Artículo original
Geração, um conceito situado
Considerações a partir de uma etnografia com crianças e jovens congadeiros

Generation, a situated concept. Considerations from an ethnography with children and young people from congadas

Generación, un concepto situado. Consideraciones a partir de una etnografía con niños y jóvenes congadeiros

Geração, um conceito situado. Considerações a partir de uma etnografia com crianças e jovens congadeiros
Runa, vol. 42 no. 2, (193- 210 pp.), Jul-Dec, 2021, doi: 10.34096/runa.v42i2.7608. ISSN: 1851-9628
Instituto de Ciencias Antropológicas, Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires


Introdução

Este artigo tematiza o conceito de geração, categoria social de análise para o estudo de crianças e da infância, dentro do quadro teórico da Sociologia da Infância. As reflexões em torno dessa temática emergiram de pesquisa etnográfica com crianças e jovens da Congada de Santa Efigênia de Mogi das Cruzes, São Paulo, Brasil, no decorrer dos anos 2016 a 2018. Realizada no âmbito da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, a pesquisa não contou com financiamento. Seu relatório final foi aprovado em dezembro de 2018 com o título: “Crianças e jovens na Congada de Santa Efigênia: aprendizagens e relações intergeracionais” (Cunha, 2018).

Tensões entre os pressupostos teóricos fundantes da Sociologia da Infância e de marcadores legais da infância com a realidade do campo etnográfico alçaram as discussões em torno de geração ao patamar de questão importante para ser problematizada. Nesse processo de repensar o termo, etnografias brasileiras e latino-americanas vieram juntar-se a um conjunto de textos do campo multidisciplinar dos Estudos da Infância para possibilitar sua compreensão contextualizada e conexa com experiências, relações e significados do ser congadeiro e congadeira nesse grupo musical de tradição oral.

No decorrer de três anos de investigação, a Congada de Santa Efigênia foi acompanhada nas suas andanças por muitos lugares, inscrevendo-se a etnografia realizada na abordagem multissituada, dado seu caráter de itinerância. Acompanhar a Congada em seus deslocamentos pelos lugares aos quais comparece para reverenciar Santa Efigênia, entoando seus cantos sagrados e batidas de tambores, permitiu-me observar de perto esse contexto sociocultural. Um ano e meio após entrar em campo também foi possível vivenciar a Congada do lado de dentro, porquanto o papel inicial de pesquisadora e fotógrafa veio somar-se ao de aprendiz de congada, passando a compor o grupo como dançante, cantante e devota de Santa Efigênia.

Com vistas a pintar um quadro do contexto investigativo dessa etnografia, o artigo traz dados sobre as congadas no Brasil e apresenta a Congada de Santa Efigênia, passando, a partir de então, a tecer considerações acerca de geração, conceito fundante para o estudo da infância e das crianças, pensando-o na relação com a realidade do campo de pesquisa.

Congadas

Manifestações religiosas de grupos populares de tradição oral encontradas em festas católicas de algumas regiões do Brasil. As congadas têm presença muito marcante nos estados de Minas Gerais, São Paulo e Goiás. Caracterizam-se pela presença de cantos sagrados, batidas de tambores em diferentes ritmos e passos de danças que se desenvolvem em formato de cortejos que, via de regra, terminam em igrejas das irmandades de homens pretos. As vestimentas são ricamente adornadas e, em muitas dessas festas, acontece a coroação de reis e rainhas negros. Esses e outros personagens da realeza também podem compor esse ritual de traços dramáticos, além das bandeiras dos santos, que são carregadas por guardiões, e instrumentos rituais sagrados, como bastões e apitos de capitães e capitãs.

As congadas têm suas raízes fundadas no encontro da catolicidade africana pré-diáspora, já misturada a outras religiões e ritos sagrados ancestrais, com a religiosidade católica popular do Brasil Colônia. Até o século XIX as congadas foram chamadas de festas de Congo1 e, segundo Mello e Souza (2011, 2016), chegaram ao Brasil trazidas pelos negros escravizados vindos da África.

As congadas feitas no século XIX traziam elementos mais evidentemente africanos e eram diferentes das feitas no século passado, assim como estas eram diferentes das feitas atualmente, mas todas elas eram, e são, expressão de uma religiosidade que congrega maneiras africanas e ocidentais de lidar com as forças espirituais, podendo ser lidas por uma chave católica, mas também à luz de culturas centro-africanas. (Mello e Souza, 2011, p. 15).

De acordo com pesquisas conduzidas pela autora supracitada, as congadas brasileiras podem ser compreendidas como descendentes diretas de danças militares rituais, realizadas em determinados momentos da vida social e política africana pré-diáspora, como entronização de chefes, preparação para a guerra e recepção de embaixadores de países estrangeiros, em manifestações nomeadas sangamentos2 congoleses. Esses rituais envolviam também a coroação de reis e rainhas e a presença de um séquito de figuras ligadas ao reino, além de músicos e instrumentistas que davam o tom de vivacidade a essas festas. Em terras brasileiras, esses rituais foram recriados no convívio social e religioso entre negros de diferentes regiões de origem e de crenças, ligaram-se à religiosidade católica popular do Brasil Colônia, passando a adorar santos negros como Santa Efigênia e São Benedito, por exemplo.

Ao se afirmarem como manifestações das comunidades negras católicas no Brasil, as congadas “evocavam o catolicismo incorporado já na África” (Mello e Souza, 2011, p. 13) antes da chegada dos negros escravizados por aqui. Quando o rei congo cristão vencia o adversário pagão nas danças dramáticas realizadas nas festas, afirmava que o catolicismo do grupo dizia respeito às suas matrizes históricas e culturais, e não aos processos de escravização, como entendia a sociedade branca senhorial. Mello e Souza (2011, p. 14-15) esclarece ainda que as congadas atuais são:

[...] expressões de um catolicismo negro, com características próprias que refletem interpretações permeadas de elementos dos sistemas de pensamento africano. Assim como os candomblés, abrigam cada vez mais pessoas brancas e mestiças, constituindo partes da cultura e da identidade de um povo que se define acima de tudo como resultante de contribuições diversas, como múltiplo, mas falante de uma mesma língua e habitante de um mesmo território definido.

Tal argumento, comprovado pelas pesquisas historiográficas dessa autora e por etnografias de pesquisadores do tema, como Gomes (2014) e Vilarino (2014), permitem-me afirmar que a presença das congadas no atual cenário da cultura brasileira dá mostras do seu papel fundamental para a visibilidade dessas comunidades negras, que, por meio desse ritual ancestral, afirmam que ele é também uma forma de resistência de uma população que continua enfrentando situações de racismo no Brasil, inclusive quando professa sua fé. Mesmo reconhecida e admirada, em algumas ocasiões essa Congada foi impedida de tocar seus tambores em cortejos ou de entrar com eles em algumas igrejas católicas.

Saberes negros ancestrais fundam as congadas e revelam valores que, a despeito do tempo que separa africanos do século XV dos afro-brasileiros membros das congadas de hoje, renovam-se cada vez que entoam seus cantos, tocam seus tambores e dançam suas evoluções pelas ruas de cidades brasileiras.

É como soma, e não como apropriação nem como “devoração”, como bem disse Ikeda (2013), que a pesquisa com as crianças e jovens da Congada de Santa Efigênia se constituiu, e a justificativa para realizá-la está no trazer à tona as vozes de seus membros que falam por meio dessa manifestação que os liga aos seus antepassados e os projeta para o futuro, reafirmando sua identidade, história, cultura e fé.

A Congada de Santa Efigênia de Mogi das Cruzes, São Paulo - Brasil

Eu cheguei aqui agora Vou contar de onde eu vim Vim de um bairro muito nobre Oi, da cidade de Mogi Meu terno é verde e branco Quepe enfeitado de fita No mastro Santa Efigênia Oi da Congada é padroeira3

A letra desse canto sagrado informa que quem o entoa é a Congada de Santa Efigênia de Mogi das Cruzes, cidade a 60 quilômetros do centro da cidade de São Paulo, no leste da grande região do estado conhecida como Alto Tietê. Essa localidade é celeiro de grupos de tradição oral, como congadas, marujadas e moçambiques, dentre outros. Atualmente é considerada a região com maior número de Reinados de Congos do Estado de São Paulo. Em 2018, Mogi das Cruzes contava com nove grupos em atividade: Congada de Santa Efigênia, Congada Marujada de Nossa Senhora do Rosário, Congada Batalhão de Nossa Senhora Aparecida, Congada de São Benedito de César de Souza, Congada de São Benedito do Santo Ângelo, Congada do Divino Espírito Santo, Moçambique Capela Santa Cruz, São Gonçalo de Vila Natal e Moçambique de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário.

Brás Cubas é um distrito da cidade de Mogi das Cruzes onde se situa o Jardim Santa Tereza, bairro no qual reside Gislaine Donizete Afonso, a capitã da Congada de Santa Efigênia e sua família congadeira, além de alguns membros do grupo. A casa da capitã Gislaine - chamada por todos de Laine - é também a sede da Congada de Santa Efigênia.

Figura 1

Congada de Santa Efigênia na Festa dos Homens Pretos da Penha de França. São Paulo/SP, 12 Jun. 2016

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Fonte: Arquivo da autora

Segundo relato da capitã, a tradição do que é hoje a Congada de Santa Efigênia começou por volta de 1833 com o casal Passarinho Afonso e Maria Bahiana na pequena e bucólica Santana dos Montes, cidade do Estado de Minas Gerais a 130 quilômetros de distância da capital, Belo Horizonte.

José, filho de Passarinho Afonso e Maria Bahiana, deu continuidade à tradição de cultuar Santa Efigênia com cantos sagrados, batidas de tambores e dança. Depois de adulto, José começou a levar consigo para as festividades seu filho José Batista Afonso, de apenas quatro anos de idade.

Após a morte do pai, José Batista Afonso mudou-se para Mogi das Cruzes em busca de trabalho, onde ficou conhecido como Zé Baiano, em razão do nome de sua avó, Maria Bahiana. No ano de 1984, Zé Baiano retomou a Congada de Santa Efigênia do modo como era feita por seu pai, usando a bandeira e o pau mulato, o bastão sagrado de capitão que também foi usado por seu avô.

Zé Baiano faleceu em 1999, cabendo a Gislaine, sua filha mais nova, dar continuidade à tradição. No leito de morte de Zé Baiano, Iracema, sua mãe, entregou o bastão do pai à filha, ato que selou essa escolha. O bastão que fora do pai, do avô e do bisavô - o já mencionado pau mulato - está na família há 189 anos. Com apoio de Iracema e dos membros mais velhos do grupo, Laine, à época com 18 anos, assumiu a liderança da Congada de Santa Efigênia e, segundo me disse, venceu preconceitos e se tornou a primeira capitã de congadas no Estado de São Paulo, título concedido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o IPHAN, em reconhecimento à sua liderança.

Em junho de 2018, segundo a contramestre Eduarda Afonso, filha de Laine, o grupo contava com 32 componentes, dos quais 19 eram oito crianças com idades entre um e nove anos, e 11 jovens que tinham entre 14 e 23 anos de idade. As crianças são levadas para as festas por seus familiares desde bebês e ganham suas fardas (uniformes, nome dado às roupas), pequenos bastões e pequenos instrumentos musicais feitos especialmente para aquelas que demonstram interesse em tocá-los.

Marianna (5-7 anos4), a pequena capitã, filha da caixeira Enedina, sempre esteve presente, assim como o caixeiro dobrador Kelvyn (4-7 anos), filho de Laine. Yasmim, de apenas dois anos de idade, ia com seus pais, os jovens dançantes Fernanda e Breno. A pequena Shawany, filhinha de Laine, de 1 ano de idade, muitas vezes também ia vestida com sua farda e sua tiara de princesa da Congada.

Os jovens da Santa Efigênia eram as irmãs Taís, Fernanda e Patrícia; Breno (marido de Fernanda e pai da pequena Yasmin; Thaís (sobrinha do marido de Laine, que pertence à Congada de São Benedito do Santo Ângelo); Nilton Alessandro (que toca todos os instrumentos e é filho dos caixeiros Ana e Nilton); Vinicius e seu irmão Rafael; Joyce, rainha da bandeira, e a contramestre Eduarda, filha de Laine. Em algumas ocasiões, quando Kauã e Luan não estavam em eventos do Batalhão de Nossa Senhora Aparecida, ao qual pertenciam, também iam cantar e tocar na Congada de Santa Efigênia. Outro jovem que de vez em quando tocava na Santa Efigênia era Luís Eduardo, da Congada de São Benedito de Santo Ângelo.

Figura 2

Crianças e jovens da Congada de Santa Efigênia - Atibaia-SP, 24 Jan. 2016.

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Fonte: arquivo da autora

Os grupos de cultura popular ligados à religiosidade católica seguem um calendário de festividades que cultuam Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santa Efigênia, Nossa Senhora e o Divino Espírito Santo. Essas festas acontecem em várias localidades na cidade de São Paulo, como: Igreja dos Homens Pretos da Penha de França; Igreja de Nossa Senhora Aparecida, em Itaquera; Paróquia Nossa Senhora Aparecida da Vila Nhocuné; Festa de São Benedito da Igreja Nossa Senhora da Achiropita; Paróquia Jesus Adolescente, Vila Dalila; Paróquia de São Benedito, Jaçanã, Paróquia Santo Antônio, Vila Brasilândia. O grupo também é convidado para participar de festejos em outras cidades da região metropolitana de São Paulo, como nas festas de Nossa Senhora do Bonsucesso, em Guarulhos; São Benedito, em Cotia e em Praia Grande; Festa do Divino, Mogi das Cruzes, em Guaratinguetá e em outras tantas localidades do Estado de São Paulo e de Minas Gerais.

Essa participação assídua da Congada nessas festas religiosas e nos eventos de cultura popular acontece ao longo do ano, com apresentações em SESCs, museus, centros culturais e outros, proporcionando aos seus membros muitas saídas da cidade de Mogi das Cruzes. Laine esclareceu que as viagens são custeadas por quem convida o grupo: despesas com transporte, de ônibus, e a alimentação. Poucas vezes a Congada é remunerada pelas apresentações.

- A gente vai pela fé, disse Laine mais de uma vez. Nandah (17 anos) me contou um dos motivos que a levaram a participar da Santa Efigênia: - Prefiro mil vezes estar na Congada do que na rua sem fazer nada (Caderno de campo, SESC Itaquera, 17 Jun. 2017).

Deixar Mogi das Cruzes em viagens para se apresentar, ser aplaudido, encontrar amigos de outros grupos tradicionais, sair da sua cotidianidade, ir a lugares novos, conhecer outras pessoas, ser reconhecido como dançante e instrumentista, mostrando a beleza das cores, ritmos, danças e vestimentas bem cuidadas confere sentido a esse pertencimento do grupo de jovens e crianças à Congada de Santa Efigênia.

Aparato teórico da pesquisa

A pesquisa com as crianças e jovens da Congada de Santa Efigênia apoiou-se nos Estudos da Infância (Muller; Nascimento, 2014), campo multidisciplinar que possibilita investigar a infância partindo de diferentes perspectivas e objetos de estudo, mas que convergem para trazer maior compreensão sobre crianças e seus contextos de vida. Enquanto campo de pesquisas, os Estudos da Infância levam em consideração a complexidade e a heterogeneidade da infância, assim como todos os fenômenos sociais na atualidade. Velho e Castro (1978, p. 5 e 6) esclarecem que:

Em princípio a noção de complexidade está ligada à divisão social do trabalho mais especializada, mais segmentadora na sociedade urbana industrial contemporânea, com a formação de uma rede de instituições diversificadas, mais ou menos ligadas dentro de um sistema, mas com fronteiras discerníveis. A noção de heterogeneidade por sua vez é mais cultural, enquanto a de complexidade seria mais sociológica, embora certamente estejam vinculadas. Não só a divisão social do trabalho, gerando experiências sociais e visões de mundo altamente diferenciadas, mas a própria coexistência de grupos de origens étnicas e regionais muito variadas concorrem para a existência de várias tradições que, embora tenham, obviamente, pontos comuns, podem apresentar forte especificidade.

É em razão desses níveis de complexidade e heterogeneidade que afetam e caracterizam a infância na contemporaneidade que, ao estudá-la como componente da Congada, tornou-se necessário “um amplo aparato de recursos intelectuais, uma aproximação interdisciplinar e um processo investigativo de mente aberta” (Prout, 2005, p. 2, tradução minha). Dentro dessa perspectiva teórica, a infância é considerada como construção social (James & Prout, 1990) que varia de sociedade para sociedade nos mais diferentes tempos históricos (Sarmento, 2005), e reconhece as crianças como sujeitos de direitos, seres ativos que constroem sua própria infância, e que, ao mesmo tempo em que sofrem influências, influenciam e provocam mudanças nos grupos sociais aos quais pertencem.

Para os Estudos da Infância, as crianças são sujeitos de análise válidas por si mesmas, são reconhecidas como detentoras de capacidade para falar em seu próprio nome e, ao fazê-lo, revelam o que pensam sobre as situações que vivem, ainda que isso seja expresso de modos distintos dos empregados por adultos. Quando falo em crianças, e considerando que bebês e crianças pequenas compõem esse grupo geracional, é importante salientar que suas falas ultrapassam a verbalização e englobam os silêncios, as recusas (Spyrou, 2011), que suas vozes se expressam por meio de outras formas de dizer e de dizerem de si mesmas, especialmente aquelas ligadas às linguagens artísticas (Cunha, 2020, p. 8). É o caso das crianças e jovens que compõem a geração infância neste estudo, que se valem das linguagens artísticas e da profissão de fé para se expressarem.

Uma etnografia multissituada

Para Geertz (2006, p. 372), as interpretações que fazemos sobre as sociedades podem ser encontradas nelas mesmas, e o necessário para acessá-las deve ser aprendido com elas. É em função desse fato que a etnografia foi a metodologia para conduzir esta investigação, colocando-se como o caminho para chegar às crianças e jovens, para saber o que significava, para elas, fazer parte da Congada de Santa Efigênia, para entender os sentidos do serem congadeiras e congadeiros. Com Geertz (2006, p. 24), compreendi que “a investigação etnográfica consiste em nos lançarmos a uma aventura cujo êxito só se vislumbra ao longe, e não se trata de nos convertermos em nativos, ou de os imitarmos. O que procuramos é conversar com eles, uma questão bastante difícil.”

A etnografia exige um tipo de conhecimento do contexto, que é experiencial, que exige o enquadramento social, político e histórico do fenômeno que estamos focalizando e, para tanto, é importante deixar claro que mesmo a subjetividade dos sujeitos da pesquisa deve ser vista como componente social, pois até os sentimentos devem ser lidos como ritos sociais (Fonseca, 1999). Nesta investigação com a Santa Efigênia, encontrei em Fonseca (2005) consonâncias com o interesse da autora em pesquisar grupos populares da sociedade brasileira contemporânea, num tipo de trabalho que a antropóloga nomeia como aquele que acontece “nas margens, fluxos e entre lugares” (Fonseca, 2005, p. 118).

A etnografia desenvolvida percorreu ruas e avenidas de cidades paulistas, campos temporários de uma investigação sem endereço fixo, sempre em movimento, uma etnografia multissituada (Marcus, 1995) que se moveu “para fora de lugares únicos e situações locais dos desenhos de pesquisas etnográficas convencionais, para examinar a circulação de significados culturais, objetos e identidades em tempos e espaços difusos” (Marcus, 1995, p. 96).

Para Luci (2014, p. 41), a etnografia multissituada, tal como formulada pelo autor supracitado “nos parece útil para compreensão dos grupos em fluxo, em trânsito, não organizados espacialmente em um único lócus, de modo a articular o local com o sistema social mais abrangente”. Assim, numa itinerância de espaços, conforme Sousa (2015), a cada encontro com a Congada de Santa Efigênia uma nova paisagem se desenhava: pequenas igrejas de homens pretos de zonas periféricas da cidade de São Paulo e de municípios do seu entorno, centros de cultura popular, parques, praças, lugares nitidamente reservados a essa manifestação popular de tradição oral, celebrada por negros.

Fazer etnografia é estar disposta a colocar-se dentro dos contextos e ir, devagarinho, abrindo caminhos na urdidura da trama que se tece com base nas relações sociais e simbólicas no interior de grupos como o que aqui foi investigado. Adotar esse caminho investigativo me permitiu conhecer pessoas e lugares não imaginados, possibilitou-me viver outras lógicas e temporalidades - aquelas que fundam as apresentações da Santa Efigênia e que me pareciam, de início, não ter fim. Momentos de um quase transe, porque ao viver junto do grupo outra forma de conhecimento, a de um dos ritos sagrados mais significativos dentre os populares dos negros brasileiros, vivenciei uma epistemologia afrocentrada (Nascimento, 2009), baseada em outros modos de sentir, de viver e de compreender o mundo. Fui, assim, me aproximando de tantos sentimentos e sentidos na tentativa de colocar-me no lugar dos sujeitos desta pesquisa, o que, na realidade dos encontros, nem sempre foi fácil. Foi um grande aprendizado sair do meu lugar de alguém com experiências, saberes e concepções de mundo e de vida que foram confrontados com outras concepções e pertenças, num país de desigualdades.

Para os jovens da Congada, sempre esteve presente a ideia de que ao torná-la pública, esta pesquisa seria também um modo e uma oportunidade de que sua voz fosse ouvida, para que se pudesse compreender melhor quem são e o que fazem na Congada de Santa Efigênia, assim como disse Fernanda (17-20 anos):

Pesquisadora: (...) como você acha que eu poderia divulgar, falar mais sobre a Congada, o que é que seria importante contar para as pessoas sobre a Congada? Que elas soubessem? Fernanda: Pra conhecer melhor a Congada porque todo mundo olha, acha que é macumba. Mas não, ninguém sabe o significado da Congada. Chegar e conhecer, conversar, saber da história, porque está lá. Pesquisadora: Para não julgar, né? Fernanda: É, seria uma boa mesmo divulgar, porque todo mundo julga. Antes de julgar, você tem que saber. (Caderno de campo, Festa da Igreja do Rosário dos Homens Pretos da Penha de França, 18 Jun. 2016)

Geração: um conceito situado

Em 2015 conheci a Congada de Santa Efigênia, e a existência de grande número de crianças foi fator determinante para realizar a pesquisa. Entretanto, findo o primeiro ano no campo, caiu consideravelmente o número de crianças, e os jovens, como era de seu interesse, também passaram a fazer parte da pesquisa.

Essa ampliação dos sujeitos de pesquisa exigiu a problematização de geração como categoria de análise, porque alguns jovens tinham mais de 18 anos de idade. A questão que se colocou foi: seria ainda pertinente tomar geração como categoria de análise, já que os fundamentos teóricos do projeto da pesquisa estabeleciam 18 anos de idade como o corte etário final? Se esses jovens, a rigor, compunham a geração adulta, será que, de algum modo, como geração, seria uma categoria válida para o presente estudo? Se sim, ou mesmo se não fosse mais o caso, quais referenciais teóricos sustentariam os argumentos?

No intuito de buscar respostas para compreender mais a fundo o termo geração, parti da corrente estrutural da Sociologia da Infância5, que postula a infância como categoria social de análise, do tipo geracional:

Jens Qvortrup (1991, 2000), na sua apropriação do conceito de “geração” como categoria social estruturante da infância, mobiliza de Mannheim fundamentalmente a dimensão estrutural da respectiva definição, ou seja, “des-historiza” o constructo para acentuar os aspectos predominantemente estruturais. “Geração” é assumida como uma variável independente, trans-histórica, estando prioritariamente ligada aos aspectos demográficos e económicos da sociedade. A infância é independente das crianças; estas são os actores sociais concretos que em cada momento integram a categoria geracional; ora, por efeito da variação etária desses actores, a “geração” está continuamente a ser “preenchida” e “esvaziada” dos seus elementos constitutivos concretos. A geração é o que permanece, como categoria estrutural, sendo prioritariamente definida por factores igualmente estruturais: a estabilidade e a mudança demográfica (por exemplo, Saporiti, 1994); o impacto que sofre das políticas sociais; os efeitos que recebe e que produz nos movimentos de longo curso e na sustentabilidade dos sistemas constitutivos do Estado-Providência; a afectação específica do produto e a respectiva distribuição; o envolvimento nas relações de produção e de consumo, etc. Esta perspectiva estruturalista tende a privilegiar na análise as relações intergeracionais e a secundarizar as relações intrageracionais e os aspectos culturais e simbólicos da infância (Sarmento, 2005, p. 364-365).

Nessa perspectiva, geração é colocada como o estatuto metodológico fundamental para estudar a infância, tendo como referência para definir seu limite final de idade a Convenção dos Direitos da Criança (UN, 1989). Esse documento estabelece o término da infância quando as crianças atingem a maioridade, ou seja, aos 18 anos de idade, geralmente o ponto a partir do qual deixam de ser tuteladas pelos adultos, que costuma coincidir com o final da escolarização básica. A menoridade e a obrigatoriedade da escola na vida das crianças são fatores trazidos para subsidiar o pertencimento delas à geração infância.

No entanto, Sarmento e Pinto (1997, p. 3) mencionam a existência de arbitrariedades na definição final dos limites etários colocados à infância e tomaram a questão jurídica para fazer essa afirmação, pela via dos direitos das crianças, tal como preconiza a já citada Convenção: “estabelece-se, deste modo, uma equivalência entre ser criança e atingir a plenitude dos direitos cívicos (por exemplo, poder votar)”. A idade, desse modo, segundo os autores, é determinante para definir a categoria geracional infância:

[...] considerando que esta categoria social se estabelece por efeito exclusivo da idade (e não da posição social, da cultura ou do género), podemos considerar que o estabelecimento desses limites não é uma questão de mera contabilidade jurídica, nem é socialmente indiferente. Pelo contrário, é uma questão de disputa política e social, não sendo indiferente ao contexto em que se coloca, nem ao espaço ou ao tempo da sua colocação. Assim "ser criança" varia entre sociedades, culturas e comunidades, pode variar no interior da fratria de uma mesma família e varia de acordo com a estratificação social. Do mesmo modo, varia com a duração histórica e com a definição institucional da infância dominante em cada época (Sarmento & Pinto, 1997, p. 4).

Para entender melhor o fator idade como definidor da geração infância, recorri a Kropff (2009) que, em etnografias com jovens mapuches argentinos, relacionou o conceito de geração ao de grupos de idade, a partir do que, segundo ela, antropólogos clássicos como Mead, Benedict e Malinowski disseram sobre crianças em suas etnografias (Kropff, 2009). Segundo a autora, apesar das críticas feitas ao adultocentrismo presente nas análises desses antropólogos e à “pouca atenção dada à capacidade de agência de jovens e crianças” (Kropff, 2009, p. 176, tradução minha),

Estas críticas, por outro lado, prestaram pouca atenção à análise que os antropólogos clássicos fizeram sobre o funcionamento da estrutura de grupos de idade. Uma das vantagens teóricas dessa abordagem é que ela permite desviar nossa visão da “juventude”, da “infância” ou da “velhice” para colocá-la na estrutura que geram essas categorias sociais e as coloca em íntima relação (Kropff, 2009, p. 176, tradução minha).

Pensar a infância como geração partindo da ideia de grupos de idade, associando-a à estrutura social que coloca as idades em relação umas com as outras dentro de um sistema de significações, levou-me à abordagem relacional da Sociologia da Infância, que tem por base o conceito de infância como geração, mas estuda crianças considerando suas relações com adultos, em contextos nos quais as duas gerações convivem cotidianamente, como no caso das famílias. Voltei a Sarmento (2005, p. 365), que tratou da corrente relacional e sua posição em relação à corrente estruturalista, segundo a qual a geração infância passa de variável independente para variável dependente, e que pode ser pensada também como sinônimo de grupo de idade, o que corrobora a posição de antropólogos que estudam o assunto:

Num comentário crítico às posições estruturalistas na sociologia da infância, Leena Alanen (2001) procura resgatar a conceptualização mannheimiana, sublinhando a potencialidade heurística do conceito de geração” como variável dependente, isto é, como grupo de idade construído pelos respectivos actores, no quadro das respectivas interacções e dos processos de construção simbólica dos seus referenciais de existência. Sem abandonar as dimensões estruturais, mas cruzando-as com as relações internas à geração e os respectivos processos de simbolização do real, a autora propõe-se a interpretar o “complexo dispositivo de processos sociais” por meio dos quais as crianças são construídas na sua identidade social e diferenciadas dos adultos, o que envolve a acção social (“agency”) das crianças, sendo um processo que se estabelece na “prática social” (Alanen, 2001, p. 20-21). Desse modo, a autora tematiza a geração simultaneamente como variável dependente de aspectos estruturais mais vastos e como variável independente, pelos efeitos estruturantes da acção das crianças como actores sociais, e como tópico de análise externa da infância, pela abordagem das relações intrageracionais (sic) com a geração adulta, e tópico de análise interna sobre as relações intrageracionais em que a infância (também) se (auto)constitui.

Para esclarecer significados do conceito de grupos de idade e sua relação com o conceito de geração, Kropff se apoiou em etnografias como a que Edward Evans-Pritchard (apud Kropff, 2009) realizou com o povo Nuer do Sudão em 1940. Nessa pesquisa, ainda segundo a autora, o antropólogo tratou o sistema de grupos de idade, que, para ele, “atua estabelecendo vínculos entre membros de comunidades locais aos quais lhes confere o valor de parentesco” (Evans-Pritchard apud Kropff, 2009, p. 176, tradução minha). Isso me remeteu aos relatos de membros da Congada, jovens e adultos, que, em ocasiões diferentes, me disseram que a Congada de Santa Efigênia é composta por famílias e, mais do que isso, que ela é uma família, o que confere valor de parentesco aos seus integrantes. Com isso, a etnografia conduzida por Evans-Pritchard (apud Kropff, 2009, p. 177, tradução minha) encontrou outras possibilidades de classificação geracional:

[...] os Nuer não têm muitas categorias de idade, elas são basicamente duas: crianças/jovens e adultos. Ainda que a vida adulta outorgue um mesmo status a todos os grupos de idade que se encontram dentro desta categoria, existe uma clara estratificação baseada na veteraneidade e, consequentemente, uma série de relações claramente estabelecidas entre os grupos.

Assim como a etnografia com os Nuer encontrou dois grupos de idade, a que foi conduzida por Gentile (2015) achou diferentes classificações etárias estabelecidas pelas próprias crianças e jovens, na qual a autora parte da seguinte questão: como as crianças e jovens que vivem nas ruas, que a autora nomeia como callejeras, [...] “organizam seus cursos de vida e as classificações e passagens entre idades, [...] cujas experiências e ritmos de vida não estão organizadas centralmente ao redor dos marcadores etários tradicionais e normativos - como a relação com a escola, o mercado de trabalho e/ou as famílias” (Gentile, 2015, p. 379, tradução minha). Segundo Gentile (2015, p. 380), seu interesse por esse tema de pesquisa:

[...] foi se delineando a partir de um percurso por campos de investigação sobre a infância e a juventude em condições de pobreza e desigualdade, que me permitiu identificar que a preocupação acadêmica por constituir debates específicos sobre cada classe de idade levou a centrar as discussões em uma categoria ou outra, prestando menor atenção aos próprios processos sociais, materiais e simbólicos, que organizam os percursos biográficos através das classificações etárias; e às características que recebem as passagens entre elas.

A classificação etária encontrada por Gentile (2015, p. 396) contempla quatro grupos de idade: os menores, nomeados como chiquititos ou bebês; os que eram um pouco maiores, os pibitos/as, guachos/as, guachitos/as, guachines/as; os pibes y pibas e, por último, os jovens adultos, os pibes grandes. Segundo a autora, essa classificação etária estava organizada por critérios como força física e moral, consumo de drogas, acesso a fontes e uso de dinheiro, e ainda para se diferenciarem entre si mesmos.

Voltando a Kropff, ela também menciona Svampa (apud Kropff, 2009, p. 180), que conceitua geração com base nas experiências históricas compartilhadas entre grupos geracionais, com experiências que os diferenciam entre si e que, no entendimento de Kropff (2009, p. 180), tal “definição é sugestiva porque abandona a categorização baseada unicamente na idade para incorporar a experiência social compartilhada como eixo das construções etárias”. Ainda assim, Kropff (2009, p. 180, tradução minha) questiona: “se todas as gerações convivem e, portanto, compartilham experiências sociais, minha pergunta é: o que faz com que determinada experiência se constitua como a base de uma formulação geracional específica?”. E finaliza a construção do seu pensamento sobre o termo geração, considerando-o sob duas perspectivas:

Enquanto conceito, geração pode se equiparar a grupo de idade. Os agrupamentos de idade que atravessam graus de idade se constituem em grupos de idade, ou seja, em gerações, quando constroem consciência coletiva com base na idade, quer dizer, quando adquirem “consciência de idade” (Comaroff e Comaroff em Durham, op. cit.). Sem dúvida, o debate conceitual permite também que se defina como geração aos participantes genealógicos nos sistemas de parentesco. Em sua ambivalência, esse conceito permite explorar a confluência entre os sistemas de parentesco e as estruturas e dinâmicas etárias das sociedades. A isso se soma que “geração” é também uma categoria de uso cotidiano, com capital simbólico próprio, igual a “juventude”. Enquanto categoria com capital simbólico próprio, o rastreamento dos usos do termo “geração”, permite explorar as disputas de sentido em torno dos processos de comunidade, especialmente no que se refere à dimensão temporal, à construção de tradições e sentidos de devir, aos apelos ao passado e às narrativas orientadas ao futuro (Kropff, 2009, p. 182, tradução minha).

As etnografias desenvolvidas por Kropff (2009), Evans-Pritchard (apud Kropff, 2009) e Gentile (2015) me permitiram pensar sobre a questão da idade na definição da infância como geração, porque na realidade do encontro com os sujeitos da Congada de Santa Efigênia, o limite etário final pautado pela idade de 18 anos poderia ser mais bem compreendido se cedesse lugar ao conceito vivido de geração, pensando-o com base nos saberes compartilhados dentro do grupo, com um sentido de pertencimento enquanto parentesco que marca aprendizes e mestres. Isso me conduziu à consequente ampliação do corte etário final da geração infância porque, se esta pesquisa pretendeu ouvir o ponto de vista das crianças e jovens, como não considerar o interesse daqueles que tinham ultrapassado há pouco tempo esse limite de idade, e que, por isso, não poderiam fazer parte da pesquisa? Por que insistir num marcador estrito que ia na contramão da realidade do campo e que, no encontro com os sujeitos da pesquisa, mostrava-se limitado e excludente? Só para ser fiel a um fundamento teórico segundo o qual os sujeitos da pesquisa se restringiram àqueles com idades de até 18 anos, numa ideia de infância como geração que segue o limite de uma convenção gestada em contexto distinto daquele em que vivem os membros da Congada.

Sobre esse assunto, em seus textos e palestras Castro (2020, 2013, 2001) tem destacado a importância de que pesquisadoras e pesquisadores do Sul Global problematizem a racionalidade universalizante da Convenção dos Direitos da Criança (UN, 1989). De acordo com a estudiosa da infância e da juventude brasileira em contextos de desigualdade social, o documento, ao abstrair “de situações particulares, impôs aos países signatários uma visão de criança, assim como uma visão de sociedade” que desconsidera muitas de nossas realidades (Castro, 2001).

Nas discussões que vem conduzindo sobre os conceitos de agência e culturas infantis, Szulc (2019) também questiona a abordagem normativa da convenção, ao enfatizar que ela pode limitar interpretações críticas e a compreensão de conceitos fundantes para o estudo de crianças e jovens em países latino-americanos. Segundo Szulc e Cohn (2012, p. 355), para que esse entendimento aconteça, é preciso considerar a especificidade de nossos contextos, propondo que tais conceitos sejam pensados de modo situado.

Padawer (2010, p. 355), por sua vez, enfatiza que:

[…] estudar crianças e jovens em contextos complexos implica em articular escalas geopolíticas locais e globais, relacionando dimensões subjetivas e contextos macrossociais a partir de um reconhecimento da cria humana no seu trajeto pelo ciclo vital. Enquanto categorias sociais construídas, as crianças e os jovens não podem ser considerados a partir de uma existência autônoma, visto que se encontrarão imersos em uma rede de relações e interações múltiplas e complexas. Situar os sujeitos no contexto histórico e sociopolítico não é suficiente, deve-se incorporar os critérios de classificação e princípios de diferenciação específicos de cada sociedade para definir membros e classes de idade, assim como as atualizações subjetivas dos sujeitos concretos - aqueles que interiorizam os esquemas culturais vigentes, mas que não se limitam a repeti-los como autômatos.

Com base nas ideias dessas autoras, e de acordo com o período vivido com a Congada de Santa Efigênia, proponho pensarmos em duas gerações: a dos aprendizes, composta pelas crianças e jovens, entendendo infância e juventude como “fases da vida etário-relacionadas” (Huijsmans, George, Gigengack & Evers, 2014, p. 3), e a geração composta por adultos e idosos - os mestres, embora, assim como Evans-Pritchard, eu também tenha encontrado distintas estratificações dentro de cada uma dessas duas gerações, ou grupos de idade. Nesse caso, as estratificações ocorrem devido a maior tempo como membros do grupo, o que lhes confere um aparato mais vasto de saberes que incorporam, como no caso da música e da dança. Ademais, segundo o que me disse o pequeno Kelvyn (4-7 anos), essas diferenças de saberes se dão “pelo sangue”, ou seja, pela pertença a uma linhagem de congadeiros, principalmente quando se trata da família de capitãs e capitães de congada, em que os ritos iniciáticos e seus aprimoramentos se confundem com a vida desses sujeitos. Além dos saberes artísticos, esses ritos guardam uma dimensão sagrada relacionada aos poderes espirituais de quem ocupa os lugares de liderança e que só são compartilhados entre familiares, o que reitera o caráter de parentesco dos saberes compartilhados entre as gerações de mestres e aprendizes.

Considerações finais

No presente artigo, o termo geração foi pensado como sinônimo de grupo de idade, com a compreensão de que tal vocábulo, enquanto categoria de análise, não se define por datas de nascimento e idades, mas pelos processos sócio-históricos imbricados nas tramas das relações nas quais os membros do grupo estão inscritos. Geração, portanto, pode ser pensada não como um “grupo isolado e fora do contexto, sob pena de uma análise enviesada” (Pires & Ribeiro, 2015, p 14), mas ser entendida nas dobras intergeracionais em que aprendizes e mestres se relacionam o tempo todo nas performances e cortejos da Congada de Santa Efigênia.

Pelos argumentos aqui expressos, entendo serem duas as gerações que emergem das aprendizagens das crianças e jovens no caminho de se tornarem e se fazerem congadeiras e congadeiros: a geração de aprendizes que, na conexão estreita de trocas de saberes com a geração composta pelos adultos e pelos mais idosos - os mestres da Congada de Santa Efigênia, a formam e a conformam juntos, enquanto coletivo, o que confere sentido a esse pertencimento fundado nas relações de parentesco existentes no grupo.

Essas duas gerações atuam de modo relacional e interdependente com vistas a funcionar como um corpo só, como totalidade, porque os membros da Congada de Santa Efigênia assumem posições que não se distinguem com base na idade nem na geração à qual pertencem. Os diferentes papéis de congadeiros e congadeiras são intercambiáveis, numa manifestação ritual em que se posicionam como músicos e dançantes que cultuam Santa Efigênia e professam sua fé. A exceção é o papel da capitã, que nesse caso específico congrega a união de saberes sagrados passados de pais e mães para filhas e filhos dentro de uma mesma família de sangue, e que não têm o poder adulto como pressuposto, mas o desígnio dos saberes divinos ligados ao rito. Esses ritos sagrados têm também a função de servir ao grupo, em que a capitã, como sua representante espiritual, lhe dá proteção e apoio.

A ideia de que os papéis de congadeiras e congadeiros são assumidos independentemente da idade e, por conseguinte, da geração, como pensada inicialmente na escrita do projeto da pesquisa, ou mesmo do gênero, foi reforçada quando a capitã relatou que houve um evento em localidade próxima a Mogi das Cruzes ao qual foram poucas pessoas: à falta de homens, as mulheres assumiram a responsabilidade de tocar instrumentos antes tocados pelos homens, mostrando-se capazes de ocupar certas posições. Assim, o papel de quem toca e de quem dança, pode ser alterado em função do maior ou menor número de membros em cada uma das performances do grupo, tendo como critério a busca do equilíbrio entre os diferentes instrumentos e entre o número de cantantes e dançantes.

Nesta investigação, os membros mais jovens da Congada, os aprendizes, demonstraram competência para dialogar com a tradição à qual pertencem, revelando interpretações próprias sobre essa pertença nos modos inovadores de tocar e dançar, em reconstrução constante de sentidos. Ao fazê-lo, expressaram sentimentos, pensamentos e ações que, situadas no contexto da festa, trazem contribuições fundamentais para a vitalidade do grupo, igualmente válidas tanto quanto o que expressam os mestres. Desse modo, atuam enquanto coletivo para manter a Congada de Santa Efigênia, inscrevendo-a na atualidade e assegurando sua continuidade no futuro.


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Notas

[1] “[...]hoje existem dois países africanos que assim se identificam: a República Democrática do Congo e a República do Congo, sendo que nenhum deles corresponde inte gralmente ao antigo Congo, localizado em sua maior parte no norte da atual Angola.” (Mello e Souza, 2016, p. 454)

[2] Sangamento: eram danças militares realizadas antes das batalhas, combates de farsa nas quais os soldados mostravam suas habilidades com a espada, mas apresentando-as em forma de dança. As danças originais continham saltos, e essa era uma marca de Zé Baiano, capitão da Congada de Santa Efigênia, pai da atual capitã, que segundo relatos de Breno, membro jovem do grupo, também costumava dançar com uma espada e dava esses saltos que o notabilizaram na sua época.

[3] Letra de um dos cantos sagrados da Congada de Santa Efigênia.

[4] Idade das crianças no período da pesquisa de campo.

[5] De modo sucinto, as correntes da Sociologia da Infância são a estruturalista, a interpretativa e a relacional. A abordagem estruturalista concebe a infância como categoria social permanente na sociedade e os estudos focalizam perspectivas macroestruturais (Qvortrup, 2000, 2010). A corrente relacional também pensa a infância como geração, mas se interessa particularmente por estudá-la na relação com os adultos, e suas temáticas procuram evidenciar a agência infantil (Alanen, 2009). Na corrente interpretativa, as investigações focalizam as interações das crianças com os adultos, a partir das quais elas as retomam e recriam nas relações com seus pares, e os estudos abordam perspectivas microestruturais, em que a etnografia é uma metodologia importante para captar os mundos de vida das crianças. (Corsaro, 1997, 2011). Cumpre esclarecer que as correntes que se aninham neste campo se colocam como uma tentativa de organização de marcadores conceituais, temáticas diferenciadas de pesquisa e metodologias de investigação, e que elas não são completamente fechadas nem exclusivas, e podem até mesmo se encontrar, dependendo do interesse de estudo. Para maiores detalhes, ver Sarmento, que adota outra nomenclatura para a perspectiva relacional, Abramowicz (2018, p. 380) que fala em “quatro concepções que dialogam intensamente, particularmente na Europa”, enquanto Qvortrup (Breda; Gomes, 2012) considera a existência de apenas duas correntes.