Virando estado. O processo de sujeição burocrática entre candidatos ao serviço público no Brasil

Becoming state. The process of bureaucratic subjection between civil service candidates in Brazil

Convertirse en estado. El proceso de sujeción burocrática entre los candidatos al servicio civil en Brasil

 
Virando estado. O processo de sujeição burocrática entre candidatos ao serviço público no Brasil
Runa, archivo para las ciencias del hombre, vol. 41 no. 2, (203- 219 pp.), Apr-Oct, 2020, doi: 10.34096/runa.v41i2.7271. ISSN: 1851-9628
Instituto de Ciencias Antropológicas, Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires


Introdução

O que os candidatos ao serviço público no Brasil aprendem durante o processo de preparação para os concursos públicos? É a partir dessa interrogação inicial que se construiu a pesquisa de que este artigo é o resultado. Pensando no aprendizado que é alcançado pelos candidatos, a aparente simplicidade do objeto de pesquisa começa a ganhar mais densidade quando começamos a desdobrá-lo em questões subsequentes: Qual a natureza dos conhecimentos adquiridos? Como são internalizados pelos sujeitos e mobilizados por eles a partir de então? Qual a relação desse conhecimento com as práticas burocráticas no Brasil?

Este trabalho analisa o processo de formação de agentes estatais no Brasil, a partir das práticas de aprendizado ocorridas durante a preparação para concursos públicos de uma elite burocrática. Ao focalizar os processos seletivos que constituem a burocracia estatal, pretendo oferecer uma contribuição para a compreensão do funcionamento do estado e do serviço público no Brasil. Considerando a natureza cultural do estado (Geertz, 1997; Steinmetz, 1999), seus processos de formação devem ser problematizados, pois através deles percebe-se como seus diversos mecanismos de poder foram sendo simbolicamente instituídos. Como demonstraram Abélès e Jeudy (1997), a concepção de serviço público não tem o mesmo significado nem mesmo entre os países da Europa, e a antropologia deve dar conta das diferenças culturais que constituem cada estado nacional, incluindo aí os processos institucionais por meio dos quais se conformam as burocracias, como as formas estatais de admissão de seus agentes.

O concurso público no Brasil é um fenômeno social de grande representatividade. A atual Constituição brasileira, promulgada em 1988, prevê a exigência de concurso público para o preenchimento de posições na administração pública. Dezenas de milhares de vagas no serviço público são abertas anualmente no país, preenchidas através de concursos. A imprensa noticia constantemente a situação dos concursos públicos em andamento e com previsão de abertura, assim como debates e decisões no espectro jurídico ou político que interfiram nos concursos pelo país. O interesse nos concursos públicos fez surgir, inclusive, uma imprensa especializada no tema, que inclui jornais, revistas e sítios eletrônicos.

O estudo para os concursos públicos pode se dar em diferentes ambientes, como nos cursos preparatórios, nas bibliotecas públicas, nas residências de cada candidato, em ambientes virtuais, em salas alugadas, para citar os mais comuns. Na verdade, os locais de aprendizado também dependem do tipo de concurso para o qual se está estudando: se é de nível fundamental, médio ou superior; da carreira a que se destina o concurso (carreira jurídica, carreira fiscal, carreira militar, etc.); entre outros fatores. Além dos cursos preparatórios presenciais, há um intenso mercado de cursos online visando à preparação para concursos públicos, e também a prática do coaching, em que há um acompanhamento personalizado dos aprendizes por um coach de concurso.

Motivados, entre outros fatores, pela estabilidade1 atribuída ao serviço público, os sujeitos começam a estudar e fazem sua inscrição em concursos públicos abertos - ou vice-versa - esperando o dia da prova e a divulgação dos resultados. Até que seja aprovado em algum concurso, o candidato pode levar meses e anos estudando. Na verdade, para virar servidor público no Brasil, não basta ser aprovado, mas sim aprovado e classificado numa posição correspondente ao número de vagas disponíveis no edital do concurso, o que garantirá a nomeação, a posse no cargo para o qual prestou o certame e o início do exercício. É muito comum que os candidatos, mesmo aqueles que são aprovados em um concurso, continuem estudando para concursos de cargos que tenham remunerações mais altas e/ou condições de trabalho consideradas mais vantajosas.

Só no Estado do Rio de Janeiro, existem dezenas de instituições de ensino - vulgarmente chamadas de “cursinhos” - dedicadas à preparação para os concursos públicos. É comum que os cursos ofereçam turmas ou um grupo de módulos (disciplinas) separadas por “carreiras”, como fiscal, jurídica, diplomacia, bancária, militar, entre outras. Os cursos preparatórios se transformaram no principal canal institucional de transmissão de conhecimento especializado para concursos públicos, tornando-se parte da preparação dos candidatos que buscam por uma vaga no serviço público no Brasil.

Irei me centrar na preparação para os concursos da burocracia fiscal (Miranda, 2015). Em todo o Brasil, os concursos para a burocracia fiscal ocorrem com uma relativa frequência, havendo dezenas todos os anos para diferentes unidades administrativas2. O governo federal, os estados e os municípios possuem competência tributária, que se refere à permissão constitucional de criar tributos (como impostos e taxas). Consequentemente, necessitam também de servidores que executem as atividades administrativas de fiscalização e cobrança de tais tributos. É essa a função básica de um fiscal.

Ao analisar a preparação para os concursos públicos de uma carreira de elite do estado brasileiro, os fiscais, pretendo entender como se adquirem os conhecimentos necessários para que os sujeitos se invistam dos poderes de estado, isto é, se transformem em servidores públicos e ajam de acordo com seus pares. Nesse sentido, argumento que o aprendizado durante a preparação para os concursos e a frequência dos estudantes a cursos preparatórios implicam um processo de subjetivação da autoridade do estado, o que denominei de sujeição burocrática. Esse processo torna os candidatos afeitos às concepções culturais de serviço público que orientam a prática burocrática na administração pública brasileira.

A metodologia de pesquisa se baseou na observação participante em dois cursos preparatórios sediados em duas cidades no Estado do Rio de Janeiro. Inicialmente capital colonial, posteriormente imperial e finalmente da república até o ano de 1960, o Rio de Janeiro sempre concentrou ao longo da história do país a maior quantidade de órgãos da administração pública. Durante a década de 1930, quando o concurso público se transformou em política de estado no Brasil, o Rio de Janeiro era o palco onde se desenrolaram todas as iniciativas de implementação dos concursos públicos, incluindo-se a formulação e aplicação das provas do processo seletivo e a preparação dos candidatos em cursos preparatórios para concursos. Mesmo depois da transferência da capital federal para Brasília em 1960, vários órgãos federais permaneceram no Rio de Janeiro.3 Todo esse aparato institucional foi preenchido por um grande contingente de pessoal, fazendo do Rio de Janeiro o estado com o maior número de servidores públicos federais do Brasil, o que se mantém atualmente.4 Por tal razão, optei por fazer o trabalho de campo no Rio de Janeiro, que foi realizado entre outubro de 2015 e dezembro de 2017, quando assisti a aproximadamente 450 horas de aulas distribuídas entre dezessete disciplinas (chamadas nos cursos de “módulos”). Além disso, realizei entrevistas com professores e sócios de cursos preparatórios, e interagi com meus interlocutores através de ambientes online.

A produção de subjetividades entre elites burocráticas

Apesar da magnitude que o fenômeno do concurso público alcançou no Brasil, as Ciências Sociais têm dedicado quase nenhuma atenção à sua investigação. No caso da Antropologia, não encontrei sequer um trabalho cuja temática central seja os concursos ou cujo objeto envolva a preparação dos candidatos para esses processos seletivos. Alguns poucos trabalhos sociológicos recentes dedicaram-se ao tema (Kluger, 2015; Meirelles, 2002), todavia sem constituírem uma agenda de pesquisa consistente sobre ele. Nesse sentido, os trabalhos de Fontainha (2011, 2013, 2015) constituem uma exceção no que diz respeito a um interesse mais sistemático sobre os concursos públicos, no Brasil e na França.

A abordagem que privilegiarei para tratar da preparação para os concursos diz respeito ao meu interesse na formação de subjetividades relacionadas ao estado. Em estudo sobre a relação da população local com o estado através de uma empresa estatal de açúcar no nordeste da Turquia, Catherine Alexander (2002) mostrou como os sujeitos estabeleciam diferentes conexões com o estado, as quais ditavam o modo como suas percepções sobre ele e sobre si mesmos eram mantidas. A autora ressalta a importância de identificar e descrever os processos iniciados:

where a necessary connection is felt to be absent, the movement that is made to create that connection, and how objects are used to bring such connections into being. The principal example is the connection between the self and the abstraction of ‘the state’. Objects, in this stance, can be substituted for relations, can extend or affirm relations, can make or be made by relations. In all these cases, objects may be seen as artefacts, ‘made things’, but also as ‘things that make’. (Alexander, 2002, p. 6).

Essa conexão entre o estado como “abstração” e o self dos sujeitos ajuda a explicar a relação que diferentes grupos sociais manterão com o estado, através de seus agentes. Na mesma direção, Kapferer (2005) destaca que a forma com que o estado é subjetivado difere nos diversos contextos nacionais. O autor argumenta que o imaginário do estado deve ser pensado como uma materialidade, na medida em que é uma força de constituição das pessoas atuante por meio de suas experiências no mundo. As análises antropológicas sobre o poder nas sociedades contemporâneas, para Kapferer, podem esclarecer o modo com que o estado se torna inscrito nas pessoas e em suas relações.

No caso do aprendizado vivenciado pelos concursandos ocorre um processo de corporificação da autoridade do estado nos agentes que se submetem a ele. A corporificação, no sentido de Csordas (1990), permite entender como o corpo se torna o locus de uma constante produção e atualização de significados relacionados ao poder do estado. Como procurar-se-á mostrar nesse trabalho, o processo de corporificação da autoridade estatal imprime nos sujeitos que o experimentam um sentimento de distinção social, como futuros servidores públicos de elite, que se sentem dignos do recebimento de uma série de privilégios do estado.

Ao proporem um novo nicho para a pesquisa antropológica - uma antropologia das políticas públicas, Shore e Wright (1997) destacam que as políticas públicas invadiram praticamente todas as esferas da vida social, sendo em grande medida responsáveis pelo modo como os indivíduos formam sua subjetividade na organização das sociedades contemporâneas. Insistem os autores que as políticas públicas codificam as normas e os valores sociais, contendo, sobretudo implicitamente, modelos de sociedade. Nesse sentido, pretendo mostrar como a transmissão do conhecimento para concursos públicos contém um modelo de estado que é incorporado pelos sujeitos em preparação para os processos seletivos, moldando suas subjetividades. Nos termos dos autores, a preparação para os concursos pode ser considerada como parte de um processo de governança, o qual faz com que os sujeitos contribuam, em geral de forma inconsciente, para um modelo governamental de ordem social.

Em trabalho etnográfico sobre os programas de treinamento em direitos humanos para funcionários do Estado turco, oferecidos em função da adesão do país à União Europeia, Elif Babul (2012) mostra como a legitimidade governamental e a autoridade burocrática que os sujeitos encarnam como agentes de estado passaram a ser baseadas no mérito e na aquisição de conhecimentos via educação formal, substituindo uma elite burocrática reconhecida como tal por decorrência de pertencimentos familiares. A autora mostra como o programa de formação exigido pela União Europeia altera o imaginário social relacionado à esfera burocrática, forjando um novo ethos para os funcionários públicos do estado turco.

É importante esclarecer que, no esteio teórico de Bourdieu (1996), estou pensando em elites burocráticas a partir da posição de dominância que certos grupos ocupam num determinado campo social, nesse caso, o campo burocrático brasileiro. Essa posição privilegiada dentro de um campo social confere ao grupo poder simbólico e vantagens materiais. No caso do serviço público brasileiro, as elites burocráticas se caracterizam pelos “supersalários” e por uma série de privilégios de estado não ofertados a outros servidores públicos e segmentos profissionais.

De acordo com Cris Shore (2002), um dos componentes que devem ser contemplados no estudo das elites refere-se à análise de seu recrutamento, o que permite entender como certos grupos sociais se reproduzem e garantem seu acesso às estruturas de poder. Nesse sentido, o autor sinaliza o papel das instituições escolares e das estruturas de educação de elite que são responsáveis pela socialização e seleção de determinados sujeitos que alcançam o status de elite. Shore argumenta ainda que as elites locais ou nacionais são forjadas a partir de certas normas, valores e interesses, o que chama de cultura de elite, que os agregam.

Alguns trabalhos sobre a elite do funcionalismo público no Brasil já apontaram que o processo de formação do ethos profissional se inicia antes mesmo do efetivo ingresso dos sujeitos em suas respectivas carreiras. Em trabalho de referência sobre a constituição de uma importante elite burocrática dos anos de 1930, os técnicos da previdência social, Hochman (1992) ressaltou que os textos de estudo para os concursos “seduziam” os candidatos pelo pioneirismo atribuído aos futuros servidores daquele setor na administração pública. Já em sua etnografia sobre o aprendizado na carreira diplomática, Moura (2007) mostra que a etapa de preparação para o concurso do Instituto Rio Branco já é responsável por ir criando um “espírito” de corporação nos candidatos. Tratando da formação no “mundo do direito”, Kant de Lima (2011) afirma que:

Os concursos públicos em geral e, em especial, os jurídicos são exemplo disto: para lograr aprovação, é necessário acesso a um conhecimento particularizado, que não está disponível no mercado universitário. Em consequência, quando conseguem passar, os aprovados sentem-se como que eleitos porque detentores de um saber especial, único, como que ungidos para tomar suas decisões livremente, sem que tenham que prestar contas senão a seus pares. (Kant de Lima, 2011, p. 43).

A passagem traz implícita uma relação entre o contexto de aprendizado e a tomada de decisão, ou seja, entre a transmissão do saber e o exercício do poder no âmbito da burocracia estatal no Brasil. Essa relação, entretanto, não tem a ver necessariamente com o conteúdo que está sendo comunicado, mas sim com a forma por meio da qual o conhecimento é acessado.

No caso dos concursos públicos da burocracia fiscal, que constituem o foco de minha pesquisa, o acesso ao conhecimento se dá por meio de um processo de aprendizado que tem lugar, sobretudo, em cursos preparatórios destinados à aprovação dos candidatos nos processos seletivos. Em pesquisa sobre os auditores fiscais da Receita Federal, Miranda (2015, p. 80) já identificava que “o processo de seleção se inicia antes do concurso, com a participação dos candidatos em diversos cursinhos preparatórios, dos quais participam ativamente muitos fiscais como professores, ou até mesmo sócios dos cursos.”.

É importante ressaltar que esses cursos preparatórios não têm formalmente o papel de promover uma formação para os futuros servidores públicos. São essencialmente locais de treinamento (ou adestramento) em que uma série de conhecimentos é inculcada nos candidatos visando exclusivamente um bom rendimento nas provas dos concursos. No Brasil, as instituições voltadas para a capacitação e a formação profissional para o setor público estão vinculadas a diferentes esferas de governo (Orban, 2001), mas não oferecem preparação para os concursos públicos5.

O tipo de atividade pedagógica desempenhada nos cursos para concursos está mais ligado àquela descrita por Bourdieu (1998) em seu estudo sobre as classes preparatórias para os concursos de admissão às grandes écoles francesas. Bourdieu trata essas classes preparatórias como um caso particular do amplo universo de “escolas de elite”, cujo papel é fundamentalmente o de consagração de grupos sociais que serão alçados a posições dominantes de poder em virtude de um capital educacional adquirido naquelas instituições. Esse capital será atestado nos concursos, que Bourdieu toma como cerimônias de consagração da sociedade, a partir dos quais um grupo social se converte numa “nobreza de estado”.

Inspirado em Bourdieu, portanto, considero conveniente pensar os cursos preparatórios para os concursos públicos da burocracia fiscal, no Brasil, como “escolas de elite”. Eles são determinantes para que os sujeitos alcancem alguns dos cargos mais prestigiosos da administração pública no país. Segundo Bourdieu, as instituições educacionais são responsáveis também pelo espírito de grupo criado entre os estudantes em função da homogeneidade das estruturas mentais inculcadas através da ação pedagógica. Não por acaso, Bourdieu afirma que a sociologia da educação é parte da sociologia do conhecimento e do poder. Isso nos leva para o debate sobre o estatuto do conhecimento e do aprendizado proporcionados pelos cursos preparatórios para concursos públicos.

A sujeição burocrática

O processo de preparação para os concursos públicos é responsável por promover uma série de aprendizados nos sujeitos nele engajados como candidatos (ou estudantes). Partindo da observação participante realizada em cursos preparatórios voltados para concursos da burocracia fiscal no Estado do Rio de Janeiro, foi possível constatar que o conhecimento adquirido neste contexto é de duas ordens, cada qual implicando uma forma de aprendizado. O primeiro tem um caráter prático, é um aprendizado curricular e de técnicas (como dicas e macetes), voltado para o desempenho dos concursandos nas provas. É esse tipo de conhecimento que os estudantes buscam receber quando se inscrevem nos cursos preparatórios.

Entretanto, nesse artigo irei discutir um segundo conjunto de aprendizados que os estudantes incorporam durante a preparação para os concursos públicos. Diferente do conhecimento voltado para as provas, esse aprendizado é adquirido de modo incidental, sobretudo durante as aulas dos cursos. Não é o conhecimento que os estudantes buscam quando se matriculam nos cursos, tampouco o que estrutura as aulas dos professores. Ainda assim, é parte relevante do processo de preparação, reforçando nos sujeitos sua inclinação para a carreira pública e fornecendo-lhes um conjunto de representações sobre o serviço público e seus ocupantes.

Como forma de nomear esse processo de aprendizado, vou chamá-lo de sujeição burocrática. Com isso, quero enfatizar que parte do aprendizado envolvido na preparação para os concursos públicos envolve “modos de objetivação que transformam os seres humanos em sujeitos” (Foucault, 1995, p. 231). Foucault diferenciou três modos de objetivação que explicam como os sujeitos se constituem e são constituídos, dos quais dois serão mobilizados aqui para definirmos a sujeição burocrática. O primeiro destes é aquele em que os sujeitos se tornam objeto do que o autor chamou de uma prática divisora, uma divisão estabelecida entre si mesmo e outros sujeitos, como o louco e o são, o criminoso e o “bom homem”. A segunda refere-se ao modo como os homens dão a si mesmos o estatuto de sujeito, ou, nas palavras do autor, uma forma de poder que “marca-o com sua própria individualidade, liga-o à sua própria identidade, impõe-lhe uma lei de verdade, que devemos reconhecer e que os outros têm que reconhecer nele” (Foucault, 1995, p. 235). Trata-se de uma forma de subjetivação que torna os indivíduos sujeitos; no caso de minha pesquisa, uma subjetivação que transforma os estudantes em sujeitos de estado.

Esse processo de subjetivação da diferença por que passam os alunos dos cursos preparatórios para concurso poderia ser comparado, embora dirigido para o vértice oposto da pirâmide social, àquele denominado por Misse (1999) como sujeição criminal, aplicado aos sujeitos pensados como criminais ou potencialmente criminais e identificados através de certos tipos sociais, como “bandidos” e “vagabundos”.6

Segundo Misse, a sujeição criminal “é o processo social pelo qual identidades são construídas e atribuídas para habitar adequadamente o que é representado como um “mundo à parte” (Misse, 1999, p. 71). No caso da sujeição criminal, esse mundo à parte é o “mundo do crime”, habitado por indivíduos envolvidos com práticas clandestinas e ilegais, sempre sujeitos a acusações sociais. Tal qual ocorre na clandestinidade, ao longo do processo de preparação para os concursos públicos, os sujeitos são pouco a pouco construídos como se estivessem inseridos em um mundo à parte. Levados pelos agentes pedagógicos a reconhecer a si próprios como futuros servidores de elite, a preparação para os concursos é responsável por fazer esses sujeitos passarem por um processo de sujeição burocrática.

Como na sujeição criminal, e aqui encerramos as convergências entre os dois conceitos, o processo de sujeição burocrática implica também a construção de subjetividades. Porém, Misse constrói a sujeição criminal como um fenômeno conjuntural, pois vincula-o ao processo histórico de acumulação social da violência ocorrido no Rio de Janeiro, especialmente a partir da década de 1970. Além disso, o autor toma a sujeição criminal como um fenômeno difuso, pois sua reprodução, embora atinja alvos específicos da população, não pode ser circunscrita a locais ou instituições determinadas, tendo um caráter mais abrangente. Já o conceito de sujeição burocrática, tal como o emprego, é restrito ao contexto de preparação para os concursos. Concebido a partir da preparação de estudantes para os concursos da burocracia fiscal, é possível que se possa pensar a sujeição burocrática na preparação para outras carreiras da administração pública, mas a forma da sujeição verificada será provavelmente diversa da que irei descrever aqui.

Voltamos, então, às formas de objetivação dos sujeitos de Foucault. No contexto de preparação para os concursos públicos, a primeira delas é estabelecida através de uma clara divisão que os professores buscam estabelecer entre os funcionários públicos e os demais segmentos profissionais da sociedade brasileira. Essa diferenciação traz implícita uma hierarquização entre as categorias postas em oposição. É claro que os estudantes já reconhecem, anteriormente à sua frequência aos cursos, os funcionários públicos como um segmento específico da sociedade. No entanto, os discursos dos agentes pedagógicos tornam essa especificidade ainda mais reiterada, emprestando-lhe um caráter ideológico, na medida em que fornecem justificações sobre a centralidade do serviço público para os candidatos a ele.

Os casos etnográficos tornam o ponto mais claro. Durante a aula de Direito Administrativo, o professor explicava que o processo de entrada dos sujeitos no serviço público previa três etapas, a “nomeação”, o “empossamento” e o “exercício”, que formavam a “investidura”7. Segundo ele, era o processo pelo qual todos os estudantes da turma ainda iriam passar. Em seguida, disse: “A investidura marca a sua transformação de um simples mortal para um agente do estado”. Aqui vemos já uma primeira disjunção radical entre os membros do serviço público e o restante da população. O próprio termo “agente”, diferente do conceito sociológico de mesmo nome, traz a conotação de um sujeito com poderes diferenciados, uma vez que se opõe aos “mortais”.

Essa diferença entre o servidor público e o restante da sociedade é acompanhada por discursos que atribuem uma prevalência da carreira pública sobre as ocupações disponíveis na iniciativa privada, focando sobretudo nas vantagens econômicas associadas às primeiras. Ao justificar a importância da regularidade do estudo, o professor de Contabilidade de um dos cursos preparatórios que acompanhei dizia que os estudantes não deveriam “jamais” pensar em desistir de fazer concurso público:

Uma hora você vai passar. É só ter paciência, não desanimar. Aliás, é o único recurso que vocês têm. Num país de bosta como o nosso, se você não passar em concurso, vai ter que arrumar um emprego. Se arrumar um emprego, vão tirar seu calo. É trabalhar, trabalhar, trabalhar... e, no final, um salário de dois mil. (Registro de campo, Professor de Contabilidade, Rio de Janeiro, maio de 2017).

Para corroborar sua tese, o professor seguiu dizendo que no Brasil uma “faxineira” ganhava o mesmo valor de uma conhecida sua que trabalhava em uma empresa e era “toda bonita, com carro”, mas recebia “apenas” três mil reais de salário. Se tivesse feito concurso público, disse ele, não estaria nessa situação, ou seja, ganhando supostamente o mesmo salário que uma faxineira. Concluindo seu raciocínio, disse que um “bom pedreiro” ganha mais do que um “engenheiro formado”, já que “o pedreiro não paga imposto e faz caixa dois”.

Essa sequência de considerações do professor é interessante para mostrar como o concurso atua como um potente mecanismo de distinção social (Bourdieu, 2008). Ao mesmo tempo em que o concurso aparece como uma estratégia que garante vantagens econômicas, afasta simbolicamente, em parte por conta da extensão dessas vantagens, os sujeitos de ocupações profissionais identificadas com segmentos da sociedade brasileira representados tradicionalmente como pertencendo à base da pirâmide social, como “pedreiros” e “faxineiras”.

O caráter de distinção assegurado pelos concursos públicos também pode ser notado pelo aprendizado que os estudantes têm sobre a relação que deverão manter com sua atividade profissional depois da aprovação. Durante uma sessão de coaching online que acompanhei durante a pesquisa, a coach buscava mostrar para seus seguidores que eles não deveriam se preocupar em passar para um cargo ou instituição especifica, pois o caráter do serviço que desempenhariam era semelhante:

Tu vai lá, vai trabalhar, vai ter chefe chato, vai ter colega chato. É um emprego, como qualquer outro. Tu vai trabalhar e acabou. “Ah, eu vou mudar o mundo”. Não vai. Tu vai enxugar gelo. Hoje eu estou aqui só para falar a verdade. Mas a diferença é que você vai ter estabilidade e segurança financeira. A diferença é que você vai estar ganhando acima de 90% da população brasileira. A diferença é que você vai ter a certeza de que você não vai ser mandado embora. A diferença é que você vai realizar um monte de coisa na sua vida que, com o que a iniciativa privada paga, você não consegue. Mas é um emprego. (Registro de campo, Coach, Rio de Janeiro, novembro de 2017).

O trecho é revelador sobre o significado que o serviço público tem para os aprovados, ou, mais especificamente, sobre como esse significado é legitimado pelos agentes pedagógicos envolvidos na preparação para os concursos. Como qualquer outro emprego, nas palavras da coach, o contexto da atividade profissional é visto como negativo, mas um mal necessário para assegurar realizações pessoais. Nesse sentido, não se trata de um contexto concebido para satisfazer aspirações profissionais dos aprovados, mas fundamentalmente para garantir distinção social. A fala dessa mesma coach, agora durante o evento Coaching Day, torna essa percepção sobre o concurso e o serviço público ainda mais evidenciada:

Acredito, sim, que o concurso muda, melhora e transforma as vidas. Aconteceu isso comigo. Eu mudei de vida. Eu pude proporcionar uma condição melhor pra mim, pra minha família, para os meus amigos, para as pessoas que eu amo. Eu posso, hoje em dia, ajudar outras pessoas. Então, eu acredito que cada pessoa, quando passa num concurso público, passa uma transformação pessoal que impacta o lar dela, a família, os amigos, a comunidade, como se fosse um impacto em todo o universo. Olha só que loucura. Mas é o que eu acredito. (Registro de campo, Coach, Rio de Janeiro, abril de 2017).

A ênfase do discurso é claramente colocada no papel que o concurso terá para mudar a situação de vida do servidor com relação a seus grupos de referência mais próximos, como familiares, amigos e vizinhança. Como era a regra durante as falas dos agentes pedagógicos durante meu trabalho de campo, quando se enfatiza os efeitos decorrentes de uma aprovação em concurso, não há menção ao órgão público em que o futuro aprovado irá atuar, e muito menos àqueles cidadãos a quem irá “servir” como servidor. A grande maioria dos concursandos com quem tive contato nas turmas de preparação para os concursos da burocracia fiscal, por exemplo, tinha apenas uma vaga ideia sobre as atividades que um fiscal desempenha na prática, embora estivesse bem inteirada sobre seus vencimentos, benefícios, adicionais, carga horária de trabalho, entre outras vantagens que um fiscal do estado possui.

Do mesmo modo como o concurso aparecia no discurso da coach associado à família, para meus interlocutores que frequentavam os cursos comigo como alunos, a entrada no serviço público emergia como um modo de viabilizar um projeto familiar. Carina, casada e com 25 anos, dizia que pretendia ter filhos apenas depois que conseguisse sua aprovação, para “ter segurança”, isto é, estabilidade financeira. Gabriel, pai de uma filha pequena e recém-casado, também começou a estudar para concursos em busca de estabilidade, pois agora tinha suas “responsabilidades de família”.

O processo de sujeição burocrática vivenciado pelos candidatos ao serviço público tem como um de seus componentes centrais o reconhecimento por parte deles de que merecem compor a burocracia estatal. Durante um evento promovendo a prática do coaching para concursos públicos que acompanhei, falando para uma plateia com cerca de duzentas pessoas, uma das palestrantes pediu que as luzes do auditório fossem apagadas e todos os presentes permanecessem sentados e de olhos fechados. Com o ambiente às escuras, uma música relaxante começou a tocar e a palestrante iniciou sua fala ao microfone em tom sereno:

Nós vamos fazer uma viagem juntos agora, e eu serei a sua guia. Respira. Sente o ar entrando pelo seu nariz. Sente o ar entrando pelos seus pulmões. Feche os olhos. Coloque seus pés no chão. Sinta seus pés no chão. Sente a ponta dos seus dedos dos pés, dos dedos das mãos. Respira. Sente o ar entrando nos seus pulmões. Um, dois, três.... Você vai relaxar e um milagre vai acontecer. Você vai dormir nessa poltrona e vai acordar no dia 8 de abril de 2018. Você está no seu quarto. Tem uma luz do sol entrando pela janela. Você sente algo diferente no ar. Você ouve o barulho dos passarinhos. Tem algo diferente. Você levanta. E vai fazer uma coisa que tem feito sempre nos últimos dias. Você vai ligar o seu computador. Você vai acessar a internet e vai buscar o seu nome na lista dos convocados. As suas mãos suam. Você está ansioso. Afinal, todos os dias você repete isso. Você acessa a página e ela está demorando a abrir. O seu coração acelera. Você dá F5 uma vez, duas, e só na sétima vez é que a página aparece. Você vê a lista dos convocados. Suas mãos suam e você procura o seu nome na lista. E você vê o seu nome. Você não acredita. Como você se sente? Como está o seu coração? Como você reage? Quem é a primeira pessoa que você vai contar essa novidade, que você finalmente foi convocado? Vocês se olham, se abraçam. O que ela te fala? Você está muito feliz. E você quer espalhar essa notícia. Quem mais torceu por você e que você quer contar essa novidade? Para quem você vai ligar? Como essas pessoas reagem? Você está eufórico e quer aproveitar esse momento para comemorar. Como vai ser a sua comemoração. Aonde vocês vão? O que vocês vão comer? Que música vai estar tocando na sua festa? Você está planejando a festa, não está acreditando, e resolve deitar novamente em sua cama. Relaxar. E para pra pensar. Começa a passar um filme na sua cabeça. Valeu a pena esperar. Por que valeu a pena? Você vai ser mais feliz a partir de agora? Por que? As pessoas que você ama ficarão mais felizes? Onde você vai trabalhar? Onde você vai morar? O que de melhor vai acontecer? Você está tão relaxado que volta a cochilar. Respira. Sente o ar nos seus pulmões. Guarda esta informação no canto da sua cabeça. Pode abrir os olhos. (Registro de campo, Coach, Rio de Janeiro, abril de 2017).

A luz, então, foi acesa, e podia-se ver algumas pessoas do público emocionadas, com os olhos marejados. A palestrante explicou aos presentes que se tratava de um “exercício de memória do futuro”, e aquelas informações “mentalizadas” ficariam guardadas “na memória e no coração” de cada um, devendo o exercício ser repetido por eles quando ficassem desaminados durante o processo de preparação. Fiquei bastante surpreso em verificar a comoção do público após o “exercício”, pois enquanto a situação se desenrolava me parecia algo constrangedor, embora aparentemente apenas eu tenha tido essa percepção.

A situação acima descrita é apenas um fragmento etnográfico que ilustra a construção de um novo self, que constitui parte do processo de sujeição burocrática ocorrido durante a preparação para os concursos públicos, ao fim do qual os estudantes adquirem um aprendizado sobre si mesmos, além daquele de caráter prático, voltado para as provas. Embora comecem seus estudos motivados para conseguir um cargo ou emprego público, ao final dele, ou mesmo no começo da preparação, a essa motivação inicial é acrescido um convencimento de sua adequação para o serviço público. Em alguns casos, quando esse convencimento já existe nos sujeitos, decorrente muitas vezes de influências advindas do seio familiar, ele é reforçado e confirmado durante o processo de aprendizado.

O fundador da Academia do Concurso costuma ressaltar para seus alunos, e também nas palestras que ministra em todo o Brasil, o caráter especial que dali em diante os concursandos deveriam reconhecer em si próprios:

Eu falo para as pessoas que eles vão mudar a vida deles. ‘Vocês já fazem parte de uma parcela diferenciada da população’. Quem quer ser técnico do TRE, emprego federal e ganhar sete mil reais por mês? 150 milhões de brasileiros falam ‘eu quero, eu quero, eu quero’. De 150 milhões, 149.998.000 estão em casa com desejo e só. Culpando a tudo e a todos por estarem naquela situação, sem emprego, mas sem fazer nada para mudar. Esses que estão aqui são uma parcela mínima, que arregaçaram as mangas e transformaram aquele desejo em ação. Já são vencedores. São uma parcela diferenciada da população (Entrevista, Professor e sócio de cursos preparatórios, Rio de Janeiro, setembro de 2017).

O processo de reconhecer a si próprios como “diferenciados”, “vencedores”, é essencial para que os sujeitos se mantenham nos cursos e sigam na preparação para os concursos públicos em que desejam aprovação. Não por acaso, esse discurso é enfatizado logo no início dos cursos, em diferentes disciplinas. Repetido várias vezes, ilustrado com “casos de sucesso” de antigos candidatos, já faz parte da retórica dos professores e demais agentes educacionais inseridos no universo de preparação para os concursos. A repetição, na maioria das vezes, é proposital, visando inculcar nos concursandos uma nova representação de si, à qual estaria vinculada a ideia de elite, e a importância dos cursos para se chegar a tal condição.

Nesse sentido, durante a preparação para os concursos públicos da burocracia fiscal que pude acompanhar, os candidatos eram expostos com frequência a um discurso, enunciado pelos professores e demais membros dos cursos preparatórios, que atribuía a eles um status diferenciado frente ao restante da população:

Vocês vão formar uma elite. Seu filho, imagino que seus filhos sejam criados com uma visão muito ampla. Serão crianças com uma mente privilegiada. Porque você vai entender de Matemática Financeira, Raciocínio Lógico, e todas as coisas que vocês vão aprender aqui. Eu domino o Direito, especialmente o Direito Constitucional, que é minha especialidade. Os demais, eu de vez em quando leio. Você, não. Você vai formar uma elite no país. (Registro de campo, Professora de Direito Constitucional, Rio de Janeiro, outubro de 2016).

A fala trazida acima ocorreu logo na primeira aula de Direito Constitucional de um curso preparatório, na cidade do Rio de Janeiro. A professora voltaria em outras aulas a expressar a ideia segundo a qual os alunos ali presentes constituiriam uma elite no país, assim como seus filhos, devido ao conhecimento das diferentes disciplinas transmitidas durante o curso. Há no discurso uma clara associação entre o conhecimento generalista - oposto ao conhecimento especializado - e o status de elite.

O auto reconhecimento dos candidatos como servidores de elite é estimulada ainda mais explicitamente quando os professores falam dos cargos da burocracia fiscal. O professor de Direito Tributário do curso que acompanhei na cidade do Rio de Janeiro, que era auditor-fiscal, além de contar diversos casos de sua rotina de trabalho, costumava fazer projeções de como seria a vida profissional dos candidatos depois de aprovados no concurso. Numa dessas ocasiões, disse:

Fiscal é a galinha dos ovos de ouro. É você no futuro. Você está aqui estudando hoje. Aí um dia você vai trabalhar num setorzinho, num porto, numa delegacia. Aí você vai lançar um tributo, vai cobrar 10 mil reais. Vai se sentir, assim, “até que enfim, né”. Até que você vai entender porque tem que ganhar bem. Porque você arrecada tributos. Eu sustento o sistema. Eu ajudo o Estado. Aí um dia você vai lançar um auto de infração de 1 bilhão de reais. Aí você “opa, eu tenho que ganhar muito bem”. Para e pensa. Isso vai acontecer com você. Quando você arrecadar 1 bilhão de uma empresa, você vai ver a importância do seu trabalho. Essa é a sua função no futuro. Ser um fiscal. (Registro de campo, Professor de Direito Tributário, Rio de Janeiro, junho de 2017).

Ressalto que a motivação em prestar concursos para a maior parte dos estudantes de cursos preparatórios relacionava-se ao conjunto de vantagens que identificam na carreira pública, sobretudo a estabilidade. Durante a frequência aos cursos, os discursos dos agentes pedagógicos não apenas reforçam o caráter sui generis dessas vantagens quando comparadas às condições de trabalho da maior parte da população, como conferem-nas expressão ideológica, fornecendo justificativas pelas quais elas são devidas. O discurso do professor mostra ainda como os cursos veiculam uma representação tradicional sobre o papel dos agentes da burocracia fiscal no Brasil, como foi demonstrado por Miranda (2015, p. 245), que aparecem na posição de “parceiros do estado”.

Tal como foi ressaltado por Bourdieu (1998) no estudo sobre classes preparatórias francesas, o confinamento a que estão submetidos durante os cursos é outro elemento que faz os estudantes sentirem como se fossem especiais e tivessem um conhecimento exclusivo, sendo uma típica característica da formação de elites. Durante um evento realizado na véspera de um dos concursos que acompanhei, o coordenador do curso que promovia o evento pediu a palavra ao final da maratona de aulas e falou para os presentes: “Oh, hoje, quem está aqui nesta sala é um potencial aprovado. Os aprovados no concurso vão sair aqui desta sala”.

Embora não tenha sido o recorte empírico privilegiado na pesquisa, ousaria dizer que, mesmo nos cursos à distância, esse sentimento de estar confinado e acessando um conhecimento disponível para poucos se reproduz, pois os cursos e os professores divulgam seus serviços prometendo exclusividade (ainda que para um grupo, e não individual). Assim, em um e-mail que recebi de uma coach, convidava-se os alunos para uma “sessão secreta”, chamando atenção que o conteúdo ficaria disponível “apenas” para os alunos inscritos (isto é, matriculados) em uma das turmas online de coaching.

Uma nova “organização da personalidade”, como Quinn (2006) define o self, caracteriza o processo de sujeição burocrática pelo qual os candidatos ao serviço público são submetidos. Os sujeitos veem a si próprios de uma nova forma, como “merecedores”, “diferenciados” e tributários de diversos privilégios do estado. Reconhecendo-se como pertencentes a uma elite, os candidatos aprendem a criar uma identificação moral com o estado, que é representado como separado da sociedade. No caso dos fiscais, essa identificação se justifica a partir da ideia de que eles são não apenas “servidores” do estado, mas seus “parceiros”, uma vez que contribuem para sua manutenção exercendo a arrecadação de tributos.

Essa sujeição burocrática reforça o lugar do estado como ente superior à sociedade, sendo os futuros funcionários a ele vinculados voltados sobretudo à sua reprodução social através do exercício do poder burocrático que passarão a exercer uma vez aprovados nos concursos. Assim, os processos seletivos de admissão à burocracia fiscal favorecem a disseminação de um modelo cultural de serviço público em que a prestação de serviços à sociedade não se configura como um elemento de formação do ethos dos candidatos aos cargos públicos.

Como Souza Lima e Castro (2015, p. 38) apontaram, a etnografia das dimensões culturais dos programas de ação do estado permite mostrar que “as subjetividades e as formas de assujeitamento andam juntas, como nas práticas educacionais”. A sujeição burocrática vivenciada na preparação para os concursos públicos da burocracia fiscal envolve justamente a formação de subjetividades a partir de práticas educacionais relacionadas ao estado, explorando as dimensões culturais que esse processo acarreta para a concepção de serviço público internalizada durante o aprendizado, sobretudo nos cursos preparatórios.

Considerações finais

O concurso público no Brasil é um dos principais fenômenos que criam o efeito estado (Mitchell, 1991), ou seja, a mistificação da separação entre estado e sociedade. Transformando os sujeitos comuns em funcionários públicos, servidores do estado, a aprovação no concurso opera uma consagração, uma mágica de estado (Bourdieu, 1998) que faz com que alguns sejam reconhecidos por outros e por si mesmos como merecedores de cargos na administração pública em virtude de seu mérito demonstrado em provas de processos seletivos.

A sujeição burocrática explica como a motivação inicial em passar nos concursos, que faz com que os agentes iniciem sua preparação matriculando-se em cursos e/ou adquirindo livros e outros tipos de materiais didáticos voltados para os processos seletivos, transforma-se num sentimento de forte identificação com a carreira pública e de obrigação moral em virar um servidor público.

Os sujeitos que vivenciam a preparação para esses concursos da burocracia fiscal passam a compartilhar um modelo cultural de funcionário e de serviço público. Ele faz parte do processo de sujeição burocrática, na medida em que é o resultado da tentativa de qualificação do termo positivado da divisão estabelecida através do discurso dos agentes pedagógicos entre os funcionários públicos e os demais segmentos profissionais - esses últimos socialmente inferiorizados. Vendo o mundo profissional agora dividido entre os funcionários públicos e os “outros”, os sujeitos passam a reconhecer em si mesmos os atributos imputados ao primeiro grupo, entre os quais, no caso da preparação para os cargos da burocracia fiscal, o status de elite, conquistada mediante forte sacrifício. Assim, produzindo uma corporificação da autoridade do estado, a sujeição burocrática permite entender como os agentes se tornam seduzidos e investem na manutenção de poder e de hierarquia social.

O modelo cultural de funcionário emergente dos discursos dos agentes pedagógicos, com o qual os estudantes passam a se reconhecer, legitima proposições sobre o caráter do poder e de seu usufruto pelos agentes de estado. Em outros termos, podemos concluir dizendo que a sujeição burocrática contribui sobremaneira para corporificar a autoridade do estado nos candidatos, tornando-os sujeitos a seu poder simbólico, mesmo que beneficiários dele; tornando-os parte da construção desse poder; tornando-os, portanto, sujeitos de estado.


Notas

1 . Uma das grandes motivações no discurso das pessoas a respeito do porquê se tornar servidor público é a “estabilidade” Autor, 2019

2 . Além da União, do Distrito Federal e dos 26 estados, o Brasil ainda possui 5.570 municípios, os quais podem fazer concursos para fiscais.

3 . Como o Arquivo Nacional, a Biblioteca Nacional, o Museu Nacional, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e a sede da Petrobrás, além das dezenas de instituições vinculadas à administração pública estadual e municipal.

4 . Segundo dados oficiais, aproximadamente um sexto do funcionalismo público federal em atividade, isto é, excetuando-se os aposentados e pensionistas, atuavam no Estado do Rio de Janeiro no ano de 2017, o que correspondia a 105.465 servidores (MPOG, 2018).

5 . À exceção de instituições vinculadas aos órgãos da justiça, como a Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj), que oferecem cursos que servem como preparação para os concursos públicos (Fontainha, 2011).

6 . O conceito de sujeição burocrática foi inicialmente inspirado no conceito de sujeição criminal, de Michel Misse, embora seja desenvolvido por meios diferentes.

7 . Como é de praxe nos tópicos de direito, existe muita divergência doutrinária sobre a forma de nomear as etapas do processo admissional. Há quem inclua, por exemplo, a aprovação como parte do processo; outros autores consideram a investidura apenas o momento de “empossamento” no cargo. Após a entrada “em exercício”, o servidor ainda fica em estágio probatório durante três anos, quando só então passa a ter direito à “estabilidade”.

Financiamiento Este artigo foi financiado por uma bolsa de pós-doutorado da Faperj destinada a pesquisadores do INCT-InEAC.

Agradecimientos

Agradeço à Faperj e ao INCT-InEAC pela bolsa de pós-doutorado que viabilizou a escrita desse artigo.

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