Além desta remodelação, e seguindo os preceitos do urbanismo modernista, propunha a construção de autopistas de integração, além daquela que chamou Citté des Affaires, o grande centro empresarial sobre o Rio da Prata desenhado em 1929.

Para a área do Porto Madero, o plano diretor corbusiano propôs uma ocupação esportiva, recreativa e administrativa de alta densidade. Com isso, pretendia-se promover a recuperação da linha de costa abandonada e escondida pela implantação dos galpões do antigo porto. O resgate da ribeira do Rio da Prata, talvez seja um dos pontos mais importantes da proposta corbusiana e que foi fortemente aceita na cultura portenha, seguindo como tema urbano até o presente.

Enquanto a Argentina se aventurava nos ideais do urbanismo modernista, o Brasil, seguia na direção da estética art-déco, com a contratação, entre os anos de 1926 e 1930, do urbanista francês Alfred Agache. O Plano Agache, como ficou conhecido, foi o primeiro plano diretor da cidade do Rio de Janeiro e, como tal, abordou a cidade de forma global, embora o foco da atenção estivesse na região central. Em seu diagnóstico, o arquiteto identificou dois pontos que nortearam a função urbana da cidade: a função político-administrativa como capital e a função econômica como porto e mercado comercial e industrial.

Alinhado com o pensamento urbano funcionalista, Agache propôs a separação de usos por bairros, em uma organização que simulava na cidade uma estrutura corporal, na qual cada órgão exerceria uma função distinta. Assim, estabeleceu cinco zonas: uma zona central comercial, uma zona industrial na região do porto, as zonas residenciais, a zona suburbana e as zonas de espaços livres, com áreas de reservas ambientais.

A área destinada à atividade industrial se estendia desde o local onde já se localizava o porto para a direção norte, até os bairros vizinhos de São Cristóvão e subúrbios da Leopoldina. Para esta expansão, o plano indicava a necessidade do desmonte do Morro do Pedregulho e do saneamento da Enseada de Manguinhos (com a retificação dos braços de mar). Junto a este bairro industrial estaria o porto, que seria formado por cinco canais navegáveis, que delimitariam píeres dotados cada um de uma linha férrea para o embarque e desembarque de mercadorias.

Assim como o plano corbusiano, o projeto de Agache não chegou a ser implementado, apesar de ter influenciado projetos posteriores.

3º momento - o planejamento autoritário dos regimes militares

Mas seria na década de 1960 que seriam pensados grandes projetos para os portos das duas cidades. Nesta mesma década, os dois países, junto a outros da América Latina, compartilharam uma triste história, as ditaduras militares do cone sul.

A revolução cubana de 1959, despertou um crescente alarme sobre um possível modelo de revolução latino-americana. Em reação a este temor, os EUA desenvolveram aquilo que foi chamado de “política da boa vizinhança”, uma estratégia de aproximação com a América Latina com vistas a evitar a expansão do comunismo em sua vizinhança. Contudo, o caminho percorrido não foi esse. Ao longo da década de 1960, diversas ditaduras militares foram implantadas nos países latino americanos (com apoio norte americano), em um esforço para converter os exércitos desses países em aliados no combate à subversão comunista. No Brasil, Jango caiu em abril de 1964. Na Argentina, Arturo Illia seria deposto em junho de 1966 e, após um breve período democrático, Isabel Perón seria derrubada em 1976.9

Além da dimensão continental e da deposição de democracias por regimes militares, cidades latino-americanas enfrentavam então questões referentes à aceleração da urbanização e do crescimento precarizado das áreas urbanas. Em meio a essa macro dimensão, debatia-se a ocupação dos territórios centrais (ambas as cidades, Rio de Janeiro e Buenos Aires reconstruíram diversas vezes suas regiões centrais sobre si mesmas), a enorme valorização da terra urbana e a consequente expansão do capital imobiliário (a quem interessava a separação de classes no território). Todas essas mudanças levaram a uma série de intervenções que, sob o discurso de evitar o crescimento desordenado e sob a égide do autoritarismo, pretendiam reorganizar o crescimento das cidades.

No âmbito específico da questão portuária, a revolução dos contenedores forçou a ressignificação dos territórios portuários com os antigos armazéns de estocagem e as linhas de cais e guindastes, que se tornaram obsoletos. Pensadas como vazios urbanos (expressão utilizada até hoje por urbanistas), estas regiões começaram a ser tratadas como cemitérios destituídos de vida urbana. Neste sentido, as teorias de planejamento urbano passaram a trabalhar uma perspectiva de trazer de volta à vida a estes lugares supostamente mortos: começava a engatinhar a ideia de revitalização urbana. Aos poucos, a reciclagem de áreas de frente-água tornou-se prática internacional com cidades reivindicando a recuperação de suas fronteiras aquáticas como um dos principais temas do urbanismo em todo o mundo.

Estas questões estavam presentes de forma inicial nos planos diretores das décadas de 1920 e 1930, mas, foi na década de 1960 e 1970, que isso se acelerou de forma intensa e violenta, principalmente no já mencionado contexto das ditaduras militares latino-americanas. Mas como isso se deu?

As primeiras propostas de um planejamento urbano que pretendia lidar com estas questões, foram elaboradas às vésperas dos golpes militares. Buenos Aires elaborou, em 1960, o Projeto Catalinas, enquanto o Rio de Janeiro, em 1964, o Plano Doxiadis. É interessante destacar que esses dois planos diretores enxergavam as regiões portuárias não mais como portos, mas como territórios para expansão das atividades da zona central.

Com a obsoletização das estruturas portuárias e valorização das áreas centrais em virtude do esgotamento de terras disponíveis nos arredores, o território do antigo Porto Madero despertou atenção do mercado imobiliário. Em 1960, uma extensa propriedade destinada a uso portuário foi subdividida para permitir a construção de torres comerciais. O Projeto Catalinas, como era chamado, previa a construção de edificações de planta livre com 30 pavimentos. O projeto não foi construído pela grave crise econômica do período, mas já indicava uma direção.

Em 1969, Buenos Aires elaborava um novo plano diretor, o chamado Esquema Diretor do Ano 2000, elaborado por técnicos da ORDAM/CONADE.10 Para o antigo porto, o plano defendia, pela primeira vez, a ideia de preservação dos antigos armazéns, junto a um parque central metropolitano, além do prolongamento da área residencial próxima ao Dique 2. Ainda que pensasse a revitalização da região portuária, este plano propunha a construção de uma via expressa sobre um elevado, paralela à linha de depósitos de Porto Madero, reforçando a separação física entre a área central e o território portuário. Na década de 1980, a construção deste enorme elevado foi abandonada.

Em paralelo, no Rio de Janeiro, era elaborado o Plano Doxiadis, que também tinha o ano 2000 como meta. Elaborado pelo famoso urbanista grego Constantinos Doxiadis, o plano pretendia, por meio da proposição de drásticas intervenções urbanas, reafirmar a função de capitalidade de uma cidade que havia acabado de perder sua função como distrito federal.11

Para lidar com a renovação das áreas centrais e portuárias, Doxiadis propôs a construção de um novo porto no extremo oeste da cidade, junto à zona industrial. Liberadas das atividades industriais, a antiga região portuária receberia obras de grande vulto como a realização de um grande aterro para a criação de uma grande área para expansão de atividades comerciais e de lazer à beira-mar com, inclusive, um grande complexo de parques e praias.

Mas foi na década de 1970 que as propostas de planejamento autoritário para ambas as cidades se estruturaram com mais intensidade.

A década de 1970 assiste a um acirramento da violência que vinha se estruturando desde a década anterior. As ditaduras se expandem a países como Equador, Chile, Uruguai, Paraguai e El Salvador. No Brasil, em 1968, com o Ato Institucional nº 5, iniciava-se o período mais duro do regime. O AI-5 autorizava o regime a fechar as assembleias legislativas, intervir em estados e municípios, cassar mandatos, suspender direitos políticos, decretar confisco de bens, dentre outras medidas. Na prática, isso representou um incremento da violência e da repressão, com aumento significativo de prisões e tortura nos porões dos quarteis.

No caso argentino, a década de 1970 representou o retorno da ditadura após um breve período de um governo peronista eleito. Em 1976, com o retorno dos militares, além da proibição de atividades políticas, censura à imprensa, prisão de líderes sindicais e intervenção em sindicatos, seguiu-se um período de terror no qual a pena de morte foi amplamente administrada e centros de detenção onde se torturava e matava opositores foram implantados em todo o país.

No plano urbanístico, isso representou um incremento nas ações de construção de infraestrutura urbana, nos projetos imobiliários viabilizados por modificações nas legislações edilícias e na criação de áreas para expansão do capital imobiliário por meio da retirada de população mais pobre ou realização de aterros. Essas políticas urbanas promoveram um fortalecimento recíproco entre o capital da construção civil e os regimes militares. O crescimento foi tão amplo que, no caso brasileiro, representou até mesmo a internacionalização de muitas destas empresas.

Assim, a capital argentina lançou em 1971, Plano de Renovação da Zona Sul de Buenos Aires (PRUZS), um plano que propunha a recuperação da zona meridional da cidade, baseando-se na redefinição dos setores. A região sul seria, segundo o PRUZS, um grande setor de moradias e equipamentos. Já o antigo Porto Madero seria destinado à expansão do setor terciário da área central e deveria contar com edifícios de comércio, hotel e salas de espetáculos. Interessante notar que o plano não mencionava para a antiga região portuária o uso residencial, ainda que apontasse a construção de um parque metropolitano, para lazer. Por fim, para a zona ao norte do centro, estavam previstas atividades portuárias, comerciais e esportivas.

Buenos Aires ainda teria um outro plano, que lançado em 1981, expressava também o mesmo alinhamento com o capital imobiliário. Com o nome de Ampliação da Área Central, o plano explicitava sua intenção: consolidar áreas de alta centralidade. A terra para essa expansão seria disponibilizada pelos aterros e escombros das enormes demolições realizadas durante a ditadura para a construção de vias expressas, em uma área que correspondia à zona do velho porto e avançava 400 metros sobre a água do Rio da Prata.

Também na década de 1970, a cidade do Rio de Janeiro elabora um terceiro plano diretor (o Plano Urbanístico Básico - PUB-Rio) e um novo Código de Obras e Regulamento de Uso e Ocupação do Solo Urbano (Decreto 322/1976). Ambos instrumentos abarcaram questões como zoneamento urbano e definição de parâmetros edilícios e foram elaborados em uma dimensão supostamente técnica e neutra, sem qualquer debate, nem ao menos com as entidades de classe. Esses regulamentos definiram parâmetros homogêneos para toda a cidade, sem considerar qualquer particularidade local. Dentre as medidas mais polêmicas, foi definido um gabarito de 18 andares para toda a cidade, que seria regulado por uma equação que privilegiava aqueles que tinham acesso a maiores terrenos, ou seja, mais capital. Para o antigo porto, seguia-se o paradigma de expansão da área central de negócios, para onde deveriam direcionar-se atividades comerciais e serviços.

4º momento - a redemocratização e o planejamento participativo

As ditaduras militares latino-americanas tiveram seu processo de encerramento na virada para a década de 1980.

No Brasil, este processo se iniciou, concretamente, em fins da década de 1970, como resposta à grave crise econômica e ao ressurgimento do associativismo em novas formas tais como movimentos associativos de bairro, movimento negro, movimento feminista, movimentos ligados a igrejas, ou ainda, o novo sindicalismo, do qual emergiria como liderança nacional o metalúrgico Lula.

Assim, sob o slogan de “abertura lenta, gradual e segura” era promulgada em 1979 a Lei de Anistia, ato que permitiu o retorno ao Brasil e a recuperação dos direitos políticos daqueles que haviam sido exilados, inclusive importantes lideranças que estruturariam uma oposição política ao regime.12 Mas, ainda assim, mesmo com uma abertura controlada pelos militares, este não foi um período de tranquilidade: setores da extrema direita, inconformados com o processo de abertura, promoveram diversos atentados em todo o país.

O fim do milagre econômico, expressão pela qual ficou conhecido o crescimento da economia sob a égide militar, reforçou a crise do regime. Como solução imediata, e de forma a mascarar a gravidade da crise, o governo militar contratou diversos empréstimos internacionais, provocando um aprofundamento do endividamento brasileiro, que culminaria na hiperinflação da década de 1980.

O processo do fim da ditadura argentina guarda semelhanças e diferenças com o processo brasileiro. O início da década de 1980 assiste também a protestos cada vez mais numerosos pelo fim do regime militar, principalmente em reação ao assustador terrorismo de estado implementado na década anterior. Em meio ao aumento das tensões, os militares lançaram uma ousada operação visando o resgate da legitimidade do regime: a Guerra das Malvinas, ilhas ao sul do continente que estavam de posse da Inglaterra desde 1833. Em um primeiro momento a operação foi bem-sucedida e um fervor nacionalista generalizado varreu o país. No entanto, o sucesso inicial levou as forças armadas a extrapolar seus planos originais e a Argentina se viu em guerra com uma grande potência. Derrotada rapidamente, dois meses após o início da guerra, as Malvinas retornavam ao controle britânico.

Aquilo que foi imaginado para dar legitimidade ao regime militar, ironicamente, acelerou sua derrocada. As consequências políticas dessa derrota precipitaram a desintegração do regime militar argentino, que sobreviveu somente por mais um ano. Esse processo distingue drasticamente a transição para democracia argentina da experiência brasileira. Enquanto no Brasil os militares controlaram o processo de abertura e, portanto, conseguiram preservar-se de qualquer punição, na Argentina, os militares devolveram o poder sem condições de fazer qualquer acordo para não serem punidos pelas violações de direitos humanos que cometeram.

Ainda que com suas particularidades nos processos de abertura, tanto Brasil quanto Argentina viveram, na década de 1980, experiências participativas de planejamento urbano. Neste sentido, com o retorno da democracia, os problemas urbanos começaram a ser tratados também na dimensão da recuperação das dimensões simbólicas da cidade expressas em seus territórios. Assim, as transformações propostas na década de 1980 para ambos os portos tiveram seus fundamentos estruturados neste clima de transformação dos ideários urbanos.

Em paralelo, reforçava-se cada vez mais, enquanto teoria de planejamento urbano, a necessidade da revitalização de áreas urbanas degradadas com a reutilização da arquitetura reconhecida como patrimônio cultural. No entanto, ainda que os problemas tenham sido compartilhados por cidades de todo o mundo, as soluções (e equívocos) são próprias de cada caso.

Em 1985, era elaborado um novo projeto para a antiga região portuária de Buenos Aires. Havia, ao lado de Porto Madero, uma grande área desocupada resultante de um aterro executado entre os anos 1977 e 1982 para expansão imobiliária da área central.13 Para este lugar, a Proposta CPU, elaborada pela prefeitura da cidade, propôs a construção de uma reserva natural, separada em zona de recreação e zona de preservação, ambas integradas ao Rio da Prata. Este é um ponto de grande diferença entre os projetos das duas cidades aqui estudadas: para o porto de Buenos Aires houve a junção da pauta ecológica à revitalização do porto; o que não ocorreu no Rio de Janeiro. Ademais, o plano previa também a preservação e reutilização de todos os edifícios com valor histórico e cultural, dimensão esta que foi central também no porto carioca na década de 1980.

Em paralelo, no Rio de Janeiro da década de 1980, iniciava-se um forte movimento de resgate da memória da região portuária. Operou-se, então, uma aproximação entre a luta por direito à cidade e a luta por direito à memória que modificou o discurso de revitalização: ainda que mantivesse o ideário original de necessidade de expansão das atividades comerciais e de serviços da região central. Dessa maneira, as propostas apresentadas a partir da década de 1980 não propunham mais o apagamento do passado portuário, mas conjugavam renovação e preservação.

Frutos dessa articulação são legislações tais como o tombamento em 1984 da Pedra do Sal, local de grande importância para a memória do samba e da população negra. Ou ainda, entre 1986 e 1987, a realização do Projeto SAGAS,14 uma enorme ação de preservação do patrimônio cultural portuário que se estendeu pelos três bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo.

Em paralelo a essas ações, em 1985, foi elaborado um plano urbano de renovação de toda a região central que incluía também os bairros portuários, tratava-se do Projeto Rio Ano 2000, coordenado pelo arquiteto Jaime Lerner. Em uma espécie de síntese das políticas de então, o projeto propunha a reutilização das instalações ociosas do porto, a criação de um centro internacional de comércio e espaços culturais, a reurbanização do ramal ferroviário, a transformação de avenidas em calçadão de pedestres e o incentivo à preservação do casario centenário.

5º momento - a revitalização dos portos e o planejamento estratégico neoliberal

Mas a década de 1980 não foi somente um período de redemocratização, foi também o período de uma das mais graves crises econômicas enfrentadas pela América Latina; crise da qual, ambos países, Brasil e Argentina, sairiam mais próximos do referencial neoliberal.

Após o agravamento do endividamento pelos sucessivos empréstimos realizados pelo governo militar de modo a sustentar a ilusão do milagre econômico, em 1983, o Brasil ia ao FMI negociar a sua grave situação. A situação, que já era grave no início da década, chegou a um patamar insustentável ao seu fim, quando o Brasil recebeu o triste título de maior dívida externa do mundo, com cerca de 100 bilhões de dólares e vivenciou a maior inflação da história brasileira, acima de 160% ao ano; além de uma taxa de desemprego de mais de 3 milhões de brasileiros, cerca de 10% da população à época.

Em 1988 era promulgada uma nova Constituição Federal brasileira, a chamada constituição cidadã e em 1989 seriam realizadas as primeiras eleições diretas para a presidência da república desde 1960. Venceu o pleito Fernando Collor de Mello, candidato neoliberal, ex-filiado ao partido dos militares, que defendia o discurso da eficiência e da moralidade administrativa.

A história da Argentina não foi muito diferente. Entre 1978 e 1982, a dívida externa subiu de 6 bilhões para 43,6 bilhões de dólares. No início da década de 1980, 28 bancos decretaram falência e, em 1983, o país apresentava a maior inflação do mundo.

Em 1989, o país realizava sua segunda eleição democrática para a presidência. Saiu vitorioso do pleito o candidato justicialista (corrente herdeira do peronismo) Carlos Menem. Após eleito, Menem surpreendeu a todos ao se aproximar do referencial neoliberal, apoiando um programa de austeridade fiscal, privatização e liberalização econômica.

A aproximação de ambos os países com o neoliberalismo refletiu-se no planejamento urbano para suas cidades, na forma da adoção do chamado planejamento estratégico.

O planejamento estratégico se hegemoniza na década de 1990, enquanto ferramenta de planejamento urbano a partir de um discurso que destacava a necessidade de um reposicionamento das cidades em termos globais. Ele levou à gestão pública conceitos do pensamento neoliberal tais como eficiência empresarial e flexibilidade. Foi a partir desses planos que se estruturaram as ações mais expressivas de revitalização das regiões portuárias das cidades do Rio de Janeiro e de Buenos Aires. É interessante destacar que ambas as cidades tomaram como referência a política implementada na cidade de Barcelona.15

Buenos Aires iniciou a corrida pela revitalização de seu porto segundo os referenciais do planejamento estratégico um pouco antes do Rio de Janeiro. Em 1986, era lançado, como parte de um Convênio de Cooperação e Intercâmbio com a Prefeitura de Barcelona firmado no ano anterior, um Concurso de Vinte Ideias para Buenos Aires.

Em colaboração com arquitetos catalães, foi elaborado um plano diretor para a área que visava reforçar o papel da central enquanto local dos setores terciários e residencial, além da manutenção da atividade náutica esportiva nos diques, do acesso viário pelas pontes giratórias e da reserva ecológica como setor independente. O trabalho foi apresentado ao público em julho de 1989. Em três anos, a operação remodelou 25 edifícios e interveio em 45 terrenos vazios, além de incorporar um novo capítulo ao código de ordenação urbano, que passou a identificar Áreas de Proteção Histórica (APH).

Logo após a apresentação de seus resultados, também em 1989, era firmado um outro convênio entre o Mistério de Obras e Serviços Públicos da Nação, o Ministério do Interior da Nação e a Municipalidade de Buenos Aires. Esse convênio fundou, ao fim daquele ano, a Corporação Antigo Porto Madero S.A., que assumiu a gestão urbana da área. Sua criação veio associada a uma operação fundiária que passou às suas mãos a gestão dos terrenos portuários, viabilizando a revitalização do local - uma solução semelhante seria implantada no Rio de Janeiro na década de 2010, mas isso será tratado mais à frente no texto.

A partir da implantação dessa gestão público-privada, o processo ganhou celeridade incomum e, em 1990, iniciar-se-ia a formulação do Plano Estratégico para o Antigo Porto Madero, ainda com apoio dos arquitetos espanhóis.

Em 1991, seria lançado o Concurso Nacional de Ideias para o Porto Madero, que recebeu projetos para a recuperação da linha de antigos galpões portuários. Também em 1991, iniciou-se a Operação de Reconversão do Porto Madero, uma operação financeira que, após uma sucessão de processos licitatórios vendeu propriedades outrora portuárias, de modo a financiar o investimento em infraestrutura de urbanização a ser executada pela Corporação - medida semelhante seria utilizada no Rio de Janeiro. Em 1996, iniciava-se a segunda etapa da intervenção, com o desenvolvimento do setor leste da linha de diques. Em contraposição ao lado oeste, caracterizado pela preservação do patrimônio edificado, no lado leste há predominância de construções modernas.

Mesmo com a enorme recessão econômica enfrentada pelo país ao fim da década de 1990, o projeto de revitalização da região do antigo porto seguiu e continua em franca expansão.

Já a cidade do Rio de Janeiro percorre uma trajetória um pouco diferente. Ao contrário de Buenos Aires, que inicia o processo pela revitalização da região portuária e central, o Rio inicia pela elaboração de seu primeiro plano estratégico para toda a cidade. Denominado “Rio sempre Rio. As cidades, a cidade”, foi lançado em 1996, sob a coordenação da prefeitura em parceria com consultores catalães, que também haviam trabalhado em Barcelona.

Assim como o documento portenho, o plano carioca pregava o fortalecimento das áreas centrais com estímulo ao uso habitacional e cultural. Ademais, o plano expressava especificamente a vocação da cidade para receber grandes espetáculos e eventos em espaços públicos, o que levou-a a candidatar-se a uma série de megaeventos como, por exemplo, os Jogos Pan-americanos e Olímpicos.

Para a região portuária, o plano propunha a consolidação do Porto de Sepetiba no extremo oeste da cidade, de modo a converter o Rio de Janeiro em um polo de integração ao Corredor Atlântico do Mercosul. Já para a região do antigo porto, propunha-se, mais uma vez, a revitalização urbana. Assim, de modo a recuperar os espaços históricos do porto, foram propostos dois grandes projetos: o projeto ProRrio e o Projeto de Reabilitação de Cortiços.

O projeto ProRio foi um Projeto-piloto do Programa de Recuperação Orientada que teve como objetivo intervir globalmente numa localidade com ambiente histórico, que possuísse potencial turístico e residencial. O projeto recebeu cooperação técnica do governo francês e contou com a participação de especialistas em patrimônio cultural. Já por meio do Projeto de Reabilitação de Cortiços, que vinha sendo implementado desde 1994, a prefeitura comprava os imóveis, modernizava suas instalações e as incluía no aluguel social, voltado à população de baixa renda.

Apesar de interessantes, nenhum dos dois projetos teve qualquer impacto na transformação da região portuária. Posteriormente, o plano estratégico se converteria em uma ferramenta de governo, passando a ser reelaborado a cada gestão municipal.

Mas foi na década de 2010 que a revitalização do antigo porto do Rio de Janeiro começaria a se materializar. Apresentada na forma do projeto Porto Maravilha, iniciou-se uma grande operação urbana iniciada em 2011 que, por meio da venda de potencial construtivo, viabilizou a realização de grandes intervenções no território dos bairros portuários imprimindo na região uma forte marca turística com a construção de grandes equipamentos culturais e bulevares para passeio.

A implementação da operação urbana de revitalização do porto do Rio de Janeiro foi viabilizada na década de 2010, em boa parte, em função de um alinhamento político entre as esferas de governo federal, estadual e municipal que permitiu a realização de uma operação fundiária que passou a uma empresa municipal de capital misto, a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (Cdurp), a gestão dos terrenos portuários federais - operação semelhante àquela realizada em 1989 e que criou a Corporação Porto Madero S.A. Munido de recursos criados a partir da operação urbana, o projeto resgatou as ideias da década de 1990 e promoveu a recuperação da infraestrutura urbana, dos transportes e do patrimônio cultural da região portuária. O principal objetivo da reurbanização era a melhoria das condições habitacionais e a atração de novos moradores, assim como de empresas.

Dentre as principais intervenções implementadas destacam-se a construção de uma rede de 28 km de transporte sobre bondes, a derrubada de uma enorme autopista elevada que segregava a cidade da sua frente marítima, a construção de grandes equipamentos culturais como o Museu de Arte do Rio e o Museu do Amanhã, a abertura de vias expressas e a urbanização de uma grande área de lazer conhecida como Orla Conde, em homenagem aquele arquiteto que havia coordenado o primeiro plano estratégico.

Considerações finais

Este texto explorou as transformações experimentadas pelas cidades do Rio de Janeiro e de Buenos Aires no que tange à relação cidade-porto e aos vários planos urbanísticos que visaram sua modernização urbana. Ao longo do texto, observamos, nos cinco momentos metodologicamente estabelecidos, diferenças e paralelos no pensamento do planejamento urbano associado à política vivenciada pelos dois países e suas capitais. Ao fim deste percurso, levantamos a importância do estudo do planejamento urbano da América Latina de forma integrada, uma área não muito explorada na historiografia brasileira e com muito a se investigar.

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Cezar Teixeira Honorato / cezarhonorato@gmail.com

Professor Catedrático em História Econômica e Social do Instituto de História da UFF, possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense (1983), mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense (1987) e doutorado em História Econômica pela Universidade de São Paulo (1994). Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase em Políticas Públicas, atuando principalmente nos seguintes temas: história econômica, história urbana e industrial e História Portuária.

Juliana Oakim / juliana.oakim@gmail.com

Arquiteta graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2003) e historiadora pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2008). Possui especialização em Sociologia Urbana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2012) e mestrado e doutorado em História Social pela Universidade Federal Fluminense (2014 e 2019, respectivamente). Tem experiência na área de Patrimônio Cultural e História, com ênfase em História do Rio de Janeiro, seus planos urbanos e suas favelas.


1 A este respeito ver Honorato (2022).

2 Desde a década de 1860, a cidade de Buenos Aires já se configurava como capital provisória do país. Mas, foi em 1880, que ocorreu a federalização da cidade e a consequente separação da província de Buenos Aires, que passou a ter como capital a cidade de La Plata.

3 Cabe destacar que o porto do Riachuelo, anterior ao porto próximo à Praça de Mayo, manteve seu funcionamento e sua proximidade com as águas.

4 Formada por profissionais filiados ao Clube de Engenharia, a Comissão de Melhoramentos foi presidida pelo engenheiro Francisco Pereira Passos que, posteriormente, entre os anos de 1902 e 1906, tornar-se-ia prefeito do Distrito Federal e implementaria uma série de intervenções no espaço urbano da cidade (a serem tratadas mais à frente neste texto).

5 A respeito das obras do Porto do Rio de Janeiro, o trabalho mais recente é de Mantuano da Fonseca (2022).

6 Alfred Hubert Donat Agache era um conhecido arquiteto e urbanista francês. Foi fundador da Sociedade Francesa de Urbanistas, onde atuou por mais de vinte anos. Elaborou planos diretores em cidades por todo o mundo. Já o francês Charles-Edouard Jeanneret-Gris, conhecido como Le Corbusier, foi um dos mais importantes arquitetos modernistas de sua geração. Sua produção e ideário foram referência na arquitetura e urbanismo em todo o mundo.

7 Antes do plano modernista de Le Corbusier, foi desenvolvido entre 1923 e 1925 um projeto para a cidade de Buenos Aires conhecido como Plano da Comissão Estética Edilícia. Este projeto propunha a remodelação de toda a área central, com a abertura da Praça de Mayo (e derrubada da casa de governo) até o Rio da Prata e com a construção de arranha-céus em ambos os lados, junto a avenidas e jardins monumentais. Este grande projeto, do qual permaneceram somente as avenidas diagonais, construídas entre 1914 e 1931, compartilhava com o projeto de Agache para a capital brasileira a estética art-déco. É interessante notar que este projeto desenvolvido na capital argentina com arquitetos locais tinha exatamente a estética que o urbanismo corbusiano criticava.

8 Quando visitou o Rio de Janeiro, Le Corbusier chegou a rascunhar algumas ideias para a cidade. Mas foi em uma edificação que o arquiteto conseguiu imprimir sua marca. Tratava-se do projeto do edifício sede do Ministério da Educação e Saúde (MÊS), uma das grandes marcas arquitetônicas do varguismo estadonovista. Foi no projeto do MES a primeira vez que os chamados cinco pontos da arquitetura moderna, defendidos pelo arquiteto francês, foram implementados em uma edificação de grande porte. O Brasil teria sua experiência de urbanismo modernista segundo o paradigma corbusiano na década de 1960, com a construção da nova capital federal, Brasília.

9 Honduras teve seu governo democrático deposto em 1963. Bolívia em 1964. A República Dominicana em 1966, após uma intervenção militar direta dos EUA. Panamá e Peru em 1968. Equador em 1972. Chile, Uruguai e Paraguai em 1973. E, finalmente, El Salvador em 1979.

10 ORDAM é a sigla para a Oficina Regional del Area Metropolitana, enquanto CONADE para o Conselho Nacional de Desenvolvimento.

11 Em 1961, o distrito federal foi transferido para Brasília, cidade modernista recém-inaugurada na região centro-oeste do Brasil.

12 A lei de anistia concedeu também o perdão aos integrantes do aparato repressivo e eliminou a condenação daqueles envolvidos na tortura a presos políticos. Ademais, no mesmo ano, também foi autorizado o retorno dos partidos políticos por meio da Lei Orgânica dos Partidos.

13 Em junho de 1986, o grande aterro foi delimitado como zona de reserva ecológica.

14 SAGAS é um acrônimo feito a partir dos nomes dos bairros que integraram o projeto: Saúde, Gamboa e Santo Cristo.

15 A experiência de planejamento estratégico de Barcelona em fins da década de 1980 tornou-se paradigmática em todo o mundo, não somente pelo modelo de gestão urbana do planejamento estratégico, mas também pelas mudanças na paisagem urbana e pelas transformações econômicas promovidas na cidade.