Do conflito à “pacificação”. Relações entre os grupos criminais e a administração prisional na Cadeia Pública de Porto Alegre

From conflict to “pacification”. Relations between criminal groups and prison administration in the Public Jail of Porto Alegre

Del conflicto a la “pacificación”. Relaciones entre grupos criminales y administración penitenciaria en la Cárcel Pública de Porto Alegre

Do conflito à “pacificação”. Relações entre os grupos criminais e a administração prisional na Cadeia Pública de Porto Alegre
Runa, archivo para las ciencias del hombre, vol. 41 no. 2, (31- 47 pp.), Apr-Oct, 2020, doi: 10.34096/runa.v41i2.8004. ISSN: 1851-9628
Instituto de Ciencias Antropológicas, Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires


Introdução

A partir da década de 70 do século passado, com o processo de redemocratização em curso no Brasil e o crescimento das preocupações com os Direitos Humanos, viu-se um reforço no interesse dos cientistas sociais brasileiros diante do contexto prisional, que já era local de reiterado desrespeito desses direitos. Desde então, esses estudiosos começaram a avolumar pesquisas com base empírica sobre a temática, ultrapassando os debates doutrinários que vinham sendo travados até aquele momento (Lourenço e Alvarez, 2018). Durante o mesmo período, um novo modo de viver a experiência do aprisionamento emergiu em presídios brasileiros, em torno da constituição de grupos ocupados com a regulação das relações sociais no universo social da prisão e com o estabelecimento de mediações entre os presos e os agentes do Estado.

Em suas distintas manifestações, o aparecimento de tais grupos costuma ser situado em um cenário de arbitrariedades e violações cometidas contra a população presa, bem como em um contexto de encarceramento progressivo e de superlotação das unidades prisionais (cf. Coelho, 2005; Salla, 2006; Biondi, 2009; Dias, 2011; Jozino, 2017; Feltran, 2018). Nas últimas décadas, eles têm desempenhado papel cada vez mais relevante em dinâmicas carcerárias ao redor de todo o país - e, conquanto se trate de um fenômeno sociologicamente recente, as ciências sociais brasileiras vêm avançando na compreensão de agrupamentos de dimensões e localidades variáveis (cf. Aquino e Hirata, 2018; Lourenço e Alvarez, 2018).

O presente artigo1 pretende contribuir com esse campo de estudos tecendo uma análise do Presídio Central de Porto Alegre2 - maior prisão do estado do Rio Grande do Sul - tendo como ênfase as relações entre os coletivos de presos e a administração prisional em dois períodos históricos. O primeiro, entre a década de 80 e a primeira metade da década de 90, foi marcado por conflitos de todos os tipos - fugas, rebeliões, homicídios cometidos entre presos e confrontos entre presos e agentes penitenciários. No segundo, que inicia em 1995 e segue até o momento atual, essas “turbulências” passaram a arrefecer, tornando-se eventos pontuais e episódicos apesar da superlotação crítica e do desrespeito às condições de vida dos presos.3 Atualmente, os custodiados atestam - nesses termos - que a prisão está em “paz”,4 afirmação que é corroborada pelos policiais e por operadores do sistema de justiça ocupados com a fiscalização prisional. Mesmo o encadeamento de sangrentos confrontos em bairros de periferia de Porto Alegre, como ocorrido na recente guerra de coletivos criminais deflagrada em 2016 (cf. Cipriani, 2019), não abalou o estado de coisas alcançado na prisão - a qual abriga, em suas galerias,5 os diferentes agrupamentos que estão em disputa nas ruas.

Como será visto, os grupos criminais e a administração prisional - atores centrais à “pacificação” do presídio - passaram por transformações relevantes com o passar do tempo, o que também ocorreu quanto às dinâmicas que os costuram no cotidiano prisional. Argumenta-se que, no PCPA, a “paz” foi alcançada por meio de um equilíbrio precário - que decorre da acomodação dos antagonismos existentes entre presos e policiais militares que gerem o presídio. Esse processo, que se consolidou ao longo das últimas duas décadas, demandou concessões mútuas por parte de policiais e de presos - que, embora não partilhem dos mesmos interesses ou objetivos, vislumbraram que uma prisão “pacificada” era funcional para ambos, colaborando para sustenta-la dessa maneira.

Os dados utilizados no artigo advêm, principalmente, da aplicação de entrevistas entre os anos de 2016 e 2018. Elas foram efetuadas com sete policias em ofício no presídio, cinco presos do estabelecimento e oito atores do sistema de justiça ocupados com a execução penal. Com os presos, foram aplicados questionários com tópicos-guia e, com os demais interlocutores, questionários semiestruturados.6 Ademais, foram feitas recorrentes visitas ao PCPA entre 2015 e 2016, período no qual pode-se somar um agregado de entrevistas não diretivas - sem o uso de roteiros pré-determinados - com policiais militares, psicólogos e profissionais do serviço social. Também foi possível estabelecer conversas de mesmo teor com apenados durante a organização de festividades e a participação em eventos institucionais no presídio.

Na parte inicial do artigo, reconstitui-se o cenário do PCPA a partir da segunda metade da década de 80, marcada pelo surgimento da Falange Gaúcha - grupo que, anos mais tarde, daria origem ao primeiro coletivo criminal do estado. O universo social da prisão é encarado a partir das relações entre presos, assim como entre eles e os agentes penitenciários - as quais desencadearam uma crise que atravessou o sistema prisional e desembocou na passagem da gestão das principais prisões do Rio Grande do Sul à Polícia Militar. Na parte seguinte, expõe-se as transformações iniciadas por esse novo momento da administração prisional, bem como as vividas pelos coletivos e as percebidas na interação entre tais atores sociais - apontando-se que a “pacificação” do Central resulta desse conjunto de mudanças. Enfim, são pautadas algumas das condições para a manutenção do equilíbrio precário presente nos antagonismos entre policiais e presos - que implica a viabilidade da reprodução cotidiana do sistema e, ao mesmo tempo, é satisfatória aos coletivos para a obtenção de seus interesses.

Conquanto se trate de uma análise do Presídio Central de Porto Alegre, também busca-se, com o texto, trazer subsídios para a reflexão sobre a gestão prisional no Brasil contemporâneo - reforçando a ideia de que, apesar de os grupos criminais adquirirem autonomia e acrescerem suas oportunidades de poder diante de lacunas na atuação do Estado, não há como se falar em ausência estatal. Entende-se que existe, no lugar disso, uma forma de o Estado fazer-se presente que requer, para tanto, ausências estratégicas, culminando em uma gestão prisional partilhada entre os policiais e os presos - o que se dá sob acertos e regras acordadas e, concomitantemente, possibilita a eficácia da administração do sistema e o fortalecimento dos grupos criminais.

O surgimento dos coletivos prisionais e as “turbulências” no Central

Em meados da década de 80, quatorze presos do Central estabeleceram um pacto, constituindo o grupo chamado Falange Gaúcha - que tornar-se-ia o primeiro capítulo, no Rio Grande do Sul, para a forma de viver o crime que vem sendo chamada de “facção”. Além de ajudarem-se na busca pela liberdade, o acordo previa que os presos do agrupamento, caso libertos ou foragidos, remetessem dinheiro para os presídios - contribuindo para melhorar as condições dos demais companheiros, possibilitar seu acesso a bens lícitos e ilícitos e financiá-los com armas a ser utilizadas em fugas vindouras (Dornelles, 2017).

Nos anos que se seguiram à constituição da Falange, o PCPA foi atravessado por inúmeras instabilidades. Em paralelo aos confrontos com o Estado, o período foi marcado pela ocorrência de homicídios entre presos, estupros no cárcere e outros episódios de agressão. No início da década de 90, a mídia local reportava que, a cada seis dias, ocorria uma morte violenta entre presos, com situações de envolvimento de agentes penitenciários (cf. Passos, 2017). Esse cenário era agravado pela superlotação7 do presídio, bem como pelas relações de corrupção envolvendo agentes penitenciários e presos - abarcando negócios escusos para facilitar a circulação de mercadorias, o aluguel de celas, a conivência com o uso da violência física entre detentos e as suspeitas referentes à facilitação para a entrada de armamento e para as fugas (Cipriani, 2019).

Em matéria8 publicada no ano 2000, um preso chamado Brasa - que, como será visto, foi uma figura relevante no âmbito dos coletivos do Central - deu um depoimento sobre a situação do presídio entre o final da década de 80 e o início dos anos 90. Segundo ele, “havia todo tipo de castigo. Às vezes os caras colocavam o neguinho num buraco e esqueciam lá́ dentro, quase sem comida, por até um mês. Também apanhávamos. Não tínhamos nenhuma condição de higiene. Era realmente muito ruim”. Nesse contexto, a pertença a um grupo poderia servir como instrumento de efetivação legal, no sentido de proteção contra violências institucionais (cf. Biondi, 2009). Além disso, inúmeros autores apontam, quando no surgimento de grupos criminais em presídios brasileiros, a pretensão de eles articularem-se tanto para frear a violência dos agentes do Estado, quanto evitar que abusos partissem dos próprios presos (e.g., Misse, 1999; Coelho, 2005; Biondi, 2009).

Todavia, o surgimento da Falange não repercutiu na redução de “turbulências” ou na economia da violência no interior do sistema. Em semelhança ao ocorrido nos anos subsequentes à criação do Primeiro Comando da Capital (cf. Manso e Dias, 2018) - o mais expressivo coletivo criminal brasileiro - a presença do grupo fez aumentar o índice de fugas, tentativas de fugas, resgates, motins e rebeliões. Dada a recorrência desses ocorridos entre 1987 (o que se toma como o marco oficial do surgimento da Falange) e 1988, um decreto ordenou a transferência do comando e da direção9 da Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ) e do Presídio Central - os locais onde considerava-se que a situação prisional se encontrava mais crítica - a oficiais da Brigada Militar (BM),10 mantendo-se os agentes penitenciários da Superintendência dos Serviços Penitenciários (SUSEPE)11 como responsáveis pela execução dos serviços operacionais diretos com os presos. A situação, todavia, não melhorou: nos anos 90, de acordo com um operador do sistema de justiça entrevistado, “era um tumulto atrás do outro, a gente não dormia”.

De outro lado, a violência entre a população encarcerada que marcou os anos 80 foi ainda potencializada pela Falange, que promoveu uma série de mortes por encomenda no final dessa década (Gonzales, 2017). A criação do grupo fortaleceu a corrida pelo controle espacial prisional, e o próprio agrupamento desestruturou-se incessantemente por conflitos internos. Acertos de contas e dissidências resultaram no assassinato, dentro e fora da prisão, de inúmeros pactuantes originários da Falange entre meses e poucos anos após a sua constituição (Dornelles, 2017). Ao longo da primeira metade da década de 90, o grupo viu-se fragmentado entre duas alas em incessante disputa, o que se somava ao surgimento de outros pequenos grupos com pretensões semelhantes e, em última instância, agregava tensão e violência ao espaço prisional. Segundo um entrevistado, os enfrentamentos entre presos eram graves: “não era coisinha. Era tiroteio, esfaqueamento, coisa violenta”.

A chegada do ano de 1995 representou um marco para a história do sistema prisional sul-rio-grandense. Após a fuga mais emblemática já ocorrida no estado, em julho de 1994 (cf. Elmir, 2005), e a maior fuga em massa já registrada - em fevereiro de 95, contando com 45 custodiados - a desmoralização do poder público havia chegado a níveis críticos. Somando-se a esses eventos, os tumultos internos seguiam em polvorosa: nesse ano, de acordo com um interlocutor, eles ocorriam semanalmente. Em 26 de julho, após uma rebelião, sob enorme pressão e diante do que era considerada a maior crise do sistema carcerário do estado, o Secretário da Justiça e Segurança passou, via portaria, a administração dos quatros maiores estabelecimentos prisionais do Rio Grande do Sul para a Brigada Militar. Representando claro desvio de função e contrariando a constituição estatal, a medida deveria ser temporária - durando no máximo seis meses, prorrogáveis por mais seis - e ter como foco o restabelecimento da “ordem” nos presídios: “terminar com os motins, as fugas e as rebeliões. [...] O resto ficaria com os órgãos competentes” (Guindani, 2002, p. 83). No caso do Central, todavia, o prazo nunca foi cumprido e segue sendo prorrogado até o presente.

A administração do PCPA pela polícia promoveu impacto considerável na promoção de fugas12 e de rebeliões. De um lado, sua dinâmica altamente militarizada, com predomínio em ações calcadas na organização e na hierarquia, contribuiu para o restabelecimento do controle administrativo (França, Neto e Artuso, 2016). De outro, houve diminuição das relações de corrupção que envolviam agentes penitenciários e presos (Guindani, 2002). Todavia, motins menores e confrontos com a guarda permaneceram aos anos seguintes à intervenção, sendo reforçados pelo uso intenso da violência policial para a busca do controle - incitando, por parte dos presos, reações igualmente violentas. Os homicídios entre custodiados também seguiram ocorrendo, sendo potencializados pela má-distribuição da população encarcerada - posto que indivíduos com rivalidades eram colocados nas mesmas galerias, o que facilitava a irrupção de conflitos. Segundo um interlocutor, o clima era “de guerra e de conflito ali dentro, entre eles e com a polícia”.

Havia outro fator a dificultar a manutenção da “ordem” e o alcance da “paz”: praticamente na mesma época em que a BM passou a administrar o Central, a Falange Gaúcha transfigurou-se em um novo grupo, com ainda maior capacidade de mobilização. Como visto, a Falange foi atravessada por enérgicos conflitos - e, da disputa entre duas de suas alas, uma foi exterminada e a outra passou a organizar-se em um agrupamento chamado os Manos. O novo grupo incorporou códigos e valores comuns, além de regras atreladas à conduta de seus integrantes. Eliminando confrontos internos, passou a assumir uma forma mais coesa, auto afirmada e organizada. Com isso, também agregou novos adeptos, sendo capaz de estabelecer-se no universo social da prisão e exercer maior influência, especialmente através da articulação coletiva. Entretanto, o grupo não era hegemônico, novas lideranças tentavam emergir e os enfrentamentos não arrefeceram.

Um dos principais preceitos do grupo era a oposição fundamental à polícia, com quem entendiam que não deveria haver qualquer contato. Segundo um antigo integrante, “antigamente, tinha que ser nós contra eles” e, de acordo com um funcionário, “no início, eles não queriam falar com ninguém”. No lugar do diálogo, o agrupamento privilegiava o uso da violência e a promoção de instabilidades diante de suas insatisfações, o que adensava os pontos de tensão. Ademais, dada a superlotação crítica e o aumento progressivo no índice de aprisionamentos, o Central já não possuía grades nas celas, e os presos podiam circular livremente pelo espaço das galerias (o que segue vigente). Assim é que o que ocorria nas galerias seguia distante do controle do Estado, que via em seus portões o limite do contato com os custodiados.

Percebendo a necessidade de buscar alternativas ao uso da força como o único recurso disponível à contenção das turbulências na prisão, e diante as dificuldades de gerir uma prisão organizadas não em celas, mas em galerias, os policiais decidiram abrir um canal de negociação com os presos, chamando um interno para oferecer o controle de um pavilhão e, com isso, aventando uma espécie de trégua entre presos e polícia. Não podendo fazer a proposta aos Manos - que tinham mais influência sobre a população encarcerada, mas negavam o estabelecimento de relações com a administração - selecionaram um preso que entendiam ter perfil mais acessível e disposto ao diálogo.

A proposta era, na verdade, um acordo: Brasa, o preso elegido, poderia escolher quem queria que vivesse em “seu” pavilhão - devendo gerir o espaço internamente, representando os presos em eventuais contendas e mantendo recorrente comunicação com os policiais. Precisava mantê-lo limpo e era responsável por impedir a ocorrência de instabilidades - tentativas de fuga, motins e rebeliões. Ganhando a confiança dos policiais no auxílio do controle da “ordem” e na manutenção cotidiana, seria retribuído: a BM não entraria no pavilhão sem a sua autorização e faria um monitoramento diferenciado. Além disso, a família daqueles presos seria bem tratada, haveria diferenciação na revista íntima, respeito ao tempo legal no cumprimento da pena e possibilidade de parecer favorável na progressão de regime ou livramento condicional (Guindani, 2002). Como resultado, viu-se a constituição de novo grupo prisional, os Brasa, e seu líder chegou a comandar mais de dois mil presos no estado, a maioria deles no PCPA.

O respaldo oferecido pelos policiais também legou, aos Brasa, enorme rejeição dos demais -que os tomavam como meras extensões da polícia. Além disso, o grupo era odiado pelas extorsões que cometia com familiares de presos e pela violência com que tratava custodiados que cometiam deslizes ou desrespeitavam regras. Nesse sentido, o compromisso do líder com os agentes estatais não era de “pacificar” as relações no pavilhão, mas de evitar problemas relevantes do ponto de vista do funcionamento do presídio, prezando o diálogo com a administração - enquanto com os Manos, segundo um interlocutor, “a coisa era na base do tumulto, bombeiro, fogo, tiro”. Naquele momento, já haviam aspectos de uma gestão partilhada do sistema, institucionalmente concebida, entre presos e policiais, em que pese de forma localizada. Uma das razões pelas quais tal marca ainda não era incorporada integralmente à gestão da prisão era a negativa oferecida pelos Manos.

A resistência do grupo em dialogar com os policiais acabaria na primeira metade dos anos 2000. Após mudança na liderança do agrupamento em 2005, os Manos declararam à imprensa que pretendiam conviver tranquilamente com a polícia e com seus rivais, contribuindo para abolir o estado de guerra na prisão. À época, os Brasa foram extintos e outros grupos já tinham sido constituídos. Naquele momento, as galerias prisionais estavam consideravelmente espacializadas de acordo com o domínio dos grupos - o que também contribuiu com a redução dos homicídios no cárcere. A separação da população encarcerada de acordo com suas alianças e rivalidades no crime segue orientando, até hoje, o local onde cada custodiado irá viver na prisão, tornando-se o método principal da distribuição dos presos e auxiliando na redução de conflitos internos.

Pode-se dizer que, do momento da inserção dos Manos na lógica de gerenciamento dos rivais em diante, todos os grandes grupos que territorializavam galerias no Central, assim como os policiais que administravam a unidade entraram em um consenso: conflitos originados na rua deveriam lá ficar - ou, como afirmou um policial, “bronca da rua se resolve na rua”. Ademais, seria preciso que esses atores sociais colaborassem entre si - porque, com isso, todos eles teriam benefícios. Esse estado de coisas decorreu de um conjunto de fatores, dentre os quais podem ser destacadas as transformações vividas pelos grupos criminais (especialmente com a centralidade assumida pelo tráfico em sua estruturação) e as táticas adotadas pela polícia na gestão do sistema, com destaque ao papel dos prefeitos - que serão explanados na sessão seguinte. Esses elementos, argumenta-se, contribuíram centralmente ao equilíbrio precário dos antagonismos existentes entre presos e policiais, resultando na “pacificação” do presídio - marcada pela economia no uso da violência física no sistema (por parte de presos e de policiais), bem como pela contenção de rebeliões e de motins.

A acomodação entre antagonismos: a “pacificação” do Central

Quando do surgimento da Falange no PCPA, não era o tráfico de drogas que conformava o perfil da população de presos. Em 1987, no Rio Grande do Sul, esse era apenas o sexto crime mais frequente, com incidência de 3,8%, (Mariño, 2002). Em 1997, já podia-se perceber uma maior participação nesse delito - que seguia, porém, pouco expressivo, contando com 7,7% do total de crimes (Rio Grande do Sul, 1998). Em 2016, segundo o DEPEN, a Lei de Drogas já abarcava 37,2% dos encarcerados no estado. No PCPA, no mesmo ano, a predominância era ainda maior: 53,2% (Cipriani, 2019).

Ainda que, desde o seu surgimento, os grupos tivessem envolvimento com o tráfico na prisão, até o início dos anos 2000 seus membros não eram essencialmente definidos por essa atividade, tampouco sua rentabilidade se dava, primordialmente, por meio desse comércio - que possuía pouca capilaridade para a rua, estando mais associado às relações entre apenados. Naquele momento, os grupos privilegiavam a exploração da “economia delinquente” (Coelho, 2005, pp. 74-82), a busca pelo controle do espaço carcerário e, em alguns deles, a extorsões de familiares de presos. Os líderes dos principais grupos, à época, ainda estavam associados com os assaltos a bancos e a carros-fortes - atividades que não dependem de substratos territoriais fixos. Por decorrência, a ênfase de seu domínio se voltava para dentro do espaço prisional, havendo pouca projeção para áreas fora do presídio.

Tal cenário mudaria consideravelmente, e a expansão do tráfico de drogas, propulsionada com a inserção da cocaína, traria implicações tanto para as dinâmicas da prisão quanto para a conformação dos grupos, que se tornariam cada vez mais vinculados ao delito. A renovação de lideranças e o choque entre diferentes gerações de presos também contribuiriam para esse processo, com a centralidade dos assaltantes nas posições superiores em sua hierarquia sendo progressivamente substituída pela dos traficantes. Assim, os antigos agrupamentos prisionais - cujo foco era a disputa do domínio interno à prisão - foram transferindo suas atividades, de maneira central, para o tráfico. Com isso, também foram se firmando nos bairros do município e abrindo espaço para o estabelecimento de fluxos indissociáveis entre o dentro e o fora do cárcere. Paralelamente, transformações observadas nos mecanismos de controle social e na legislação reforçariam tanto a intensidade dos aprisionamentos relacionados às drogas quanto o endurecimento no cumprimento da pena dos acusados pelo delito - o que viria a contribuir com o aumento da influência dos traficantes na prisão.

Em face da multiplicação de grupos e da intensificação das prisões por tráfico de drogas, acelerou-se o processo de espacialização da prisão de acordo com o domínio de cada um deles. Com isso, e a fim de minimizar as possibilidades de conflitos internos a cada galeria, a pertença a um agrupamento (ou a mera vivência do custodiado em um bairro controlado por um grupo) se tornou critério institucionalizado pela administração prisional para a distribuição de presos recém-chegados. Apesar disso, o acesso de novos presos às galerias depende de outro elemento: a autorização de sua prefeitura. No universo social da prisão, o prefeito é, grosso modo, o representante dos presos, atuando como o elo entre eles e os policiais, bem como contando com a atribuição de transportar e negociar o fluxo de demandas e requerimentos para ambos os lados dessa relação. Essa figura já existia no início da década de 90, mas, naquela época, eram os agentes estatais que escolhiam os representantes para as galerias do presídio - decisão que não necessariamente era respaldada pelos demais presos, que incitava disputas de poder e que estabelecia hierarquias entre os custodiados de acordo com sua posição social. Atualmente, não é a administração que constitui a prefeitura, mas os próprios presos, de acordo com as dinâmicas próprias a cada grupo - o que necessariamente implica alguma legitimidade.

Da ótica dos policiais, o prefeito serve tanto para possibilitar a comunicação entre os presos e a administração quanto é o responsável pela manutenção da “ordem” em seu espaço - assegurando que não haverá “turbulências” capazes de minar a reprodução cotidiana da prisão (motins, rebeliões, homicídios entre presos). Por isso, a prefeitura é concebida, pela administração, como essencial para o funcionamento prisional, pois dado que as celas se encontram permanentemente abertas, não há como os policiais entrarem nas galerias controladas por grupos corriqueiramente. As prefeituras também são responsáveis pela manutenção das galerias (pintura, reparos no prédio, conserto de fiações, etc.) e pelo encaminhamento de solicitações médicas, jurídicas e de assistência social. Ainda, são imprescindíveis ao desenrolar de outras situações que fazem parte da rotina prisional e que compõem a função da polícia, como as revistas periódicas e a condução dos presos para o lado de fora (da galeria e do presídio) - pois os agentes só entram nas galerias após a contribuição ativa dos prefeitos na coordenação dos custodiados. Dessa feita, se a prefeitura se nega a conduzir um preso para ser levado a uma audiência, por exemplo, ela não ocorre. Não se trata, assim, apenas da colaboração para a supressão dos “defeitos do poder total” (Sykes, 1958), mas da incorporação dos presos em mecanismos essenciais à engrenagem prisional.

Embora a prefeitura contribua ativamente para a manutenção da “ordem” no Central, os entrevistados entendem que sua prática significa uma legitimação do poder dos coletivos, que gozam de considerável autonomia para pautar o cotidiano nas galerias - prerrogativa que apenas se sustenta caso elas sejam mantidas em “paz”. Para os presos que controlam esses espaços, a espacialização do presídio passou a criar nichos comerciais no interior das galerias, ampliando as possibilidades de compra e venda de mercadoria, os empréstimos de armas e a junção de pessoal para ataques a outras bocas (ponto de venda de drogas) ou para a sua defesa nas ruas por meio do chamado apoio - um tipo de relação social fundamental ao universo prisional e ao crime como um todo, que diz respeito a “qualquer forma de ajuda, favor, serviço ou contribuição que é feita sem gerar um ônus direto, específico ou pré-estabelecido àquele que o recebe, mas sobre o qual há expectativa de reciprocidade” (Cipriani, 2019, p. 110).

Ainda, com o controle de galerias prisionais por grandes agrupamentos, grupos menores ou empresários individuais que não possuíam espaço próprio na prisão passaram a ter que firmar acordos com coletivos mais estruturados, para terem onde ficar quando presos. Alojando esses atores em seu espaço prisional, os grupos maiores, em troca, passam a ampliar sua influência nas áreas controladas pelos agrupamentos recém-chegados, seja tornando-se seus fornecedores (vendendo drogas para as suas bocas), seja incorporando-os ao seu embolamento - termo que é entendido, segundo esse uso, como uma rede de grupos aliados no crime (onde espera-se haver empréstimo de pessoal e de armas, ajuda em eventuais ataques ou defesas, acolhimento em galerias prisionais ao redor do estado, etc.). Perder uma galeria, nesse contexto, não só repercute em queda de capital econômico e social, como importa o eventual fortalecimento de um grupo rival - que pode passar a territorializa-la em seu lugar. Portanto, no âmbito do fornecimento de drogas e do estabelecimento de alianças estratégicas (fundamentais do lado de fora, onde a guerra é sempre uma possibilidade), o espaço na prisão é altamente valorizado, pois enseja a ampliação das oportunidades de comércio e as relações de apoio.

Nesse cenário, o interesse em provocar instabilidades - como rebeliões e motins - é baixo, dado que envolve incômodos garantidos, riscos consideráveis e poucas vantagens. No mais imediato, se uma galeria confrontar a outra, o Batalhão de Choque vai ser acionado - e, segundo um preso, “a polícia vai ter que medir força com a gente, o que não é bom para ninguém”. Ademais, a luz e a água serão cortadas e os presos perderão o direito à visita - de acordo com os interlocutores, “o bem mais precioso”. Se a situação for séria, os policiais podem trancar a entrada de qualquer material na galeria (por exemplo, produtos da cantina) e travar o acesso de novos presos, o que prejudica a dinâmica dos coletivos. Ainda há ameaça de esvaziamento da galeria (inclusive com entrega para outro grupo) e de transferência dos presos (a viagem) - ou de alguns deles - para uma casa prisional diferente, o que é indesejável não só ao grupo, mas também aos custodiados, que podem acabar distantes de suas famílias.

Para manter a ordem, a gestão da galeria também não pode se dar por meio da violência. Ainda que esse seja um elemento sempre possível entre os presos, ele não dá conta de organizar as relações cotidianas, também podendo prejudicar a coesão do grupo - e, em muitos casos, confrontar suas regras morais. Na época em que os agrupamentos tinham como objetivo o controle prisional e as posições hierárquicas não dependiam de dinâmicas extramuros, a tendência era a constituição de grupos com lideranças centralizadoras, que se constituíam de maneira verticalizada e costumavam lançar mão da violência física na resolução de conflitos internos. Com a passagem dos assaltos para o tráfico como o delito a estruturar os coletivos, viu-se a horizontalização de suas relações de poder - na medida em que cada galeria costuma acolher um agregado de figuras relevantes nas dinâmicas do tráfico, integrantes do mesmo grupo ou embolamento que formam uma espécie de colegiado dentro da prisão.

Em um contexto no qual há vários patrões de vilas (donos de áreas que compreendem um agregado de pontos de venda de drogas) e grandes patrões de bocas (donos de pontos de venda de drogas expressivos) convivendo juntos, o diálogo e o consenso são mais estimulados e as decisões são menos autocráticas. Adicionalmente, as dinâmicas de apoio - que podem gerar inúmeras cobranças futuras aos indivíduos ou grupos que acessam as galerias - são peças-chave no cenário de economia da violência física que vigora no interior de cada grupo criminal. Segundo um prefeito, “se fosse tudo na base da esperteza ou da força, aí seria uma bagunça”.

De outro lado, com a territorialização de galerias por grupos criminais estruturados pelo tráfico de drogas, esses espaços também passaram a receber mais dinheiro - especialmente por meio do que é chamado de doação, uma outra manifestação do apoio. Doações são agrados providos por patrões dos grupos (figuras importantes), presos ou soltos, e que vão desde carregamentos de refrigerantes, cestas-básicas ou presentes para familiares e filhos de presos, realização de churrascos na prisão, até oferta de drogas para distribuição coletiva. Esse investimento também se reflete em alguma preservação da galeria, na melhoria de suas instalações e na assistência material dos presos - o que não só reforça a legitimidade do grupo diante da população encarcerada e acirra as relações de pertencimento (dada a expectativa de reciprocidade), como, em última instância, auxilia a frear turbulências como motins e rebeliões, já que o espaço não só é lucrativo para a prefeitura, como também é fruto de seu investimento. Enfim, como disse um apenado entrevistado: “todo mundo, a segurança, os presos e as prefeituras das galerias que se atacarem vão ter algum prejuízo. E dificilmente vai ter um retorno”.

Em seu turno e no que diz respeito à Polícia Militar, foi necessário - quando da passagem de gestão à BM - a transferência de policiais de outros municípios para que, durante períodos alternados (cuja permanência média é de dois anos), eles trocassem o policiamento ostensivo pela carceragem. Essa dinâmica, que ocorre até hoje, prevê o pagamento de incentivos salariais - as chamadas diárias - a fim de dar conta de gastos causados pelo deslocamento. Por consequência, o salário dos policiais que trabalham no Central é mais alto do que o daqueles que seguem atuando sem o desvio de função, e nesse sentido é possível dizer que existe um ganho, para os agentes, em assegurarem a permanência na gestão prisional - apesar da irregularidade da situação. Entretanto, em que pese alguns policiais indiquem que o acréscimo na remuneração foi o que os motivou a trabalhar no PCPA, a maioria deles declara que apenas está no presídio por ordem da corporação e não por sua vontade (Rudnicki, 2015).

Antes de significar um ganho individual, os benefícios recebidos pela BM dizem respeito à sua condição como agentes do Estado e à eficácia da realização de seu trabalho - que é representada pela manutenção em “ordem” e pela reprodução “em paz” de uma prisão que opera, sob expressivas limitações financeiras, com mais do que o dobro de sua capacidade e agrega inúmeros grupos rivais. A partilha da gestão prisional com os coletivos possibilita que o Estado siga promovendo um ritmo galopante de aprisionamentos sem que abra mão da banalização do recurso às prisões provisórias e a despeito da ausência de efetivo apropriado para a administração prisional, apesar da constrição espacial e superlotação, do baixo investimento na manutenção do presídio e do péssimos oferecimento na assistência material do preso. Além da insuficiência na concessão de alimentos, produtos de higiene, colchões e cobertores, o estabelecimento conta, atualmente, com problemas nas instalações hidro sanitárias, na estrutura de concreto armado, nas alvenarias e revestimentos, nas instalações elétricas e no sistema de combate a incêndio, expondo sua população a risco constante (cf. Cipriani, 2019).

Em termos estritamente econômicos, o domínio prisional desempenhado pelos coletivos torna a administração desses estabelecimentos consideravelmente mais barata - e, como adendo, a concessão de autonomia também repercute na ausência de conflitos. Na prática, como afirmou um policial, “o bom diretor é aquele que mantém o sistema estável. Tá lá, tá funcionando, tá bem. Não deu problema? Vai tocando”. Portanto, a prioridade dos agentes é o “bom” funcionamento da prisão, assentado na lei informal de que os conflitos entre grupos só se manifestem da porta para fora, ainda que esses mesmos conflitos sejam reforçados pelos arranjos prisionais - dado que, da maneira como as coisas operam dentro, os coletivos se capitalizam e se fortalecem na rua.

Segundo um operador do sistema de justiça, a relação entre presos e policiais que assenta esse cenário é sempre pautada pela ideia de “comer o mingau pelas beiradas” e atravessada por um acordo tácito que, embora não possa ser afirmado em público ou reconhecido oficialmente, envolve a compreensão entre direitos e deveres recíprocos. Em síntese, de acordo com ele, esse diálogo “às vezes não é claro, mas é bem compreendido pelas pessoas que estão ali. O que acaba acontecendo é que o cara entrega a chave para o preso. Ele diz ‘ó, daqui para trás é com vocês. Não pode dar problema’. Qual é o problema que não pode dar? Esses que aparecem na televisão”.

Pra que isso se concretizasse, foi necessária a criação de um pacto de “não agressão” entre presos e policiais. Como visto, ao entrar no Central na década de 90, a BM teve que, eventualmente, trocar o uso da violência pelo diálogo, o que repercutiu na criação da galeria dos Brasa - e, com o tempo, alcançou o Central como um todo. A essa mudança os policiais chamam de “uma nova cultura” - que envolve desde a forma de falar com os prefeitos e com os demais presos, a contenção do uso da força explícita e a restrição ao mero toque nos custodiados, até a escuta de suas demandas e a disponibilidade para a negociação.

A “nova cultura” também abarca a incorporação da presença dos presos em decisões diversas (como quanto à distribuição do espaço prisional) e o acato de sua participação no trato de questões cotidianas. Mais do que considerar a posição da população encarcerada, passou-se a contar com ela para a resolução de problemas - por exemplo, convocando prefeitos para reuniões a fim de conceder informações de interesse coletivo ou para pedir que acalmem os moradores da galeria diante de impasses que possam fazer crescer a tensão, trazendo a iminência de uma rebelião. Ademais, conforme aludido, para a realização de atividades próprias à administração, desde a assistência material e a manutenção das galerias, até a organização dos trânsitos que se dão de dentro para fora - necessários às revistas, às audiências judiciais e a qualquer saída de presos para atendimento no Central.

É nesse sentido que a legitimação da prefeitura se tornou fundamental à incorporação do diálogo na gestão prisional pela polícia, permitindo que os policiais responsáveis pela supervisão, no âmbito das relações rotineiras, possam identificar problemas a serem resolvidos em contexto mais imediato com rapidez, falando diretamente com os prefeitos a fim de sanar pequenos tumultos. O reconhecimento dos prefeitos como instâncias representativas - e capazes de acessar a polícia a qualquer momento - propiciou que os requerimentos dos presos efetivamente cheguem até a administração, evitando que se acumulem através do tempo, o que costumava gerar reações violentas. Enfim, reuniões periódicas feitas com todos os prefeitos assentaram um espaço para passar a limpo eventuais pontos nevrálgicos. Isso só foi possível aceitando-se que os próprios presos escolham seus prefeitos - que precisam, em seu turno, de alguma legitimidade do restante da galeria para manter-se na função. Ainda que suas indicações sejam corriqueiramente feitas por lideranças de coletivos, a boa condução da vida na galeria e a capacidade para estabelecer o trato com os policiais é fundamental para sua continuidade no posto.

Assim é que se assumiu, de forma geral, uma gestão compartilhada da prisão - entre partes que, apesar de inseridas em relações assimétricas e dotadas de diferentes atribuições e possibilidades de exercício de poder, se encontram imbricadas. Essa configuração só se consolidou na medida em que os propósitos da administração conjuminaram com os dos representantes das galerias, ambos em sentido de manter a “ordem” e a “paz” - ou, como definiu um ator do judiciário entrevistado “uma prisão silenciosa”.

Considerações finais

Percebe-se que a transformação das galerias prisionais em lugares “dos” grupos, decorrente da legitimação da prefeitura e da espacialização dos presos, aliada às transformações ocorridas no perfil dos coletivos, trouxe implicações relevantes para o alcance da “paz” e a manutenção da “ordem” na prisão. A separação entre aliados e inimigos no crime evita confrontos internos, além de reduzir a sensação de desconfiança que era anteriormente disseminada nas galerias. A lucratividade do espaço prisional, bem como seu potencial para adensar relações entre grupos criminais e comerciantes fortalece as lideranças e os embolamentos - promovendo maior capilaridade dos principais coletivos na rua, assim como ampliando as oportunidades para o fornecimento de drogas, para os auxílios mútuos e para a defesa diante de inimigos (por meio do apoio entre grupos de diferentes dimensões). No que tange aos indivíduos que não são necessariamente ativos no crime, a troca do uso da força explícita pela lógica do apoio (doações às galerias ou auxílios individuais de todos os tipos) mistura a generosidade com a expectativa de retribuição, intensificando os laços dos presos com os coletivos através de mecanismos não puramente autocráticos, que seriam mais dificilmente acatados pela coletividade.

A despeito de alguns policiais entrevistados afirmarem que a situação no Central se acalmou porque, antes, o preso tinha o controle da cadeia e, agora, é a polícia quem detém o controle, nossos dados indicam o contrário: é principalmente por acreditarem que têm algum controle - e o sentirem suficientemente revertido em benefícios diversos, monetários ou estratégicos - que os custodiados se esforçam para assegurar a tranquilidade nas galerias, evitando ataques recíprocos e reconfigurando o estabelecimento de relações, com outros presos e com os agentes estatais, sob formas não violentas.

Portanto, os presos não deixaram de exercer poder - pelo contrário, o exercem com mais intensidade do que nas décadas de 80 e 90, quando atuavam por intermédio do confronto com os agentes do Estado, mas suas ações se encontravam primordialmente circunscritas ao espaço prisional e produziam efeitos com menor capilaridade. O que se modificou, desde então, foi o modo de exercício desse poder - que é, inclusive, cotidianamente testado na promoção de instabilidades menos graves, nos conflitos pontuais e em outras formas de resistência, pressão e tensionamentos próprios à instabilidade da prisão. Por isso, diferentes tipos de manifestações, mais pacíficas, seguem ocorrendo. Por exemplo, através do não fazer, com as prefeituras negando-se a apresentar os presos para irem às audiências.

De outro lado, a polícia igualmente encontrou formas alternativas de negociar com a população encarcerada, diante da necessidade de evitar a ocorrência de “turbulências” e abrindo mão do uso da violência física como primeiro recurso de contenção - também prevendo, com isso, a manutenção de respostas não violentas por parte dos presos. Nelas, estão incluídas as viagens (ou transferências) de lideranças ou de prefeituras inteiras e a ameaça da perda de galerias, além do veto à entrada de novos presos nas galerias como tática de gestão, no lastro do reconhecimento sobre a importância do espaço prisional para os grupos. Como o seguimento do fluxo de entrada de novos presos é primordial à pressão pelo aumento do espaço (quanto mais presos entram, maior o poder de barganha por novas galerias) e ao fortalecimento dos coletivos no crime, os responsáveis pelas galerias reivindicam, em reação, que a administração permaneça enviando novos custodiados, em que pese a superlotação crítica e a piora, por decorrência, das condições de vida no ambiente.

Em linhas gerais, essa configuração conspira para o sustento da “paz” no Central - ainda que sob um equilíbrio inerentemente precário, que está atravessado por inúmeros pontos críticos. Tal equilíbrio, conforme visto, resulta da confluência entre uma gama de interesses de atores individuais e grupos, capaz de deixar em suspenso os principais antagonismos existentes entre presos e policiais, assim como de evitar os enfrentamentos entre coletivos rivais na prisão. Esses interesses são perseguidos por agentes conscientes das regras que estão em jogo, cujo conhecimento possibilita a continuidade das constantes negociações - que nunca estão dadas e devem ser continuamente e incessantemente reafirmadas. Em que pese tais regras, que consubstanciam o diálogo entre presos e policiais, não sejam assumidas em público, elas são amplamente conhecidas no interior da prisão - portanto, não participando de maneira incidental para o seu funcionamento cotidiano, mas conformando um elemento importante para a sua manutenção em “ordem”.

Como visto, o objetivo inicial da transferência da gestão do Central à BM (manter a “ordem”) na década de 90 foi transformado em tarefa permanente da polícia na prisão e, enfim, incorporado de forma cada vez mais institucionalizada pelos agentes públicos - que assumiram um tipo de gerencialismo em que a prioridade é sustentar o funcionamento do sistema e a “pacificação” prisional, ainda que esse objetivo tenha o fortalecimento dos grupos prisionais como “dano colateral”. Nesse sentido, nossos dados apontam a um espectro semelhante ao apontado por Feltran (2018) em referência ao processo de expansão nos presídios paulistas: naquele contexto, de acordo com o autor, “enquanto o governo produzia o crime, o crime auxiliava na produção do governo, da gestão, da administração prisional” (p. 194).

Em reforço, segundo um operador do sistema de justiça, a acomodação das relações entre policiais e integrantes de grupos criminais produz uma situação em que o Estado segue “correndo atrás do próprio rabo” - dado que “vamos sempre precisar de mais aparato para dar conta daquilo que nós mesmos contribuímos para acontecer”. Esse cenário é agravado pelas características do Sistema de Justiça Criminal do país - que, consoante Sapori (2006), conquanto esteja articulado por uma complementariedade de funções, mais se apresenta como uma “arena de conflito e de negociação de segmentos organizacionais frouxamente conectados” (p. 765), com cada instituição visando a assegurar a própria eficiência. Assim é que, para a administração, sua função não é resolver o problema do crime, dos grupos criminais, ou da “violência urbana” - mas, como trazido por um policial, “manter aquilo lá funcionando”.

Portanto, apesar de os grupos adquirirem autonomia e fortalecerem suas oportunidades de poder diante de lacunas na atuação do Estado, não há como falar em ausência estatal: conforme trazido por Dias (2011), afirma-lo seria um contrassenso, na medida em que se trata de uma instituição estatal e o Estado se encontra necessariamente ali de alguma maneira. Ocorre é que, para seguir apresentando-se sob parâmetros entendidos como eficazes e satisfatórios - além de dentro das condições concretas e das escolhas feitas no âmbito da política criminal - o Estado precisa negociar, com os presos, elementos de autoridade e autonomia, assumindo uma gestão compartilhada da prisão. Por isso, os coletivos não se consolidaram - e seguem se mantendo - sob o vácuo Estatal, mas a partir da particular forma com que ele se fez e se faz presente.


Notas

1 . Os dados utilizados nesse artigo são parte de uma pesquisa mais ampla, publicada como dissertação de mestrado.

2 . A partir de 2017 o estabelecimento passou a ser chamado de Cadeia Pública de Porto Alegria, sugerindo que passaria a acolher apenas presos provisórios.Porém, os dados referentes a fevereiro de 2018 indicam que 45% dos indivíduos presos no local já haviam sido condenados.

3 . Desde a segunda metade da década de 80 o Central está superlotado. Em 2019, segundo a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), a unidade abrigava 4.276 presos, com capacidade para 1.824. Em 2009, a CPI do Sistema Carcerário declarou o PCPA como o pior presídio do país (Brasil, 2009, p. 170).

4 . Embora essa seja uma categoria trazida pelos interlocutores, não se pode conferir sentido literal à “pacificação” do Central, que deve sempre ser encarada em comparação com um cenário anterior, em que os eventos de violência e determinados tipos de conflitos eram mais frequentes. A “pacificação”, assim, foi relativa e direcionada a determinadas situações, pois, como afirmado, o desrespeito com a dignidade e a integridade dos presos permaneceu constante no decorrer da realidade da prisão (cf. Cipriani, 2019).

5 . O PCPA é dividido em pavilhões, e cada um de seus andares equivale a uma galeria.

6 . A pesquisa foi inicialmente motivada pela tentativa de compreender as experiências sociais dos presos e, nesse sentido, entendemos que seria mais frutífero possibilitar que eles falassem em seu tempo e ritmo, com o mínimo de interferências possíveis por parte do entrevistador. Quanto aos demais interlocutores, estávamos interessados em acessar questões mais específicas sobre o cotidiano da prisão e as dinâmicas com os custodiados e, portanto, utilizamos um instrumento condutor, prevendo algumas perguntas que não deveriam ser esquecidas.

7 . No triênio 1985/1988, a população da casa oscilava entre novecentos e mil custodiados, com capacidade para 660 (Pens, 1990). A partir de 1987, houve acréscimo sistemático no déficit da capacidade prisional relativa em todo o estado, corroborando com o aumento da tensão no espaço carcerário (Mariño, 2002).

8 . Intitulada “Um dia na cidade do crime”, publicada no Jornal Extra Classe (Sinpro/RS) no dia 16 de junho de 2000. Assinada pelo jornalista César Fraga.

9 . Desde a inauguração do Central, o estabelecimento foi dirigido sucessivamente por Delegados de Polícia. Foi apenas em 1983, obedecendo a uma política do então Superintendente dos Serviços Penitenciários, que a casa passou a ser dirigida por funcionários do quadro penitenciário (Pens, 1990). Apenas cinco anos mais tarde, a direção deixaria de ser exercida pela SUSEPE e passaria aos oficiais graduados da Brigada Militar.

10 . A Brigada Militar - como é chamada, no Rio Grande do Sul, a Polícia Militar - foi criada em 1892, não se constituindo como força policial e tendo caráter de exército estadual. Na época, foi destinada ao controle dos distúrbios e das ameaças de segurança, bem como à preservação da ordem pública (Mauch, 2011). Ainda que a BM tenha passado a receber caráter policial a partir de 1950, foi apenas no final da década de 70 que começou a realizar os serviços de policiamento ostensivo, o que se deu no âmbito das pressões advindas da ditadura militar na qual se encontrava o país (Karnikowski, 2010). Apesar de a BM seguir gerindo o Central até os dias de hoje, a competência para a administração das casas prisionais é, segundo a constituição do estado do Rio Grande do Sul, da Susepe, o que ocorre desde a sua criação no final dos anos 60.

11 . A SUSEPE foi criada em 1968 como órgão de planejamento e execução da política penitenciária do estado. Intentava-se, com a sua criação, inaugurar um novo modelo de execução da pena privativa de liberdade, mais próximo às concepções humanitárias e com ênfase no direito ao trabalho, como forma de abrir espaço a um novo aprendizado social ao preso (Wolff, 1990).

12 . Segundo a SUSEPE, entre os anos de 1990 e 1994 houve 107 fugas no PCPA. Nos seis anos seguintes, foram treze ocorrências. A situação se mantém: de acordo com levantamento feito pelo jornal Zero Hora, ainda que conte com a maior população encarcerada do Rio Grande do Sul, o PCPA registrou uma fuga entre os anos de 2015 e 2018. No mesmo período, 585 custodiados fugiram de casas prisionais gaúchas.

Financiamento Os dados utilizados nesse trabalho foram coletados durante o período do mestrado da autora Marcelli Cipriani, sob orientação do professor Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e com bolsa de estudos concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - órgão ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações voltado ao incentivo à pesquisa no Brasil.

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