The management of illegalisms as a market.About stolen cars in São Paulo, Brazil
La gestión de los ilegalismos como mercado.Sobre el robo y hurto de vehículos en São Paulo, Brasil
No ano de 2021, foram registrados 47987 roubos e furtos de veículos apenas na cidade de São Paulo.1 Uma média superior a 133 veículos subtraídos por dia, mais de cinco por hora. A cidade de maior economia do Brasil, e que possui o maior número de automóveis (concentra sozinha mais de 10% de toda a frota nacional)2, é também a que apresenta os maiores números desse tipo de delito no país. Para alguns, o roubo e o furto de veículos são “problemas públicos” que devem ser duramente combatidos. Para outros, eles representam a possibilidade de obtenção de dinheiro rápido em meio aos baixos salários e à baixa perspectiva de inserção no mercado de trabalho formal - ao mesmo tempo que potencialmente representam o risco de serem presos ou mesmo mortos. Há ainda aqueles que lucram muitos milhões produzindo regulação dessas práticas e economias, sem qualquer risco de punição ou de incriminação. A gestão desse crime em São Paulo é um grande e rentável mercado, que articula diversos agentes e territórios urbanos, produzindo muito dinheiro e milhares de prisões e de mortes todos os anos.
A partir de um mote empírico específico, a saber, a operação e a regulação de circuitos econômicos ligados ao roubo e furto de carros em São Paulo, o artigo trata da “gestão dos ilegalismos” (Foucault, 2016) como dispositivo de produção de desigualdades, violência e, também, de mercados. Da repressão ao roubo e ao furto em si à formalização de economias populares voltadas à venda de autopeças usadas, essa pauta mobiliza a formulação e a implementação de políticas públicas e instrumentos de gestão.
Os dados expostos neste artigo são provenientes de uma pesquisa coletiva multimétodos sobre o roubo e furto de carros em São Paulo, que vem sendo realizada desde 2016. Ao longo da realização dela, tomamos contato com uma grande pluralidade de dados etnográficos, através de observações de rotinas, conversas e interações com muitos agentes - ladrões, policiais, trabalhadores e empresários atuantes no mercado da desmontagem automotiva, agentes ligados ao mercado segurador, leiloeiros, pessoas que foram vítimas de roubo, entre outros. Os dados etnográficos foram complementados por intensa compilação de dados quantitativos. Através deles, pudemos mapear alguns dos espaços pelos quais os carros circulam, e identificar a existência de algumas jornadas que podem percorrer. Optamos, dessa forma, por reconstruir cinco trajetórias típicas, que passam por espaços como: pátios de seguradoras, leilões, desmanches e fronteiras. Aqui, apresentamos partes resumidas de duas das cinco trajetórias trabalhadas no livro, que foram utilizadas como estratégia metodológica para analisar dinâmicas sociais envolvidas no roubo e furto de carros (Feltran, 2022).
Na primeira seção deste artigo, apresentamos as trajetórias de um Fiat Strada, que foi furtado, e de um Ford Ka, que foi roubado à mão armada. Essas trajetórias servirão de suporte para uma discussão teórica sobre a temática dos “mercados ilegais”.3 Nas seções seguintes, focamos em uma análise das dinâmicas de gestão estatal e privada dessa atividade, e sobre os circuitos econômicos que elas agenciam e fomentam. Esse momento posterior da exposição servirá de base para pensarmos a pluralidade de dinâmicas que giram em torno do roubo e do furto de carros em São Paulo.
Zona Leste da cidade de São Paulo, 7 horas da manhã do dia 2 de outubro de 2018. Em uma movimentada avenida, que conecta periferias do extremo Leste da capital paulista a áreas mais centrais, com muitos comércios ligados ao mercado automotivo, uma Fiat Strada ano 2014 é furtada por dois jovens que moravam nas proximidades. Apesar da pouca idade, eles já são experientes no “mundo do crime” e preferem fazer furtos no horário da manhã porque há menos policiamento (esse é o horário da troca de turno de policiais que fazem rondas). O dono da Fiat Strada, Seu Claudio, homem de 65 anos, aposentado, morador da região, não possuía seguro desde 2015, pois o valor da apólice era muito caro. Após o furto, os ladrões deixam o veículo esfriando 4 durante três dias em uma rua pouco movimentada de uma região periférica próxima. Depois eles pegam o carro e o levam para um galpão para ser desmanchado. Parte de suas peças são destinadas para outro estado, onde são vendidas sem Nota Fiscal. Outras partes ficam em São Paulo, e são vendidas em um desmanche formalizado através de táticas fraudulentas (com a Nota Fiscal de compra em leilão de um carro semelhante, é possível esquentar 5 essas peças, que, mesmo receptadas, podem ser vendidas no mercado formal).
Às 8:40 da manhã do mesmo dia, outro carro, um Ford Ka 2018, é roubado a mão armada por quatro jovens em um local próximo à viela que o Fiat Strada ficou descansando. O carro foi alugado por Diego, morador da região que estava trabalhando como motorista de Uber. O veículo não chegou a ser desmanchado, os jovens circularam com ele por cerca de três meses em uma favela próxima ao local do roubo. O Ford Ka nunca fora localizado até os jovens saírem da favela com ele. Policiais avistaram o carro, e os jovens, em fuga, o abandonaram depois de o baterem. Diferentemente da primeira cena relatada, o carro possuía seguro e foi recuperado pela companhia seguradora contratada pela locadora de veículos. Sua sucata foi vendida em um leilão, onde foi arrematada por um empresário do mercado formal de desmontagem automotiva. As peças serão vendidas, de forma legal, em um grande desmanche, formalizado, localizado em uma movimentada avenida da Zona Sul da cidade. Meses depois, um dos ladrões que participou deste roubo foi morto por policiais.
O roubo e o furto de carros são atividades delitivas que se conectam a outros mercados ilegais, mas também a mercados considerados legais, como as cenas acima demonstram. Os ditos “mercados ilegais” são um objeto amplo e complexo, que compreende tanto o chamado “comércio popular” (Pinheiro-Machado, 2008; Rabossi, 2015; Rangel, 2019; Telles, 2010) quanto circuitos mercantis propriamente criminalizados, ligados ao “mundo do crime” (Feltran, 2012, 2018). Um objeto que demanda um olhar crítico, na medida em que se propõe a descrever circuitos econômicos muito diferentes entre si, inclusive com relação às suas interfaces com agentes estatais e com mecanismos de gestão. Esse objeto empírico ainda não foi muito explorado na bibliografia, mas existem alguns esforços reflexivos sobre o roubo e furto de carros como redes transnacionais (Clarke e Brown, 2003; Pimentel, Feltran e Silva, 2022), ou que tangenciam o tema ao analisar contextos locais específicos, como na Argentina (Rodriguez, 2013; Dewey, 2012), na Bolívia (Cala, 2021) e na Austrália (Gant e Grabosky, 2001).
Em diálogo com contribuições nos campos da sociologia e da antropologia econômicas, apostamos em compreender etnograficamente circuitos mercantis, partindo do sentido das trocas para as pessoas singulares que vendem e compram, mas também para instituições que regulam mercados. Estamos atentos às construções sociais das trocas, ao sentido das transações monetárias, ao significado de seus conteúdos e as moralidades envolvidas. Nos interessa descrever a inserção dos sujeitos em determinados circuitos econômicos que envolvem relações com o estado, com o crime e com instituições privadas. Sendo assim, buscamos pensar a economia do roubo e furto de automóveis como redes, através das quais circulam dinheiro, valores simbólicos, relações interpessoais, alteridades e moralidades (Guyer, 1995, 2004; Zelizer, 2009). Em certas relações sociais, o dinheiro figura como objeto puramente quantitativo, desprovido de valores qualitativos (Simmel, 2005), e que inclusive pode atuar como mediador de alteridades inconciliáveis no plano dos valores (Feltran, 2014). Porém, ao mesmo tempo, sua circulação agencia uma pluralidade de valores e relações sociais, inclusive valorações dirigidas ao próprio objeto dinheiro.
Argumentamos que a categoria “mercados ilegais” diz respeito muito mais a representações morais e simbólicas, associadas a determinadas redes econômicas, do que a um conjunto de características que tais redes possuem em comum. Nesse sentido, em uma dimensão teórico-analítica, apostamos na noção de “ilegalismos” (Foucault, 2016) para propor uma leitura sobre a conformação de mercados ilegais que fuja da dicotomia legal/ilegal. Essa ideia de ilegalismos enquanto operador analítico rompe com uma narrativa que entende a gestão do crime como mera reação estatal à constatação de ilegalidades (Salle, 2014). A gestão do crime, nessa perspectiva, se produz através de jogos de poder com a lei, não através de uma diferenciação evidente entre o legal e o ilegal, o formal e o informal, entre o lícito e o ilícito. Na realidade, as fronteiras são porosas e cinzentas (Telles, 2010). Também ressaltamos a importância do diálogo entre a ideia de gestão dos ilegalismos com a reflexão de Michel Misse (2007, 2010) sobre a “sujeição criminal” e sobre “a conversão da ilegalidade em mercadoria política”. No contexto brasileiro, o “crime” é socialmente visto não como processo de incriminação de agentes que exercem atividades criminalizadas, mas sim de forma subjetificada, associada a determinados tipos sociais - homens jovens, negros e pobres.
Quando pensamos os mercados ilegais como cadeias extensas e complexas, que articulam de forma desigual uma multiplicidade de agentes, é notável que o risco de incriminação se concentra nos mais baixos operadores desses mercados. Esses, em geral jovens em situação de vulnerabilidade social, figuram como as franjas de tais cadeias, estando muito mais expostos ao risco e à violência - além de extraírem os menores ganhos pelo engajamento nelas. Porém, para a economia formal, o envolvimento desses jovens no “mundo do crime” representa mais dinheiro circulando (Feltran, 2019). Os mercados ilegais representam não um contraponto à “economia”, mas sim uma parte cada vez mais expressiva desta (Beckert e Dewey, 2017). Para muitos jovens pobres, se engajar nesses mercados é uma possibilidade para sobreviver na adversidade (Hirata, 2018). Para agentes estatais, sobretudo policiais, a gestão desses mercados possibilita que eles atuem como “mercado de proteção” (Misse, 2007). Do ponto de vista da economia, esses mercados podem ser vistos como mecanismos de produção de uma “globalização vista por baixo” (Portes, 1997; Tarrius, 2002; Knowles, 2017).
Nas periferias do chamado “Sul Global”, e especialmente em cidades latino-americanas, os mercados ilegais e a atuação de grupos criminais são um tema muito discutido, seja no debate acadêmico, seja no debate público. É comum que a presença de tais mercados seja vista como um “problema”, que coloca em xeque o exercício de uma dominação estatal e que desafia a própria ideia de desenvolvimento econômico. Um problema associado à violência, à desigualdade, ao subdesenvolvimento econômico e à ausência do estado6. Difunde-se, dessa forma, um sentimento de insegurança (Kessler, 2010), que demanda intervenção de agentes estatais e também do setor privado. Facções, gangues, pandillas, cartéis, são alçados ao status de “inimigos públicos”, independentemente das diferentes configurações que o crime e os mercados ilegais operados por atores e grupos criminais assumem em cada contexto.
Neste artigo, propomos uma ruptura com relação a essa narrativa. Em primeiro lugar, porque ela parte de uma ideia reducionista e normativa de estado, que não considera que, em um plano empírico, a produção de “governanças criminais” (Lessing, 2021) frequentemente está associada não a uma ausência do estado, mas sim a formas específicas de exercício da governança estatal. Nessa perspectiva, estado e crime são intimamente conectados, e não opostos inconciliáveis. Em segundo lugar, essa narrativa parte de uma oposição rígida entre os “mercados ilegais” e “o mercado formal”, o que também representa uma forma reducionista e normativa de se entender a economia. Por fim, mas não menos importante, essa narrativa desconsidera o fato de que a gestão é uma categoria que se situa em uma intersecção entre a política e a economia. Aquilo que entendemos como gestão não parte exclusivamente do poder público, há uma pluralidade de agentes privados que co-participam da produção e da operação de mecanismos gestionários. Inclusive atores criminais. A regulação de mercados ilegais, entendida como forma de “gestão do crime”, não é um privilégio do estado. Pelo contrário, ela é, também, um mercado, intensamente disputado. Por grupos criminais, mas também por elites econômicas e grandes empresas, atuantes na dita economia formal - e também por agentes estatais situados “nas margens do estado” (Das e Poole, 2008).
A gestão estatal não é vista aqui como um objeto totalmente contido em conceituações rígidas do público ou do “Estado”. Ela é produzida por uma pluralidade de agentes, técnicos, gestores públicos e burocratas de nível de rua (Lipsky, 2019), que mantém interfaces mais ou menos próximas com agentes ligados à sociedade civil e ao capital privado (Wedel, 2003). Assim, a formulação e a aplicação de políticas públicas são um campo de disputas, tanto entre projetos, quanto por capital político e por recursos econômicos. Do protagonismo de agentes situados às margens do estado (Das e Poole, 2008) à coexistência de diferentes regimes normativos que compartilham com o regime estatal o papel de reguladores (Feltran, 2014), o cotidiano das periferias urbanas no Brasil é marcado pela produção de interfaces muito singulares com o estado - e, sobretudo, com as forças de Segurança.
Aqui defendemos a ideia da coexistência de regimes normativos (Feltran, 2011, 2012, 2014), que reivindicam a possibilidade de regular a ordem urbana e a legitimidade sobre o uso da violência. Essa noção é um arcabouço analítico inspirado na ideia de “coexistência de ordens sociais” discutida pelos sociólogos brasileiros Machado da Silva (2008) e Michel Misse (2006). Há, portanto, um conjunto normativo de regimes de atuação plurais entre sujeitos que não necessariamente compartilham os mesmos parâmetros plausíveis de ação, que convivem de forma mais ou menos conflituosa, mas que mantém entre si interfaces produzidas pelo dinheiro (Feltran, 2014). Isso significa dizer que não apenas os órgãos estatais regem a vida urbana ordinária. Somam-se a eles grupos criminais como o Primeiro Comando da Capital (PCC), instituições privadas e religiosas. Tais regimes também atuam na operação e regulação de mercados como o de carros.
Em São Paulo, é comum que se associe o roubo e o furto de veículos, e também a venda ilegal de automóveis e autopeças, ao cotidiano de territórios periféricos. Isso certamente não é uma exclusividade dessa ou de outras cidades brasileiras. A gestão dos ilegalismos frequentemente imprime efeitos diferenciais sobre as pessoas e sobre os territórios (Foucault, 2016), produzindo sujeição criminal (Misse, 2010) - dirigida sobretudo a homens jovens, pobres e negros -, e “efeitos de lugar” (Bourdieu, 1997) nas periferias urbanas - tratadas no debate público como territórios violentos e ocupados pelo crime. E a emergência da violência enquanto gramática (Silva, 2010) mobiliza não apenas um respaldo a modalidades extralegais de repressão ao crime, como também a produção de um tecido urbano fraturado e segregado (Caldeira, 2000). Neste sentido, vale pensar os territórios não só a partir da dimensão espacial, mas também sua dimensão moral e política, refletindo os modos de gestão e regulação da violência nos territórios, que pressupõe uma série de regras e negociações entre diferentes atores (Pita e Pacecca, 2017).
Quando analisamos os territórios da cidade onde há mais incidência de roubo e de furto de automóveis, algumas coisas chamam a atenção. Com relação aos números gerais, há mais delitos em regiões periféricas do que em bairros elitizados. Quando discriminamos os registros de roubo dos de furto, porém, podemos ver uma distinção entre localidades de alta incidência desses delitos: enquanto os roubos são mais numerosos em regiões periféricas, os furtos ocorrem com mais frequência em regiões centrais e elitizadas (Feltran, 2022; Feltran e Motta, 2022).
Diferentemente do roubo, em geral conduzido a partir de coação violenta da vítima mediante o uso de armas de fogo, os furtos costumam ser realizados de forma não violenta, sem a presença da vítima e sem o uso de armas. Há também diferenças com relação à resposta policial em cada parte da cidade. Quando um veículo é subtraído em uma área mais central, a possibilidade de o autor desse delito ser localizado e punido é maior. Roubar ou furtar um carro em uma área central da cidade é uma prática muito mais difícil e perigosa, que exige maior especialização, planejamento e preparo. Nos últimos anos, os roubos de carros vêm diminuindo, com queda abrupta desde o início da pandemia, em 2020. Os furtos também diminuíram nesse período, porém em ritmo menos acelerado, e chegaram a ter leve subida no último ano (ver gráfico 1).
Quando um veículo é roubado ou furtado, a resposta da vítima costuma ser a de notificar alguém que possa resolver o problema. São muitas as possibilidades, desde acionar contatos no “mundo do crime” até acionar a polícia. Se o veículo possuir seguro, aciona-se a seguradora (e também a Polícia Militar, pois é necessário ter um Boletim de Ocorrência registrado para acionar o seguro). Aqui, novamente, há diferenças entre o roubo e o furto: no primeiro, a notificação costuma ser feita quase imediatamente depois da ocorrência, enquanto no segundo é mais comum que a vítima só perceba o ocorrido algum tempo depois.
O veículo passa a ser procurado apenas a partir do momento em que as autoridades e a seguradora, ou empresa de rastreamento veicular, são notificadas. É fundamental para o sucesso da ação que ele saia de circulação antes de passar a ser procurado, o que significa ser deixado em algum lugar para esfriar. Nem todo carro roubado ou furtado acaba gerando rendimentos econômicos para seus ladrões e receptadores, muitas vezes eles são recuperados antes disso - gerando rendimentos para outros agentes, inseridos em outros circuitos econômicos (Feltran e Fromm, 2020).
O número de veículos que são recuperados em São Paulo oscila de forma bastante semelhante aos números de roubo e furto de carros. Nos últimos anos as duas taxas reduziram, ainda assim esse é um mercado responsável pela recuperação de mais de 13.500 veículos no ano de 2021.
A recuperação de veículos roubados é um mercado em disputa. Companhias seguradoras, associações mutualistas de proteção veicular, empresas de rastreamento de veículos e até mesmo empresas que vendem consultoria e tecnologia para a formação de empresas de rastreamento são alguns dos agentes que exploram esse mercado altamente rentável. Isso se deve ao fato de que o acesso a uma apólice de seguro automotivo é muito desigual. Pessoas endividadas, pessoas donas de veículos antigos e até mesmo pessoas que residem ou transitam por regiões com altos índices de roubo - todas essas são consideradas um público de “alto risco” para o mercado de seguros veiculares (Fromm, 2019). Há um marcador de classe bastante evidente em relação a essa distinção em função do risco, que faz com que populações mais vulneráveis tenham menor acesso aos seguros.
O risco é um elemento amplamente presente no contexto contemporâneo (Beck, 2010), e é também um instrumento muito mobilizado para se produzir governamentalidade (O´Malley, 2009; Burchell, Gordon e Miller, 1991). Tanto em algumas políticas públicas voltadas à gestão da pobreza, sobretudo as de caráter mais assistencialista, como também no campo da Segurança, o risco é utilizado como instrumento, inclusive ele é um mote para pensarmos as interfaces porosas entre os dois campos. E o mercado segurador, enquanto agente que participa ativamente da gestão do roubo e do furto de veículos, também produz governamentalidade através do cálculo de riscos. Dessa forma, o risco é calculado e precificado (Bahre, 2010; Ewald, 1991; Fromm, 2019). Aqueles que podem pagar o preço conseguem ter acesso a alguma proteção patrimonial, aqueles que não podem não terão esse “direito”. O caráter restritivo do acesso a esse mercado se torna também uma oportunidade de negócios explorada por outros agentes, como aqueles que trabalham em associações de proteção veicular mais direcionadas aos mercados populares.
Com relação ao roubo e ao furto de veículos, quando a vítima possui contatos com o “mundo do crime”, existe a possibilidade de ela acionar esses contatos para localizar o veículo subtraído - dependendo do caso, há a possibilidade de o ladrão ser punido de forma violenta (após passar por um debate e se assim definirem o desfecho violento). Com relação à presença das forças policiais, sua atuação nesses casos é muito mais pautada pela localização e pela punição dos ladrões, geralmente mediante violência física e nem sempre a partir de procedimentos legais. As possibilidades são muitas: encarceramento, homicídio, sequestro, extorsão, entre outras. Além de potencialmente violentas, essas estratégias também alimentam mercados ilícitos.
Já a recuperação dos veículos roubados ou furtados é muito mais uma atribuição de agentes ligados ao mercado de segurança patrimonial, inclusive em casos em que esses carros são recuperados por policiais. Aqui, podemos ver que há um imbricamento entre políticas estatais e o capital privado. As políticas no campo da Segurança e o mercado da segurança patrimonial se co-produzem. Inclusive não são raros os casos de agentes que transitam entre esses dois campos - apesar de essa prática ser considerada ilegal, é muito comum que policiais atuem no ramo da segurança privada, como informantes, funcionários e até mesmo empreendedores (Ostronoff e Salla, 2020).
Mais do que apenas calcular os riscos, o mercado segurador produz tais riscos ativamente: o risco não é apenas algo que se mede e se constata, de forma objetiva; ele orienta uma certa forma de leitura de dados, que produz classificações e também instrumentos de gestão. Ao mesmo tempo que a presença potencial do risco seja interessante para o mercado segurador, por fomentar a procura pelo serviço, a existência concreta desse risco em alto grau não é tão interessante do ponto de vista dos negócios, pois implica em gastos para o setor (Fromm, 2019). O rastreamento e a recuperação desses veículos são mecanismos de gestão dos riscos e também de redução dos gastos deles decorrentes. Participar desse mercado é economicamente interessante para as companhias seguradoras, mas alguns elementos se colocam como empecilhos, dentre eles, o baixo acesso ao ramo de seguros veiculares para um público considerado de “alto risco” e a atuação de outros agentes econômicos que competem com as seguradoras.
Recentemente, a atuação política e econômica das seguradoras no ramo de seguros automotivos tem gerado inflexões. Por um lado, o ramo sinaliza para a criação de produtos mais acessíveis a um público popular, alegando atuar em prol da “democratização” do acesso à segurança patrimonial. Curiosamente, esses produtos populares se baseiam na realização de reparos através de autopeças usadas, provenientes de desmanches, para baratear os custos operacionais (como será melhor exposto na seção seguinte, há vínculos econômicos entre o ramo de seguros automotivos e os desmanches). Por outro lado, a classe se posiciona em prol da criminalização das associações mutualistas de proteção veicular, mais voltadas para esse público que não tem acesso ao mercado segurador por ser considerado “de alto risco”. Segundo agentes ligados ao mercado segurador, essas associações seriam uma espécie de “mercado paralelo de seguros”, e, portanto, devem ser combatidas (Fromm, 2019).
Os desmanches são circuitos econômicos populares, historicamente presentes na cidade de São Paulo. Eles são abastecidos por veículos que serão desmontados por algum motivo, para que suas peças sejam vendidas. Os veículos podem ser obtidos por vias “ilegais”, como a receptação de carros roubados ou furtados, ou por vias “legais”, como a compra de automóveis batidos e classificados como irrecuperáveis (diretamente com seus proprietários ou em leilões). A heterogeneidade do segmento é nítida, seus modos de funcionamento compõem um universo plural (Pinho, Zambon e Silva, 2022). Ao mesmo tempo, os desmanches são estabelecimentos muito estigmatizados, por serem vistos como ligados ao roubo e ao furto de veículos. As representações socialmente difundidas sobre eles estiveram historicamente associadas às ideias de informalidade e ilegalidade.
No ano de 2014, é implementada a “lei do desmonte”, que propunha estabelecer parâmetros legais para a formalização do ramo da desmontagem como política de combate ao roubo e ao furto de veículos. Até então, não havia parâmetros legalmente instituídos para sua atuação. Essa lei é fruto de um intenso debate, e de disputas entre atores políticos e econômicos distintos, como empreendedores do ramo de desmanches, companhias seguradoras, leiloeiros e as forças policiais (Fromm, 2019; Fromm e Motta, 2022; Motta, Maldonado e Alcantara, 2022).
No entanto, a formalização dos desmanches, mediante a implementação da lei, é um projeto que está longe de ser de alcance geral: ele produz efeitos desiguais, e acima de tudo, produz formalizações instáveis e novas formas de ilegalismos. Na prática, ela estabelece uma clivagem entre “desmanches legais” e “desmanches clandestinos”. Enquanto os primeiros seriam, em tese, regulados e fiscalizados de acordo com parâmetros formais instituídos pela lei (e sujeitos a sanções de caráter administrativo em virtude de seu eventual descumprimento), os segundos seriam propriamente criminalizados, duramente combatidos através de táticas repressivas e punitivas. Se, de um lado, a lei fomenta a realização de operações policiais fortemente armadas em territórios periféricos, de outro lado fomenta formas de fiscalização fortemente pautadas pela comercialização de “mercadorias políticas” (Misse, 2007). Mesmo desmanches considerados formais encontram obstáculos práticos em seus cotidianos para funcionarem de maneira plenamente legal, na medida em que ainda estão sujeitos às práticas arbitrárias e extorsivas por parte dos agentes encarregados de fiscalizá-los. A própria rigidez dos critérios que a lei estabelece para o funcionamento desses desmanches pode atuar como elemento intensificador de tais práticas ilícitas.
Em uma movimentada avenida na zona Sul da cidade de São Paulo,7 há uma série de estabelecimentos relacionados ao mercado de automóveis, como concessionárias, oficinas mecânicas, borracharias e lojas de autopeças. A presença de desmanches também é notável, com muitos carros batidos e partes cortadas (motores, faróis, parachoques), expostas nas calçadas e nas fachadas das lojas. Os desmanches atuantes na avenida são formais perante à lei, o que não pressupõe nenhuma forma de homogeneidade entre eles. Em um espaço de poucos quarteirões podemos encontrar desde grandes redes de lojas até empreendimentos muito menores e mais modestos.
Na visão dos donos de desmanches da região, a avenida é uma espécie de vitrine ou shopping center das autopeças. Dessa forma, consideram que a fiscalização nesse território é maior que em outros menos conhecidos e expostos. Fiscalização nesse caso não se refere apenas às atribuições regulares de fiscais, é também o termo êmico que designa a comercialização regular de “mercadorias políticas”. Todos na avenida dão uma quantia para agentes da polícia civil como pagamento regular pela permissão de funcionar sem problemas. No entanto, eles afirmam que, ali, todos são legais, por não “mexerem com peças quentes”. 8
Existem clivagens territoriais no segmento dos desmanches: estabelecimentos localizados nessa avenida se afirmam como “desmanches legais” em relação a estabelecimentos inscritos em outras regiões, mais periféricas e mais criminalizadas. Em uma dimensão interna, no entanto, nem todos esses desmanches atuantes ali são “legais” da mesma forma. Estabelecimentos de menor porte econômico demonstram menor potencial de adaptação com relação aos parâmetros legalmente estabelecidos, como por exemplo o descarte de materiais poluentes e o processo de etiquetar as peças. Se, por um lado, eles dificilmente seriam reprimidos como “desmanches clandestinos” através de megaoperações policiais, por outro eles estão sujeitos a uma série de sanções administrativas, e no limite à perda do direito de funcionar.9
Ao olhar para os cotidianos desses “desmanches formais”, vemos que os efeitos da regulamentação dessa atividade aparecem como questão de relevância central. A “lei do desmonte” é assunto que surge em muitos momentos em conversas com agentes atuantes no segmento. Frequentemente ela é mobilizada como um marco, é comum que se estabeleçam comparações entre os contextos anterior e posterior à sua implementação. Exemplos de efeitos práticos citados são: os altos custos que os proprietários tiveram para se adequar aos requisitos impostos (entre R$ 60.000 e R$ 200.000), o aumento do preço dos carros comprados em leilões, e o aumento da burocratização imposto pelo processo de etiquetação das autopeças. Há quem diga, inclusive, que a lei na prática beneficia quem atua na ilegalidade, justamente por impor todos esses sobrecustos operacionais àqueles que atuam dentro dela, tornando os desmanches formais menos competitivos no mercado.
Nem todos os efeitos da formalização dos desmanches são avaliados como negativos. Para alguns dos proprietários ouvidos, a lei ajudou a diminuir os estigmas socialmente atribuídos aos desmanches, e a preocupação com relação ao meio ambiente também é vista como positiva10. Em geral, ela é muito melhor avaliada por aqueles cujos estabelecimentos estão mais próximos ao modelo empresarial que ela tenta produzir do que por aqueles que não dispõem de muito capital para investir em seu negócio e se modernizar. Se, anteriormente, os desmanches eram vistos como uma economia popular, explorada por pequenos empreendedores, atualmente eles (ou pelo menos alguns deles) são mais próximos de um setor econômico propriamente empresarial, potencialmente muito rentável, mas muito mais inacessível para aqueles que não dispõem de grandes recursos.
A “lei do desmonte” foi uma alternativa com relação a outro projeto então proposto, o de simplesmente pôr fim aos desmanches a partir da prensagem de veículos “em fim de vida útil” e do descarte enquanto sucata ferrosa. Ambos esses projetos concordavam com relação à necessidade de intervir nesse segmento econômico, porém propunham intervenções drasticamente distintas. O projeto que acabou vencendo a disputa era mais interessante para determinados agentes econômicos, como os leiloeiros e as companhias seguradoras - além dos próprios empresários atuantes no ramo da desmontagem.
Os leilões de veículos são o canal mais mobilizado por desmontadores para adquirir veículos para o desmonte. Eles são os únicos que comercializam esses veículos em larga escala. Em um único dia, podem chegar a comercializar mais de quinhentos veículos. Grande parte deles (cerca de 90%, segundo vem sendo observado) são veículos provenientes do mercado segurador, recuperados de sinistros diversos, como colisão, enchente, incêndio e também roubo ou furto (Pimentel e Pereira, 2022). Quando o mercado segurador consegue recuperar um veículo roubado, é comum que ele seja leiloado.11 Esses veículos são, portanto, recursos econômicos valiosos. Conforme temos observado nos últimos anos, carros recuperados de roubo ou furto costumam ser vendidos por valores mais altos do que carros batidos, queimados ou com danos causados por enchentes. Não é à toa que cada vez mais se investe na recuperação desses veículos, através de recursos como rastreadores e centrais de rastreamento.
Se, mesmo antes da implementação da “lei do desmonte”, comprar um veículo avariado em um leilão não era considerado uma prática ilegal, a implementação da lei atuou no sentido de reforçar essa legalidade dos leiloeiros - e do mercado segurador. Os leilões passam a seguir novos instrumentos legais, o que os torna mais regulados, mais restritivos e mais rentáveis. Não há como estimar o crescimento do setor, em virtude da não disponibilidade de dados oficiais, mas como já mencionado muitos empresários e funcionários atuantes no ramo da desmontagem afirmam que, depois da implementação da lei, o valor de venda de veículos irrecuperáveis nesses leilões subiu significativamente. Mais um sobrecusto para a operação dos “desmanches legais”, mais desigualdades entre grandes e pequenas empresas.
Importante ressaltar que a implementação dessa lei também se insere em um contexto em que a legalidade da atuação de leiloeiros e do mercado segurador foi publicamente questionada. Conforme denunciado no contexto da “CPI das seguradoras”,12 o mercado segurador e os leilões atuariam como fomentadores do roubo e do furto de veículos, através da adoção de práticas ilícitas - como a venda de carros irrecuperáveis com direito à documentação em leilões13 e a realização de reparos automotivos em veículos segurados com “peças quentes”. Atualmente, a compra de veículos classificados como irrecuperáveis é restrita a desmanches formais devidamente cadastrados junto ao DETRAN-SP, e não dá mais o direito aos documentos. Além disso, depois da implementação da lei, o mercado segurador regulamentou o uso de peças de desmanches na realização de reparos automotivos (Fromm, 2019).
A produção dos instrumentos regulatórios supracitados não pôs fim às fraudes, apenas promoveu certos deslocamentos. Atualmente, a compra de veículos severamente avariados em leilões não dá mais direito aos documentos, mas a Nota Fiscal da compra permite a legalização de autopeças oriundas de um veículo semelhante receptado de roubo ou furto. Dessa forma, até mesmo “desmanches formais”, que atuam dentro dos parâmetros legalmente instituídos (e que, por isso, têm acesso ao circuito dos leilões de veículos), podem obter rendimentos com a venda de autopeças ilegais. Para aqueles que vendem veículos sinistrados, assim como para aqueles encarregados de “fiscalizar” os estabelecimentos de desmontagem de veículos, a existência dessas práticas ilícitas representa a possibilidade de obter maiores rendimentos com menor exposição aos riscos de incriminação.
Em 2021, o mercado brasileiro de seguros automotivos arrecadou mais de 38 bilhões de reais apenas com o pagamento de prêmios,14 sem contabilizar os ganhos do setor com a venda de veículos sinistrados em leilões. Em um único dia, os leilões podem atingir um faturamento bruto superior a R$ 3 milhões e, em um período de um ano, estima-se que esse mercado seja capaz de produzir um faturamento bruto de mais de R$ 1 trilhão. Grande parte desse montante é apropriado por poucas empresas que concentram o mercado de seguros automotivos no Brasil: apenas três seguradoras concentram cerca de 50% dos rendimentos de todas as vendas produzidas nesses leilões (duas delas pertencem a um mesmo grupo empresarial)15.
Mais do que simplesmente mobilizar interfaces com o poder público para se engajar ativamente na produção de instrumentos legais, o mercado segurador é um agente muito presente na produção de intervenções urbanísticas na cidade. Do fomento a instituições culturais à gestão e renovação de praças públicas, empresas ligadas ao setor mantêm diversas intervenções na região central de São Paulo, que vem enfrentando nas últimas décadas um processo de “renovação urbana”. Tal processo estabelece deslocamentos nos campos da Segurança, uma vez que envolvem a produção de mecanismos, instrumentos e intervenções securitárias - como o policiamento ostensivo e a forte presença de agentes e tecnologias ligados à segurança privada.
O “medo da violência” é um elemento significativo na produção dos espaços urbanos na contemporaneidade, especialmente em territórios onde objetiva-se produzir gentrificação (Smith, 2007). Dessa forma, surgem os “enclaves fortificados” (Caldeira, 2000), enquanto forma contemporânea de produção de territórios segregados. Antes mais restrito a espaços privados, atualmente o modelo dos “enclaves fortificados” é também mobilizado em intervenções em espaços públicos, e até mesmo em certas regiões da cidade (Rolnik, 2015). O policiamento ostensivo visando a proteção patrimonial e a intensa mobilização de tecnologias de segurança e vigilância são elementos recorrentemente mobilizados em intervenções voltadas à “renovação urbana”. Em São Paulo, inclusive, as forças policiais são agentes ativamente participantes da idealização e da implementação de intervenções desse tipo (Pimentel, 2018). A “renovação urbana” enquanto pauta política também produz interfaces fluidas entre a Segurança, o planejamento urbano e a financeirização da cidade.
Em regiões mais elitizadas da cidade, há um vínculo histórico muito específico e estreito entre moradores e proprietários e as forças policiais. Esse vínculo se expressa através da atuação dos CONSEG´s, conselhos da sociedade civil voltados a um diálogo entre esses agentes (Bueno, Lima e Teixeira, 2016). Em alguns casos, ele se manifesta também a partir da atuação de associações de bairro (Pimentel, 2018). Enquanto, nas periferias, aqueles que desejavam segurança patrimonial deveriam recorrer a outros meios (como os “justiceiros” ou, anos depois, o “mundo do crime”), nos bairros de elite a própria Polícia Militar sempre garantiu essa segurança, através de uma interlocução muito próxima e de um policiamento ostensivo - e violento.
A “cidade segura”, representada pela proliferação de “enclaves fortificados”, é uma cidade que não é e que não deve ser acessível para todos. Enquanto milhares de jovens pobres e, em sua maioria negros, arriscam sua liberdade e suas vidas diariamente em troca de poucas centenas de reais roubando e furtando carros, grandes empresas, por sua vez, se apropriam de grande parte dos rendimentos gerados por esses mesmos jovens, invertendo um grande volume desses recursos para produzir segregação socioespacial. São esses agentes os que mais lucram com o roubo e com o furto de veículos em São Paulo. Nesse caso, diferentemente do presenciado em muitos setores da dita economia formal, os maiores rendimentos são apropriados por aqueles que se expõem menos a riscos.
Mais um mote para pensarmos de que forma a atuação do mercado segurador no Brasil mobiliza o risco enquanto instrumento de gestão de populações e de territórios - e produz também uma gestão desses riscos. A própria intervenção do setor enquanto agente fomentador de intervenções urbanísticas em regiões elitizadas produz concentração territorial, dos instrumentos, dos mecanismos e dos agentes responsáveis pela segurança. A patrimonial, por exemplo, se configura não como um direito, mas sim como um privilégio reservado às elites. Por outro lado, violência e a letalidade policial operam como mecanismo de regulação de fronteiras urbanas (Feltran, 2011).
A repressão ao roubo e ao furto de veículos é um elemento fortemente presente entre os homicídios cometidos por policiais em São Paulo (Godoi et al., 2020). Em números absolutos, a violência policial produz mais vítimas letais em regiões periféricas da cidade - e vitimizam especialmente homens, jovens e negros (Sinhoretto, Silvestre e Schlitteler, 2014). Esses números propõem uma desestabilização de narrativas hegemônicas que dizem que “o estado não está presente nas periferias”. Ele não apenas está presente nelas como sua presença produz cotidianamente milhares de mortes e de prisões. Há de se ressaltar, porém, a diferenciação em relação às formas com que as forças policiais atuam em espaços periféricos e em espaços elitizados. Se, nas periferias, a polícia em tese possui uma maior margem para cometer abusos e ilegalismos (como tortura, extorsão, sequestro e homicídio), em regiões elitizadas sua presença é mais ostensiva, e sua atuação é mais associada à guarda patrimonial. Nessas regiões, há um policiamento mais intenso, isso porque as forças policiais atuam lado a lado com seguranças privados, câmeras, muros, cancelas, catracas. Tais dinâmicas produzem uma periferização da violência letal, tanto pela operação do “mundo do crime” e de “mercados ilegais” quanto pela polícia.
Nos últimos anos, as forças policiais em São Paulo comemoraram a redução do número de vítimas de homicídios e de crimes patrimoniais, como o roubo e o furto de veículos.16 Mas essa redução é pequena, e mantém ambos os indicadores em patamares ainda muito altos. Ademais, no início desse período de queda de tais indicadores, houve um aumento tanto do número de prisões efetuadas quanto do de pessoas mortas por policiais. Nesse contexto, o encarceramento e a letalidade policial foram mais intensamente mobilizados enquanto instrumento de repressão ao crime - o que não necessariamente pôs fim aos “mercados ilegais”, como vimos. Mais recentemente,a queda do roubo e do furto de carros, entre outros delitos patrimoniais, é acompanhada de queda nos indicadores de encarceramento e de mortes cometidas por policiais. Nos últimos anos, todos os indicadores citados neste texto caíram, com exceção do faturamento anual do mercado de seguros automotivos. Apesar da ausência de dados públicos oficiais, podemos afirmar que também houve aumento do faturamento nos leilões de carros. Os impactos da pandemia atingem esses muitos agentes conectados ao roubo e ao furto de carros de forma desigual.
Neste artigo refletimos sobre a operação e regulação de “mercados ilegais”, bem como as relações com os ditos “mercados legais”, a gestão deles e a produção de desigualdades e violência, inclusive a violência policial. Tudo isso demanda de nós, pesquisadores, grande cuidado. O exemplo do mercado do roubo e furto de veículos é bastante representativo nesse sentido. Essa atividade mobiliza uma pluralidade de narrativas e de propostas de solução para o “problema” - entre a repressão ao crime e a formalização de mercados informalizados. Porém, conforme buscamos demonstrar, analisar a conformação desses mercados etnograficamente nos permite problematizar ambas propostas.
O recrudescimento do punitivismo policial não é eficaz enquanto estratégia de combate ao crime. Pelo contrário, ele alimenta a formação de coletivos criminais Brasil afora, possibilitando que o “mundo do crime” assuma a posição de regime normativo especialmente nas periferias urbanas (Feltran, 2012). Ao mesmo tempo, a formalização de economias populares informais não necessariamente as torna menos “ilegais” - e nem menos desiguais. Muitas vezes a formalização emerge como proposta mais humanista, uma alternativa ao punitivismo. Mas ela pode ser produzida de forma excludente (Rangel, 2019), beneficiando empreendimentos de maior poder aquisitivo, que poderão tornar-se formalizados e modernizados, prejudicando aqueles de menor poder aquisitivo, que ainda mobilizam os ilegalismos como tática para se manter em atividade.
As fronteiras e dobras entre o legal e o ilegal produz desigualdades: para alguns, essas fronteiras são fonte de grande acumulação de capital, enquanto para outros elas representam oportunidade de ganhos limitados e exposição a uma pluralidade de riscos (inclusive de violência letal). Nesse cenário, em que jovens das periferias situados nas franjas desses mercados ilegais também são recursos humanos e econômicos disputados pelo mercado, a produção de “matáveis” e de “encarceráveis” atua como elemento de dinamização econômica: promove uma grande rotatividade entre os operadores situados nas franjas dessas cadeias, e ao mesmo tempo, pressiona os ganhos econômicos desses agentes para patamares mais baixos.
No mundo contemporâneo, e especialmente em contextos de extrema pobreza, o engajamento nas franjas desses mercados ilegais figuram como tipo de trabalho altamente precarizado, o que é reconhecido por todos (inclusive defensores do punitivismo). No entanto, o “mundo do crime” não é o único a ganhar dinheiro com a exploração dessa mão de obra barata e fartamente disponível. Muito pelo contrário, a existência desses mercados depende diretamente de interfaces com a polícia (Misse, 2007), e os rendimentos por eles gerados alimentam a economia formal (Beckert e Dewey, 2017; Feltran, 2019). Se, por um lado, as fronteiras entre o legal e o ilegal são porosas, especialmente no tocante à circulação do dinheiro produzido em economias ilícitas, por outro lado elas estabelecem clivagens muito concretas do ponto de vista das trajetórias de sujeitos e da gestão de territórios urbanos.
Agradecemos ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e também a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, por viabilizarem a realização dessa pesquisa. Agradecemos também ao prof. Gabriel Feltran, por coordenar essa pesquisa, e aos companheiros que fazem e fizeram parte dela - Anna Clara Soares, Apoena Mano, Bianca Freire-Medeiros, Deborah Fromm, Evandro Cruz, Fernanda de Gobbi, Gregório Zambon, Janaína Maldonado, Juliana Alcântara, Luana Motta, Lucas Alves e Luiz Gustavo Pereira. Por fim, agradecemos a todos interlocutores que contribuíram com essa pesquisa.
[2] . Fonte: Departamento Nacional de Fiscalização do Trânsito/DENATRAN. Dados referentes a dezembro de 2021. Segundo esses dados, a cidade de São Paulo tinha uma frota de 5.973.326 automóveis regularizados em circulação. Segundo projeção de dados do Censo 2010, produzidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), a população da cidade no ano de 2021 foi estimada em 12.396.372 habitantes. Isso significa que, na cidade, há quase meio carro por habitante.
[3] . Neste texto seguimos alguns critérios gráficos: as aspas duplas são usadas para conceitos e termos da literatura, e também para as representações ou termos que problematizamos; já o itálico faz referência aos termos êmicos usados pelos interlocutores.
[4] . As expressões esfriar ou descansar dizem respeito ao período (cerca de três dias) em que o veículo é deixado em uma rua pouco movimentada, em uma pequena garagem, em um terreno baldio ou mesmo em um galpão equipado com jammers (aparelhos que bloqueiam sinal de rastreadores). Essa é uma técnica mobilizada por ladrões para não serem localizados caso o veículo seja encontrado e recuperado.
[5] . Estratégias para transformar uma peça de origem ilícita em uma peça lícita para ser vendida no mercado formal.
[6] . O uso do termo “estado”, com e minúsculo, propõe um diálogo com a reflexão de Veena Das e Deborah Poole (2008), que propõem uma desconstrução de uma visão centralizadora e normativa sobre o “Estado”.
[7] . Nossa equipe de pesquisadores faz incursões etnográficas desde o início de 2018 em três desmanches e uma autopeças, todos localizados nessa avenida, além de outros estabelecimentos atuantes nesse ramo localizados em outras regiões da cidade de São Paulo.
[9] . Durante nossas incursões em campo, soubemos que um dos desmanches, de porte pequeno, localizados na avenida chegou a ficar um ano fechado por descumprimento da “lei do desmonte”. Mesmo depois de reaberto, ainda não conseguiu se adequar completamente à lei.
[10] . Uma das novidades implementadas pela lei foi a regulamentação do descarte de resíduos poluentes.
[11] . Isso ocorre caso a indenização pelo carro já tenha sido paga ao proprietário - em casos em que o veículo é declarado como tendo dado “Perda Total”, ou em que ele demora mais de trinta dias para ser localizado.
[12] . Comissão Parlamentar de Inquérito, instaurada no âmbito do estado de São Paulo, que se propunha a investigar práticas ilícitas do mercado segurador. A “CPI das seguradoras” foi instaurada em 2007 e encerrada em 2009 - sem nenhuma punição ao setor.
[13] . Essa prática é considerada ilegal porque, segundo determina o DENATRAN, as companhias seguradoras deveriam “dar baixa” nos documentos de veículos quando estes forem classificados como irrecuperáveis. A venda desses carros com documentos possibilitava, por exemplo, que um receptador utilizasse os documentos do carro comprado em leilão para “legalizar” um veículo receptado de marca e modelo semelhantes através da adulteração de placas - eventualmente até mesmo da numeração do chassi.
[15] . Fonte: Dados produzidos pelos pesquisadores e por Luiz Gustavo Simão Pereira, entre 2019 e 2020. Deixamos registrados nossos agradecimentos a ele.
[16] . Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2019, pp. 8-9), não apenas as forças policiais, mas também gestores públicos e grupos políticos se utilizam dessas estatísticas para “comprovar” a eficácia de sua atuação no campo da Segurança. Isso abre precedentes para que se questione a confiabilidade desses dados, e também para pensarmos sobre os efeitos e desafios da realização de pesquisas a partir desses dados (Costa e Lima, 2017).
[17] Financiamiento: A pesquisa que serviu de base para esse artigo foi vinculada ao Centro de Estudos da Metrópole entre os anos de 2013 e 2019, e nesse período foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP. (processo nº 2013/07616-7). Desde 2021, a pesquisa segue através de outro projeto, vinculado ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, e também apoiada pela FAPESP, em parceria com a agência francesa ANR (processo nº 2020/07160-7).