Uma análise multiescalar dos impactos da modernização do terminal de Porto Murtinho na rede sul-matogrossense

Dayana Aparecida Marques de Oliveira Cruz

Instituto Federal de São Paulo, IFSP/Registro, Brasil.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5611-593X

Recibido: 9 de abril de 2020. Aceptado: 13 de diciembre de 2020.

Resumo

A circulação realizada através das redes de transportes é fundamental para a reprodução, acumulação e valorização do capital. Por isso, o planejamento, a modernização e a ampliação das infraestruturas são alvo de investimentos por parte dos estados nacionais e da iniciativa privada. No caso dos países periféricos e semiperiféricos, como é o caso do Brasil, a conformação da rede de circulação deve ser lida de acordo com a lógica flexível de acumulação e com os interesses dos agentes hegemônicos. Esses aspectos implicam em uma seletividade que (des) integra determinados espaços na rede. O intuito deste artigo é discutir sobre os impactos da modernização do Terminal Hidroviário de Porto Murtinho na rede de circulação de Mato Grosso do Sul, considerando as novas possibilidades de escoamento da soja produzida no estado.

Palavras-chave: Redes. Multiescalaridade. Mato Grosso do Sul. Porto Murtinho.

A multiscale analysis of the impacts of the modernization of the Porto Murtinho Terminal on the South Mato Grosso network

Abstract

Circulation through transport networks is essential for the reproduction, accumulation and appreciation of capital. For this reason, the planning, modernization and expansion of infrastructures are the target of investment by national states and the private sector. In the case of peripheral and semi-peripheral countries, as in the case of Brazil, the conformation of the circulation network must be read in accordance with the flexible logic of accumulation and with the interests of hegemonic agents. These aspects imply a selectivity that (un) integrates certain spaces in the network. The purpose of this article is to discuss the impacts of the modernization of the Porto Murtinho Waterway Terminal on the circulation network of Mato Grosso do Sul, considering the new possibilities for the flow of soy produced in the state.

Keywords: Networks. Multiscale. Mato Grosso do Sul. Porto Murtinho.

Palabras clave: Redes. Multiescala. Mato Grosso do Sul. Puerto Murtinho.

Introdução

A circulação é a base da lógica de reprodução do capitalismo. Ela permite com que o movimento do capital se efetue a partir das redes, sejam elas virtuais ou materiais. Um exemplo da reprodução do capitalismo a partir das redes de circulação é a lógica de organização das redes de transportes.

As redes de transportes materializam no espaço geográfico as marcas das temporalidades do mundo contemporâneo, alicerçadas nos interesses dos agentes hegemônicos por velocidade e fluidez. As redes de transportes são capazes de diminuir o ciclo de reprodução do capital e gerar mais lucros e valorização, a partir de uma seletividade que (des) integra os espaços.

Estamos falando das redes no contexto de emergência do meio técnico-científico-informacional, cujo conteúdo técnico busca atender as exigências das demandas impostas pelo capitalismo flexível. Essas demandas se dão no tempo rápido e pressupõem cada vez mais fluidez e porosidade territorial (Arroyo, 2015: 40).

É impossível compreender as redes locais ou regionais excluindo-as do contexto do espaço mundial reticulado. A relação entre as escalas geográficas se apoia nas redes, mas são as interações multiescalares que dão sentido a elas.

O intuito deste artigo é discutir sobre os impactos da modernização do Terminal Hidroviário de Porto Murtinho na rede de circulação de Mato Grosso do Sul, considerando as novas possibilidades de escoamento da soja produzida no estado.

Visando alcançar o objetivo proposto, o processo de elaboração do artigo incluiu a seguinte metodologia: revisão bibliográfica, levantamento de dados, sistematização dos dados em gráficos e mapas, análise das informações sistematizadas.

Redes e circulação

O espaço reticulado mundial vem se conformando desde os primórdios do sistema-mundo no século XVI. Porém, foi com o aprofundamento dos processos de globalização e com a emergência do meio técnico-científico-informacional que as redes se tornaram cada vez mais dependentes. A multidimensionalidade das redes e as relações multiescalares caracterizaram um espaço geográfico complexo, segundo a lógica flexível de acumulação e reprodução do capital.

Blanco (2015: 18) afirma que a concretização das redes no território está relacionada à espacialidade das relações sociais, as quais são produzidas e reproduzidas por agentes com capacidade de domínio sobre o território. Para o autor, essas são as relações que definem a origem, a construção, a operação e a transformaçãodas redes no mundo contemporâneo. Neste sentido, Milton Santos (2006: 181) afirma que a capacidade de articulação entre os espaços é definida pelo comando político e econômico do território.

Quem domina o território? Essa é uma pergunta complexa, pois varia de acordo com as escalas e os contextos. Entretanto, a questão nos remete a uma reflexão necessária que permite apreender, a partir de um recorte estabelecido, a conformação e a intensidade das ambiguidades das redes no espaço geográfico. Santos (2006: 187) aponta as variáveis contraditórias e coexistentes que resultam nas ambiguidades das redes, atribuindo-lhes as seguintes características simultâneas: virtuais e reais, técnicas e sociais, estáveis e dinâmicas, concentradoras e dispersoras, integradoras e desintegradoras.

As redes são indissociáveis das relações de poder, conforme discute Claude Raffestin em seu livro “Por uma Geografia do Poder” (1993). Para o autor, o controle das redes de circulação, através do direcionamento dos fluxos, demonstra até que ponto os agentes são capazes de dominar o território. O domínio do território é expandido de acordo com a capacidade que os agentes têm de dominar as redes de circulação e também as redes de comunicação.

Quem procura tomar o poder se apropria pouco a pouco das redes de circulação e de comunicação: controle dos eixos rodoviários e ferroviários, controle das redes de alimentação de energia, controle das centrais telefônicas, das estações de rádio e de televisão. Controlar as redes é controlar os homens e é impor-lhes uma nova ordem que substituirá a antiga (Raffestin, 1993: 212)

Dentre os agentes capazes de exercer o domínio sobre o território estão as grandes empresas e os Estados nacionais. Uma das premissas do neoliberalismo é a diminuição do papel do Estado. No Brasil, tal premissa vem sendo colocada em prática desde os anos de 1990, quando o Brasil adotou novas práticas neoliberais num contexto de perda da legitimidade do Estado e de deterioração da capacidade de investimento estatal, decorrente da crise gerada pela modernização conservadora do período militar (Becker e Egler, 1994: 125). Este cenário ganhou novos contornos durante os governos de Lula e Dilma, com a coexistência entre as políticas neoliberais e um novo desenvolvimento, que incluía a expansão das políticas públicas (Klink, 2013: 20). Após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e a expansão da onda neoconservadora, vivenciamos um recuo do investimento estatal.

Mesmo com a crise dos anos de 1990, haviam projetos de ampliação das redes de infraestrutura do Brasil no âmbito dos Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento (ENIDs). O estado de Mato Grosso do Sul foi contemplado com dois eixos (oeste e leste) que incluía a ampliação dos portos de Corumbá, Ladário, Porto Esperança e Porto Murtinho (Souza, 2008: 42). Mais tarde, com a criação da Iniciativa para a Integração Regional Sul-Americana (IIRSA), no ano de 2000, e depois do Conselho Sul-Americanode Infraestrutura e Planejamento (COSIPLAN), em 2009, parte dos projetos que fizeram parte do ENIDs foram incorporados pelas novas instituições. Esses projetos compuseram um portfólio que incluiu todos os países da América do Sul, para a discussão de estratégias para a integração nos setores de transportes, energia e comunicações. No caso dos exemplos citados anteriormente, os projetos no âmbito do COSIPLAN/IIRSA dedicaram-se à ampliação na navegabilidade do Rio Paraguai. Tais projetos fizeram parte do eixo denominado “Hidrovia Paraguai-Paraná” composto por Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai.

A criação de um espaço subcontinental para discutir sobre os projetos de ampliação e renovação das redes de infraestruturas foi uma conquista para a integração regional na América do Sul (Oliveira Cruz, 2017). A conformação deste espaço resultou da necessidade do subcontinente em adaptar-se às novas demandas do comércio internacional através da superação dos problemas relacionados aos transportes, energia e comunicações. As iniciativas de integração físico-territorial subcontinentes ressaltam os pontos estratégicos para a conformação de uma rede fluida e porosa, na qual os projetos possuem graus distintos de importância, podemos citar no caso do COSIPLAN/IIRSA, o exemplo dos projetos prioritários. Foram considerados prioritários, os projetos com maior impacto na conformação da rede sul-americana, como é o caso dos corredores bioceânicos ferroviário (Paranaguá/Brasil-Antofagasta/Chile) ou rodoviário (Santos/Brasil-Ilo/Peru).

Os projetos de transportes incluídos nas iniciativas de integração regional foram indicados pelos próprios países como estruturais para a rede de circulação. A discussão sobre os projetos na escala subcontinente ampliou as possibilidades de investimento e cooperação internacional para a execução dos mesmos.

Neste sentido, Gardin (2008: 81) menciona que mesmo antes da criação das iniciativas intergovernamentais citadas, as políticas de desenvolvimento do modal hidroviário no Brasil ganhou maior importância após a criação do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), pois as hidrovias Paraguai-Paraná e Tietê-Paraná – que formam o principal corredor hidroviário da Bacia do Prata – passaram a ter evidência no processo de integração entre os Estado Partes (membros efetivos do bloco), visando a diminuição dos custos na circulação de mercadorias. Encontramos ainda em Gardin (2008: 82) outro exemplo: a criação da Comissão Bilateral de Interconexão Viária (Brasil-Peru) em 1981. A comissão foi criada para a discussão da proposta de uma rota bioceânica que promoveria a conexão do território brasileiro (partindo da BR-364 que liga Cuiabá, Porto Velho e Rio Branco) aos portos de Calla, Maratani ou llo no Peru.

Para a seleção dos projetos, a criação dos espaços de discussão, e a elaboração das normativas para execução dos mesmos, independentemente da escala geográfica, o Estado possui um papel fundamental.

Embora este papel esteja em constante transformação, o Estado ainda é um dos agentes que detém o controle e a regulação sobre o território - sendo neste último aspecto, o principal atuante para a conformação das normas que legitimam as ações nos territórios, as estratégias de cooperação e competição, bem como a seletividade territorial.

Segundo Arroyo (2015: 45) há uma ação institucional política para facilitar a inserção do mercado nacional no mercado externo. A ação institucional política interage com a ação institucional privada (grupos empresariais, associações setoriais, práticas de lobbies etc.). Tal interação, conforma-se, do ponto de vista normativo, na criação de instrumentos que regulam a circulação das mercadorias e a porosidade territorial: sistemas de alfândegas, impostos e tarifas, financiamentos e seguros, taxa de câmbio, organismos estatais federais, entidades empresariais (Arroyo, 2015: 49).

A seletividade territorial reforça os padrões de desigualdade e concentração (Blanco, 2015: 20), os quais exprimem a posição ocupada pelos espaços na divisão territorial do trabalho, ou seja, como produtor no sistema-mundo, no território nacional e na escala regional. Ademais, a divisão territorial do trabalho determina a relação entre as escalas geográficas, os níveis de comando, de subordinação e de valorização dos espaços.

As redes técnicas atuais, enquanto sistemas de engenharia modernos e complexos, transmitem valor às atividades que dela se utilizam. Assim, os lugares melhor dotados de infraestruturas serão mais disputados entre as empresas que entram no jogo da competitividade (Arroyo, 2015: 42).

O jogo da competitividade mencionado na citação de Arroyo (2015: 42), é denominado por Santos (2006: 181) como a guerra dos lugares em que as vantagens comparativas são capazes de criar e atrair novos empregos e riquezas. Como estratégias, utilizam-se aspectos simbólicos associados aos recursos materiais e imateriais contidos nesses espaços para torná-los cada vez mais atrativos (Santos, 2006: 181).

Contraditoriamente, ao mesmo tempo em que os lugares competem, é preciso adotar estratégias de cooperação, pois a própria divisão do trabalho se dá pela interdependência dos lugares, já que nem todos os lugares incluídos na rede desempenharão os mesmos papéis. Por outro lado, os papéis desempenhados na rede não são fixos, assim como a própria rede também não é.

As redes estão em constante processo de transformação porque elas são construídas socialmente. Na relação espaço-tempo, as redes se conformam de acordo com as inovações técnicas que determinam a espacialidade humana. Na contemporaneidade, a espacialidade humana é cada vez mais verticalizada, seguindo a lógica global de simultaneidade espaço-temporal.

Em oposição à homogeneização verticalizada resiste o espaço banal por meio da contiguidade através da qual os lugares, as identidades e o protagonismo dos indivíduos se fortalecem (Santos, 1994: 18). A complexidade das relações interescalares colaborou para a superaçãoda pretérita hierarquia estanque estabelecida entre centros urbanos - como já apontava Leila Dias (2000: 151).

A relação interescalar e espaço-temporal nos permite analisar a sobreposição das redes considerando suas diferentes idades, as rugosidades e a inércia das formas, conceitos discutidos amplamente por Milton Santos (2006). Raffestin (1993) também debateu sobre as alterações histórico-temporais das redes, considerando as relações de poder que nelas são imbuídas. A partir dessa discussão, o autor afirma que

a rede é proteiforme, móvel e inacabada, e é dessa falta de acabamento que ela tira sua força no espaço e no tempo: se adapta às variações do espaço e às mudanças que advêm no tempo. A rede faz e desfaz as prisões do espaço, tornado território: tanto libera como aprisiona (Raffestin, 1993: 204).

A história das redes é a própria história da sociedade, das relações de poder e das inovações. Na contemporaneidade, com o aprofundamento dos processos de mundialização do capital, as redes de circulação, sobretudo as redes de transportes, são planejadas especificamente para atender às demandas do mercado internacional, articulando-as aos interesses estrangeiros. Boudouin (2003: 41) chega a essa conclusão ao analisar o processo de modernização dos portos no Brasil, no qual identificou mudanças significativas na estrutura e na organização desses portos.

As mudanças na estrutura e na organização dos portos, modificaram a importância desses fixos na rede, para Barat (2011: 222), os portos se tornaram “empreendimentos comerciais, com forte influência no desenvolvimento regional”. Destacamos neste artigo, o caso do Terminal Hidroviário de Porto Murtinho.

Porto murtinho

Porto Murtinho foi um dos últimos municípios a ter acesso pavimentado no estado de Mato Grosso do Sul, o que só aconteceu no ano de 2003 com a inauguração do trecho final da BR-267 (Souza, 2008: 60).

A desconectividade do município em relação à rede de transportes estadual foi rompida por conta do potencial de circulação hidroviário de commodities. Assim, em menos de vinte anos, o município passou de desconectado para o status de novo ponto estratégico na rede de transportes estadual.

A Figura 1 mostra a conformação parcial da rede de transportes do estado de Mato Grosso do Sul. No mapa, estão identificados os portos, pontos de fronteira, as rodovias e ferrovias do estado.

Figura 1. Rede de transportes do estado de Mato Grosso do Sul, 2014. Fonte: Elaborado pela autora com base nos dados do DNIT, 2014.

Assim como os demais estados brasileiros, Mato Grosso do Sul possui uma rede ferroviária incipiente que conecta o estado apenas no sentido latitudinal. Já as rodovias, embora proporcionem uma conectividade mais ampla, percebemos que as conexões diminuem na região pantaneira do estado. Além do terminal hidroviário de Porto Murtinho, o estado conta ainda com outros portos como o de Corumbá e o de Ladário.

Observa-se na Figura 1 que a única ligação via transporte terrestre com o terminal hidroviário é a BR-267, a mesma rodovia que propiciou a conectividade do município à rede de transportes do estado.

Os investimentos públicos e privados no terminal de Porto Murtinho aumentaram nos últimos anos em decorrência da possibilidade de diminuição dos custos na exportação de commodities, sobretudo da soja e do milho, como uma rota alternativa ao escoamento tradicionalmente feito pelos portos de Santos/SP e Paranaguá/PR.

O estado de Mato Grosso do Sul é um dos principais produtores de commodities do país. Em vinte anos, a produção de soja no estado cresceu trezentos e vinte por cento, tornando-o o quinto maior produtor de grãos do país, com a produção equivalente a trinta por cento de seu Produto Interno Bruto - PIB (SEMAGRO, 2019).

A Figura 2, mostra a quantidade de soja em grãos produzida por tonelada, segundo as mesorregiões de Mato Grosso do Sul no ano de 2018. As regiões sudoeste e centro-norte são as que concentram a maior quantidade de produção da soja. Comparando as figuras 1 e 2 percebemos que a partir de ambas as mesorregiões citadas, é possível acessar o terminal de Porto Murtinho por intermédio do eixo rodoviário estruturante e de suas conexões.

Figura 2. Quantidade de soja (em grãos) produzida nos municípios do estado do Mato Grosso do Sul, 2018. Fonte: Elaborado pela autora com base nos dados do IBGE – Produção Agrícola Municipal, 2018.

A diminuição da distância do escoamento das commodities pelo terminal de Porto Murtinho passou a ser estimulada pelo governo estadual a partir do ano de 2015 com a promulgação do decreto estadual Nº 14.279/2015. Através dessa norma, o estado de Mato Grosso do Sulcriou a possibilidade de dispensa ou redução das operações tributárias, tornando o escoamento da soja pelo terminal ainda mais barata do que os portos do sudeste e do sul do país.

O secretário de Meio Ambiente, Desenvolvimento Econômico, Produção e Agricultura Familiar, Jaime Verruck, declarou em reunião com representantes das indústrias alimentícias chinesas, no segundo semestre de 2019, que com a nova rota para as exportações de commodities no estado, o produtor de soja chegará a ganhar dez dólares adicionais por tonelada se comparado às rotas para os portos de Santos/SP e Paranaguá/PR.

O aumento na produção de soja no estado de Mato Grosso do Sul está atrelado ao movimento de reprimarização da pauta de exportação brasileira. A reprimarização fez parte da política macroeconômica do país no momento de expansão da demanda chinesa por commodities. A alta do preço da soja no mercado internacional e o crescimento do setor do agronegócio no país propiciaram a expansão das áreas agricultáveis, como foi o caso de Mato Grosso do Sul.

Por outro lado, a reprimarização da pauta de exportação brasileira, atrelou o movimento da economia do país à economia chinesa. Um exemplo ilustrativo é a queda no total de exportação da soja para o país asiático em decorrência da gripe suína no país em 2019. Segundo a ANTAQ (2019: 5), no ano de 2018, o total de exportação da soja brasileira para a China foi de 60,3% da produção nacional, porém em 2019 o percentual de exportação caiu para 48,1%.

No caso específico do estado de Mato Grosso do Sul, a Figura 3 mostra que o total de exportação de soja entre os anos de 2018 e 2019 seguiu a mesma tendência.

Figura 3. Mato Grosso do Sul: total anual de exportação de soja para a China no período de dez anos (em milhões de dólares). Fonte: Elaborado pela autora com base nos dados do AgroStat Brasil, 2020.

Como já mencionado anteriormente, um dos grandes desafios na circulação no Brasil e no estado de Mato Grosso do Sul são os gargalos infraestruturais dos setores de transportes e logística.

O fato da economia brasileira ter parte de seu dinamismo calcada no agronegócio, torna a logística dos granéis o grande desafio. Neste setor, o transporte responde por 60% ou mais dos custos logísticos. Muitos são os problemas de infraestruturas que deverão ser sanados para facilitar o escoamento de granéis, reduzir os custos e, em consequência, aumentar a competitividade das exportações (Barat, 2011: 234).

Para superar os entraves em decorrência das descontinuidades das redes de transportes, o Estado e a iniciativa privada aumentam os investimentos a fim de ampliar a fluidez e a porosidade territorial. O terminal de Porto Murtinho é um exemplo ilustrativo.

Em 2002, o terminal de Porto Murtinho operava com a capacidade para a circulação de quatrocentos mil toneladas de grãos por ano (Souza, 2008: 59). Com a atração de novos investimentos e a modernização do terminal, foi concluído um novo projeto graneleiro no ano de 2020. O projeto esteve à cargo do grupo maior grupo exportador de soja pelo Rio Paraguai, a FV Cereais. O novo porto construído no terminal tem a capacidade inicial de circulação de dois milhões de toneladas de grãos por ano (FV Cereais, 2020). Está previsto ainda, a construção de mais dois portos no terminal hidroviário de Porto Murtinho, sendo um deles, com investimento estimado em 120 milhões de reais, que será feito pelo grupo argentino Navios Logísticas América do Sul (Portal MS, 2019). A expectativa é que o investimento total no terminal de Porto Murtinho chegue a seiscentos e cinquenta milhões de reais, essa expectativa gerou um processo recente de especulação imobiliária em Porto Murtinho, cujo resultado foi o aumento de quatrocentos por cento nos terrenos urbanos (Portal MS, 2019b).

Pelo potencial de diminuição dos custos devido a mudança na rota de circulação das commodities para exportação, o terminal hidroviário tem sido chamando pelos agentes estatais, empresários e veículos midiáticos de “Novo Paranaguá”.

A Figura 4 mostra o escoamento do complexo da soja segundo os portos brasileiros no mês de março de 2020. Na Figura 4, Porto Murtinho aparece entre os dez portos com maior destaque na movimentação do complexo da soja no Brasil.

Figura 4. Complexo da soja – escoamento da exportação segundo portos brasileiros em março de 2020. Fonte: Elaborado pela autora com base nos dados do CONAB – Portal de Informações agropecuárias, 2020.

A modernização do terminal hidroviário de Porto Murtinho está sendo acompanhada por outros investimentos necessário na rede de transportes, como é o caso do projeto do contorno rodoviário a partir da BR-267 e da construção da ponte binacional entre Carmelo Peralta e Porto Murtinho.

O primeiro exemplo é o contrato entre a Agência Estadual de Gestão e Empreendimentos (Agesul) com a empresa Engenharia e Comércio Bandeirantes, anunciado em fevereiro de 2020 para a implantação e pavimentação do projeto do contorno rodoviário a partir da BR-267. O contrato foi fechado no valor de 25,2 milhões de reais e será pago pelo Fundo de Desenvolvimento do Sistema Rodoviário de Mato Grosso do Sul (Portal MS, 2019c). A execução do projeto deverá levar dez meses para ser finalizado, cujo objetivo é melhorar o acesso ao porto, diminuindo o fluxo de caminhões na cidade de Porto Murtinho (AGESUL, 2020).

Outro exemplo, é a construção da ponte entre Carmelo Peralta e Porto Murtinho prevista para ser inaugurada em agosto de 2023 (SEMAGRO, 2019). A ponte está incluída na Rota de Integração Latino-Americana (RILA), que já teve parte do trajeto concluído pelo governo Paraguai, em novembro de 2019, com a construção da rodovia entre Porto Murtinho e Loma Plata. A rota bioceânica, permitirá o escoamento das commodities pelos portos chilenos, diminuindo o tempo de deslocamento dessas mercadorias para o mercado asiático.

Considerações finais

A modernização do Terminal Hidroviário de Porto Murtinho modificou o papel desempenhado pelo município nas redes urbana e de transportes de Mato Grosso do Sul. Como visto ao longo do artigo, em pouco menos de duas décadas, o município passou de um ponto desconectado da rede ao status de “Novo Paranaguá”. Em outras palavras, o município foi selecionado como ponto estratégico na rede por seu potencial hidroviário e a possibilidade de promoção da circulação da soja com a obtenção de maiores lucros.

As transformações decorrentes dos novos direcionamentos dos fluxos se devem à ação institucional conjunta entre o Estado e a iniciativa privada, com a ampliação dos investimentos e o estabelecimento de normas que incentivam uma reconfiguração da rede de circulação da soja em Mato Grosso do Sul. As transformações na rede implicam em rebatimentos em diferentes escalas geográficas que compreendem desde o aumento dos terrenos urbanos em Porto Murtinho até a configuração de novas redes entre o Brasil e o Paraguai.

As novas lógicas da rede de circulação da soja no estado de Mato Grosso do Sul seguem como princípio o estímulo à fluidez territorial e à eficiência entre fixos e fluxos a fim de atender à demanda chinesa por commodities, materializando no espaço, a espacialidade contemporânea. Portanto, é impossível analisá-la sem considerar as relações multiescalares e multidimensionais que a materializaram, as quais, dentre outras coisas, demonstram o papel de Porto Murtinho, do estado de Mato Grosso do Sul e do Brasil na divisão territorial do trabalho, e os agentes envolvidos neste processo.

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Dayana Aparecida Marques de Oliveira Cruz / d.dayana@hotmail.com

Doutora, mestre e graduada em Geografia pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FCT/UNESP). Docente do Instituto Federal de São Paulo (IFSP/Registro).