0000-0002-1819-3432 Everton Rangel[1]
What can love endure? Lies make family by making the loved one vulnerable
¿Qué puede soportar el amor? Mentiras producen família volviendo vulnerable al ser amado
Este artigo tem como objetivo descrever de que maneira foi erguido e sustentado o amor de uma mulher pobre e grávida, Célia1, por um homem, Tonico, também pobre2, que ela não tinha certeza se era ou não um estuprador e é o pai do seu filho. Tonico conheceu Célia em um pagode no centro do Rio de Janeiro, enquanto cumpria pena em um presídio semiaberto, e era justamente sobre o crime que teria cometido que ele mais mentia para ela. Visando explicitar que a mentira está diretamente relacionada à produção do laço amoroso, primeiro discorrerei sobre algumas noções de amor e, em seguida, mobilizarei aquela que me parece mais próxima aos meus dados para discutir a mentira e seus efeitos. Quatro perguntas principais serão enfrentadas: quais são os custos subjetivos de tentar amar e crer em um noivo que parece mentir o tempo todo? Como amor e mentira se vinculam à produção de vulnerabilidade? Existe um nexo entre amor, mentira e vulnerabilidade capaz de produzir família? Se sim, é possível dizer que esse nexo é incitado e marcado pela prisão?
A etnografia aqui apresentada é fruto de trabalho de campo realizado entre 2015 e 2019 no Rio de Janeiro com as famílias de homens condenados por crimes sexuais que estavam em fase final de cumprimento de pena. Conheci a maior parte dos meus interlocutores, homens e mulheres a eles vinculadas afetivamente nos dias de atendimento de família realizados na sede do Núcleo do Sistema Penitenciário da Defensoria Pública (NUSPEN/RJ). Essas pessoas, em geral, me enxergavam como alguém que poderia facilitar acesso e compreensão dos procedimentos burocráticos indispensáveis à concessão de liberdade dos apenados. Ou seja, parti em direção às casas dos meus interlocutores sendo o rapaz da Defensoria, e não exatamente da universidade, que fazia uma pesquisa. Isso significa que era costumeiramente associado à Justiça em sua face benevolente e humanitária, e não àquela persecutória, “que manda prender e não escuta”. Ao realizar a pesquisa a partir do NUSPEN, fui visto com bons olhos, o que ajudou a minar muitas desconfianças quanto ao meu interesse em histórias “de anos atrás”, além de abrir as portas de casas e relações nas quais nem sempre foi fácil trafegar.
No caso de Célia e Tonico, há uma particularidade porque ele nunca a deixou entrar na sala de atendimento onde ela teria descoberto uma série informações que, pouco a pouco, obteve por outros canais. Embora o princípio de confidencialidade regulasse a minha relação com os meus interlocutores, impedindo que discutisse com qualquer um deles o que por vezes sabia existir nos documentos estatais sobre crimes - a não ser que me contassem ou mostrassem -, tentei repetidas vezes criar estratégias para que Célia, através dos canais formais, tivesse acesso à verdade jurídica. Foi o meu desconforto com as mentiras de Tonico que me fez notar a adesão de minha interlocutora à relação com ele. As descrições a seguir privilegiam o momento em que consegui ficar mais perto de Célia, a contragosto de Tonico, e assim entender da perspectiva dela o que estava vivendo com o seu noivo3. Argumento que mentiras fazem família, fabricando e se apoiando em diferentes ordens de vulnerabilidade cujo conteúdo preciso deve ser etnograficamente delimitado e debatido a partir de diferentes ângulos de observação.
Não é novidade dizer que aquilo se entende por amor marca a forma das relações em contextos sócio-históricos específicos. Viveiros de Castro e Benzaquen (1977), em artigo no qual analisam o drama Romeu e Julieta como um mito, enfatizam que a noção de amor romântico emergiu junto a novas formas de organização das relações familiares no Ocidente. Os autores associam esse sentimento a uma cosmologia na qual o individualismo enquanto valor ganhou centralidade em prejuízo das regras de aliança entre famílias. Essa transformação social teria facultado a possibilidade de que o casamento se tornasse uma escolha de cunho privado e sentimental, e não mais uma obrigação inscrita em sistemas de prestações e contraprestações morais e materiais assumidas por uma família extensa em relação a outra. Enquanto mito de origem, a tragédia shakespeareana anunciaria a substituição de uma “sociologia da aliança” por uma “psicologia do amor”.
Tematizado e definido em termos historicistas, o amor conta mais sobre transformações culturais em certos lugares do mundo e menos sobre a forma como os indivíduos o vivenciam. Importa reter das formulações acima a identificação do valor atribuído ao amor nas sociedades ocidentais porque nas páginas que seguem dedicarei atenção à maneira como Célia mobilizava e particularizava pressupostos culturais. Refiro-me à crença no amor como um sentimento capaz de transformar as pessoas - Tonico, notoriamente -, e como sustentáculo primordial da conjugalidade. Para a minha interlocutora, o amor é idealmente um sentimento bom de sentir e capaz de fazer o bem a si mesmo e ao outro, muito embora tudo seja “mais difícil” no desenrolar da vida a dois, e é a essa dificuldade que alguma atenção etnográfica deve ser devotada.
Menos interessada na emergência do amor romântico ocidental do que nos gestos cotidianos que facultam a aproximação afetiva, Veena Das (2010) toma como objeto não uma tragédia, como a de Romeu e Julieta, e sim as práticas nada extraordinárias que fazem o amor: viagens, ajudas, esperas, dores, silêncios etc. A autora nos conta como, pouco a pouco, Kuldip, um hindu, e Saba, uma muçulmana, forjaram maneiras de amar capazes de atravessar antagonismos de pertencimento críticos e de, assim, criar um campo relacional no qual as famílias deles passaram a interagir sem fazer com que tudo que historicamente os opunha simplesmente sumisse. A ênfase recai sobre a plêiade de engajamentos ordinários que permitiram, no contexto preciso dessas relações, o florescimento lento do descobrimento de modos de vida possíveis. Nesse contexto, Das (2007) chama atenção ao silêncio como um gesto - de amor, por vezes - que trabalha para criar o ritmo viável das relações. Imagine, por exemplo, um jantar entre pessoas que discordam se um dos familiares presentes é ou não um estuprador e, a todo custo, evitam o assunto permitindo assim que o jantar prossiga e a comensalidade faça família a duras penas (Rangel, 2020).
Como Das, busco visualizar o amor através do cotidiano enquanto lócus dos engajamentos interpessoais. Se é através do desenrolar dos dias que nos tornamos abertos ou não a responder chamados do outro, o amor está implicado a um trabalho lento de formação de um determinado self em relação aos self(s) adjacentes. Proximidade é chave, pois está relacionada aos pequenos atos que permitem a reconfiguração contínua das relações amorosas. Essa abordagem é particularmente relevante porque, por um lado, chama atenção ao amor enquanto prática e, por outro lado, sublinha a opacidade dos sujeitos que juntos compartilham os dias. Pode-se dizer então que a vida a dois não é meramente hábito, que o cotidiano não existe como um fato dado e que nem mesmo os sentidos das ações podem ser fixados porque nunca se sabe plenamente como eles serão entendidos por um(a) amado(a) que pode se revelar desconhecido(a). A incerteza é uma marca do cotidiano, o trabalho de amar exige cuidado e o amor parece comportar alguma vulnerabilidade (Das, 2020). Ao dizerem “eu te amo”, Kuldip, Saba, Julieta e Romeu, mas também Célia e Tonico, se expuseram a pessoas que podiam não dar as respostas por eles esperadas.
“Eu te amo” não é um ato de fala performativo (Austin, 1962) tal qual “batizo essa criança” ou “aceito esse casamento” porque apenas essas duas últimas declarações são capazes de produzir uma realidade imediata se enunciadas nos contextos apropriados. “Eu te amo” está mais associado aos atos de fala perlocucionários, que são aqueles que visam produzir efeitos como o de convencimento, persuasão, dissuasão e até mesmo engano. Ou seja, um ato de fala perlocucionário pode comunicar também a promessa de um sentimento que nunca existiu ou que por razões específicas não pôde ser cumprido. A vulnerabilidade percebida por Das no amor está relacionada a essa exposição à opacidade do outro, que pode convencer dizendo a verdade ou a mentira. Como se verá, ao afirmar que amava Célia, Tonico prometia a ela uma vida com a qual a sua noiva sonhava, mas sem ter a certeza de que um dia se realizaria. As mentiras dele produziam essa incerteza na superfície do cotidiano e, assim, faziam com que ele mesmo se tornasse um tanto desconhecido para Célia: “não parece o homem pelo qual me apaixonei”. Não há como congelar os gestos de amor porque eles são promessas cujo sentido emerge sempre em relações e momentos específicos.
Thus, passionate statements such as “I love you” cannot rely upon shared convention to be successful or unsuccessful but must stake a claim to be unique to that speaker and that addressee. While dependent on such conventional words as “I love you,” passionate utterances must also signal the uniqueness of that moment for this person speaking these words (Das, 2020, pg. 64).
Essas ponderações sugerem, a meu ver, que atos classificados pelos nossos interlocutores como amor não apenas são únicos, como também podem ser bem menos generosos do que o desejado e, por isso mesmo, as relações terminam sendo “mais difíceis” do que o ideado e implicando ordens diferentes de vulnerabilidade - adiante pormenorizadas. Por hora, importa ainda destacar que me aproximo das ponderações de Andrade (2018) na medida em que a autora tematiza o amor como ação, bem como assume que é preciso entender quando “sofrer por amor” se torna vulnerabilidade ou prova da força de alguém. Para ela, seria preciso analisar como se constroem os limites entre uma coisa e outra, chamando atenção aos “clicks”4 que fazem com que aquilo que foi discursivamente construído como força possa se tornar, em outro momento, evidência de um relacionamento “destrutivo”. Seguir os “trajetos” das relações e dos sentidos a elas atribuídos requer que esses mesmos trajetos e sentidos sejam desvelados “na imanência do cotidiano”.
Os dedos das mãos de Célia estavam em carne-viva. Após dias de trabalho intenso na cozinha, as bolhas que a incomodavam tinham, uma a uma, estourado. Os prejuízos causados por uma alergia e multiplicados pela feitura de docinhos para fora foram fotografados e enviados a mim, por WhatsApp, tanto como prova material do investimento dela na moralidade do trabalho, quanto como forma de expressão de gratidão pelo dinheiro que eu a havia dado para comprar latas de leite condensado e um pouco de comida. Célia, na legenda de uma dessas fotografias, disse que estava “muito chateada” com o seu noivo, Tonico, porque ela o “ajudava muito” e ele parecia “nem se preocupar”. Mesmo insatisfeita, ela não deixou de atravessar a cidade, da Baixada ao centro, várias vezes por semana, para vê-lo no final de cada expediente - antes, portanto, que Tonico retornasse para dormir no presídio semiaberto onde terminava de cumprir parte de uma pena de 25 anos. Os dedos fotografados, quando pensados junto a deslocamentos que não cessavam, evidenciam um amor e as expectativas que o acompanham.
Célia queria que seu futuro marido fizesse mais por ela. Queria que ele pagasse o aluguel e que evitasse, como acabou acontecendo, que a luz da casa quase sem móveis onde ela vivia fosse cortada. As contas de luz foram entregues para Tonico, que, por sua vez, disse que as entregou a uma pessoa que lhe devia dinheiro por um serviço. O aluguel até estava em dia, mas Tonico não sabia disso. Eram os docinhos que resolviam o que ele não resolvia. Célia deixou claro que geria a sua relação afetivo-sexual apelando a mentiras que tinham como propósito cobrar do seu noivo uma tomada de atitude no sentido da responsabilização pelas contas da casa. E juntos, eu e ela, não contávamos para Tonico sobre a existência das nossas conversas. Omitindo, lidávamos com o incômodo que a nossa aproximação produzia nele, podendo resultar inclusive nos “esculachos” dos quais a minha interlocutora tanto reclamava.
Já que Célia estava grávida, de Tonico, e tinha jantado apenas pão na noite anterior ao nosso terceiro ou quarto encontro, paguei a ela um almoço que terminou gerando mais complicações. Enquanto realizava-se através das palavras como agente moral íntegro, uma mulher que se dispôs a amar um condenado porque sabe que o passado dele a ela não compete, Célia contava que a ex-mulher do seu noivo havia mandado mensagens para ela no Facebook dizendo que ele era “pedófilo”. Célia, no entanto, não acreditou; ou, melhor dizendo, parecia preferir acreditar que o pai do filho que estava esperando já não se envolvia com “negócio de drogas” e que não tinha estuprado o menino que foi seu enteado. Fiquei em silêncio. Eu não tinha informações sobre tráfico de drogas e Tonico havia me dito que, embora tivesse sido preso pelo crime de estupro de vulnerável, era alvo de uma falsa acusação, injustiça cometida por sua ex-mulher.
A narrativa Tonico era comum a de muitos homens condenados por crimes sexuais que conheci enquanto realiza trabalho de campo. Geralmente, apelavam a repertórios normativos de gênero que substancializam o mal nas mulheres responsáveis pela formalização da acusação de estupro em sede policial, como se elas fossem traiçoeiras, interesseiras e praticassem grandes estratégias de vingança em função de pequenos erros que não se confundiam com atos sexuais tidos como monstruosos (Rangel, 2019). A possibilidade de homens como Tonico serem vistos como honestos, bons pais, provedores e afins parecia depender, frente à acusação de estupro, da maculação do feminino, por um lado, e, por outro lado, da própria crença nessa maldade generificada. Não é como se Célia não tivesse dúvidas quanto a Tonico. A questão é que, em um contexto de incertezas múltiplas, ela se apegava ao repertório normativo de gênero por ele operacionalizado. Como se verá adiante, sem a figura de uma mulher malfeitora, seria ainda mais difícil olhar para Tonico e encontrar nele o marido buscado.
Como ninguém da família de Célia sabia que o seu noivo estava preso, ela raramente podia ter uma conversa sobre a relação na qual estava mergulhada. A decisão dela de insistir em afirmar histórias inventadas para justificar a ausência quase contínua de Tonico em sua casa produzia a desconfiança alheia e a isolava das pessoas próximas que poderiam ouvi-la. A primeira vez que a escutei foi na noite em que me ligou desesperada porque, ao realizar uma consulta online - a pedido de Tonico - do andamento do processo de execução dele no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), se deparou pela primeira vez com a sentença de 25 anos. Fosse aquilo que ela entendeu o apropriado em termos jurídicos, o casamento que eles planejavam para logo não aconteceria tão cedo. “Como assim o Tonico não vai sair da cadeia esse ano?”, ela questionava.
Se Tonico, ao dizer que a condenação por estupro de vulnerável era injusta, estava falando a verdade para mim, estaria ele mentindo para sua noiva ao dizer que o crime que cometeu foi o de tráfico de drogas? E, se tanto tráfico quanto estupro constituíssem o processo ou os processos dele, estaríamos então falando sobre mentiras e omissões? Há diferença entre mentir e omitir?
Célia não via as omissões que promovia sobre a vida de seu namorado para a sua família como tão danosas quanto as mentiras que ela suspeitava que ele contava, embora vez ou outra ela se ressentisse por não estar sendo honesta como gostaria. Célia também não via de forma negativa o fato de não contar para Tonico que já tinha pagado uma conta quando ele, muito tempo depois, aparecia com dinheiro para pagá-la. Ao contrário, acreditava que assim estava ensinando algo ao pai de seu filho. Esse contraponto entre a omissão e a mentira realizado por Célia aparece nos escritos de Hannah Arendt (2005) espelhado na diferenciação que a autora realiza entre a mentira como ocultação e a mentira como destruição. A omissão, nesse sentido, teria a ver com a arte de ludibriar e comportaria valor negativo de grau menor do que o da mentira, que, por sua vez, teria como objetivo final o rearranjo de toda a ordem do factual, a substituição da realidade por uma imagem secundária. Isso, do ponto de vista de Célia, seria o que Tonico estaria fazendo, caso fosse um “estuprador” fingindo não o ser. Se ela omitia em função de finalidades justificáveis, ele atuava para que a verdade jurídica sumisse e fosse substituída pelo que contava.
A mentira como ocultação e como destruição, no entanto, tem um fundo comum: são modalidades de ação. Filhas da astúcia, as mentiras requerem a capacidade de analisar, combinar e/ou fantasiar, visando conduzir os acontecimentos a uma direção imaginada. O mentiroso conhece a distinção entre o verdadeiro e o falso, porém imprime através dos seus atos uma realidade que não é idêntica àquela que sabe existir. Ele transforma a história, dá forma ao fluxo dos acontecimentos ao agir intencionalmente. Ele é “um homem de ação”, conforme a célebre frase da Arendt. Mas as mentiras que mais espantaram a autora, bem como a Célia, foram aquelas que a fizeram notar a violência impregnada à destruição da realidade, à substituição da verdade jurídica por narrativas desencontradas.
Seguindo essa linha de raciocínio, nota-se que a mentira de Tonico direcionada à Célia não é bem descrita se percebida apenas como intenção de ocultar documentos. Tratava-se, no limite, de um esforço para destruí-los. Tonico lançava mão das ferramentas de que dispunha. Para mim, insistia em dizer que, embora tivesse sido condenado pelo estupro de uma criança, a condenação era injusta. À sua namorada dizia ter sido preso por tráfico. O desejo de liquidar a verdade jurídica insinuava-se nas múltiplas maneiras de manejar o estigma de “pedófilo”. Levarei o argumento adiante, sugerindo que as pretensões de Tonico falharam no que se referiu à capacidade dele de fazer sumir a verdade jurídica de uma vez por todas, mas foram bem-sucedidas no que se referiu à criação e manutenção da relação com Célia. Minha interlocutora estava investida na crença de que a realidade produzida narrativamente pelo seu noivo se sustentava. Mentir, nesse sentido, é também uma maneira de se aproveitar deliberadamente da confiança ou da crença alheia. Derrida (1996) chegou a essa formulação do ato de mentir como um “levar a crer” após concluir que a mentira per se não existe, mas somente esse ou aquele ato de mentir, cuja eficácia - destrutiva ou não - depende da ordem prática, do contexto, das pessoas em interação.
Vale frisar que o peso negativo da figura do pedófilo pode ser menor do que o da figura da ex-mulher nas situações em que o amor por um namorado, noivo ou marido está em questão. Repertórios de gênero normativos, ao veicularem a desconfiança em torno dessa figura feminina, veiculam concomitantemente o esforço em confiar, mesmo que desconfiando, nos homens em que se depositam expectativas sociais sólidas. Se Tonico se tornasse responsável, ele se realizaria como o marido provedor que Célia buscava nele e que, em contrapartida, ele dizia desejar ser. Também a gravidez reforçava a relevância da posição de pai, sombreando a figura do violador sexual e acentuando a esperança de que, no futuro, as coisas pudessem ser diferentes. Célia, crendo no poder transformativo do amor, mantinha-se esperando que seu noivo deixasse de ser irresponsável e juntasse algum dinheiro para comprar a cama que a faria não mais dormir no chão. A crença é fundamental porque é ela que protege a eficácia mágica do amor, atribuindo as falhas ao noivo mentiroso e deixando de questionar o próprio poder do amor em transformar as pessoas.
Isso quer dizer também que, embora Tonico se expusesse ao risco de não ser amado de volta cada vez que declarava “eu te amo”, as circunstâncias específicas da relação que nutria com Célia faziam com que as palavras dele encontrassem continuamente abrigo no colo dela. Mesmo que o amor dele pudesse ser uma mentira, mesmo que Célia nutrisse essa desconfiança, as mentiras de Tonico, bem como a narrativa dele sobre a sua ex-mulher, ajudavam a criar o espaço relacional onde o amor transformador prometia um dia realizar o trabalho de tornar a fantasia (Tonico como bom marido e bom pai) algo um pouco mais concreto. Existem mentiras que trabalham para o amor e, no limite, fazem famílias.
A essa altura é relevante recuperar uma crítica à definição de parentesco como participação intrínseca de parentes uns nos outros (Sahlins, 2013). Os aspectos positivos do parentesco terminaram sobressaltados em diversas análises que revelaram a “mutualidade do ser” enquanto existência coadunada de parentes, o que, por conseguinte, deixou ambivalências, dores e outros aspectos difusos em um plano mais baixo de evidência (Peletz, 2000). Carsten (2014), com essa observação em vista, propôs que a temporalidade fosse tratada como chave analítica relevante para chegarmos não a outra e nova definição sobre o que é o parentesco, e sim para entendermos como o mesmo é feito e desfeito. A esses processos deu os nomes de “espessamento” e “diluição”, respectivamente, buscando chamar atenção à possibilidade de aprendermos como o ritmo das relações marca as formas que elas assumem.
No caso aqui descrito, esse ritmo é definido pelo vai e vem das mentiras que mais espessavam as relações do que as diluíam, com custo emocional para os envolvidos. O que parece importante destacar ainda é que se, por um lado, a crença de Célia no potencial transformador do amor protegia Tonico de se tornar, sem que restassem dúvidas, um mentiroso; por outro lado, essa crença era operacionalizada em um contexto de vulnerabilidade socioeconômica que tornava o seu perdurar ainda mais significativo. Sem dinheiro para necessidades básicas e esperando um filho, Célia via em Tonico um caminho tortuoso para levar a vida adiante. Tonico, em cumprimento de pena e sem saber exatamente o que fazer da vida, também via em Célia uma porta para o futuro. Não estou dizendo que o amor é função direta e inequívoca da vulnerabilidade socioeconômica, e sim que o contexto de precariedade material influi de modo complexo e até mesmo embaçado na maneira como meus interlocutores foram se tornando parentes.
Embora Célia e Tonico estivessem ambos vulneráveis em termos econômicos, gênero produzia no interior da relação deles não só formas diferentes de experienciar essa vulnerabilidade, como também dava a Tonico algumas prerrogativas que Célia não tinha. A principal delas tem a ver com a possibilidade das mentiras dele exacerbarem a incerteza à qual ela estava enredada. É claro que a incerteza se distribui diferencialmente pelo tecido social, embora não deixe nunca de ser parte da vida coletiva e, nesse sentido, seja algo inescapável e contra a qual as pessoas, de forma mais geral, lutam enquanto tentam viver vidas que consigam preservar o mínimo daquilo que a elas mais importa (Kleinman, 2006). Mas o que faz com que aquilo que importa à Célia permaneça no plano da fantasia como uma promessa contundente, mesmo quando a vida cotidiana oferece provas cabais do contrário? A mentira não é a única explicação, mas também não podemos perdê-la de vista, pois está relacionada à produção da expectativa feminina de transformação do homem amado. Mais do que isso, a mentira produz laço social produzindo vulnerabilidade psicológica acentuada. Ela é uma das engrenagens que faziam com que Célia se aproximasse subjetivamente de Tonico e, nesse movimento lento, terminasse mais e mais perdida sobre quem ele era e quais danos poderia ou não causar. As mentiras dele fizeram família fazendo dela um pouco mais vulnerável.
Há desespero quando Célia, vinda da Baixada com uma bolsa cheia de quentinhas, não consegue vendê-las por dez reais e decide sair gritando pelo centro do Rio ofertando-as por cinco. Imagine Tonico andando atrás de sua noiva dizendo que ela é maluca e, posteriormente, afirmando que se arrependeu por ter brigado porque ela trouxe mais quentinhas do que ele acreditava ser possível vender no presídio semiaberto onde cumpre pena. Célia se irrita, xinga, me liga. Aos poucos, fui deixando de somente dizer o que imaginava que ela queria escutar - “tudo vai ficar bem” - para dar maior ênfase às frases que ela me dizia de forma acalorada e que apontavam para o término. Repetia: “você é forte”; “ainda bem que já disse para ele que não precisa de homem para nada”; “se o seu coração está te dizendo para não ficar com ele, ouça”. Cada afirmação dela reiterada por mim seguia distanciando-me de Tonico sem, no entanto, produzir o mesmo reflexo na relação do casal.
O pedido de desculpas era central porque Célia não somente queria, como também precisava que “tudo ficasse bem”. Ela sabia perdoar. Mas quando voltou ao local de trabalho de Tonico, eles brigaram novamente. O meu telefone tocou. As queixas se repetiam, se realizavam nos movimentos circulares por intermédio dos quais “a pessoa que [era] objeto de algum infortúnio [construía] discursivamente a sua posição enquanto vítima” (Gregori, 1992, p. 85). Como resultado, o outro culpado, Tonico, comparecia pedindo desculpas e, pouco depois, provocando novamente em quem se colocou como vítima a sensação de que foi humilhada sem razão. Era costumeiramente assim. Um ciclo alimentando o outro, movimento que avançava produzindo dor e a certeza de que a relação, apesar dos pesares, ainda existia. Junto a essa certeza, a esperança de que o casamento poderia acontecer renascia. Outra chamada. Depois de chorar, Célia contou que a acusação de pedofilia não “saía da sua cabeça”.
A figura da ex-mulher, em acordo à percepção de Tonico, não tendia a se concretizar por intermédio de um gesto de cuidado direcionado àquela que no presente ocupava a posição de namorada e/ou noiva. Como dito, nas narrativas dos homens injustiçados, frequentemente, acusações promovidas após o divórcio representavam um gesto de vingança direcionado a eles enquanto ex-maridos. Desse ângulo, tudo se passa como se a ex-mulher de Tonico jamais tivesse intencionado alertar Célia. Não há solidariedade na denúncia feita pelo Facebook, há injustiça, vingança, maldade. Ainda que a noiva de Tonico desconfiasse da ex-mulher dele, a separação entre os gestos de cuidado e os gestos de vingança foi se tornando menos rígida ao passo que a acusação de estupro voltava a assombrar.
A foto de uma travesti enviada por Tonico ao sobrinho de Célia, alimentou a preocupação que ela vinha nutrindo em torno da insistência do seu futuro marido em praticar sexo a três. O desejo dele por outro homem, um amigo do casal, incomodava porque maculava a heterossexualidade, mas também porque direcionava a uma aproximação vulgar entre homossexualidade e pedofilia (Lancaster, 2011). A insistência de Tonico em falar sobre ménages não pode ser separada da percepção que sua futura esposa tinha da foto da travesti enquanto evidência material da sedução de um adolescente e de um desejo desconfortante. A essas desconfianças, Célia somava o dia em que seu noivo, durante o cumprimento da visita periódica ao lar, passou algum tempo em um dos quartos da casa dela junto a um vizinho, jovem que tinha uma “piroca enorme”. Tonico, anteriormente, tinha visto o garoto mijando e o erotizou dizendo que a sua noiva ia gostar do que ele viu. Célia estava “cismada de que teve alguma coisa” entre o rapaz e Tonico. Ela viu a hora em que seu noivo saiu do quarto com a cueca “toda suja de esperma”, poucos minutos depois do rapaz ter ido embora. Foi assim que a minha interlocutora passou a duvidar da clareza da figura vingativa da ex-mulher, sem, no entanto, apostar definitivamente na acusação de estupro como verdade.
Menino, rapaz, adolescente, sobrinho, jovem e garoto são palavras que apareciam no discurso de Célia chamando atenção a uma fase específica da vida e, ao mesmo tempo, nublando a enunciação de uma idade precisa. Talvez Célia sequer conhecesse as normas jurídicas que definem limites etários para a presunção de violência em casos de estupro de vulnerável no Brasil5, mas recordo que me disse que seu sobrinho deveria ter uns 17 ou 18 anos. A indeterminação expressa por “uns” não é banal. Tem a ver com o horror despertado pela figura do pedófilo e, mais precisamente, com a busca do afastamento da possibilidade de que o pai de seu filho também se revelasse monstruoso. Palavras podem indicar perigo de forma sinuosa o bastante para que seja possível declará-lo e, imediatamente, negá-lo. Isso acontecia a tal ponto que, ao questionar Célia, recebia respostas evasivas sobre como era a tal foto, quantos anos tinha o outro rapaz e o que teria acontecido na casa dela. Célia não só estava sujeita a incertezas de múltiplas ordens, como também as produzia e a elas me sujeitava, fazendo com que fosse à Defensoria Pública em busca de orientação jurídica apropriada e, pouco a pouco, forjasse a decisão de me afastar do casal. Bem antes disso acontecer, ela me mandou um áudio em que explicitou sua vontade de que Tonico mudasse, isto é, abandonasse o interesse sexual por homens em nome de uma nova vida a dois:
E as coisas dele nunca é por causa de mulher. Nunca! Os messengers dele são todos conversas com homens. São todos conversas estranhas. Não é uma conversa normal, porque você pode ter um amigo preso lá no cafundó do Judas, mas você vai perguntar: e aí, fulano, como é que tá, e tal? Como é que tá a cadeia aí e tal? Mas não vai ficar de conversinha íntima. Pelo amor de Deus! Muito esquisito! Muito, muito mesmo. E eu vou ser sincera: o meu amor acabou, sabe? Respeito ele porque é ser humano. Eu não sei se agora ele está arrependido, né? Pelas coisas que ele tem percebido e ele tem tentado mudar, entendeu? Só que agora eu tenho até medo. Antes eu não tinha. Eu sabia que o processo dele era por causa de que ele era envolvido por causa de droga. Não tinha nada a ver com pedofilia. Não tinha nada a ver com abuso sexual. Nada disso! Mas e agora? Agora que eu vivo essas situações todas, eu falei para ele, eu falei, eu falei para o garoto: “eu não quero você com o Tonico”. Porque quando eu preciso estar em casa com ele, eu preciso estar em casa com ele sozinha… porque, como ele tá preso, eu tenho coisas que eu preciso falar que o advogado me passa. São coisas particulares! Mentira, entendeu? É para ver se o menino não aparece aqui em casa, entendeu? Tanto que ele prometeu pra mim que quando ele vier aqui em casa, o Tonico vier, o Tonico já me disse que não vai ligar para ninguém, que ele quer uma vida nova comigo. Mas eu não sei. Eu já perdi todo o meu, todo aquele meu, sabe? Meu interesse. Eu não sei explicar para ti. Eu estou muito perdida. Muito. Eu percebi assim - depois que eu comecei a trabalhar com os doces, com as coisas -, que mais uma vez eu não preciso de ninguém para me levantar, entendeu? Tinha feito planos com ele. A gente estava com planos de casar. Está quase tudo pronto para casar (Áudio do WhatsApp, enviado em 09/07/2018, grifos meus).
Insisti para que Célia procurasse atendimento psicológico quando retornasse à Clínica da Família onde fazia o pré-natal e me propus a agendar um atendimento no Núcleo Especial de Direito da Mulher da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (NUDEM) para que ela recebesse algum tipo de assistência jurídica, ainda que nada do que ela me contou demarcasse a existência de crimes ou de práticas sexuais não consensuais. A acusação de pedofilia e a “cisma” que não “saíam da cabeça” foram inicialmente lidas por mim como motivos para denúncia. Tratava-se, porém, da acentuação da queixa, novamente pensando com Gregori (1992), enquanto movimento circulatório de normalização não somente das humilhações, como também de acusações, incômodos e/ou suspeitas que constituíam a sexualidade e os desejos de Tonico, sob o olhar de Célia. Cada vez que ela me dizia “não é normal não”, desligava o telefone e posteriormente retornava a chamada repetindo a mesma a frase, o que acontecia era uma encenação do “anormal” como normal em uma atmosfera de incerteza e esperança. O ciclo da queixa alargava a capacidade da minha interlocutora de lidar com o que, antes, lhe pareceria absurdo e, pouco a pouco, se “normalizava”. Sem saber exatamente o que fazer, Célia encontrava na queixa alívio, isto é, reencontrava o amor capaz de transformar as pessoas.
Na última vez que falei com Célia, ela me disse que tinha descoberto que Tonico estuprou o filho da ex-mulher dele durante sete anos. As frases “estou muito chateada, porque ele mentiu para mim” e “estou chocada” emergiram acompanhadas da decisão de não contar para Tonico o que agora se sabia melhor do que antes. Não ficou claro para mim se foi ou não o advogado particular recentemente contratado por Tonico que, após não ser pago, atribuiu status de verdade à acusação e à condenação por estupro de vulnerável. Mas ficou claro que Célia, assim que “perdeu o chão”, buscou manter-se próxima a Tonico, evitando os custos imediatos da revelação do que passou a conhecer com mais certeza. Ela não queria confrontar o seu noivo. Parecia temer pôr em risco a relação a duras penas erguida e alimentada. Esse episódio ajudou-me a entender que o conhecimento da verdade jurídica não necessariamente provocaria o desmanchar dos laços forjados dia após dia, nem mesmo a descaracterização da expectativa de que tais laços se firmassem como casamento.
Há otimismo sustentando o movimento circulatório da queixa, mas esse otimismo tem qualidade específica: é cruel. Berlant (2011) argumenta que o otimismo cruel nos permite compreender como se constrói o senso de perseverança, sem deixar de lado os aspectos incoerentes do apego a objetos de desejo. Por que desejamos voltar a uma cena de contato com um objeto de desejo mesmo quando esse contato não é exatamente gratificante? Por que Célia permanecia com Tonico, embora percebesse que ele a prejudicava? O senso de perseverança não é uma irracionalidade do comportamento, pois a proximidade ao objeto de desejo significa proximidade ao conjunto de coisas que o objeto promete: um bom marido, escapatória a uma situação de privação econômica, um bom pai para um filho prestes a nascer etc. A rendição à volta a uma dada cena de contato, passível de ser erguida por idealizações do futuro, revela o próprio otimismo que embala desde a base a relação assumida com homens amados. Diz a autora: o “otimismo cruel nomeia uma relação de apego a condições de possibilidade danificadas cuja realização é descoberta como impossível, pura fantasia, ou muito possível e tóxica” (Berlant, 2011, p. 24)6.
A crueldade do otimismo está no empenho dolorido de Célia para não perder seu objeto de desejo: a expectativa de casamento com o pai de seu filho. Ela voltava a cenas de contato como se assim pudessem suportar o medo de perder aquele que amava, bem como de perder o olhar benevolente em relação a ele. A referência ao termo “fantasia” demarca a projeção de qualidades, como a da responsabilidade, em pessoas que delas se distanciam. O otimismo cruel, porque derivado de condições precárias de existência, descreve uma busca pela sedimentação de uma boa vida numa paisagem subjetiva, sendo o bom aquilo que a vida oferece como o possível de assim ser imaginado. O sujeito dessa fantasia é uma pessoa desgastada e, não obstante, engajada em fazer repercutir as promessas acopladas ao objeto de desejo. Berlant demarca também que nos casos mais extremados dessa forma de crueldade pode-se preferir enlouquecer a perder a fantasia que faculta o trabalho de viver uma vida de incerteza. Para a autora, a atração magnética causada pelo otimismo cruel pode até mesmo suprimir os riscos do apego.
A vulnerabilidade a qual Célia estava exposta diante de Tonico era marcante o bastante para que fosse possível perceber que através dela se construiu a relação do casal. Indo pouco além, pode-se dizer que a própria forma assumida por essa relação dependia tanto da vulnerabilização subjetiva de Célia, quanto do contexto de vulnerabilidade material que definia o campo de possibilidades dos meus interlocutores. Isso sinaliza que o amor não deve ser separado das condições sociológicas de sua emergência, afinal a crença de Célia no amor transformador era exacerbada e singularmente marcada pela urgência material, assim como o era a forma precisa como Tonico manipulava o estigma de “pedófilo” via mentiras inseparáveis da verdade jurídica e do contexto prisional. Mentindo, Tonico buscava ser visto por Célia como uma pessoa encarcerada por tráfico, o que, a seu ver, aumentava a possibilidade de que ela por ele se interessasse afetivamente. As mentiras que criavam o tempo necessário para o amor acontecer e a relação se espessar eram possíveis porque os muros das prisões, ao mesmo tempo que separam, conectam e regulam os fluxos de pessoas, coisas e relações.
“Vasos comunicantes” (Godoi, 2015) tecem os fios através dos quais os territórios urbanos se entrelaçam com as prisões. Por mais que Tonico estivesse cumprindo pena em regime semiaberto quando Célia o conheceu, a prisão marcava a relação do casal ao limitar os fluxos dele pela cidade e ao reclamar a organização da rotina dela: sair mais cedo de casa para poder encontrar Tonico na praça pública onde ele trabalhava; conseguir dinheiro para fazer quentinhas que seriam levadas até o presídio, e não vendidas; arrumar tempo para ir atrás dos documentos dos quais a liberdade do seu noivo dependia e leva-los à Defensoria, onde por vezes encontrei o casal. As filas da Defensoria e dos presídios onde estive eram costumeiramente femininas (Lago, 2019), o que sinaliza a existência de assimetrias de gênero na lida com a burocracia e denota que a vida dessas mulheres é modificada pela prisão, mas não necessariamente nos autoriza a pressupor que elas estão sujeitas a um “aprisionamento secundário” (Comfort, 2003). Segundo Padovani (2015), afirmar isso seria supor que a totalidade das vidas dessas mulheres - mães, tias, amigas, namoradas, avós, etc - é marcada pela forma-prisão, quando, na verdade, sabemos que algumas relações são reposicionadas a despeito da própria prisão (Lago, 2014).
A tese de Padovani (2015) inspirou a construção deste artigo porque sua leitura permitiu que, quando ainda estava realizando trabalho de campo, direcionasse maior atenção às histórias de amor que compõem as redes de afeto constituídas pelos sujeitos que através delas transitam e assim agenciam a porosidade das fronteiras entre um dentro e um fora da prisão. As redes sobre as quais a autora fala são tramas que trazem amores à vida e, mais do que isso, são poemas transitivos dos quais depende certa articulação política que faz as prisões. Falar em prisões e afetos dessa maneira implica pensar os amores a partir daquilo que eles fazem surgir e da maneira precisa como o fazem. As relações que, através de sua especificidade - ajudas, dores e conflitos, com histórias precisas -, tramam redes questionam a ideia de que exista um mercado matrimonial circunscrito por um circuito fechado entre bairros pobres e instituições prisionais. Criticando parte da bibliografia especializada, Padovani assume que, embora não possamos negar a existência de violências e vulnerabilidades no interior dessas tramas, é pouco profícuo trabalhar com a ideia de que elas sejam “script” fechado em si mesmo, afinal as redes são mais abertas do que os circuitos e comportam polissemia, não podendo ser reduzidas à ideia de vínculos fraturados entre pessoas que concentrariam desvantagens cumulativas em termos de gênero, raça, classe.
O aspecto crucial das críticas de Padovani no que tange à compreensão dos termos da relação entre Célia e Tonico, uma dentre as tantas que compõem as redes de afeto entre as prisões e o “mundão”, é a insistência em não fixar a vulnerabilidade em bairros pobres e nem mesmo nos corpos de homens e mulheres - negros, na maior parte dos casos - porque, se assim feito, passamos a vê-los exclusivamente como signo da falta e da violência e a reduzi-los a uma narrativa que os encarcera no sofrimento. As redes falam sobre dores, mas também sobre amores. Basta lembrarmos do conjunto amplo de etnografias que versam sobre a transformação do luto em luta, mais precisamente em ação política, no contexto da atuação de mães que tiveram os seus filhos assassinados pelo Estado. “O trabalho das ‘mães’ arregimenta a experiência prisional desde a perspectiva de ‘familiares’ e de ‘sobreviventes’ das prisões para explicitar o caráter estruturalmente violador da instituição” (Lago, Farias, Efrem, 2023, p.8) e, através desse ímpeto, revela laços familiares e afetivos que, marcados pela dor e pela vulnerabilidade, falam sobre agência em uma linguagem generificada de luta política e ainda sobre lembranças dos filhos vivos que não são inteiramente colonizadas pelas “engrenagens de mortes” (Farias, 2020).
Diferente das perspectivas que tratam a vulnerabilidade de gênero como fixa, como se existisse uma unidade mulher constantemente submetida, aqui se chama atenção à maneira através da qual essa vulnerabilidade se forjou e solidificou em ato, sem que com isso tenham sido fechadas todas as possibilidades de que a família se desfizesse, a relação mudasse de forma ou Célia decidisse nunca mais ver Tonico. Essa abertura constante das relações de parentesco ao tempo é o que faz com que seja rentável observar o seu “espessamento” e/ou a sua “diluição” e é também o que faz com que persevere certa incerteza quanto à repetição, sempre nos mesmos termos, da vulnerabilidade a qual as mulheres e o feminino tendem a estar desproporcionalmente expostos. Mas nem por isso devemos deixar de pesar os custos específicos de estar em uma posição de fragilidade intensificada, mesmo porque a própria vulnerabilidade pode incitar formas múltiplas de violência. Isso acontece, por exemplo, quando o abuso psicológico de alguém não é reconhecido como tal, os pedidos para que o abusador pare e mude não são escutados ou mesmo quando se diz “ela fica com ele porque gosta”. A questão não resolvida por esse senso comum, que nasce da atmosfera de violência de uma relação e a projeta adiante através da responsabilização da vítima pelo dano que sofre, é o sentido sempre particular de amar no interior de uma relação - que, no caso de Célia, tinha a ver com a projeção de um conjunto de expectativas otimistas com relação a Tonico. O que está em jogo é uma aposta no rendimento analítico de noções como a de otimismo cruel para oferecer inteligibilidade à intimidade na perspectiva de mulheres que habitam relações vistas por elas como “difíceis”, seja porque não se parecem com o amor romântico muitas vezes por elas ideado, seja porque nasceram marcadas pela forma-prisão.
Faço essas colocações lembrando que, quando Ann Murphy (2009) sugeriu que um dos desafios atuais do feminismo é se manter vigilante quanto às formas de articulação da categoria de vulnerabilidade, ela estava indicando que há um retorno da aposta feminista nesse conceito. Para a autora, a vulnerabilidade no pensamento feminista foi incialmente formulada como reflexo da violência masculina e, portanto, como uma forma feminina de corporificação dessa violência, o que logo foi submetido a escrutínio, já que as próprias disputas internas aos feminismos assinalavam a existência marcadores sociológicos que, como classe e raça, distribuíam diferencialmente essa vulnerabilidade não só entre as mulheres, mas também entre os homens, criando múltiplos modelos de masculinidade e possibilidades diferenciais de exercício e sofrimento de violência. A passagem da vulnerabilidade substantiva do sujeito mulher para um conceito de vulnerabilidade mais sociológico, está ligada ao desenvolvimento da perspectiva interseccional, mas gostaria de sublinhar principalmente, e exclusivamente em função dos meus propósitos, que conforme muda a noção de vulnerabilidade, muda a forma de compreensão da violência a ela implicada, ou o inverso. Violência e vulnerabilidade estão atadas, ainda que o conteúdo preciso do que seja a vulnerabilidade e a violência varie. Se há variação, a que retorno da noção de vulnerabilidade Murphy se refere?
A autora está interessada especificamente na aposta de Judith Butler (2004) na possibilidade de a vulnerabilidade ser reconhecida como uma virtude ética no sentido da não-violência. Se em um nível ontológico o simples fato de existirmos nos coloca diante da possibilidade de sermos feridos pelo outro, o reconhecimento dessa vulnerabilidade primordial, porque comum a todos, poderia direcionar à formação de comunidade não a partir de sujeitos autônomos e autoativados, e sim a partir de sujeitos radicalmente interdependentes. Nesse sentido, aposta feminista na ética da vulnerabilidade seria uma aposta na interrupção do abuso da vulnerabilidade do outro via reconhecimento da exposição contínua de si mesmo à desapropriação. A questão é que “não há garantia absoluta de que a compreensão da própria vulnerabilidade irá motivar uma tentativa de respeitar a vulnerabilidade dos outros. De fato, há ampla evidência do contrário”7 (Murphy, 2009, p. 56) - e Butler reconhece isso. No nível das relações cotidianas, a vulnerabilidade pode incitar violência, tolerância, cuidado, vinculação a objetos de desejo, pena, empatia com o sofrimento alheio, acusações etc. Se a vulnerabilidade pode se realizar ora como virtude ética, ora como precariedade social, psicológica e/ou econômica, estamos lidando com um conceito ambíguo e potente (Lowenkron, 2015). Em outras palavras, a vulnerabilidade não pode definir um princípio ético universal, mas somente uma ética do particular, porque há sempre que se pensar no caso concreto, isto é, na forma como a nossa exposição ao outro é vivida no cotidiano. Uma ética feminista da vulnerabilidade, ainda com Murphy, precisa “descer à terra” para que seja possível submetê-la a uma “verificação de realidade”.
Essa afirmação é particularmente importante porque denota que há incerteza diante da vulnerabilidade do outro e essa incerteza não só sujeita as pessoas diferencialmente em termos de classe, raça e gênero, como também provoca respostas emocionais plurais e, por vezes, tão desconfortáveis quanto o otimismo cruel. Butler também não discordaria disso, penso, mas o chamado de Murphy é digno de nota porque nos ajuda a entender que aquilo que vulnerabilidade quer dizer depende em muito da história dos conceitos e da escala de análise em que operamos, se em um nível mais ontológico ou mais sociológico. A manutenção da atenção constante aos jogos de escala a que submetemos a noção de vulnerabilidade, enquanto realizamos descrições etnográficas, permite a explicitação de como as nossas próprias etnografias foram construídas, especialmente no que se refere aos compromissos políticos e éticos de uma época. No próprio material de Butler (2015), notadamente articulado a partir de descrições e análises de contextos de guerra, a possibilidade de reconhecimento da vulnerabilidade transita entre esses dois níveis mencionados: em um plano mais ontológico, a autora chama atenção à condição precária a que todos estamos sujeitos enquanto humanos; em um plano mais sociológico, discorre sobre os enquadramentos que fazem com que algumas vidas humanas não sejam reconhecidas como tais em função de marcas de gênero, raça e classe, por exemplo, historicamente constituídas. Há ainda um terceiro nível, mais epistemológico, que faz a análise da autora girar em torno dos processos de constituição e repetição desses enquadramentos da precariedade (nível sociológico) e condição de precariedade (nível ontológico), eles mesmos sujeitos a repetições subversivas, isto é, potencialmente desestabilizadoras.
O meu exercício, ao longo deste artigo, foi o de considerar a noção de vulnerabilidade a partir de um plano cotidiano, seguindo o chamado de Murphy (2009) e, por isso mesmo, me aproximando das construções dos autores que, como Das, baixam essa e outras noções filosóficas e políticas a esse plano, sem a pretensão de que tudo nele se esgote. Acredito que tanto o amor quanto a mentira, se pensados como ação, podem ser aproximados dos atos de fala perlocucionários. A vulnerabilidade a que esse tipo de ato de fala está sujeito é, segundo Das (2020), diferente da vulnerabilidade dos atos de fala perfomativos porque esses últimos dependem de convenções para que as suas condições de felicidade sejam atingidas. Somente um padre, vestindo uma batina e no interior de uma igreja pode dizer “eu batizo” e somente sob essas condições o batizado acontece. A força ilocucionário do ato de fala perfomativo deriva dessas condições e, por isso mesmo, todo ato de fala nasce vulnerável à infelicidade. Mais atenção deve ser dedicada aos atos de fala perlocucionários justamente porque a vulnerabilidade deles não depende de convenção, e sim de uma relação particular entre dois sujeitos que, diante um do outro, podem mentir que amam.
No centro da discussão realizada está a identificação da vulnerabilidade das ações - muitas vezes palavras que não atingem condições de felicidade ou que convencem induzindo ao erro -, mas também dos sujeitos, pouco a pouco, enredados por elas em tramas relacionais no interior dais quais os tentáculos da prisão podem ser, se não exatamente vistos, definitivamente sentidos. Indo pouco além, refiro-me a uma série de práticas afetivas, dentre as quais destaquei o amor e a mentira, que nos habilitam a perceber a vulnerabilidade de uma forma de vida. Em outras palavras, refiro-me “ao tipo de destruição que consiste em crises pequenas, recorrentes e repetitivas, quase entrelaçadas na vida cotidiana em si” (Das, 2020, pg.7). Ou seja, o que está no centro da análise não é um evento catastrófico como a Partilha da Índia com o Paquistão, e sim aquilo que é feito repetidamente, sem dramas públicos e sem intercorrências maiores. Talvez por identificar em sua própria vida laços tão estreitos quanto os descritos entre a mentira, o amor e a vulnerabilidade, bell hooks (2021) entenda o amor como ação, mas assevere, de modo enfático, que onde há abuso, não há amor e que onde há mentira, o amor também não está presente. Finalizo com essas considerações porque, muito embora sejam distintas da experiência de Célia, elas sinalizam que a experiência da minha interlocutora pode ser construída como um problema político contemporâneo relacionado à definição do que conta como amor e para quem. Arrisco dizer que Célia queria amar nos termos propostos por bell hooks, isto é, queria viver o amor como empenho para promover o seu próprio crescimento espiritual e, sobretudo, o de Tonico. Porém, em função das tantas ‘dificuldades” expostas, não conseguia.
[2] Célia e Tonico são pessoas brancas. Como a discussão sobre branquitude e relações raciais não será desenvolvida neste artigo, trago essa informação para que os leitores possam fazer as suas próprias observações a respeito. Privilegiei, ao logo da discussão, os marcadores de gênero e classe em função do nítido papel que desempenhavam na relação entre os meus interlocutores.
[3] Primeiro conheci Tonico. Passei meses em contato com ele apenas ouvindo sobre Célia. Quando finalmente a conheci, quase já não falava com Tonico em função das mentiras que percebia em seu discurso e que, a meu ver, podiam estar gerando não só danos à Célia, como também me enredar na relação deles de forma conflitiva. Em inúmeras situações fiz do silêncio um recurso estratégico. Além disso, Tonico parecia nutrir algum tipo de interesse sexual em mim, embora nunca tenha sido explícito a esse respeito. Justamente porque ainda não encontrei os termos adequados para refletir sobre esses aspectos, não os exploro aqui. Conto apenas para que fiquem nítidos os motivos que me fizeram optar por me afastar dele. Agradeço a(o) parecerista que chamou atenção ao modo como circulei em campo e, espero, num futuro próximo, poder dar conta de forma mais ampla dos muitos ruídos, se é que de fato se trata de ruídos, que existiam nas relações que pude nutrir com homens condenados por crimes sexuais e pessoas a eles afetivamente a eles vinculadas. Debato neste artigo apenas aspectos mais relevantes da minha relação com Célia, já que é em torno da perspectiva dela que giram os meus argumentos sobre o casal.
[4] O debate sobre o que Andrade (2018) chama de “clicks” remete a uma agenda ampla de pesquisas no Brasil sobre os limites da sexualidade (Gregori, 1992). Passa pelas contribuições de Lowenkron (2015) sobre as tensões entre consentimento e vulnerabilidade, mas tem familiaridade ainda maior com a noção de fissura, tal qual elaborada por Maria Elvira Díaz-Benítez (2015). Como em outra publicação já realizei debate sobre a rentabilidade dessa noção para pensarmos relações afetivas e suas relações com o que pode ser entendido ou não como violência (Rangel, 2018), não o repito e nem aplico aqui. A própria Maria Elvira, posteriormente, dedicou análises a esse assunto, trazendo para a discussão a noção de humilhação (2019), bem como a de consentimento (Fernandes, Rangel, Díaz-Benítez e Zampiroli, 2020).
[5] Delito de estupro de vulnerável: Art. 217-A do Código Penal (1940) incluído pela Lei nº 12.015 de 2009 e definido como “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”. O 1º parágrafo do código adiciona que “Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”.