No caminho: técnica, movimento e ritmo na formação de cães-guia


Olivia von der Weid

Departamento de Antropologia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil.

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0433-6890

Recibido: 30 de septiembre de 2021. Aceptado: 30 de diciembre de 2022.

Resumo

As habilidades físicas e corporais de cães-guia são social e criativamente desenvolvidas por meio das relações entre cães e pessoas que acontecem em diferentes ambientes ao longo dos seus dois primeiros anos de vida. Durante as fases de socialização e treinamento, tanto o organismo do cão quanto a sua qualidade de guia estão se desenvolvendo juntos. O mesmo processo que forma o cão como guia também habilita seres humanos a uma nova identidade social e profissional – a de treinador e instrutor de cães-guia. No artigo apresento uma reflexão etnográfica sobre o processo de formação de cães-guia, uma tecnologia assistiva animal desenvolvida para facilitar a mobilidade da pessoa com deficiência visual. Focando especialmente na fase de treinamento, procuro compreender a trajetória das transformações, o desenrolar dos eventos e as mudanças de movimento que vão tornando certos cães aptos a se “graduarem” como guias. A técnica de guiar é aqui entendida como resultado de uma certa relação entre movimentos e coisas, abarcando ferramentas, corpos humanos e caninos e seus deslocamentos em diferentes ambientes.

Palavras-chave: relações interespecíficas, técnica, movimento, corpo, cegueira.

On the Path: Technique, Movement, and Rhythm in
Guide Dog Training

Abstract

The physical and bodily skills of guide dogs are socially and creatively developed through the relationships between dogs and people that take place in different environments throughout their first two years of life. During the socialization and training phases, both the dog’s body and its guide quality are developing together. The same process that trains the dog as a guide also trains human beings to a new social and professional identity - that of guide dog trainer and instructor. In this article I present an ethnographic reflection on the process of guide dogs qualification, an animal assistive technology developed to facilitate the mobility of the visually impaired person. Focusing especially on the training phase, I try to understand the trajectory of transformations, the unfolding of events and the changes of movement that make certain dogs able to “graduate” as guides. The guiding technique is understood here as the result of a certain relationship between movements and things, encompassing tools, human and canine bodies and their displacements in different environments.

Keywords: interspecific relations, technique, movement, body, blindness.

Introdução

As associações entre seres humanos e cães que acontecem ao longo do processo de formação de um cão-guia desafiam os limites corporais e as fronteiras de sujeito e agência interespécies. Afinal, quando vemos uma “dupla” trabalhando na rua, quem está se movimentando, a pessoa cega ou o cão? Quem começa o movimento? Quem é movido?

Na primeira visita ao CTCG1 acompanhei o trabalho do instrutor João, que realizava o final da adaptação de Paula e Darwin. A atividade proposta era uma caminhada semi-solo com ponto, o instrutor acompanhando à distância. Estávamos na Avenida Brasil, a mais movimentada de Balneário Camboriú, uma cidade costeira localizada na região Sul do Brasil. Nos encaminhávamos para um shopping há 8 quarteirões de distância, cruzando diversas ruas transversais e a própria avenida. João prende a base do walkie-talkie e o microfone na roupa de Paula. Ela coloca o arreio em Darwin. Ele a instrui sobre o percurso e diz, em tom de brincadeira, que era para se manterem vivos. A partir dali era só os dois, interviria o mínimo possível. Alerta que ela deve ter cuidado e usar bem sua audição, para garantir se é seguro atravessar. Nos posicionamos há uns 20 metros de distância, mantendo contato visual, mas sem que Darwin pudesse nos ver. Movimento de pedestres nas duas direções, placas, postes e lixeiras no meio da calçada, enquanto na avenida os carros não paravam de passar, compondo o ambiente sonoro. A dupla já estava nos seus últimos dias e o momento agora era o de “abandono”, como é chamado na “Orientação e Mobilidade”2 – quando o instrutor se afasta para deixar a pessoa cega literalmente “se virar”, com o auxílio de sua tecnologia assistiva – seja a bengala ou o cão.

Em determinado momento Darwin está caminhando com Paula e na frente deles há um poste. Um pouco antes, na lateral direita, uma bicicleta estacionada numa grade avança com uma das rodas no meio da calçada. Mais à frente, entre o poste e o muro das casas, um grupo de três mulheres conversam em pé, obstruindo o caminho. À esquerda do poste, próximo à rua, havia uma pequena passagem, mas dois metros à frente um orelhão na esquina obrigaria o cão a fazer uma manobra arriscada, caso escolhesse aquele percurso: desviar do poste para, em seguida, contornar o orelhão a uma amplitude suficiente larga para Paula não bater com a cabeça na cúpula e logo procurar o meio fio, pois já havia uma nova rua a ser atravessada. João e eu permanecemos em silêncio, atentos, esperando o que aconteceria em seguida.

Darwin avança com seu andar elegante, um rebolado suave. Desvia da roda da bicicleta e vai em direção ao poste para evitar o grupo de mulheres. Atravessa pela passagem estreita à esquerda e em seguida pega uma diagonal para o centro da calçada. João fala “direto para o meio fio” no walkie-talkie, ele recebe as instruções de Paula e caminha, termina de contornar o orelhão a uma distância exata para que ela não batesse a cabeça, muito embora ele mesmo estivesse livre do perigo. Se aproxima do meio fio e para com as duas patas dianteiras paralelas à calçada, de frente para a próxima rua que iriam atravessar. Vibro internamente, deslumbrada com a performance da dupla. Parecia uma dança. Me pergunto se ela teria ideia do que acabara de passar, dos riscos e da confiança com que Darwin a conduziu naquele trecho. Com o comentário entusiasmado de João – “muita recompensa!” –, percebo que não vibrei sozinha. Ele sorri, orgulhoso, e depois elogia as escolhas do cão: Darwin consegue ser certeiro nas decisões, são poucos os cães que executam manobras como aquela, com todos os obstáculos e estímulos no caminho, com tanta precisão.

***

O acontecimento marca a etapa final da adaptação, muito bem sucedida, entre Paula - uma pessoa cega que já era usuária de cão-guia e estava recebendo seu segundo cão -, e Darwin - cão-guia cor chocolate, da raça flat coated retriever. A adaptação é a coroação de um processo de dois anos de duração3, fase em que a pessoa cega será treinada nas técnicas de mobilidade com cão-guia, pois o próprio cão já está “graduado”. O que se observa é se aquele cão e aquela pessoa conseguirão trabalhar bem juntos, ou seja, se formarão uma “dupla”. Para alcançar tal grau de precisão nos movimentos e na atividade de guia um cão como Darwin precisou passar pela fase de treinamento, e responder positivamente – criativamente – a ela.

A consideração, nos marcos normativos recentes, do cão-guia como uma “ferramenta de acessibilidade” ou “tecnologia assistiva” que, tal como a bengala branca, auxilia na mobilidade de pessoas com deficiência visual parece, num primeiro momento, bastante tributária da teoria cartesiana que considera os animais como objetos autômatos (Lestel, 2001). Mas, se pensarmos na centralidade da noção de técnica ou tecnologia que, pelo menos desde Mauss (2003), figura em análises que buscam desvelar o estatuto do humano e as distintas formas de sociabilidade, podemos dar outro tratamento à ideia de que um cão seja considerado um organismo dotado de tecnologia.

Seguindo uma perspectiva maussiana, a técnica de guiar é aqui entendida como resultado de uma certa relação entre movimentos e coisas, abarcando ferramentas (arreio e guia), corpos humanos e caninos e ambiente (Mauss, 2009, Leroi-Gourhan, 1984, Sautchuk, 2015). O treinamento pode ser entendido como uma “cadeia operatória” ou um sistema técnico que envolve um conjunto de etapas e uma série encadeada de ações (Mauss, 1979) que vão propiciando ao cão o desenvolvimento de uma “habilidade” (Ingold, 2015:108). Como sugere Schlanger (1991:122), a noção de “cadeia operatória” convida o pesquisador a se interessar pelo devir daquilo que estuda e a fazer do próprio devir um sujeito da pesquisa.

Focando especialmente na fase de treinamento, procuro compreender a trajetória das transformações, o desenrolar dos eventos e as mudanças de movimento que vão tornando certos cães aptos a se “graduarem” como guias4. Considero, portanto, a relação entre o desenvolvimento da habilidade técnica de guiar e o processo de construção de um ser que, se não é pessoa, possui estatuto social bem definido5. O social não é aqui entendido como domínio especial da realidade, mas como um movimento peculiar de associação, um princípio de conexões que permitem ao cão adquirir um lugar e uma agência específica na composição do coletivo (Latour, 2012). A questão não é tanto entender o que é um cão-guia, mas compreender como um cão se torna guia, de que maneira ele ganha existência no universo social, por meio do acompanhamento do trabalho dos treinadores e de todo o aparato técnico e pedagógico que os forma.

O artigo é resultado de uma pesquisa antropológica que desenvolvi entre 2016 e 2018 no CTCG6, e que procura apresentar a complexa realidade do cão-guia a partir das relações que o permitem vir a ser no mundo, como um acontecimento que está “entre” - justamente no hífen que relaciona os dois lados, animal e humano. Busco tornar sensíveis atividades e interações que costumam ser invisíveis e silenciosas, revelando habilidades corporais e saberes forjados na experiência cotidiana de interação entre pessoas, coisas e cães no centro de treinamento e seus arredores. A proposta é iluminar os laços íntimos entre ação e agenciamento (Despret, 2013), as relações de força e confiança que são criadas para tornar certos seres caninos aptos a tornarem certos seres humanos mais capazes.

Da casa ao canil

O início do treinamento é marcado por um ritual: a cerimônia de entrega dos cães pelas famílias socializadoras. Elas ficam, em média, um ano e meio com o filhote, responsáveis não só pelo seu cuidado e bem estar, mas também por, literalmente, socializa-los7. No auditório acarpetado do centro de treinamento se reúnem as famílias que socializaram os cães da ninhada C e D. O evento é carregado de emoção, especialmente para quem passou pela experiência de ter sua vida “atada” a outro ser, que sincronizou por todo esse período seus ritmos e movimentos tão básicos como caminhar na rua, com o ritmo de caminhada de um quadrúpede; que experimentou ser “lido” por ele em sua rotina, intenções e mesmo sentimentos8. A intensidade da atmosfera é diretamente proporcional à demanda de tempo e envolvimento emocional na socialização do filhote. Na ocasião as famílias também devolvem os itens do “kit” que receberam (coleira, capa, tigelas para alimentação, apito, brinquedo, caixa para dormir). Terminado o ritual, os cães serão levados, um por um, para o canil. Os socializadores se despedem pois, a partir deste momento, não devem encontrar mais com o cão durante todo o período de treinamento. O reencontro final se dá apenas em outro rito, quando o cão será entregue pelo socializador para a pessoa com deficiência visual com quem trabalhará, caso tenha sido bem sucedido no treinamento e na adaptação.

Embora expressem as emoções de formas distintas, o choque da passagem e a intensidade do evento são sentidos tanto pelo socializador quanto pelo cão. A primeira fase do treinamento, a “adaptação ao canil”, é um ponto crítico do processo:

Eles (os cães) sentem, sentem muito. Ih, aí aparecem os mil comportamentos que vem da ansiedade de separação, cães que tinham uma ligação muito forte com o socializador, cães que sentem muito a mudança da casa para o canil, tendem a apresentar coprofagia, que é comer cocô. Aí destrói as coisas dentro da baia, comem a boia, comem o bebedouro, cava a parede... enfim, milhões de comportamentos, ficam mordendo as grades de ferro, aquele comportamento de estresse grande, latem, uivam à noite, é bem sofrido para eles essa mudança. Alguns sofrem mais, outros se adaptam mais rápido, varia muito de cão para cão, cada um é um indivíduo único. (Renato, aluno do curso de formação em treinador e instrutor de cão-guia)

A passagem da socialização ao treinamento representa um corte repentino na trajetória do cão, que sai da vida “em família” para a vida “no canil”. A transição foi comparada por um dos treinadores à experiência de um cadete ao iniciar o serviço no exército. A comparação é útil para entender a dimensão fenomenológica da experiência do canil: a nova socialização em regime de internato, os horários rigidamente controlados, o foco na disciplina e na hierarquia, a diminuição da intensidade e do peso dos vínculos familiares anteriores, a demanda física envolvida no treinamento (Castro e Leirner 2009). Os cães levam um tempo para se acostumar com a nova rotina. As duas primeiras semanas são o momento mais dramático:

João: você vê assim a energia do canil é muito esquisita, sabe? Muito esquisita. Quando eles chegam. Foram duas semanas para eles... sabe? Para todos, assim, para equalizar a coisa.

O: você acha que ele também precisa desapegar?

J: precisa, precisa. De fato. Pô, ele estava sozinho vivendo dentro de uma casa, agora está vivendo com um monte de cachorro dentro de um canil? É complicado. Lá na Guiden Eyes eles aposentam9 cães que não... tem cão que não se adapta. A Gil e a Glória foi um transtorno, foi um mês. Uivavam a noite inteira. Complicado... Um cão que está do lado do humano o tempo todo, que foi criado assim, com uma afetividade muito grande. Então a Gil, eu trazia (do treino) e deixava no canil. Se ela via um de nós que ela tem uma relação mais próxima, se ela não visse ela chegava e ficava até tranquila, mas se ela visse eu ou o Marcelo ou outra pessoa passando, ela já começava a gritar ali, e aí vai. Foi uma situação. (...) Durante o treinamento tem que dormir no canil, tem que ficar ali. Porque ali também ele vai desenvolver uma relação de matilha.

Além da interação no canil, durante toda a fase de treinamento os cães terão um momento em sua rotina chamado pelos treinadores de “liberdade assistida”. O termo se refere aos períodos diários, normalmente realizados pela manhã, em que o cão é livre para “ser cão”, isso é, será solto em uma área cercada, chamada de tear, junto com outros cães, onde podem cheirar o gramado, correr, brincar, interagir. A palavra “assistida” indica que mesmo nesses momentos não se deve afrouxar da disciplina, o treinador deve ter controle dos cães e exercitar com eles a obediência por meio de brincadeiras. Na primeira semana o período é decisivo, pois será o momento em que os cães formarão a nova “matilha”, estabelecendo os elos e as hierarquias internas àquele coletivo. Cada treinador deverá formar a sua própria “matilha”10 com os cães que acompanhou na socialização e que agora chegam para o treinamento, e nela ele próprio deverá exercer a posição de “liderança”. Kohn (2007) nos lembra que, historicamente, os cães sempre foram animais altamente sociais que viviam em matilhas com hierarquias bem estabelecidas de dominância. O que acontece no treinamento espelha o processo histórico de domesticação dos cães, envolvendo a substituição, no ápice da hierarquia, de um cão dominante por um líder humano, que também deve saber como comunicar para seres caninos essa liderança.

Linguagem gestual: comunicação interespecífica

A atividade de guiar não é apenas uma imposição humana a um mundo canino, mas uma prática que resulta da aprendizagem e parceria interespécie. Nela, o modo de fazer mundo de cada animal – cães e humanos - se cruza, interconecta, formando um circuito que põe em relação os seres viventes que dele participam. Na primeira fase da vida, a socialização, o cão vive em um universo fundamentalmente humano, frequentando alguns ambientes que outros cães não frequentam, aprendendo a obedecer a regras e critérios estabelecidos para ele pelos humanos que o cercam. Na etapa seguinte o convívio no canil e na “liberdade assistida” vão fortalecer um “mundo de sentido” (Uexkull, 1982) que é próprio da espécie canina. O processo como um todo resultará na participação e na entrada dos cães em um universo social predominantemente humano, altamente carregado de significados humanos. Só será bem sucedido, no entanto, na medida em que os humanos que dele participam conseguem se engajar e aprender a se comunicar com o cão em uma linguagem significativa para seres caninos.

Mead, ao analisar a linguagem como parte do comportamento social, entende que nela há um número indefinido de signos e símbolos que não são traduzíveis para o discurso articulado, mas que podem ser lidos por meio do comportamento, da conduta ou da atitude corporal do outro. Ao discutir como se constitui uma “conversação de gestos” o autor traz o exemplo de uma conversa corporal de gestos entre cães:

cães que se aproximam uns dos outros em atitude hostil desenvolvem uma linguagem de gestos. Eles andam ao redor uns dos outros, rosnando e mordendo, esperando por uma oportunidade para atacar. Aqui temos um processo no qual a linguagem pode emergir, ou seja, uma certa atitude de um indivíduo que chama por uma resposta do outro que, por sua vez, provoca uma aproximação diferente e uma resposta diferente do outro, e assim indefinidamente (Mead, 1934:10, tradução livre).

Mead entende que a ação comunicativa, enquanto ação organizada, já está presente no ato social de ajustamento dos animais, quando estes desenvolvem ações estimuladas por atitudes ou gestos do outro, o que seria o princípio de uma linguagem. O sucesso do treinamento reside na possibilidade de os treinadores estabelecerem com os cães uma relação de parceria, liderança e afetividade. Para isso precisam se comunicar com eles na sua linguagem, entrar em um regime particular de movimento e ação que possa ser significativo para eles. Seguindo os apontamentos de Uexkull (1982), para se acessar o ponto de vista canino, sua subjetividade ou “mundo próprio”, dois elementos são fundamentais: o que o animal consegue perceber e como ele age no mundo. A lógica da matilha seria a forma como o mundo se constitui dentro do circuito de percepção e ação de um cão:

J: na liberdade assistida, quando você solta, eles começam ali a pular um em cima do outro e estabelecer essa relação de quem manda, né, ser cachorro. Eu fico ali para garantir que aquilo não vai gerar uma briga. Agora eles estão ali, se escorando um no outro, dá uma rosnada e tal, ele está sendo cachorro, está se expressando, está mostrando para o outro, eles estão estabelecendo... porque quando eu chego com 3 ali é uma matilha, quando eu coloco numa tear 20 cachorros, aí é outra matilha. Aí eles têm que estabelecer a relação deles, e eu estou ali dentro para garantir que não vai ter briga. Se começar traços de agressividade eu vou lá e separo, mas eu deixo eles ali e eles vão criando uma relação entre eles, vai abaixando a energia, vai ficando tranquilo, entendeu?

A importância da liberdade assistida é propiciar um meio para que os cães formem sua “ambiência” que, na percepção dos treinadores, está diretamente relacionada ao estabelecimento de uma hierarquia correspondente à maior ou menor autoridade de cada ser individual canino no grupo. Cada cão se insere no coletivo a partir do seu tipo estrutural morfológico e seu regime de percepção e ação, que resultará em uma gama de posições em uma gradação específica, que vai da submissão à dominância. Os treinadores precisam aprender a forma corporal de se dirigir aos cães e isso é condição para o próprio treinamento. A aprendizagem do “ponto de vista” e da expressividade canina se dá no convívio com o cão que o aluno em formação para treinador socializa, além dos outros cães que acompanha em fase de socialização, mas também pela prática de observação atenta da interação dos cães na “liberdade assistida”.

J: você vai vendo a forma como esse cão reage na matilha, se ele tenta se impor, se ele aceita, na expressão corporal dele. Ele é um cão que quando chega no outro levanta o corpo, levanta as orelhas, a cauda, eriça o pelo e chega demonstrando sinal de poder? É semelhante ao ser humano, o ser humano quando quer se mostrar ele se infla todo, aumenta o escoro corporal dele, pá... ele se mostra... aí tem outro dominante também, aí eles vão ficar naquele jogo de ego, jogo de poder e alguém vai se sobressair. O cão submisso, ele já entra e já vai se diminuir, vai se contrair, abaixar as orelhas, meter o rabo no meio das pernas, se jogar no chão, lamber a boca do cão dominante. Um cão quando lambe a boca do outro é sinal de submissão, quando se joga de barriga para cima, isso aí é o sinal máximo de submissão, está mostrando as vísceras dele, completamente indefeso. Então quando você está convivendo com os cães você vai vendo qual é mais dominante, qual é o mais submisso.

Durante o processo não apenas as ações dos cães serão significativas para determinar as posições de cada ser canino no grupo, mas todo o empreendimento dependerá do treinador se inserir, por meio de suas ações, na posição de liderança na relação com o grupo de cães que irá treinar. João observa que os próprios cães fariam uma leitura dos humanos a partir da lógica da dominação e da submissão, se relacionando distintamente com pessoas que apresentam traços de uma ou outra característica. Estabelecer a relação de liderança é um passo crucial, pois é ela que autorizará os treinadores a “falar” com os cães e ser “ouvido”. Consequentemente, por meio comunicação de gestos estabelecida, fazer novas proposições ao devir canino (Despret, 2004). Para isso ele precisa aprender a ser habitado pelo mundo canino, ativar seu ponto de vista usando seu próprio corpo como meio técnico, como ferramenta, para conhecer o cão e se relacionar com ele. A liderança não se estabelece pela simples vontade, é preciso que o treinador a corporifique, desenvolva um determinado modo de engajamento com os cães que os levem a reconhecer nele - e respeitar -, sua autoridade.

A fala é um aspecto crucial na relação com o cão, mas o que comunica não são exatamente as palavras e sim como se diz – a entonação da voz e a postura corporal ao enuncia-las. A fala é significativa enquanto ato corporal ou gesto acústico, e as distintas reações do cão em resposta aos diferentes estímulos vocais permite que o treinador vá adquirindo um controle mais fino dos aspectos significativos dessa linguagem corporificada (Csordas, 2008). Trata-se de um tipo de significado imanente à conduta que, no entanto, comunica e é compreendido.

J: como é que a gente comunica com ele? É na linguagem dele, já que ele não vai falar na nossa linguagem. E a linguagem dele é 80% a 90% corporal, a expressão corporal. Ele não tem linguagem verbal, mas entende entonação de voz. Por exemplo se você falar “não, não, não” (tom de voz baixo e suave) e “não” (tom de voz firme e grave). A palavra é a mesma, ela não tem um significado para ele, mas a entonação da voz. Se eu chegar para o cachorro “senta, senta, senta” (tom de voz médio e suave), ele vai olhar, hum... (expressão de desdém). “Ssssenta” (firme, com o “s” arrastado, tom de voz grave). Olha o meu olho. “ssssenta”. Meu corpo, projetei o meu corpo - “sssenta”, a minha entonação.

A linguagem corporal relaciona humanos e cães no treinamento e pode ser aprendida e ensinada por meio da função pragmática que desempenha (Despret, 2008) - ela é um meio eficaz de agir e de fazer com que os cães ajam11. O treinamento acontece a partir do desenvolvimento e da tomada de posição do treinador nessa comunicação encarnada. Ao se comportarem “como cães”, em seu regime próprio de percepção e ação, os treinadores estão ao mesmo tempo desenvolvendo em si uma nova linguagem corporal – a liderança, o comportamento de matilha. Eles aprendem a produzir um “devir-cão” para permitir que um mundo canino os afete, bem como para permitir que um mundo humano afete aqueles cães.

Há aqui um processo duplo de antropoformização animal e zoomorfização humana (Rennesson, Grimaud e Césard, 2011: 39)? Por um lado, tiramos o animal de seu ecossistema doméstico para faze-lo participar do treinamento, um jogo em que o humano também toma parte. Os submetemos a uma antropomorfose. A participação humana no jogo, por outro lado, aguça a sensibilidade dos treinadores para agir no espaço perceptivo do cão. Por vezes até sem perceber ou sem controlar, o treinador participa de um processo de zoomorfose e passa a se comunicar com os cães através de vibrações, posturas e gestos que são significativos para eles. Uma série de técnicas rituais e atitudes corporais facilitam a compreensão mútua:

J: a minha relação com ele começa na comida, eu que alimento. Peraí, já começou, porque eu sou o dono da comida, eu sou o dono da área, você come na hora que eu mando, já está... a técnica induz isso, tudo isso é pensado. Quando eu falo com o cão é importante que eu fale uma vez e não “senta, senta, senta” (repetidas vezes). “Sssenta”. Não foi? Vou lá e boto ele no chão. Tu vai lá e executa. Você fala uma vez, a segunda vez já é com gesto. E isso pode parecer besteira, mas é fundamental. Vai atravessar uma porta? Quem atravessa primeiro é você, o líder vai na frente. E isso não é subjugar, é conversar na linguagem dele.

As técnicas desenvolvidas rearranjam as atividades corriqueiras, como alimentação ou mesmo os jogos nos quais os cães geralmente se engajam, para que os treinadores se integrem, ocupando uma posição específica: a de líder. Embora haja uma hierarquia no papel de liderança, o treinamento não acontece apenas pelo comando ou domínio que o treinador exerce sob o cão, mas pela abertura de um canal comunicativo de influência mútua. Uma conexão direta que torna possível a condução de uma ação comum. Neste caso de comunicação interespecífica, o que interessa é ampliar as zonas de contato e não perde-las (Rennesson, Grimaud e Césard, 2011).

Subjetividade canina

O trabalho do treinamento é essencialmente relacional, ele acontece nas interações face-a-face entre aquele cão e aquela pessoa. O vínculo constituído não é generalizável para a relação daquele animal com qualquer outro ser humano, é particular e depende de um processo de familiarização entre humano e cão que cria, além do reconhecimento da liderança, uma ligação afetiva recíproca. As conquistas do treino são resultado de um atravessamento interespécie e são tornadas possíveis pela disciplina hierárquica e pela afetividade no treinamento de “espécies companheiras” (Haraway, 2003). Como lembra Haraway, nem todos os animais são parecidos e sua especificidade – de tipo e individual – importa. Os cães que possuem “aptidão” para guias precisam apresentar uma certa combinação propícia em relação aos repertórios de comportamento (Despret, 2008) caninos, compostos, entre outros, pelo nível de energia, sensibilidade corporal, tipo e grau de distração, além dos aspectos de dominância e submissão.

Passada a fase de adaptação ao canil, a segunda semana consiste na “caminhada de avaliação”, quando os treinadores observarão o comportamento dos cães no deslocamento, sem nenhum comando e sem corrigir o cão. É o momento de conhecer melhor os cães por sua maneira de andar e pelo modo como reagem aos diferentes ambientes. Vão aprender também sobre o ritmo e a velocidade de caminhada de cada um, se apresentam resistência a algum tipo de situação e se precisam de um incentivo mais enérgico para se interessarem pelo passeio.

Embora a observação individual prossiga durante todo o período do treinamento, nesta fase os treinadores realizam uma avaliação mais minuciosa das qualidades intrínsecas de cada cão, tanto aquelas relacionadas à sua morfologia quanto ao seu comportamento. As características vão sendo anotadas em fichas: puxar a guia quando caminha, andar em zig-zag, latir para pessoas ou outros cães. Além das fichas, durante o treinamento o profissional preenche um relatório semanal com a análise do desenvolvimento do cão, descrevendo seu comportamento nas diferentes rotas de caminhadas: se apresentou distração (por cães, gatos, comidas, barulhos, pessoas, outros animais), agressão, sinais de ansiedade, pavor ou desconfiança, o grau de concentração e excitabilidade, a iniciativa, a sensibilidade corporal ou a facilidade no manejo. Cada item é avaliado em uma gradação de 0 a 6, o que permite acompanhar a evolução do cão e também orientar o próprio roteiro dos treinos pelas situações que precisam ser melhor trabalhadas por ele.

Um cão com potencial para guiar não está nunca nos extremos: não é nem muito inseguro nem confiante demais a ponto de ser agressivo. Um cão muito desconfiado não se adapta ao trabalho, bem como um cão muito excitado ou ansioso. O medo e a insegurança são estados emocionais que o cão expressa fisicamente: seja pelo andar mais rápido e com o rabo entre as pernas, olhando muitas vezes para trás para buscar o suporte do líder, seja por se assustar com barulhos fortes – de trovão, buzina ou latido de outro cachorro no portão – e reagir fisicamente de forma acuada ou fugindo.

J: você vai perceber como é que o cachorro se comporta, o nível de distração dele. Todo cachorro tem distração, todo cão-guia no planeta Terra tem distração, até nós seres humanos temos. Ele tem uma distração alta, média ou baixa com relação a bola, pássaros, gatos, pessoas, outros cães, cães na rua, cão na grade? Aí a distração pode ser positiva ou negativa. Distração positiva: ele vê outro cão, se anima e quer brincar. Distração negativa é quando ele fica com a postura de guarda. Não é que ele vá atacar, mas já fica mais reativo ou quer ir na grade ali pra... aquela coisa de cachorro, né? Ele tem isso? Então isso tem intensidades: tem um nível tolerável, o nível bom e o não tolerável. Então se o cão não consegue administrar isso bem ele não vai se graduar como guia. Isso é comportamental.

No treinamento não é suficiente que o treinador deseje e demande que o cão faça as coisas, ele também precisa saber negociar com cada cão de acordo com a sua individualidade, conhecer as coisas que interessam a ele, o grau de incentivo verbal e tátil que precisa receber para corresponder ao comando, o nível de força que o treinador deve imprimir na guia para fazer uma correção. É saber dar àquele cão a oportunidade de acertar, encontrar o tom de voz adequado e o indicativo certo na guia.

Diminuir o passo, empacar, se abaixar, encolher, colocar o rabo entre as pernas, fazer movimento corporal contrário à direção que o treinador deseja imprimir à caminhada, são formas do cão demonstrar resistência ou recusar o treino. O cão pode se ressentir com uma correção mais forte na guia e quando o faz é difícil convence-lo a voltar a treinar, ao menos naquele dia:

J: sensibilidade corporal é a sensibilidade do corpo mesmo. Ela vai influenciar na resposta na guia. Por exemplo, um cachorro com alta sensibilidade corporal, se você der uma correção forte, ele vai sentir aquilo ali e vai ser mais duro para ele. Um cachorro com sensibilidade corporal baixa não. Com a mesma intensidade, se você der num de uma sensibilidade corporal baixa talvez ele nem te dê bola. Então são dois fatores aí, tá? Um cachorro com uma sensibilidade corporal alta, além da sensibilidade, normalmente ele se ressente. É outro agravante. Então se você está trabalhando e não sabe fazer a correção correta, dá um tranco forte num cachorro com sensibilidade corporal alta, você pode acabar com o cachorro ali. Acabou o trabalho, ele não trabalha mais. Ele se ressente e ali ele vai manifestar o medo e ali acabou.

Há um limiar de força e intervenção no uso da guia com cada cão que deve ser conhecido pelo treinador e não deve ser ultrapassado. Ir além desse limiar pode significar a interrupção do treino pela recusa do cão em participar do jogo. A própria resistência canina é um vetor de sua agência no treinamento, um modo de demonstrar seu ponto de vista daquela situação, sua singularidade, desejos e vontades.

Já a energia seria o equivalente ao coeficiente de atividade de cada cão, medindo a “motivação de agir” (Taks, 2012) que emana de cada ser canino. Essa energia corporificada ou interna precisa estar equilibrada para gerar saúde e bem-estar, seja do cão ou da dupla. Conhecer essa característica é importante pois ela dirá, posteriormente, com que tipo de pessoa o cão deverá ser adaptado. Um cão de energia baixa não pode formar dupla com alguém que tenha uma vida intensa, cheia de atividades, como um jovem atleta que também seja estudante universitário, por exemplo. O cruzamento entre o “estilo de vida” da pessoa – termo humano utilizado por eles para qualificar nossa motivação para agir - e o nível de energia do cão é uma importante variável na formação de duplas.

No decorrer do treinamento o profissional vai acumulando informações cada vez mais detalhadas sobre o repertório de comportamento e temperamento de cada cão. Ao final do período as observações servirão de base para preencher o relatório final, em que a combinação das qualidades notadas irá constituir a subjetividade particular de cada cão. Além de saber a técnica de guiar, o cão precisa ter perfil de guia, um bom comportamento social e controle emocional diante de situações de estresse canino, além de um temperamento estável. Todos os fatores combinados vão compor um quadro final que determinará se ele tem condições de se tornar guia.

J: o Wiron é um labrador que de estrutura física é muito maior do que a maioria dos labradores, natural dele. Ele era 37 kg de massa muscular. Extremamente forte. Grande e forte. Sensibilidade corporal: muito baixa. Para ele sentir uma correção na guia você tem que dar um tranco, você pensa assim “vai arrancar o pescoço do cachorro”, isso só para ele olhar para você. Certo? E é um cão com uma distração por bola assustadora. Se eu tiver treinando, passando com ele, e alguém jogar uma bola, esse cachorro sai doido, e não adianta eu corrigir. Se fosse um cachorro de sensibilidade corporal alta, um mínimo de correção na guia ele ia... e aí ele é dominante ainda, ainda tem mais esse fator. Tem uma conjugação de fatores que você faz a avaliação para saber se ele vai ficar. Então é um cachorro grande, um cachorro muito forte, com baixa sensibilidade corporal, com alta distração por bola e dominante. Ou seja, conjugou uma quantidade de fatores que para você colocar na mão de um cego... é complicado.

O cão-guia, enquanto ferramenta ou tecnologia, só existe nos gestos que o movimentam e nas ações que executa como efeito dos sistemas que o criaram e continuamente o recriam. Se tornar guia é um devir, uma resolução que precisa se manifestar internamente em cada cão ao longo do treinamento. Entretanto, não se trata apenas de se graduar ou não se graduar como guia, cada cão fará isso de uma maneira, com uma subjetividade, ou um interior constituinte, que também se manifesta e se desenvolve, em que a individuação como guia pode ou não se realizar.

Roteiros, ferramentas e percursos: agenciamento antropozootécnico

O cão-guia será futuramente reconhecido como tecnologia assistiva animal12, mas sua atividade não pode ser exercida sem as ferramentas que a possibilitam: a guia e o arreio. Dore e Michalon (2016) propõe o conceito de agenciamento antropozootécnico para se referir aos arranjos nos quais a ação coordenada entre humanos e animais envolve mediações técnicas. Certos dispositivos materiais utilizados no treinamento ganham destaque neste agenciamento interespecífico pois propiciam a criação de zonas de contato onde se dá a troca de sinais perceptivos significativos entre humano e cão, além da sincronização do movimento que vão facilitar o desenvolvimento de uma competência canina singular e surpreendente – a habilidade de guiar.

Desde muito cedo o filhote de cão-guia aprenderá a diferenciar os momentos de lazer, tempo livre ou exercícios dos momentos em que deve agir com seriedade. O principal marcador que ativa a mudança de comportamento no cão é a capa, que deve utilizar sempre que está em situação de “trabalho”. Quando filhote, sempre que o socializador o levar para caminhar na rua ou nos locais que frequenta. Quando está com a capa a recomendação é que as pessoas ao redor não o acariciem, o próprio socializador não deve provocar nenhum tipo de excitação no cão, mas incentivar um comportamento calmo, de preferência que fique deitado ou sentado próximo a ele. Quando as pessoas pedem para acaricia-lo, se houver espaço e tempo para isso, primeiro se deve retirar a capa para então deixar o cão interagir.

Os filhotes logo compreendem a mudança de temperamento acionada pela capa e seu comportamento passa a corresponder a certo script pressuposto no objeto. Dore e Michalon (2016) definem script como um programa de ação que especifica os papéis das entidades humanas e não humanas envolvidas numa interação. Ele estabelece indicações referenciais para performatizar seus comportamentos e os engajar em uma história comum. A capa e as instruções relativas ao seu uso presentes no Manual do Socializador Voluntário13 pode ser entendida como um dos scripts fundamentais que permite encenar comportamentos e situações de interação entre humanos e cães na formação de cães-guia. Na terceira semana do treinamento a capa será substituída pelo arreio, um aparato que cobre as costas e o peitoral do cão, para que ele possa tracionar, e que contém uma alça, por onde o cão efetivamente guiará a pessoa. Os balanços, vibrações, subidas e descidas, irregularidades e direcionamentos do caminho são transmitidos do corpo do cão ao corpo da pessoa através da alça. Para além da função motora, a capa e o arreio podem ser pensados como objetos materiais que corporificam um modelo de coordenação e seleção de ações, moldando um script de comportamento para o cão: não interagir com outras pessoas, não se distrair, manter uma conduta calma e focada.

Se a alça do arreio é um canal de fluxo contínuo de movimento, facilitando o ajuste de ritmo no deslocamento, a guia (ou coleira), por outro lado, é um instrumento de aprendizagem e de correção. O movimento de pegar na guia expressa para o cão a mudança na condução. Segundo J.: “a guia é a correção. Ela tem esse nome porque quando o usuário pega na guia é ele que está guiando, ele está guiando a situação naquele momento”. Quando o cão está acertando no movimento a guia deve ficar frouxa, na mesma mão que segura a alça do arreio. No exato momento em que faz algo que não deveria – como abaixar a cabeça para pegar um pedaço de pão na calçada – o treinador faz o movimento de correção, uma puxada rápida na guia com a mão direita, sinal que será transmitido corporalmente, especialmente pelo som, mas também pelo apertar da corrente no pescoço. O puxão deve ser feito com vigor, não tanto com força. Seu propósito é servir de alerta, não é uma punição física e não provoca dor. Logo em seguida é dada ao cão a oportunidade de corrigir seu comportamento.

A noção de script é acionada por Dore e Michalon (2016) para pensar as especificidades organizacionais dos agenciamentos antropozootécnicos, que consiste em produzir, monitorar, executar e desviar de roteiros, e em torna-los coerentes. O conceito de script permite compreender as sequencias previsíveis de comportamento e interação que dão o enquadramento a uma dada situação. O treinamento dos cães se estrutura pela performatização de uma série de roteiros previamente planejados que procuram organizar as interações entre treinador e cão, definindo enquadramentos para sua ação conjunta. Nestes percursos o cão aprenderá como deve proceder em distintas situações: 1) em diferentes ambientes – caminhada rural, shopping, supermercado, praça, igreja, restaurante, lojas, aeroporto, porto, padaria, farmácia, banco, etc.; 2) em diversas condições de deslocamento – calçadas em ruas e avenidas com diferentes condições de trafego (noturno, pesado, de pessoas), cruzamentos, pontes e passarelas, escadas (metálica, rolante, fechada, vazada), rampas, degraus, elevador, ônibus, etc.; 3) em circunstancias distintas de navegação – em frente, direita e esquerda, segue (uma pessoa), para, volta, fica, deita, procura... (assento, balcão, banco, caixa, toalete, padaria, farmácia, rampa, faixa), desviar de obstáculos (aéreo, fixo, lateral, móvel), buracos, poças d’água, entrada e saída de portas. As situações são marcadas em uma série variada de rotas que devem ser percorridas semanalmente, e são diariamente anotadas em uma tabela de treino.

Os roteiros compõem modos de sincronização e coordenação de importância variada no tempo e no espaço. A cada nova situação, o cão aprenderá como o treinador espera que ele aja. Ele deve dar início a uma caminhada somente após receber o comando “em frente”, acompanhado de um gesto perpendicular feito com o braço direito, de trás para frente, a palma da mão espalmada para cima. Diante de uma escada, parar com as duas patas dianteiras em cima do primeiro degrau e as patas traseiras no nível do chão. Esperar que o condutor coloque um pé no primeiro degrau para então dar continuidade à subida, sempre com as patas da frente um degrau acima do humano que está conduzindo.

Todo o aprendizado se dá pela prática e repetição incansável de roteiros como os acima mencionados. O treinador vai pouco a pouco mostrando corporalmente ao cão, por meio do redirecionamento de suas ações e da “educação de sua atenção” (Ingold, 2010: 21), aquilo que espera dele naquele roteiro, em um grau crescente de dificuldade. Uma das rotas de treinamento é uma faculdade que se encontra nos arredores. Ali se treina o deslocamento por corredores, a procura por portas e a entrada e saída delas, a busca por escada ou rampa e sua subida e descida, encontrar o toalete, entrar e aguardar do lado de fora da cabine, em frente à porta, enquanto o treinador simula a ida ao banheiro e, em seguida, procurar a lixeira do banheiro e se posicionar em frente à ela para mostrar que a encontrou.

Os scripts são potencialmente infinitos, mas no treinamento são planejados para abarcar um número mínimo de situações que as duplas que futuramente trabalharão juntas encontrarão, principalmente em ambientes urbanos. Como lembram Dore e Michalon (2016), para um cão-guia, estes ambientes podem ser extremamente densos, envolvendo cruzamentos de tráfego, pedestres e ciclistas, luzes de trânsito, faixas no chão com superfícies ásperas, calçadas, obstáculos ao longo da calçada. Certo dia acompanhei uma das rotas que é considerada a “faixa de gaza” do treinamento dos cães, a avenida Biguaçu. Pergunto o motivo e Marcelo vai me mostrando os obstáculos do caminho: calçada inclinada, bueiros abertos, buracos enormes, placas e postes, porta de garagem aberta, lixo exposto na rua, carros parados atravessando a calçada, muitas casas com cães latindo na grade, cães de rua soltos... Ele comenta que essa é uma diferença crucial entre cães-guia importados, que foram treinados em cidades americanas, mas que estão trabalhando no Brasil, e os cães brasileiros, formados aqui. A quantidade de obstáculos e distrações e a densidade das situações urbanas que o cão-guia precisa lidar para se deslocar nas cidades brasileiras é muito maior do que em cidades americanas, onde há, em geral, planejamento urbano e acessibilidade. Dependendo de onde a pessoa cega mora, o cão-guia importado pode não conseguir se adaptar pois não corporificou os scripts necessários para navegar naquele ambiente. O ajustamento de movimento da dupla cão-treinador é facilitado pelos scripts presentes no arreio e na guia, mas, como vimos, um único percurso urbano também incorpora a articulação de diferentes roteiros. A eficácia do agenciamento antropozootécnico cão-guia-humano dependerá do alinhamento de uma série de scripts, em um movimento emergente e constante de produção de coesão entre entidades heterogêneas, para que uma ação coordenada seja efetuada. É no contexto local e na ação situada que os diferentes roteiros que enquadram sua relação serão corporificados.

No caminho: movimento, ritmo e aprendizagem

Para entender o cão-guia como tecnologia assistiva é preciso colocá-lo em relação com outros seres, humanos e não-humanos, em um campo de atividades comum. O entendimento da atividade de guia cresce ao longo de seu caminho de vida, por meio dos engajamentos em atividades práticas e pelo envolvimento em uma série de relacionamentos com praticantes qualificados. Como sugere Ingold (2013:115), resgatando Leroi-Gourhan (1987), os ritmos são criadores de formas. É pela sintonização entre gestos e ritmos de treinadores e cães ao longo das caminhadas em diferentes ambientes que a técnica de guiar vai crescendo no cão.

Durante a caminhada, a guia é o instrumento que propicia o ajuste entre os movimentos do cão e do treinador, ajudando a moldar sua ação conjunta. A temporalidade da correção é essencial para que o cachorro associe o comportamento ao gesto.

J: é você caminhar e trabalhar com atenção focada. O nível de atenção é total. (Tem que) perceber que o cachorro vai fazer um movimento e corrigir. O momento da correção... não adianta o cachorro fazer, eu dar dois segundos e corrigir, ali já passou. E isso aí, o timing da correção, é fundamental.

O timing da correção se refere à sintonização do movimento e gesto do treinador ao movimento e ação do cão. A caminhada deve ser sustentada, perceptiva e materialmente, pelo contínuo envolvimento de uma dupla acoplada em deslocamento com o campo da prática (Ingold, 2015). Do início ao fim, os movimentos e a atenção do treinador devem estar continuamente sensíveis aos movimentos do cão e às condições em constante mudança do caminho: pessoas que atravessam, lixo no chão, cães de rua, obstáculos, buracos ou poças d’água. A correção faz parte da caminhada e exige alto grau de concentração de ambos. Como lembra Ingold, recuperando Lefebvre, “a ritmicidade implica não apenas repetição, mas diferenças na repetição. Ou, dito de outra maneira, o desempenho fluente é rítmico apenas porque imperfeições no sistema exigem contínua correção” (2015:108).

Os trajetos percorridos vão sempre de um ponto ao outro e o meio-fio é a fronteira que delimita o caminho. Quando saem devem caminhar diretamente até o meio fio mais próximo e parar. Em seguida o treinador dá o comando de voz e o gesto para virarem à direita ou à esquerda. Ao se aproximarem de novo meio fio, o treinador diz “direto para o meio fio”, para marcar sempre aquele ponto. Com a repetição o cão passa a reconhecer a situação e já antecipa o movimento. Em fase avançada não é necessário fazer as paradas de meio fio a meio fio, pois o cão já compreendeu o processo. O objetivo passa a ser encontrar diretamente o destino. Os comandos verbais em geral são acompanhados por gestos específicos – “direita”, “esquerda”, “volta”, “em frente”. O gestual corporal é tão ou mais importante que o gesto elocutório, embora ambos devam ser executados de forma precisa. Quanto mais expressividade o treinador conseguir imprimir aos gestos, melhor o cão executará a ação.

Quando o cão erra, o treinador interrompe o movimento e diz a palavra “não”, pronunciada de forma firme, mas não violenta. Com a mão direita dá umas palmadas na sua própria coxa direita, como forma de chamar a atenção pelo gesto e pelo som, ao mesmo tempo em que dão a meia volta, retornando de 5 a 10 passos repetindo no percurso a palavra “volta”. Eles refazem a ação e o treinador dá novamente os sinais para o cão daquilo que espera dele – “direto para o meio fio” ou “procura a escada”. A aprendizagem se dá pelo movimento e o equívoco leva a refazer o movimento, abrindo a possibilidade para o ajuste e a negociação contínua do que está sendo aprendido. Os erros, os mal entendidos e a repetição são condições essenciais que permitem a troca, o entendimento e a sintonização dos ritmos no treinamento. Para Bersteim (1996), a insistência em um mesmo gesto técnico resulta numa “repetição sem repetição”, o que se exercita é a flexibilidade da resposta do cão às variações.

A locomoção é o ponto de partida para a aprendizagem da prática de guia. Ingold sugere que a habilidade de qualquer técnica corporal reside na sintonia do movimento em resposta às condições sempre mutáveis de uma tarefa em desdobramento. Podemos compreender a caminhada do treino como uma forma de “conhecimento ambulatório” (Ingold, 2015:89) que vai criando um padrão rítmico entre os movimentos do cão e da pessoa, responsivo a um monitoramento perceptivo contínuo do chão à frente: buracos, poças, desníveis, degraus, tapumes de obra, obstáculos no caminho. Para exercer a atividade de guia o próprio chão deve, pouco a pouco, se tornar um foco em si da atenção do cão e, portanto, ao longo da caminhada, a percepção do treinador também deve estar literalmente aterrada, focada naquilo que se pode distinguir na superfície em que caminham.

Se o treinamento pode ser pensado como um processo de domesticação14 (Cassidy, 2007) ele não se dá na direção do que os humanos fazem com os animais, mas sim da interação entre eles enquanto se deslocam ao longo de um ambiente específico. O papel do lugar em que as interações acontecem, a topografia e as características físicas do ambiente, são tão proeminentes quanto a sintonização dos movimentos e ritmos, a afetividade e a relação humano-animal que se estabelece durante os percursos.

Treino e brincadeira: o papel do lúdico

O espírito do treinamento se assemelha a uma brincadeira ou jogo, na qual as ações estão relacionadas a - e denotam - outras ações, a do não jogo (Bateson, 1998). Cada ato carrega uma dupla carga de realidade, o que está sendo feito (desviar de obstáculo, atravessar na faixa, etc.) está sempre infundido pelo que se espera que o cão esteja fazendo futuramente: os mesmos gestos, mas dessa vez não pelo desafio do jogo, mas como exercício de uma ocupação, a de guiar. Se na brincadeira de luta animal a situação é embalada por um revestimento, em um campo não bélico, daquilo que é próprio da arena de combate (Massumi, 2017), os treinos dos cães ganham um revestimento do que é próprio à atividade de guia em um campo lúdico onde o cão ainda não precisa efetivamente guiar, mas já está, performativamente, ensaiando o gesto.

R: na outra semana (a gente faz) a caminhada mostrando o caminho, já fazendo algumas observações para o cão, fazendo ele parar no meio-fio, já dando uma introdução para o cão. A princípio sou eu que paro e mostro – “meio fio” -, falo o comando “direto para o meio-fio”. Quando chega no meio fio eu faço o cão parar, mostro com o pé: “meio fio, meio-fio, bom garoto!”. Aí faço aquele incentivo para o cachorro, para ele achar legal achar o meio-fio. Primeiro para ele entender o que é o meio-fio, e segundo para ele achar legal mostrar o meio-fio para mim. Vira meio que uma brincadeira. Não sei se tu reparou no Apolo e na Beca, quando eles param no meio-fio eles olham para mim, como quem diz “ó, achei o meio-fio”, “cadê a festinha? Cadê o carinho?”. Eles vão esperando por aquilo, por aquela recompensa.

Uma coisa são os scripts previamente planejados para que o cão aprenda o que fazer em cada situação, mas o que motiva o cão ao movimento? Como na relação dos jogadores com seus besouros no duelo de kwaang (Rennesson, Grimaud e Césard, 2011), aqui também o cão e o treinador formarão um binômio durante as caminhadas que se vincula por uma linha de excitação, mais do que de comando. Encontrar o grau de excitabilidade necessário para motivar o cão a entrar na brincadeira do treinamento, de acordo com as características intrínsecas de cada um deles, é uma das competências do treinador. Consiste em saber identificar quando o cão se “entedia” durante uma rota e encontrar maneiras de tornar os trajetos mais interessantes pelo grau de desafio e entusiasmo que consegue corporificar em si – na voz, na postura, nos gestos -, influenciando, assim, o comportamento do cão, por meio do contágio e do contato afetivo.

O treino vai se intensificando com o tempo. Um dos principais desafios é fazer com que o cão compreenda que, além de se desviar de um poste ou buraco, e de atravessar a rua sem ser atropelado, coisas que faria como estratégia de sobrevivência para si, deve também fazer isso por aquele que está conduzindo, um ser que tem um modo de deslocamento (bípede) e uma estrutura física (altura, largura, peso) largamente distintas da sua. Ou seja, ao se desviar de um obstáculo ele precisa fazer isso a uma distância suficiente para que tanto ele quanto o treinador consigam passar. Com obstáculos aéreos o desafio é maior, pois a abóbada de um orelhão ou uma lixeira suspensa situada à altura de 1,5m do chão são coisas que normalmente não fazem parte do universo perceptivo, ou do mundo-próprio, de um cão em deslocamento. São objetos que não possuem nenhum uso funcional para ele e, portanto, não teriam nenhum “teor efetor” para serem notados (Uexkull, 1982).

As utilizações que os animais fazem dos objetos fornecem as imagens-perceptivas que dão significado ao seu mundo. Uexkull indica que, no decorrer de sua vida individual o animal pode acumular experiências e aprender a manejar certos objetos que antes não faziam parte do seu mundo próprio. Cada experiência nova o leva a assumir nova posição perante as novas sensações. As experiências vividas pelo cão ao longo do treinamento vão permitindo que ele amplie suas capacidades, aumentando o número de objetos que povoam seu mundo-próprio. Ele adquire novas imagens perceptivas, com novos teores efetores. A repetição desempenha aqui um papel fundamental. Percorrer inúmeras vezes um mesmo caminho leva à fixação na memória dos impulsos comunicados à marcha, que servirão de indícios de direção ou sinais de orientação. Ao percorrer diversas vezes o mesmo trajeto, sinalizando os obstáculos e objetos que dificultam o deslocamento, o treinador faz entrar no mundo-próprio do cão, por meio do desafio da brincadeira, sinais que são de interesse para humanos, mas que até então não eram interessantes para ele. O cão vai aos poucos ampliando seu mundo-próprio pela composição com mundos-próprios humanos.

Aumentar o número de objetos que povoam o mundo-subjetivo do cão é um passo. Outro passo está relacionado ao desenvolvimento de uma percepção corporal estendida, uma nova corporeidade composta por dois seres em movimento. Aqui, novamente, a brincadeira promove o aprendizado. Ao longo da caminhada o treinador simula uma trombada, exagera uma batida no poste ou orelhão, amplifica essas situações para chamar a atenção do cão, refazendo o percurso até ele acertar a largura exata da passagem para ambos os corpos, mas o cão em alguma medida sabe que aquilo é parte de um jogo.

Como sugere Massumi (2017), a brincadeira permite a passagem para uma pragmática em que uma lógica diferente é corporalizada diretamente na ação, nivelada no gesto. Uma lógica que não será nada se não for vivida, precisa ser desempenhada. A dramatização de um esbarrão ou tropeço, como gesto lúdico do treinador, carrega uma diferença mínima para o gesto análogo que evoca, a ação de esbarrar e tropeçar. A diferença está na intensidade, tanto quantitativa – a força com que se bate quando se está representando é distinta de quando o encontrão realmente ocorre; quanto qualitativa – o gesto lúdico de tropeçar é desempenhado com certo exagero e um espírito arteiro. Com isso o profissional propicia ao cão que, na brincadeira do treinamento, ele performe, de modo preparatório, a habilidade de guia. O jogo do treino induz e nivela o seu desempenho na imediatez da execução dos gestos, permitindo que o cão corporalize a complexa atividade de guia, ajustando sua forma a ela.

Com a dramatização e a repetição de um trajeto o treinador abre espaço para o cão pesquisar formas gestuais e de agir, ativando nele alternativas e poderes de variação. Embora um repertório bastante completo de situações seja encenado, não há como prever no treinamento todas as condições que o cão encontrará em sua vida como guia. Por isso a brincadeira é tão fundamental no treino quanto o rigor da técnica no desempenho dos gestos normativos (os comandos de voz, com os gestuais correspondentes – esquerda, direita, fica, em frente, volta, etc. – ou a crucialidade das correções). A brincadeira ativa o poder de improviso do cão. As formas de guiar de cada cão são variações inventadas pela brincadeira do treinamento, que apenas em um segundo momento vão adquirir as funções adaptativas e sociais que adquirem. O treinamento pode ser entendido como uma espécie de cartografia performativa que, ao encenar o futuro possível dos cães como guias, cria o território que mapeia.

Caminhada vendada como situação de prova

A atualidade da situação do jogo se amplia com a aproximação da possibilidade de guiar, vai se tornando mais séria ou mais real. À medida em que o treinamento avança a diferença entre o gesto lúdico e o gesto análogo que evoca (brincar de guia e guiar) diminui, até se tornar mínima. O ápice do processo é a “caminhada vendada”, momento em que o treinador, ao avaliar que o cão está em fase avançada do desenvolvimento da habilidade de guiar, venda seus próprios olhos para que o cão o conduza ao longo de uma determinada rota. O trajeto escolhido é bastante familiar, percorrido inúmeras vezes ao longo do treinamento. No percurso o cão deve executar as mesmas ações que já vinha exercitando anteriormente – desviar de buracos, procurar meio fio, desviar de obstáculos aéreos, procurar assento, etc. A situação ainda é uma “abstração vivida” (Massumi, 2017:24), corporalizada na ação e encenada na brincadeira, pois o treinador não é efetivamente cego. Mas a diferença que comporta para o gesto análogo que evoca, quando o cão vai executar a ação de guiar e não mais dramatiza-la, é bem pequena.

Durante o trajeto o treinador deve estar inteiramente ativo e presente para captar as ampliações, atenuações, tensões, mudanças de direção, diminuição de velocidade, distrações ou desvios, agora não mais usando o controle da sua visão, mas se concentrando nas vibrações que capta no braço esquerdo pela alça do arreio, no fluxo contínuo de movimento que é a mobilidade com o cão. Ao lado da dupla vai mais uma pessoa, responsável por fazer a orientação e a segurança, já que o condutor vendado não está com as mesmas habilidades de locomoção, e a reação de cada cão à intensificação da seriedade no jogo é imprevisível. A situação observada foi particularmente tensa para ambos os lados, animal e humano, pois os alunos em formação ainda não tinham passado pela experiência.

Na caminhada vendada o treinador não simula mais um tropeção ou o choque em um orelhão, ele efetivamente tropeça ou colide. Nem sempre a pessoa que está dando segurança consegue evitar essas situações. O cão percebe imediatamente que alguma coisa está diferente pelo próprio equilíbrio do corpo de quem ele está conduzindo. João comenta que qualquer pessoa que enxerga, quando venda os olhos, dificilmente consegue caminhar em linha reta. Muda o ponto de equilíbrio corporal e cada um tenderá para um lado, seja para esquerda, andando mais próximo ao cão, seja para direita, tencionando ligeiramente o arreio para fora do corpo do cão.

Os cães reagem distintamente à situação, alguns demonstrando maior segurança, outros visivelmente resistentes e desconfortáveis. No primeiro dia de caminhada vendada feita dentro do campus, Bel simplesmente travou. Não queria de forma alguma começar a caminhada, não importou o quanto se colocou de incentivo verbal, agito da coleira na frente dela ou empolgação na voz. Marcelo disse que a reação é uma forma da cadela demonstrar que estava em busca de suporte, não queria assumir a responsabilidade da condução. No dia seguinte, em um percurso urbano, Bel caminhou, mas esteve o tempo todo de rabo entre as pernas, a cabeça baixa e a respiração ofegante. Em um trecho filmado com 5 minutos de duração ela leva a condutora quatro vezes para o meio da rua. Não parou na faixa de pedestre e ia atravessar direto em um cruzamento, mesmo com carros passando.

No início, Becca também testou a situação da venda fazendo o que supostamente não devia: levou o condutor para o meio da rua enquanto virava seguidas vezes a cabeça para olhar para ele e ver qual seria a sua reação. É como se quisesse entender quem é que estava no comando da dupla. Depois reagiu fazendo o oposto do que vinha treinando ao longo dos meses, ao invés de desviar dos obstáculos, levava Renato de encontro a eles. Ao chegar bem perto de um poste, andava mais devagar, parava e o olhava para Renato aguardando a sua reação. Caminhou bem perto da grade, até que Renato esbarrasse com o ombro nela. Era uma forma de mostrar a ele, na nova situação, que estava descobrindo os obstáculos.

Amora, Amorim e Baby foram os cães que melhor gerenciaram a experiência, embora todos tenham tido alguma reação no sentido de testar o que estava acontecendo. Quando passamos na frente de uma agência do banco do Brasil, Amora tentou entrar, virando à direita. João disse que esta é uma forma que o cão encontra para tentar acabar logo com a situação, mas levando-a a um desfecho bem sucedido, realizando algo que se acostumou a fazer no treinamento – encontrar aquele destino. Comentando o desempenho dos cães, reforça a importância crítica daquele momento. Diz que é uma situação de estresse para o cão, que percebe, pela alteração de equilíbrio, movimento e ritmo entre ele e o condutor, que há algo muito diferente acontecendo. Ali o cão começa a compreender que o gesto lúdico do treinamento está referenciado a um gesto análogo, sério e responsivo de condução.

A caminhada vendada é um momento crítico no processo de treinamento de cães-guia. Ela rompe bruscamente com as expectativas do cão em relação ao jogo, introduzindo uma perturbação proposital na rotina. Ao mesmo tempo, pode ser entendida como um dispositivo de experimentação e revelação de capacidades. Os cães são postos em uma situação de provação, um momento de indefinição e incerteza que exige uma resolução (Latour, 2016:43), e que dará a eles pela primeira vez a possibilidade de experimentar um componente essencial da atividade de guia: a responsabilidade pela condução. A situação coloca um problema para o cão, ela revela que não é possível prosseguir do mesmo modo, o condutor não está reagindo como costumava reagir no treinamento, sua percepção e seu equilíbrio estão alterados, sua ação não é mais precisa, ele não interrompe imediatamente o movimento quando o cão faz algo que não deveria. Diante dessa anomalia, há várias atitudes possíveis para o cão. Ele entende que precisa fazer alguma coisa e mobiliza seus recursos, seja para testar o que está acontecendo - leva o condutor de encontro aos obstáculos ou para o meio da rua; seja para tentar sair daquela situação - vira em alguma rua, entra em alguma loja ou encontra a confiança necessária para retomar o curso adequado da ação.

A caminhada vendada permitirá aos treinadores avaliar, pelas distintas reações dos cães a ela, sua competência em se ajustar à situação de condução. A partir daí eles se reúnem para discutir quais cães tem a possibilidade de se tornarem guias, quais precisam de mais trabalho pois ainda não estão maduros o suficiente e quais apresentam sinais claros de que não têm condições de realizar a atividade de modo “sério”, ou seja, não suportam assumir o peso da responsabilidade de guiar. Na caminhada vendada a atividade passa a denotar aquilo que ela denota: o cão agora está efetivamente guiando. Embora não tenha o poder de decidir o destino final, é ele quem decide o melhor caminho a seguir e conduz os passos da dupla ao longo do percurso. A dimensão lúdica do gesto se retrai até se tornar ação instrumental: o cão passa a exercer a condução e não mais brincar de guiar (Massumi, 2017).

Considerações finais

A imagem de uma dança para falar do movimento de um cão guiando uma pessoa cega foi a que primeiro arremeteu quando observei Paula e Darwin caminhando. Ela serve não apenas como elemento poético, mas também alude ao investimento técnico e ao exercício de treino e repetição necessários para que um cão possa conduzir uma pessoa com segurança, para que seu corpo saiba por onde seguir, que movimentos fazer ao se deparar com diferentes situações como subir uma escada, desviar de um orelhão ou parar ao encontrar um obstáculo no caminho. São situações que precisam se tornar corporalidade, ou “importância vivida” (Massumi, 2017:60), para ele. Ao longo de sua vida vão sendo produzidas pelos humanos que o acompanham por meio de uma série contínua de acontecimentos: de forma mais suave, mas já direcionada, na socialização e, de forma mais sistemática, no treinamento. São ações, simulações e brincadeiras que estimulam uma direção, ou um devir, à sua existência, a atividade de guia.

Como a formação do proeiro, o processo de formação de cães-guia depende de uma constituição corporal mais ampla, que passa pela associação dos movimentos do cão aos movimentos do treinador e pelas informações do ambiente transmitidas pelo arreio, formando um sistema de percepção e ação que transcende o corpo do próprio cão (Sautchuk, 2015:131). Caminhando juntos, treinador e cão aprendem a “mover-se em concerto” (Sheets-Johnstone, 2017:1), estar vivos tanto para a dinâmica de seu próprio movimento quanto para a dinâmica de movimento do outro. Mover-se em concerto significa ser capaz de se mover em conjunto com outro(s) corpo(s) de forma harmoniosa. Pela repetição e a prática o movimento do cão e do treinador vão entrando em sintonia, encontrando um ritmo que é resultado de um acoplamento dinâmico de seus corpos e movimentos. Uma ressonância entre o profissional, o cão, o arreio e o ambiente, que nunca é a mesma de momento a momento.

A dupla usuário e cão-guia, juntamente com o aparato técnico que os vincula, pode ser vista como uma espécie de agenciamento antropozootécnico, uma multiplicidade composta por termos heterogêneos que, por meio dos laços e relações que estabelecem entre si, encontram uma unidade ou modo próprio de co-funcionamento (Dore e Michalon, 2016). Para descrever tal agenciamento é preciso considerar o modo pelo qual as entidades heterogêneas se mantêm juntas, as condições de coexistência das diferentes entidades e as sequencias de conexões por meio das quais elas se vinculam. O treinamento pode ser visto como uma etapa crucial para o vir a ser deste agenciamento, onde são desenvolvidas técnicas e conexões, modos singulares de percepção, movimento e ação que permitirão ao cão se graduar como guia. Difícil dizer se o sucesso na graduação de um cão se origina na habilidade técnica e no saber-fazer do treinador ou nas qualidades intrínsecas daquele animal, sua “vontade de servir”, no dizer nativo. A sutileza do processo de treinamento é a de empurrar a colaboração treinador-técnica-cão para além, a ponto de fazer com que questões como esta não tenham mais verdadeiramente razão de ser.

Desenvolver a capacidade de guiar é como alcançar o estágio do improviso na dança. Para chegar lá é preciso que os bailarinos tenham vivenciado aquela situação, inúmeras vezes, até que seu corpo tenha se movimentado e explorado suas capacidades, que tenha repetido os gestos, incorporado os passos e naturalizado a coreografia. A coreografia se torna repetição de situações passadas, já vividas, que informam a vivência da situação presente. O reconhecimento seria, para Massumi (2017), a operação mental que envolve o grau mais baixo de abstração na vida animal (humana e não-humana). A importância vivida, tornada corporalidade no treinamento, é condição para a abstração vivida, quando o cão, no exercício da sua atividade de guia, se tornará capaz de superar o que está dado e executar ações de improviso que vão muito além dos gestos, comandos e movimentos que lhe foram passados no treinamento. Reconhecer uma situação e ser capaz de executar os passos tornados conhecidos é, entretanto, o fundamento do improviso. Foi justamente o processo de reconhecimento que pretendi aqui iluminar com a análise das técnicas e práticas de treinamento de cães-guia.

#Bibliografia

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Olivia von der Weid / oliviaweid@id.uff.br

Doutora em Antropologia Cultural. Professora e pesquisadora (Universidade Federal Fluminense). Coordenadora do LAB CONATUS – Laboratório de Pesquisas sobre Corpos, Naturezas e Sentidos.


1 O Centro de Formação de Treinadores e Instrutores de Cães-Guia (CTCG-IFC-Camboriú) é o projeto piloto para a implementação de outros 06 centros previstos para serem instalados nos Institutos Federais no Brasil. O projeto nasce como uma ação do Núcleo de Atendimento às Pessoas com Necessidades Específicas (NAPNE), com o apoio da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (SETEC/MEC) e da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência (SNPD/SDH). Posteriormente, foi incorporado como uma das ações prioritárias do Plano Nacional para pessoas com deficiência, o “Viver sem Limites”, lançado em 2011 pelo Governo Federal. No atual cenário, embora as obras já tenham sido finalizadas na maior parte dos centros, apenas o de Camboriú (SC), Alegre (ES) e, recentemente, Urutaí (GO) estão em funcionamento. Agradeço aos professores, treinadores, alunos e funcionários do CTCG-Camboriú pela abertura e acolhimento deste projeto de pesquisa.

2 Orientação e mobilidade são um conjunto de técnicas e estratégias baseadas em informações psico-sensoriais, que contribuem para a habilitação das pessoas com deficiência visual, auxiliando-as na orientação e no deslocamento em espaços abertos ou fechados.

3 Tempo médio de formação de um cão-guia, do nascimento até a adaptação com uma pessoa cega. A etapa que dá início é chamada de socialização, quando o filhote, depois do desmame, fica na casa de uma família que se voluntaria para acolhe-lo pelo período de 13 a 15 meses. Quando a etapa se completa, o cão retorna ao centro de formação para realizar o treinamento, fase que dura de 4 a 6 meses, dependendo da evolução do cão. A última etapa é a adaptação do cão já graduado como guia com o deficiente visual que irá conduzir, que dura um mês. As três primeiras semanas são realizadas no próprio centro, período em que o deficiente visual precisa desenvolver o relacionamento adequado com o cão e a capacidade de lidera-lo, além de aprender as técnicas. A última semana da adaptação é feita no local de residência do deficiente visual, quando o instrutor marcará com a dupla os principais trajetos que irão percorrer juntos. A partir daí a dupla trabalhará por cerca de 8 anos quando, dependo da disposição e da saúde física e mental do cão, ele será “aposentado”.

4 Em uma das primeiras conversas com um dos coordenadores do CTCG soube que a taxa média de “sucesso”, ou seja, de filhotes que iniciam o processo e efetivamente se “graduam” como guias, é de cerca de um terço, estatística mundialmente encontrada nas escolas de cães-guia. Na primeira leva de cães do projeto, dos 41 filhotes que foram para a socialização, 16 viraram cães-guia.

5 No Brasil, o decreto nº 5.904/2005 e a Lei 11.126/05, conhecida como Lei do Cão-Guia, asseguram o direito do cão, já graduado ou em processo de socialização e treinamento, ingressar e permanecer, acompanhado do usuário, do treinador ou do socializador, nos veículos e nos estabelecimentos públicos e privados de uso coletivo.

6 A pesquisa fez parte do projeto de pós-doutorado “Corpos, sentidos e diferenças: por uma abordagem perspectivista da deficiência” e recebeu o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), por meio do Programa de Apoio ao Pós-Doutorado (PAPD-2014).

7 Embora não seja possível aprofundar a compreensão de todo os processos envolvidos nesta fase, pode-se dizer que o papel da família socializadora é “mostrar o mundo” para o filhote, um mundo que é, em grande medida, humano. Ele deve ser apresentado aos diversos ambientes frequentados por pessoas, urbanos e rurais. Deve aprender regras específicas - fazer banheiro sob comando, comer apenas quando autorizado, responder aos comandos “fica, deita, aqui, seu lugar” -, além de ser educado para respeitar a figura de autoridade da casa. Entretanto, a socialização não é um adestramento, o cão nessa fase é também um cão “doméstico”: deve ter momentos de liberdade e lazer e conviver com a família, desenvolvendo vínculos e experiências de afeto com humanos – adultos e crianças – e, se possível, outros animais. Na família socializadora um dos responsáveis pelo cão deve se comprometer a leva-lo diariamente para suas tarefas cotidianas – trabalho ou estudo. Ou seja, o cão deve ter a mesma rotina de um dos membros da família. Durante a socialização a família voluntária e o filhote contam com o acompanhamento, em visita semanal, dos alunos em formação do centro, supervisionados pelos treinadores. Desenvolvi uma reflexão sobre a etapa da socialização em capítulo de livro anteriormente publicado (von der Weid, 2019).

8 Como indica Lestel, o cão é sensível à voz e aos gestos humanos, sendo capaz de perceber sua intencionalidade e compreender o significado de um ato, atitude ou expressão. Boa parte das nossas ações cotidianas são rotineiras, e ao partilhar essas situações e viver entre humanos o animal doméstico adquire alguns de nossos hábitos e transfere voluntariamente suas relações sociais para esse “mundo comum” (Lestel, 2001, p.213).

9 Embora o termo “aposentadoria” se refira à etapa em que o cão-guia, quando atinge uma idade mais avançada e apresenta sinais de cansaço, para de exercer sua atividade, a expressão “aposentar um cão” também é utilizada pelos treinadores para se referir à retirada do cão do processo de formação, em qualquer etapa do programa, seja por questões físicas ou comportamentais.

10 O número de cães dessas sub-matilhas variava de 3 a 6 e, na matilha maior, quando os treinadores soltavam todos os cães juntos, eles totalizavam de 16 a 20.

11 É também por meio de uma conversação corporal de gestos que os cães vão exercer o “direito de querer” ou de tomar uma posição em relação ao processo de treinamento, aderindo ou resistindo àquilo que se propõe a ele. A reflexão sobre a dimensão da escolha do cão no exercício da atividade de guia deverá ser aprofundada em outro momento.

12 Não será possível aprofundar neste momento a discussão sobre o uso das tecnologias assistivas nas políticas de inclusão de pessoas com deficiência. No entanto, pela definição publicada no Brasil pelo Comitê de Ajudas Técnicas (CAT), expedida pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, “Tecnologia Assistiva é uma área do conhecimento, de característica interdisciplinar, que engloba produtos, recursos, metodologias, estratégias, práticas e serviços que objetivam promover a funcionalidade, relacionada à atividade e participação, de pessoas com deficiência, incapacidades ou mobilidade reduzida, visando sua autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão social”. (BRASIL, 2009, p. 9).

13 As instruções sobre como educar um filhote de cão-guia são disponibilizadas às famílias socializadoras por meio de um manual que é entregue junto com os filhotes.

14 Infelizmente não será possível aprofundar aqui o diálogo com a fértil literatura antropológica sobre as relações de domesticação, o que pretendo fazer em outro momento.