Sara Regina Munhoz[1]
Registros de una libertad vigilada. La construcción documental de la adolescencia infractora en las medidas socioeducativas en medio abierto
Records of an “assisted freedom”. Documents about juvenile offenders in socio-educative measures
Este artigo se propõe a discutir as práticas de atendimento a adolescentes autores de atos infracionais que cumprem medidas socioeducativas em meio aberto em uma região periférica da cidade de São Paulo, Brasil. Proponho apresentar alguns desdobramentos de minha pesquisa de mestrado explicitando as relações de forças e os saberes que agenciam definições fluidas de adolescência e de ressocialização. 1 Para tanto, posiciono-me junto à equipe técnica responsável, por um lado, por atender os adolescentes e, por outro, por prestar contas aos juízes, funcionando como pontes entre os meninos e o poder judiciário. Dessa equipe é demandada a construção de planos individualizados de atendimento que levem em conta as especificidades de cada adolescente, seus interesses, talentos e realidades sociais, a fim de que sua passagem pelo sistema socioeducativo não os massifique como o faria o penitenciário. A individualização dos atendimentos, somada à manutenção da liberdade, é apresentada como brechas pelas quais os meninos bem atendidos podem escapar ao determinismo das reincidências e à irreversibilidade da delinquência (Altoé, 1993).2 Ao mesmo tempo, o trabalho da equipe precisa combinar, sempre de maneira instável e conflituosa, a individualização com metas e objetivos que explicitam exigências incontornáveis das medidas socioeducativas: escolarização compulsória, profissionalização e atendimento às famílias. É no equilíbrio tênue entre massificação e individualização que se constroem os atendimentos e, com eles, os enunciados que definem quem são esses adolescentes.
Neste artigo, apresento como os enunciados sobre a adolescência infratora são produzidos nos documentos que circulam entre o núcleo de atendimento em meio aberto e o poder judiciário. Demonstro como essas produções, sempre circunstanciais e objetos de negociação constante, explicitam o caráter político e processual da lei e, ao mesmo tempo, o papel agentivo dos adolescentes e dos técnicos em sua produção. Descrevo o papel paradoxal da equipe técnica responsável pelo atendimento aos adolescentes infratores: ela esforça-se, por meio dos relatórios que produz, a amenizar a tendência encarceradora dos juízes, prevenindo a reclusão em massa desta população. Demonstro como, no entanto, os esforços dos técnicos são também parte essencial da extensão de um sistema carceral que extrapola as prisões.
As medidas socioeducativas empregadas no Brasil liberam um tipo muito específico de gestão das condutas que não se limita ao pagamento pela ofensa efetuada. O suposto rompimento com o pacto social e todos os sinais de possíveis desvios identificados nos meninos oferecem a brecha para que inúmeros profissionais e instituições intervenham nas mais variadas áreas das existências desses adolescentes. Intervenções contínuas, ininterruptas, minuciosas. Se o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), promulgado em 1991, literaliza uma modificação na condição dos meninos, outrora considerados “objetos de intervenção” (Paula, 2011; Malvasi, 2012), a etnografia dos documentos que circulam no núcleo é abordagem privilegiada para a descrever como as práticas cotidianas atualizam incessantemente esses novos sujeitos e seus direitos.
Em 2012, durante meu trabalho de campo, participei de uma reunião com um adolescente infrator que havia sido encaminhado pelo sistema judiciário para o cumprimento de Liberdade Assistida. Em uma pequena sala silenciosa e austeramente mobiliada, a técnica explicou ao menino e à sua mãe que seria a orientadora do adolescente naquele período. Apresentou-se como o meio de campo, a ponte entre eles e o juiz, responsável por aplicar as exigências judiciais e informar à justiça tudo o que acontecesse nos meses em que estivessem no núcleo. O ato infracional que o levara à Liberdade Assistida não foi um assunto de grande interesse naquela reunião. Eu perceberia ao longo do trabalho de campo que sua relevância não era central em nenhum momento dos atendimentos. Aquele adolescente havia sido apreendido pela justiça pela primeira vez e havia permanecido encarcerado apenas um dia antes de o juiz encaminhá-lo para a medida em meio aberto.
Ao preencher os primeiros relatórios do atendimento, a técnica solicitou informações a respeito da situação escolar, familiar e profissional do adolescente. Perguntou se já possuía seus documentos de identificação e uma carteira de trabalho. “Meio caminho andado”, disse ela, quando o adolescente explicou que estava matriculado na escola e havia conseguido um trabalho, “é isso que o juiz vai querer saber”. A mãe, então, perguntou à técnica se a ficha do menino ficaria suja depois do cumprimento da medida. Ela explicou que não, mas que se eles não obedecessem às determinações e encaminhamentos que lhes fossem propostos, o juiz poderia encarcerá-lo por até três anos, ou cumular outras medidas socioeducativas ao longo do tempo. Os relatórios produzidos pela equipe técnica é que informariam o juiz a respeito dos progressos do adolescente, e também dos problemas enfrentados no atendimento. Enfatizou que ele tinha tido sorte de permanecer só um dia na Fundação CASA,3 e ainda mais de sua sentença determinar apenas seis meses de Liberdade Assistida. Deveria se esforçar, portanto, para afastar a ameaça da internação.
No Brasil, o ECA prevê que os adolescentes autores de práticas infracionais sejam sentenciados por um tribunal especial ao cumprimento de medidas socioeducativas.4 Ele é resultado de disputas enunciativas que marcaram as décadas de 1980 e 1990 (Paula, 2011; Marques, 2018) e que exacerbaram o fracasso da proposta encarceradora para a adolescência infratora - como as violentas rebeliões das FEBEMs, as fugas em massa, os elevados índices de reincidência -, reclamando que alternativas fossem concebidas. Emergindo destas disputas, a legislação passa exigir uma aliança até então inédita entre punição e proteção. Essas duas ações, somadas, contornariam mais eficazmente o destino quase certeiro da reincidência criminal. O isolamento carcerário abre espaço (ainda que não se retire por completo) às medidas socioeducativas em meio aberto.
A Liberdade Assistida é uma das possíveis sentenças neste novo modelo legislativo. Nela, pedagogos, psicólogos e assistentes sociais (ali chamados de técnicos) encarregam-se, durante o período imposto judicialmente, de oferecer aos adolescentes infratores e às suas famílias atividades de acompanhamento, orientação e inserção em serviços de assistência social (Brasil, 1991, art. 118). Eles trabalham em organizações não-governamentais que estabelecem parcerias com o Estado para a construção da rede de atendimentos. À época da pesquisa de campo, a Obra Social Dom Bosco,5 onde realizei minha pesquisa, responsável pelo atendimento aos adolescentes de Itaquera e região, atendia mais de cem meninos e meninas 6 que passavam pelas medidas socioeducativas em meio aberto (MSE-MA).
A equipe do núcleo, composta por oito profissionais, dividia-se nos atendimentos aos meninos e os acompanhava ao longo dos meses estipulados pelo juiz para o cumprimento da medida. Esses profissionais eram responsáveis por sensibilizar os adolescentes sobre os riscos do mundo infracional; precisavam ainda orientar os meninos sobre as exigências implicadas em um atendimento socioeducativo; deveriam, enfim, encaminhá-los a serviços públicos, principalmente relacionados às áreas de educação, saúde e profissionalização (Paula, 2011). Simultaneamente, eram encarregados de repertoriar o núcleo e os juízes com seus Registros de Atendimento, Relatórios técnicos, Instrumentais e toda uma série de outros documentos. Para que a equipe técnica pudesse realizar a dupla tarefa, as famílias dos adolescentes também precisavam ser escrutinadas e acompanhadas pela equipe. Elas eram convocadas a falar de si e dos seus, e eram inscritas em cada um dos documentos produzidos sobre os adolescentes (Munhoz, 2017).
O atendimento, portanto, pode ser descrito como o manejo de diferentes atividades em cada caso, dentro de algumas balizas incontornáveis, optando por aquelas que enfrentam menos resistência pelos atendidos e maior aceitação pelo juiz responsável pelo caso. Os meninos costumam frequentar o núcleo semanalmente e esta presença, acompanhada das suas assinaturas nos documentos agenciados pela equipe, dá início à construção de um esquema que os visibilizava ao Poder Judiciário, sob a intermediação dos técnicos que os acompanham. Pelos documentos que expõem aos juízes os avanços dos meninos é que o processo ressocializador pode ser considerado satisfatório ou insuficiente, liberando-os ou conservando-os ainda mais tempo sob os cuidados de um aparelho de produção contínua de registros.
Se a medida é estipulada pelo juiz, sua aplicação escapa aos domínios do tribunal. Em geral, a sentença determina qual das medidas disponíveis deve ser aplicada e por quanto tempo. Em seguida, o adolescente é encaminhado para um núcleo que esteja localizado dentro da área de abrangência de sua residência. A partir daí um conjunto de documentos deve ser produzido pelo técnico responsável para que o adolescente entre no sistema¸ dê início ao seu atendimento e, em determinados momentos, seja comprovada a sua iniciativa e seu avanço. Enviar relatórios, construir registros e interpretar documentos são, portanto, tarefas das mais cotidianas no núcleo. Um esforço relacionado com a transformação de seus saberes técnicos e cotidianos em documentos eficazes. Um trânsito, pelos papéis, entre diferentes escalas capazes, cada uma delas, de produzirem enunciados a respeito da adolescência e da ressocialização, atualizando caso a caso os conceitos que fazem as medidas socioeducativas funcionarem.
A equipe da Dom Bosco lida com vários documentos encaminhados pelo Poder Judiciário ou por órgãos que controlam e orientam as atividades do núcleo. Eles precisam ser interpretados, catalogados e respondidos em tempos e de formas específicas. São Termos de Entrega, que determinam de maneira genérica qual a medida socioeducativa que deverá ser cumprida caso a caso; orientações sobre a área de abrangência do núcleo, que informam os bairros que devem ser atendidos pelo núcleo; documentos informativos sobre a forma como as atividades devem ser conduzidas ou como seus textos precisam ser escritos. Além disso, os técnicos redigem Relatórios Inicias (RI), de Acompanhamento e Sugestões de Encerramento para cada adolescente atendido, que são enviados e apreciados pelo juiz responsável pelo caso. Elaboram também o Plano Individual de Atendimento (PIA) para todos os meninos que passam pelas medidas. Preenchem Fichas de Movimentação de Caso, com as informações resumidas dos adolescentes, do ato infracional cometido e seu histórico familiar e institucional; Instrumentais que descrevem todas as atividades desenvolvidas pela equipe mensalmente; Prestações de Contas para a própria Obra Social e para os órgãos fiscalizadores governamentais. Preenchem cotidianamente declarações, atestados, informativos, encaminhamentos e tantos outros documentos. Eles transitam dentro da própria Obra Social, entre a equipe e os serviços públicos aos quais os meninos são encaminhados, entre o núcleo e o Poder Judiciário, entre os técnicos e as famílias dos adolescentes. Por meio dos documentos que circulam com tanta frequência e velocidade pelo corredor do núcleo, pelas mãos dos funcionários das medidas e pelos metrôs de São Paulo, sujeitos muito específicos passam a existir.7
Descrevo brevemente um dos principais documentos redigidos pela equipe, o Plano Individual de Atendimento. Argumento que a redação desse documento é ferramenta política e criativa na extensão das concepções que os técnicos têm sobre as medidas socioeducativas em geral e, em particular, sobre cada um dos atendimentos. Embora sejam muito assemelhados, com uma linguagem direta e uso de frases prontas, a elaboração desses papéis demanda muito tempo e exercício da equipe. Os técnicos gastam dias da semana debruçados neles, procurando as melhores maneiras de transmitir aos juízes aquilo que consideram adequado para cada atendimento. Saber controlar o que deve ser mostrado e o que pode ou precisa ser assombreado é o que constrói, para os juízes, o menino que seu técnico quer revelar.8
O PIA é uma exigência judicial para todos os núcleos que oferecem as medidas em meio aberto. Sua necessidade já está prevista na legislação que regula os núcleos e os atendimentos. A Coordenadoria de Assistência Social (CAS), responsável pelo controle e fiscalização das execuções das medidas nos núcleos, exige que o documento seja elaborado no primeiro encontro individual dos técnicos com os meninos e seus responsáveis. Trata-se de uma espécie de questionário em que se encontram dados pessoais, informações sobre a configuração familiar (quem vive com o adolescente, a idade de cada morador, a profissão ou o grau de escolarização de seus companheiros, a renda da família), religião, histórico de parentes que tenham passagem pela Fundação CASA ou pelo sistema carceral, “expectativas do adolescente para o futuro” e um Contrato de Compromisso (com os prazos em que as metas estabelecidas na sentença devem ser cumpridas). Os dados registrados no PIA devem servir de base para todo o atendimento. Até meados de 2012, o preenchimento do PIA era elaborado exclusivamente pela equipe e o documento não passava por averiguação ou avaliação externa. A tabela do Contrato de Compromisso era preenchida de maneira frouxa. Além de vários campos, usualmente, permanecerem em branco, muito raramente havia qualquer tipo de atualização do Plano no decorrer do atendimento. Mudanças exigidas pela implementação efetiva do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) atribuíram novo protagonismo ao documento.9 Foi necessário criar novos modelos, desenvolver novas estratégias de preenchimento, adaptar o vocabulário. Essas modificações reclamaram um exercício de reflexão mais amplo acerca dos próprios objetivos das medidas socioeducativas, e do que - pelo encontro entre meninos, núcleo e Poder Judiciário - poderia se entender por ressocialização.
O antigo modelo do Contrato de Compromisso era composto por uma tabela organizada em seis linhas com as áreas/prazos que deveriam ser trabalhados (documentação pessoal, educação, profissionalização, trabalho, saúde e família) e duas colunas com as ações que propostas pela equipe e os resultados esperados a partir dessas intervenções. Detalhar o modo como os técnicos costumavam preenchê-lo está fora do escopo deste artigo. É importante dizer, no entanto, que eles procuravam levar em conta possíveis exigências explícitas que os juízes tivessem apresentado nas sentenças. Caso a escolarização ou a inserção do adolescente no mercado de trabalho tivessem sido citadas nos documentos judiciais, por exemplo, a obrigatoriedade das ações nessas áreas de intervenção seria salientada pelos técnicos como uma premissa incontornável para o encerramento da medida, que é sempre determinado pelo juiz. No caso de sentenças que se limitavam a dizer qual medida socioeducativa deveria ser cumprida e a sua duração, as possibilidades de preenchimento do quadro eram mais maleáveis e alguns campos poderiam, inclusive, permanecer em branco.
O formato do quadro do Contrato de Compromisso foi largamente debatido durante meu trabalho de campo, e passou por reformulações significativas. As discussões na equipe nesse período de reestruturação evidenciavam que o formato do armazenamento das informações (Riles, 2006; Morawska Vianna, 2014) era tão importante quanto o conteúdo registrado pelos técnicos. Os esforços da equipe relacionavam-se com tentativas se lidar, pela escrita, com o descompasso entre um modelo de atendimento individualizado estabelecido a partir de orientações exteriores ao núcleo e a exigência de uma síntese profunda e, portanto, de uma abstração radical, no preenchimento dos campos da tabela. Assim como os formulários preenchidos em uma prisão de segurança máxima em Papua Nova Guiné (Reed, 2006), o PIA, se levado ao pé da letra, se consultado cotidianamente, seria considerado constantemente obsoleto. Quando os técnicos preenchiam estes documentos, enfrentavam o desafio de prever de antemão as possibilidades que aquele atendimento específico lhes propiciaria, evitando, através de uma escrita sucinta e generalizante, a obsolescência exagerada do documento ao longo dos meses.
Como veremos na próxima seção, as medidas socioeducativas não são dotadas de elementos incontestáveis que as classifiquem como adequadas ou bem cumpridas. No entanto, quando um PIA é preenchido a caneta, em um formato tabular que permite pouquíssimas alterações ao longo do tempo da medida, o modelo de atendimento fica estabelecido, as metas e os prazos estão estipulados. As mudanças contínuas que um PIA poderia exigir, caso fosse atualizado ao longo da medida, não eram motivo de reflexão ou preocupação, já que o documento permanecia, durante todo o atendimento, restrito ao núcleo. A tabela funcionava como um controle interno, consultado, em geral, apenas nos casos em que o adolescente desacatasse alguma das ações sugeridas pelo técnico. Era possível que fosse complementada ou modificada ao longo do atendimento com rasuras ou preenchimentos que extrapolassem os seus limites.
Com as novas exigências impostas pela promulgação do SINASE, a equipe se deparou com um debate que envolvia, fundamentalmente, reflexões sobre as mudanças naquilo que deveria ser revelado e no que era deixado à sombra na construção dos saberes (através dos registros escritos) sobre os meninos e sobre o atendimento. A partir desse momento, entram em cena novos agentes que deveriam participar da elaboração do PIA, e o Plano recebe um novo estatuto. A exigência de que o PIA fosse enviado para a apreciação do tribunal, responsável por aprová-lo ou revisá-lo, fez necessária a introdução de mudanças em seu modelo, em especial no Contrato de Compromisso. Os técnicos desenvolveram uma nova tabela, mais espaçosa e com categorias aptas a registrar com maior precisão as suas propostas. Neste novo modelo, cada uma das áreas (documentação pessoal, educação, profissionalização, trabalho, família e saúde) foi subdividida nos tópicos metas, ação, prazo e resultado.
A distinção entre metas e ações é descrita no SINASE. De maneira muito resumida, é possível dizer que as metas são os objetivos mais fixos e gerais que devem ser alcançados ao longo da medida e as ações são as atividades que podem ser realizadas para que essas metas sejam cumpridas. Essa é a descrição mais corriqueira que os técnicos me ofereciam, mas a distinção entre esses dois campos no preenchimento tabular não era tão evidente. Um dos problemas centrais levantados pelos funcionários de vários núcleos de atendimento diz respeito ao fato de que o estabelecimento de metas excessivamente fixas logo nos primeiros atendimentos, que seriam consultadas no momento de pedido de encerramento, não era viável. Principalmente porque os técnicos não teriam acumulado informações suficientes sobre o adolescente até o momento de envio do PIA, informações estas que seriam essenciais para poderem acessar quais seriam os avanços possíveis durante o atendimento, quais suas resistências, quais as limitações que seriam impostas pelo seu envolvimento com as drogas, pelos problemas familiares etc. Com poucos dados nas mãos e pouco tempo de convivência com os meninos, estabelecer metas fixas parecia muito arriscado. Um preenchimento equivocado do novo documento poderia desembocar, ao final do prazo judicialmente estabelecido, em um não encerramento ou até mesmo em uma internação.
No núcleo da Dom Bosco, os modelos dos documentos eram elaborados por um método bastante experimental e correlacionado à sua aprovação ou recusa por setores de fiscalização externos. Modelos aprovados se fixavam, até que novas diretrizes os obrigassem a reformá-los. No caso do PIA, a elaboração do novo modelo não encerrou questionamentos mais gerais a respeito da própria natureza das medidas socioeducativas em meio aberto. Os técnicos não cessavam de ser perguntar o que eram, afinal, as metas indispensáveis para que a ressocialização pudesse ser averiguada. O que eram as atividades exigidas? Qual o grau de objetividade que se pode atribuir aos prazos estipulados no primeiro encontro? E, quando não cumpridos, deveriam informar imediatamente o Judiciário ou haveria possibilidade de flexibilização das datas-limite para as ações dos meninos?
Em cursos de formação, receberam alguns exemplos de metas fixas e de atividades maleáveis. Escolarização formal, cursos profissionalizantes e inserção no mercado de trabalho foram apresentados exemplos de metas, e como já salientado, muitas vezes já eram explicitamente exigidos na própria sentença. É só a partir dessas demarcações iniciais que os técnicos poderiam individualizar o atendimento, escolhendo, por exemplo, período escolar mais adequado, o curso profissionalizante mais oportuno à realidade do menino atendido, as melhores opções de atividades lúdicas e culturais, as alternativas mais eficazes para o envolvimento da família no atendimento, os possíveis encaminhamentos para pleitearem vagas de emprego etc. As metas do PIA, portanto, podem ser pensadas como uma moldura ou um quadro de regras básicas e comuns, que ditam os caminhos na medida, embora permitam (ou exijam) diferenciações caso a caso. Mas, nem tudo se resolvia com essas orientações. No cotidiano dos atendimentos, mesmo a rigidez do quadro de metas parecia dotada de certa porosidade. Lidar com essa porosidade nos atendimentos sabendo lançar mão de argumentos que permitissem que a rigidez reaparecesse no momento de escrita dos relatórios era a tarefa central da equipe.
Apesar de ser possível encontrar um padrão, ou o desenvolvimento de uma estratégia de preenchimento do quadro, as variações não devem ser desprezadas. Justamente porque elas revelam a maneira dinâmica como se constroem os saberes nas medidas socioeducativas. Revelam ainda o esforço dos técnicos na busca de uma escrita que não possa ser acusada de subjetiva ou pouco técnica por um lado, mas que também não se padronize a ponto de serem encaradas como sintoma de uma condenada massificação dos atendimentos. Esse equilíbrio precisava ser trabalhado a todo momento em de cursos de formação, em debates entre os membros da equipe, mas, principalmente, pelo desenvolvimento de estratégias de escrita. Era preciso aprender - e isso demandava muito tempo e experiência - a escrever relatórios e documentos bem fundamentados.
Além de produzirem documentos no núcleo, os técnicos precisavam interpretar e responder àqueles que eram enviados pelos juízes. O embate por escrito entre juízes e técnicos transformavam, em determinados momentos, a medida em um jogo de retórica e arguição. A circulação documentos colocava em jogo a possibilidade de que um menino fosse liberado da trama institucional e das intervenções que a medida socioeducativa lançava sobre ele e sobre sua família. Ao mesmo tempo, a circulação desses documentos determinava, caso a caso, o que poderia ser compreendido como uma adolescência passível de recuperação, uma medida socioeducativa cumpridora de seu propósito reintegrador e protetivo, uma ressocialização satisfatória e durável. Isso se manifestava, por exemplo, pela compreensão dos técnicos de que a participação da mãe do adolescente nas reuniões oferecidas pelo núcleo era dispensável, ou, pela concepção, expressa pelo juiz, de que seria necessário, para determinado adolescente, além da escolarização compulsória, a matrícula em um curso profissionalizante. É possível, entre técnicos e juízes, que haja discordância sobre os conceitos que circunscrevem as medidas socioeducativas. É pelo domínio técnico da escrita e pelos seus jogos de visibilidade que os enunciados a respeito da adolescência infratora se consolidam, caso a caso.
Os relatórios, assim, longe de serem simples versões resumidas ou relatos daquilo que foi desenvolvido no atendimento, são tratados como parte fundamental do que se entende por medida socioeducativa. São ferramentas de construção enunciativa e de registro de existências. Os próprios manuais endereçados à formação das equipes técnicas consideram que “a criação e preenchimento dos instrumentais de registro não devem ser concebidos como uma mera formalidade burocrática, mas como instrumento de gestão, planejamento e avaliação do programa de Liberdade Assistida” (Sposato, 2004, p. 132). Do ponto de vista dos técnicos, cabe a eles a tarefa de gerir e avaliar o atendimento, sua eficácia e sua duração. Eles são os que convivem com os meninos, conhecem suas histórias, relacionam-se com suas famílias. Eles são os que vislumbram os limites e as possibilidades de cada atendimento.
Para que esse saber produzido exclusivamente no núcleo se atualize em decisões judiciais consideradas adequadas pela equipe, uma das únicas armas disponíveis é a escrita. No diálogo travado com os juízes, os termos padronizados podem ser acionados das mais diferentes maneiras, com os mais diferentes propósitos. Escrever sempre funciona como uma tentativa de convencer o juiz (a quem o técnico descreve como detentor do poder de decisão final) de que o que foi trabalhado, dentro das peculiaridades de cada caso, é aceitável e suficiente quando em comparação com o que é explicitamente exigido nas leis e nas normas que orientam os atendimentos. Explicitar o nível de saber produzido no núcleo através do registro de impressões sobre o comportamento do adolescente, sobre o respaldo familiar, sobre as possíveis resistências que serão enfrentadas ao longo do atendimento, é um procedimento que encontra ressonâncias no uso dos colchetes nos documentos produzidos em conferências intergovernamentais descritos por Riles (2001). A autora demonstra como esse artifício é utilizado para que agendas regionais possam ser incluídas nos debates, para que diferentes níveis de ação estejam à vista em um único texto. Da mesma forma, as breves frases dos técnicos com a seleção de suas impressões e informações procuram apresentar ao juiz um nível distinto de saber produzido sobre os meninos.
Acompanhar a elaboração e circulação dos documentos que constroem as medidas socioeducativas evidencia que mesmo com a ampliação recente nas diretrizes e legislações, pouca coisa é determinada de antemão nos atendimentos. Se há mais leis, há mais possibilidades de interpretação, de manejo, de argumentação. Os técnicos não concebem - e entendem que os próprios juízes também não concebem - caminhos fixos para o que seria uma medida socioeducativa adequada. Sob o ponto de vista deles, as dúvidas sobre o que o juiz considerará adequado em cada caso caminham lado a lado com a certeza de que os saberes produzidos pela equipe são os mais legítimos para auxiliarem o poder judiciário nessa decisão.
As medidas socioeducativas, mais explicitamente que o encarceramento da população adulta, pressupõem a ressocialização dos atendidos. Por serem considerados pessoas em desenvolvimento (Brasil, 1991, art. 6º), entende-se que ainda é possível, desde que submetidos às intervenções adequadas, fazer com que o envolvimento em um ato infracional não lhes atribua a marca da criminalidade, considerada permanente e irreversível. Para tanto, é preciso afastá-los dos meios infracionais, mas também do ambiente penitenciário. É preciso que sejam atendidos por um tribunal específico e por profissionais que não os tratem como criminosos. É preciso que o envolvimento com o crime seja mantido em um nível superficial.
Para que esse objetivo fundamental seja atendido, as discussões sobre o ato infracional que arrastou o menino a uma liberdade vigiada e controlada são raras e pontuais.10 A atenção da equipe volta-se com maior frequência às condutas passada e atual do adolescente que, em comparação, funcionam como índices de amadurecimento ou de avanço que precisam ser comprovados ao longo dos meses. Ainda que o SINASE preveja, “a proporcionalidade em relação à ofensa cometida” (Brasil, 2012, art. 35º, inciso IV), a ênfase de todo o sistema está nas práticas que evitem a intervenção judicial. No núcleo da Dom Bosco, tão raras quanto as referências durante os atendimentos ao ato infracional cometido eram as possíveis relações entre infração e medida socioeducativa. Outros incisos do mesmo artigo do SINASE confirmam esta lógica. Eles determinam, por exemplo, que a intervenção judicial deve ter caráter de “excepcionalidade […], favorecendo-se meios de autocomposição de conflitos” (Brasil, 2012, art. 35º, inciso II), que a ênfase deve ser dada a “práticas ou medidas restaurativas” (Brasil, 2012, art. 35º, inciso III) e, ainda, que o princípio da “mínima intervenção, restrita ao necessário para a realização dos objetivos da medida” deve ser observado (Brasil, 2012, art. 35º, inciso VII). É preciso agir fora do alcance da lei que pura e simplesmente pune, para que haja possibilidade de transformações enquanto esse desenvolvimento ainda não está completo. A finalidade da medida socioeducativa, determina a legislação, é a mudança de “comportamento dos adolescentes, com foco em evitar a reincidência por meio de estratégias de educação e inclusão” (Malvasi, 2012, p.165).
Mas se o ato infracional não deve ser o aspecto central na construção dos atendimentos, ele também não pode ser negligenciado. A diferenciação entre medidas preventivas, protetivas e socioeducativas criada pelo ECA desencadeia uma série de incertezas durante os atendimentos. No SINASE, as fronteiras entre as medidas protetivas e as socioeducativas são ainda mais detalhadas, como explica o material de um dos cursos oferecidos aos técnicos da Dom Bosco. A diferença fundamental entre as duas está na “tônica de responsabilização do adolescente autor de ato infracional” no segundo caso (SINASE, 2012a, p. 58). Embora haja a exigência de encaminhamentos para que os direitos do autor de práticas infracionais sejam atendidos e para que seu percurso infracional possa ser interrompido, é importante que as medidas socioeducativas “não sejam vistas como medidas aplicadas a favor dos adolescentes (em seu bem, em sua proteção)”. Nesse sentido, argumenta-se, por exemplo, que ainda que os direitos dos adolescentes devam ser garantidos durante o cumprimento da medida, não se pode “aplicar ou manter medida socioeducativa com a finalidade de garantir [esses] direitos”. Diferentemente das medidas de proteção, as socioeducativas devem ser “impostas” e seu cumprimento “é cobrado mesmo contra a vontade do adolescente autor de prática infracional” (SINASE, 2012a, pp. 60-61).
A necessidade de conciliar os princípios punitivo e transformador já aparece, portanto, na própria legislação que informa os atendimentos. No entanto, a maneira de lidar, na medida certa, com esses dois objetivos em simultâneo é uma questão cotidianamente enfrentada no núcleo. Mais do que aplicar a lei, esses profissionais entendem que precisam operacionalizá-la (Latour, 2010) lidando, a partir dela, com os casos que se apresentam e que precisam, por uma própria exigência legal, ser tratados de forma individualizada (Brasil, 2012, art. 35 º, inciso VI). Ainda que a própria justiça já tome para si um papel educativo e que, sob o ponto de vista dos profissionais do núcleo, lance mão do alcance que seu poder tem para além dos saberes que pode construir, é importante afirmar que a presença desses profissionais é central na condução das medidas e, consequentemente, nas definições dos contornos do que se entende como adolescência quando envolvida em ilegalismos e ilegalidades. Isso porque há ressonância, em algum sentido, entre o sistema socioeducativo (ainda que preze pela manutenção da liberdade) e o carceral: a equipe, muito mais do que apenas conhecer e aplicar as decisões dos juízes, precisa a todo o momento coletar saberes sobre o atendido, saberes capazes de transformar a medida penal em uma operação penitenciária, de fazerem da pena imposta uma modificação do indivíduo, tornando-o útil à sociedade (Foucault, 1975).
Através dos relatórios que elaboram, os técnicos são capazes de produzir um tipo de saber que funciona como prova, à medida que “comporta presunções estatutárias de verdade, presunções que lhe são inerentes, em função dos que a enunciam” (Foucault, 2010, p. 10). Um exame estabelecido a partir de um continuum médico-judiciário que permite que o técnico seja entendido como o que detém a competência de elencar e apresentar informações que extrapolam o ato infracional cometido e dizem respeito à vida, aos hábitos, ao cotidiano do menino e de sua família (Foucault, 2010, p. 35).
Em um dos cursos de formação oferecidos aos profissionais do núcleo, a equipe recebeu um material didático que discutia, entre tantas outras coisas, a própria definição da “natureza e dimensão das medidas socioeducativas”, diferenciando-as das medidas puramente “punitivas”, por um lado, e das “protetivas”, por outro. A definição apresentada não era definitiva e oferecia um espaço de posicionamento aos próprios cursistas, como se vê abaixo:
O que é e o que pretende a medida socioeducativa (MSE)? É uma reação do Estado ao crime, com o objetivo de garantir a paz social? É um mecanismo de defesa social contra a criminalidade? É uma forma de punir os adolescentes autores de ato infracional? É uma forma de protegê-los contra si mesmo? É um mecanismo para tirá-los da exclusão social, para educá-los? É algo que visa reeducá-los, ressocializá-los, reinseri-los na sociedade? É maneira de retribuir com mal proporcional o mal que causaram ao praticar crime? É uma estratégia de política criminal destinada a tirar parte de nossos jovens de um sistema penal, cristalizador de práticas criminosas? É tudo isso ao mesmo tempo? Não se pretende aqui oferecer resposta definitiva à questão, muito polêmica, muito debatida no mundo todo e há muito tempo. O que se pretende é apresentar apenas uma chave possível para compreendê-la, tudo para que você, cursista, possa se posicionar e tomar sua própria decisão (SINASE, 2012b, p. 3).
A impossibilidade de chegar a uma definição categórica é justificada pela existência de uma série de outras “tarefas antecedentes complicadas para resolver” (Capacitação para operadores do SINASE, módulo 4, p. 3), entre elas a natureza ambígua da adolescência - o adolescente é responsável? É capaz? É autônomo? -, e a complexidade da reação social contra o crime - o sistema penal está falido? Há muita impunidade? O objetivo da pena é punir, ressocializar, defender a sociedade ou tudo isso ao mesmo tempo? Se não há consenso para o caso dos adultos, o material aponta que “a justificação e função da pena” para os adolescentes está ainda indefinida.
A incerteza enfrentada pelos profissionais no núcleo é, portanto, compartilhada com uma incerteza nas definições que aparecem nos próprios textos legais. Ela poderia ser justificada pelos múltiplos sentidos que uma medida socioeducativa supõe, ou pelos variados objetivos que procura atender. Os técnicos lidam com a incerteza quando têm que construir atendimentos que somem as diretrizes rígidas com as realidades cotidianas absolutamente imprevisíveis dos adolescentes. Mas também lidam com uma incerteza mais geral: o que uma medida socioeducativa deve significar na vida de um adolescente? O que o Estado e a sociedade esperam desses meninos? Como apresentar a eles os direitos de modo impositivo, legal, obrigatório? Como, ao mesmo tempo, impedir que eles façam parte de uma lógica punitiva já diagnosticada como falida de nosso sistema penitenciário? Como, enfim, punir e transformar? Ou, finalmente: como comprovar simultaneamente aos adolescentes e aos juízes que o atendimento construído não se ancora em apenas um desses dois pilares?
Para a equipe do núcleo (e, do ponto de vista dela, também para os juízes) a medida é o avanço. Avanço incerto, avanço que precisa ser individualizado e avaliado por diferentes atores, através de diferentes referenciais. A incerteza está no cerne das medidas porque ela necessariamente envolve a convivência entre ao menos duas lógicas: a dos técnicos e suas atividades de encaminhamento e acompanhamento, e a dos juízes e as determinações judiciais. A lei impõe, mas não aplica. Mais do que isso: a tarefa dos técnicos não é entendida por eles mesmos como uma aplicação da lei. Como o título deste artigo indica, cabe à equipe construir cada atendimento e contar com a aprovação de suas construções por aquele que determina a medida. Um malabarismo que atravessa todas as atividades cotidianas.
As incertezas tão centrais em cada um dos atendimentos manifestam a complexidade envolvida em lidar com aqueles que a sociedade considera poder transformar, tornar úteis. Para os adolescentes, o processo punitivo que se pretende socioeducativo exige que um corpo de aptidão (Foucault, 2010, pp. 223-224) emerja de um corpo criminoso, de uma história que já previa a criminalidade, de uma família que já dava sinais de que a delinquência poderia se manifestar.
Controle dos “comportamentos de risco” e cuidado com os “estados vulneráveis” (Malvasi, 2012, p. 167). No caso das medidas em meio aberto, essa atenção se dá pela apresentação do que é descrito na legislação como direito das crianças e dos adolescentes como uma condição para liberação e, ao mesmo tempo, como uma vantagem, uma oportunidade.11 Se a duração das intervenções pode ser maleável, assim como as metas a serem atendidas (atreladas à circulação dos documentos e à construção enunciativa da ressocialização caso a caso pelos técnicos e juízes), os encaminhamentos e os registros documentais são incontornáveis. Trata-se de uma gestão da adolescência infratora que, pela circulação entre uma série de instituições, coleciona informações não jurídicas, mas psicológicas, pedagógicas e assistenciais que fabricam e registram os que se entende por meninos infratores. Para a equipe das medidas a reunião dos saberes técnicos serve como subsídio para um processo transformador que não se desvincula em nenhum momento das práticas punitivas possibilitadas pelo exame constante das existências desses adolescentes.
Em um cenário de crescente conservadorismo e clamores cada vez mais exaltados por maior rigor punitivo, mais encarceramento, endurecimento legislativo e penal, muito rapidamente a população jovem, em especial a negra e periférica, começa a pulular como um alvo importante nos discursos e intervenções estatais que almejam sua manutenção e/ou transformação em um conjunto de indivíduos gerenciáveis, vigiáveis (Munhoz, 2019). Como procurei demonstrar, as medidas socioeducativas em meio aberto confundem, mesmo na manutenção da liberdade, direitos e exigências. Para elas, punir é transformar. Transformar em cidadãos, através da obtenção dos documentos. Transformar em estudantes. Transformar em trabalhadores formais. Transformar em filhos vigiáveis, previsíveis, fixos em seus lares. E, além de terem toda sua vida orientada e conduzida a caminhos específicos depois da apreensão policial, seu passado também será revirado, registrado, analisado. Saberes levantados sobre seus passados, poderes dispendidos sobre seus futuros.
Encerro este texto com um alerta que, talvez, em dias como os nossos precise ser o mais explícito possível: a engenharia carceral é criativa e se metamorfoseia, inclusive, em práticas que extrapolam os muros das prisões; o tribunal não se limita aos seus contornos e se expande até as mais inocentes disciplinas, as oportunidades. A atenção a adolescentes infratores escancara cotidianamente as controvérsias desse sistema pedagógico-punitivo: mecanismos ortopédicos incisivos que, a médio prazo, almejam criar sujeitos que os dispensem, internalizando em seus corpos e em suas almas, determinadas atitudes e comportamentos considerados pertinentes. Não é excessivo lembrar que a pertinência de atitudes e comportamentos é fracionária: trespassa determinadas populações funcionando como marcador eficaz dos lugares sociais que cada tipo de indivíduo é autorizado a ocupar, dos direitos que pode reivindicar, dos sonhos que lhe cabem aspirar.
Apreendidos, julgados e atendidos em liberdade, os meninos infratores não deixam de compor um circuito muito complexo de vigilância e controle. Não só o tribunal, mas a escola, o mercado de trabalho, o serviço de saúde, os centros de profissionalização e uma série de outras instituições para as quais o tribunal os encaminha - via programa de Liberdade Assistida - são capazes de resgatar e ampliar uma coleção saberes, visibilidades e intervenções. Nesses casos, é na circulação, fora dos muros das prisões e das instituições disciplinares, justamente pela liberdade que se dá a gestão dessa população.
Uma vez apreendidos pela polícia, os meninos passarão por intervenções que, simultaneamente, os tratarão como uma população e se interessarão por cada uma das características pessoais de sua vida. Sobre eles serão realizados estatísticas e relatórios. Suas famílias contarão detalhes íntimos, submeter-se-ão a uma série de questionamentos e encaminhamentos, as percepções técnicas sobre o empenho, a iniciativa e as ações dos adolescentes serão registradas seguidas vezes. Ações de diferentes escalas e de variadas intensidades atravessarão os meninos das medidas. Embora os adolescentes tenham, ao término do cumprimento da medida socioeducativa, suas “fichas limpas”, somente a alcançarão a custo de se deixarem ver por uma série de aparatos governamentais.
1 Sobre as notações: as expressões em itálico referem-se a termos utilizados pelos meus interlocutores e centrais nas discussões propostas no artigo. Trechos de documentos consultados e de bibliografias citadas estão entre aspas, seguidos das referências correspondentes. O trabalho de campo foi realizado em 2012, por esse motivo optei por manter, sempre que possível, os tempos verbais no pretérito.
2 Michel Foucault (1975) demonstra como a crítica a um sistema penitenciário como o “grande fracasso da justiça penal” que multiplicava as taxas de criminalidade, provocava a reincidência e fabricava delinquentes foi contemporânea às tentativas de superposição entre a técnica corretiva e a detenção punitiva ainda no século XIX. Para ele, no entanto, a delinquência não é um defeito resultante do sistema penitenciário, mas uma composição de efeitos deste dispositivo disciplinar específico. Considera a prisão, seu “fracasso” e suas tentativas constantes de reforma como um sistema simultâneo, um conjunto complexo que constitui e torna possível o próprio funcionamento do sistema carceral.
3 Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor, locais onde eram encarcerados (internados, Davi, sei lá como fica bom) os adolescentes do estado de São Paulo até 2006. Desde então, a FEBEM deu lugar à Fundação CASA (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente). A transformação é marcada, principalmente, pela descentralização das internações e construção de novas unidades no interior do estado.
4 A legislação brasileira elenca as seguintes medidas socioeducativas: advertência, reparação do dano, prestação de serviço à comunidade, liberdade assistida ou internação. Nenhuma delas deve, a princípio, exceder os três anos de aplicação; todas podem (e costumam) cumular outras medidas consideradas protetivas. O que distingue o atendimento aos adolescentes da punição carcerária tradicional é, principalmente, promessa de “ficha limpa” ao término do processo.
5 A Obra Social Dom Bosco Itaquera é uma instituição não-governamental que abriga uma série de serviços e atividades de assistência social, além do núcleo de atendimento socioeducativo da região de Itaquera, Zona Leste de São Paulo. Está vinculada à Rede Salesiana do Brasil e é dirigida pelo Padre Rosalvino, importante figura dos movimentos sociais da região desde a década de 1980.
6 Os adolescentes atendidos pela Dom Bosco geralmente são chamados pelos funcionários de meninos. Embora o termo seja majoritariamente acionado no masculino, há meninas atendidas no núcleo. Enquanto estive em campo, a proporção era aproximadamente a de 110 meninos para menos de 10 meninas. Sobre as versões femininas a respeito do cumprimento da MSE-MA, conferir Malvasi (2012, pp. 168-180).
7 Embora este artigo se posicione etnograficamente em um lugar em que se encontram as percepções dos técnicos e dos juízes para a construção das medidas socioeducativas e da própria definição de adolescência infratora, não pretendo minimizar a agência dos meninos nesse processo. O que foi obscurecido, em meu trabalho de campo, por meu posicionamento etnográfico, é trabalhado em pesquisas como as de Shilittler (2011) e Neri (2009). Sobre a circulação de crianças e adolescentes em tramas institucionais, conferir, ainda, Gregori (2000), Miraglia (2005), Feltran (2011a) e Malvasi (2012).
8 Meu argumento não é o de uma manipulação deliberada dos relatórios, como Gabriel Feltran (2011b, pp. 18-19) afirma ter encontrado em seu campo. Não tive acesso a dados como estes, nunca vi os técnicos da Dom Bosco discutindo os problemas da escrita nestes termos. Defendo que os documentos produzidos pela equipe, embora sejam fabricações, não são, de modo algum, falsificações (Villela 2011). Os técnicos constroem textos mobilizando saberes que julgam adequados para cada atendimento, e praticando um exercício constante de controle do que é escrito e da forma como as coisas são escritas. Sabem, no entanto, os efeitos que supostas mentiras podem ter, e não avaliam que este é um artifício que possa ser utilizado nas redações.
9 O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), instaurado a partir da lei nº 12.594 de 2012, regulamenta a execução das medidas destinadas a adolescentes que pratiquem atos infracionais.
10 Cabe ressaltar, no entanto, que a equipe produzia estatísticas a respeito dos atos infracionais que mais corriqueiramente arrastavam os meninos ao núcleo. Tráfico de drogas e pequenos furtos estavam entre os mais frequentes. Sobre a centralidade contemporânea da relação entre tráfico e segurança pública, em especial no estado de São Paulo, conferir Biondi (2018) e Marques (2018).
11 Sobre as oportunidades como mecanismo de governamentalidade, cf. também Lazzarato (2011).
Agradeço a Jorge Villela pela orientação desta etnografia e pelos comentários a este texto. Agradeço igualmente, aos meus colegas do Hybris - Grupo de Estudo e Pesquisa em Relações de Poder, Conflitos e Socialidades pela interlocução. Todos os erros e problemas que tenham permanecido são, dispensável dizer, de minha responsabilidade. Sem o financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) esta pesquisa não poderia ter sido realizada.
Brasil (1991). Estatuto da criança e do adolescente Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm
Brasil (2012) Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) Recuperado de http://www.sdh.gov.br/clientes/sedh/sedh/spdca/sinase