0000-0002-6028-4039 Maria Aparecida Bergamaschi[1][*]
Formación de profesores indígenas: ¿La Universidad como territorio de resistencia?
Indigenous teacher training: University as a territory of resistance?
Os povos indígenas em terra brasilis lidam com intervenções colonizadoras desde o século XVI, realizadas por meio de ações violentas que visaram o extermínio de qualquer indício étnico-cultural, testemunha de uma civilização. A adoção de políticas integracionistas, no limiar do século XX, marca a relação do Estado com os povos originários, expressão de uma sociedade excludente e avessa à manutenção de culturas que não fossem espelhos da Europa.
A escola, também implementada com fins colonizadores e integracionistas, inicialmente foi realizada por missões religiosas e catequizadoras e mais tarde por órgãos federais, como o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI). A escola para os índios, criada pelo colonizador com fins de catequese, destruição das línguas maternas, negação da espiritualidade e integração à sociedade nacional foi uma instituição imposta a partir dos âmbitos governamentais e permaneceu alheia aos processos históricos e identitários de cada povo. A Constituição Brasileira, promulgada em 1988, que inseriu em seu texto direitos indígenas, tornou-se um marco nas relações destes povos com o Estado, incorporando importantes conquistas do Movimento Indígena brasileiro organizado a partir da década de 1970. Desde então, órgãos governamentais, sociedade civil e, principalmente, os movimentos e as comunidades indígenas vêm aprofundando reflexões e discussões para efetivar uma educação escolar que assegure o direito à diferença e às especificidades étnico-culturais. Novas políticas educacionais começam a ser implementadas, a fim de garantir preceitos constitucionais que asseguram aos povos indígenas o uso de suas línguas maternas e seus processos próprios de aprendizagem. Em 1991, a responsabilidade das escolas indígenas, até então atreladas ao SPI e à FUNAI, passou para o Ministério da Educação, desencadeando um processo de regulamentação diferenciada. Pela primeira vez na história a educação dos povos indígenas passa a ser pensada e discutida no conjunto da educação brasileira, respeitando regulamentações legais que instituem a Escola Indígena Específica e Diferenciada.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/1996), Artigo 78, assevera “proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas memórias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização de suas línguas e ciências”. Em 2011 foi adicionado o § 3º ao Artigo 79, dispondo sobre educação superior: "sem prejuízo de outras ações, o atendimento aos povos indígenas efetivar-se-á, nas universidades públicas e privadas, mediante a oferta de ensino e de assistência estudantil, assim como de estímulo à pesquisa e desenvolvimento de programas especiais” (Brasil, 1996). Em vários textos legais são traçadas diretrizes e metas educacionais, parâmetro para as políticas nacionais, estaduais e municipais. O antigo Plano Nacional de Educação (PNE, 2001-2010), atribuiu aos estados e municípios, com a colaboração da União, a responsabilidade sobre a maior parte das ações relacionadas à educação escolar indígena, prerrogativas também asseguradas no novo PNE (2014-2024).
Importante frisar a atuação protagonista dos povos indígenas nos processos de construção de políticas educacionais para suas escolas. Especialmente, destacamos a Primeira e a Segunda Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena (I CONEEI/2009 e II CONEEI/2016-2018), com reuniões locais e regionais, culminando com encontros nacionais. A I CONEEI foi baseada em cinco eixos temáticos: 1) educação e territorialidade; 2) políticas pedagógicas da escola; 3) ciência pedagógica e a pedagogia indígena; 4) gestão e financiamento da educação, participação e controle social; 5) diretrizes para a educação escolar indígena (Brasil, 2009). Nesta Conferência foi aprovado um documento final que se tornou parâmetro autoral para as políticas de educação escolar indígena, inclusive para o ensino superior.
A II CONEEI, realizada em ambiente político tumultuado devido ao impedimento da presidenta Dilma Rousseff, resultou em mais de 300 reuniões nas comunidades indígenas e 19 encontros regionais. O documento final aprovou e encaminhou ao Ministério da Educação 25 propostas, que, embora reflitam um desencanto em relação a não operacionalização, por parte do governo nacional, das reivindicações anteriores, reafirmam a necessidade de um sistema próprio para a educação escolar indígena, bem como a formação inicial e continuada de professores, de acordo com as especificidades de cada povo (Brasil, 2018).
É importante destacar que as duas últimas décadas são marcadas por uma intensificação nos processos de escolarização indígena e torna-se mais evidente o acesso de estudantes indígenas ao ensino superior, muito em decorrência das lutas que reivindicam políticas afirmativas no contexto universitário.1 A ampliação de escolas evidencia também a necessidade de uma política de formação de professores, pois até o início dos anos 2000 ocorreram apenas ações pontuais. Nesse sentido, observa-se um avanço, com a criação do Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Interculturais Indígenas (PROLIND), que passou a vigorar em 2005 e visa apoiar cursos de formação de professores indígenas, as chamadas Licenciaturas Interculturais Indígenas. Até 2016 o programa contou com a adesão de 21 instituições de ensino superior (universidades federais e estaduais e institutos federais), ofertando 25 cursos, em 16 estados da federação (Nascimento, 2017).2
É sobre um destes cursos que versa o presente artigo, que focaliza a Licenciatura Intercultural Indígena realizada na Universidade Estadual de Alagoas (UNEAL), já em sua segunda edição. Além da análise de documentos que instituem os cursos de formação de professores indígenas na referida Universidade (projeto político pedagógico das duas edições do curso), o estudo se atem a nove trabalhos produzidos por estudantes indígenas, como requisito para a conclusão da licenciatura, dois deles publicados no livro Letras Indígena: Prolind em Alagoas. Os trabalhos analisados referem-se à produção dos formandos da primeira edição do curso e foram escolhidos visando contemplar a diversidade de povos e saberes que compõem o grupo, bem como expressar a relação entre conhecimentos originárias e intervenções realizadas em ambiente escolares e educacionais em suas comunidades. Considera também o olhar das autoras, que além de pesquisar educação e escola indígena, estão envolvidas na formação acadêmica de professores indígenas. Uma das autoras, que conclui pesquisa de doutoramento junto aos povos indígenas do nordeste brasileiro, mais especificamente no estado de Alagoas, também é docente na turma que compõe a segunda edição da licenciatura em foco: do registro de suas percepções, destacamos situações que expressam a atuação e a resistência indígena nos espaços acadêmicos.
Pesquisas como esta contribuem para superar a invisibilidade histórica dos povos originários na academia e na sociedade em geral. Evidenciar suas culturas e conhecimentos, educação própria e suas escolas, bem como suas presenças no ensino superior, também são formas de diminuir preconceitos e discriminações de que são alvo. Nessa perspectiva, as universidades são escolhidas pelos povos originários como aliadas nas lutas. Segundo Gersem Baniwa (2019, p. 170), “a formação superior de indígenas reveste-se de importância estratégica” para formação de quadros e fazer frente às políticas públicas, tendo em vista o fortalecimento dos conhecimentos originários.
A universidade, como território indígena, vem sendo cada vez mais afirmada: são duas lógicas de mundo que se encontram e, deste encontro, pode derivar um espaço intercultural, de colaboração e de trocas (Aguilera Urquiza, 2019). O autor reconhece os limites do atual modelo de academia, em que ainda prevalecem conhecimentos únicos, de origem europeia e mascarados como “conhecimentos universais”. Nesse sentido, questiona: “¿en qué medida ese modelo de educación eurocéntrico podrá abrirse a los pueblos indígenas que ingresan a las universidades? ¿cómo superar el modelo de universidad monocultural y hacer con que surjan prácticas de interculturalidad?” (Aguilera Urquiza, 2019, p. 65). Tomando como base a presença de estudantes indígenas no ensino superior em Mato Grosso do Sul, o autor aponta possibilidades de outros conhecimentos serem considerados na universidade, a partir da presença indígena. Mesmo considerando conflitos e contradições entre os conhecimentos tradicionais dos povos originários e o conhecimento da ciência moderna que predomina na academia, Aguilera Urquiza reconhece “una ambivalencia, o sea, en que las partes no son irreductibles, pero posibles de negociación”. (2019, p. 69).
Os próprios indígenas vislumbram estas possibilidades e, respondendo questionamentos públicos sobre porque a buscam, lideranças do movimento indígena nacional respondem que ocupar as universidades é uma forma de “retomada e resistência”. Como diz a estudante kaingang:
Ao ocupar o espaço da universidade, estamos também nos reafirmando, e lutando para que estes espaços também possam compreender, dialogar e respeitar nosso movimento, além de pautarmos em sala de aula a questão indígena e dialogar com os conhecimentos de cada área do conhecimento com o jukre/pensamento Kaingang. (Domingos, 2016, p. 49)
É no sentido de compreender esta resistência em espaços de produção e transmissão de conhecimentos que analisamos a Licenciatura Intercultural Indígena da UNEAL e as produções científicas dos formandos, no contexto da educação escolar indígena do estado de Alagoas, reconhecendo limites, contradições e desafios que acompanham este movimento.
Em Alagoas, a formação de professores indígenas clama por apoio institucional e, até a implantação desta licenciatura intercultural, não havia registro de formação específica no estado alagoano. A Universidade Estadual de Alagoas (UNEAL) deu o primeiro passo para graduar professores indígenas, com a criação do Programa de Licenciatura Intercultural Indígena de Alagoas (PROLIND-AL), conhecido localmente como Curso de Licenciatura Intercultural Indígena de Alagoas (CLIND-AL). O primeiro projeto de curso foi divulgado em 2008 e efetivado entre os anos de 2010 e 2015, com a diplomação de 69 professores indígenas pertencentes aos povos Xucuru-Kariri, Tingui-Botó, Karapotó Plak-ô, Kariri-Xocó, Koiupanká, Jiripancó e Wassu-Cocal, do estado de Alagoas; o segundo curso teve seu projeto publicado em 2018 e efetivamente implementado um ano depois, sendo interrompido em 2020, devido ao isolamento social imposto pela pandemia COVID-19.
É importante destacar que a formação de professores indígenas criada na UNEAL decorre da incessante luta dos povos da região, tanto para a primeira como para a segunda edição: lutaram para aprovação do projeto e para que efetivamente “saísse do papel”, superando barreiras burocráticas e a própria morosidade institucional na efetivação do curso. Um exemplo foi a mobilização que ocorreu no processo inicial da segunda turma de licenciatura indígena, pois motivos administrativos e financeiros criaram um hiato de tempo de mais de um ano entre a seleção e a aula inaugural, causando desistências de selecionados, mas também manifestações que pressionaram o poder público para a liberação dos recursos. De acordo com a professora Kariri-Xocó, Eliziane Silva Santos Suíra, aluna do CLIND, foi criada uma comissão de estudantes selecionados na licenciatura indígena para seguir até a capital, Maceió, mobilizados para reivindicar o início do curso: se postaram diante do palácio do governo do estado, dançando o toré e entoando canções de luta, enquanto os demais alunos se mantiveram mobilizados em vários municípios.
A proposição de uma Licenciatura Intercultural Indígena no estado de Alagoas é também um reconhecimento de que a escola indígena precisa ser concretizada dentro dos territórios próprios, planejada e executada por coletivos indígenas, de acordo com a realidade de cada grupo. Portanto, trata-se de uma proposta de formação que se dispõe a atender os preceitos legais da educação escolar indígena e contribuir para a afirmação das identidades étnicas, reconhecendo as singularidades de cada povo, respeitando as memórias históricas e valorizando línguas e ciências originárias.
Conquanto este reconhecimento, a situação concreta evidencia condições inadequadas para efetivar uma educação escolar indígena com qualidade no território alagoano, ainda negligenciada pelo poder público. Por outro lado, há um envolvimento intenso de professores indígenas no processo de construção de suas escolas, como é evidente em Alagoas a partir da leitura dos Trabalhos de Conclusão do Curso (TCC) dos professores-formandos da primeira licenciatura, apresentados no decorrer deste artigo, bem como do esforço em articular saberes e conhecimentos próprios e práticas escolares, observado no decorrer do curso.
Analisando o ensino superior indígena em Alagoas e sua implantação na UNEAL, Ferreira (2015, p. 7) afirma um movimento de “(re)construção de um modelo de desenvolvimento para sujeitos coletivos que desejam ampliar suas experiências de formação humana, o que emerge das contradições históricas e das práticas socioculturais nas políticas públicas de educação para os povos indígenas do Brasil”. A autora chama a atenção para o processo transformador da parceria entre povos indígenas e universidade e assevera que “o ingresso dos povos indígenas na universidade significa um caminho para o fortalecimento efetivo dessa diversidade e das lutas principais no seio da constituição histórica dos movimentos de resistência a qualquer tipo de subserviência e dominação” (Ferreira, 2015, p. 7).
De acordo com Ferreira, a formação superior é um movimento necessário para qualificar a relação do Estado com os professores indígenas alagoanos, modalidade de docência ainda em processo de criação, visto que a legislação nacional instituiu a escola indígena, porém deixou a cargo dos sistemas estaduais de educação a regulamentação da categoria “professor indígena”. A formação em nível superior corrobora a necessidade de fortalecer a autonomia indígena, reconhecendo que as "universidades brasileiras, apoiadas pela legislação, estreitaram laços que viabilizaram possibilidades de inserção das diferentes sociedades no ambiente do diálogo plural de ideias e enriquecido pela interculturalidade dos grupos ali inseridos” (Ferreira, 2015, p. 17).
Visando uma ação colaborativa na elaboração do projeto político pedagógico da segunda licenciatura indígena, foi criada uma comissão, com professores da universidade e estudantes egressos da primeira licenciatura intercultural, que visitou territórios indígenas de Alagoas para levantar demandas e concepções junto às comunidades. Nesse sentido, o projeto evidencia o reconhecimento da diversidade de povos, culturas e conhecimentos, mas ainda considera a interculturalidade como “via de mão única”,3 priorizando a formação que a instituição proporciona na diplomação dos professores indígenas.
Toda sociedade elabora formas particulares de socialização por meio de crenças e valores culturais que dimensionam universos sociais, nutridos de conhecimentos capazes de estruturar fundamentos ontológicos que garantam a organização de processos políticos, econômicos, religiosos, filosóficos e míticos. O presente projeto discute a educação a partir do princípio da Interculturalidade, com intuito de propiciar formação superior como instrumento essencial que possibilite aos professores indígenas a construção de sua própria educação escolar, fomentando a atuação desses indígenas em suas comunidades. (CLIND, 2018, p. 26)
A segunda experiência de licenciatura intercultural da UNEAL, seguindo a trilha da turma anterior, oferece formação de professores indígenas com titulação de ensino superior para exercerem docência e gestão no ensino fundamental e médio e atuarem nas áreas de Geografia, História, Letras, Matemática e Pedagogia. Principalmente visando adequar recursos financeiros, foram estabelecidos quatro polos geoeducacionais para o funcionamento das aulas, que ocorrem quinzenalmente aos finais de semana, a fim de contemplar a concomitância do trabalho dos professores em suas escolas. Destes quatro polos, apenas o sediado em Palmeira dos Índios funciona em instalações da UNEAL, agregando os povos Xucuru-Kariri e Tingui-Botó. Os demais polos geoeducacionais funcionam em escolas indígenas: no município de Porto Real do Colégio, na Escola Estadual Indígena Pajé Francisco Queiroz Suira, contempla a formação para os povos Aconã, Kariri-Xokó, Karapotó Plak-ô e Karapotó Terra Nova; em Pariconha, a Escola Estadual Indígena José Carapina constitui um polo da licenciatura para os povos Jiripankó, Karuazu, Katokin, Koiupanká, Kalankó e Pankararu; em Joaquim Gomes, na Escola Estadual Wassu, é o quarto polo, destinado ao povo Wassu-Cocal. Se por um lado, a decisão arbitrária de organizar as aulas em polos geoeducacionais, majoritariamente fora do espaço físico da universidade, causa certo desconforto na equipe de docentes, por outro faz com que a universidade se desloque até os territórios indígenas e conheça mais de perto a realidade local de seus alunos indígenas. Estes, por sua vez, alternam o estudo acadêmico com a vivência cultural em suas comunidades, afirmando conhecimentos próprios e experimentando processos de pesquisas junto às suas culturas ancestrais.
No estado de Alagoas há uma rica diversidade de povos, distribuídos no território conforme mapa que segue.
Na região Leste, zona da mata açucareira, esfacelada pelo nefasto processo colonizador desde o século XVI em terras dos povos Caetés e Potiguaras, exterminados pela ânsia colonizadora, vive o povo Wassu-Cocal. É entre o Agreste e o Sertão que se localizam as demais Terras Indígenas, como solo de povos que lutam para o reconhecimento oficial, respeito e efetividade dos direitos conquistados.
Ferreira (2009) diz que apenas em 1989 foram realizadas as primeiras pesquisas sobre a atual presença indígena em território alagoano, alçando discussões sobre legislação e políticas indígenas. Contudo, os povos originários também atravessaram um período de silenciamento, talvez como estratégia de sobrevivência. A autora relata que, desde o final do século XIX até meados do século XX, os rituais indígenas ocorriam às escondidas, pois estes povos "não poderiam aparecer para a comunidade como indígenas, porque os delegados estavam derrubando as casas e prendendo os responsáveis pelos rituais" (Ferreira, 2009, p. 47). Só entre as décadas de 1970 e 1980 que os indígenas vão se unir a outros movimentos sociais para reivindicar direitos e, neste processo, evidenciam a necessidade de uma escola específica e diferenciada.
As escolas indígenas em Alagoas encontram-se em quatorze aldeias, referentes a nove povos (Figura 1) e acolhem, aproximadamente, dois mil alunos. E, mesmo as aldeias que não contam com escolas indígenas oficiais, estão se movimentando para que sejam implantadas, ao mesmo tempo que criam espaços próprios de reforço escolar, como ocorre na aldeia Karuazu, onde crianças indígenas estudam em uma escola municipal e, no contraturno, frequentam a escola ainda não oficializada que “configura-se como um território formador de identidades culturais” (Santos e Silva, 2017, p. 7).
Mapa produzido pelas autoras. Fonte: Núcleo Interdisciplinar Intercultural Indígena/NIIND/PIBID/UNEAL
Assim, como sobressai a diversidade de povos, igualmente sobressai a diversidade de problemas enfrentados nas aldeias para atender o direito a uma escola específica e diferenciada. A estrutura física que compõe a escola, em geral, não atende à demanda educacional e o improviso que predomina é inconcebível quando ultrapassamos três décadas da promulgação constitucional que vem embasando políticas públicas de educação escolar indígena.
De acordo com Wanderley et al. (2017), as escolas enfrentam muitas dificuldades em relação aos recursos de custeio, comprometendo a oferta de merenda e material didático diferenciado e as condições de infraestrutura. A escassa oferta de educação infantil ocasiona a transferência de crianças indígenas para escolas não indígenas, decorrendo um prejudicial afastamento da comunidade e das tradições, visto que o aluno passa a conviver mais com a cultura não indígena e vai perdendo suas raízes, causando grande preocupação para as lideranças indígenas.
Chamamos atenção para o que a escola e seus fazeres ainda representam nas sociedades indígenas, visto que predomina um modelo curricular eurocêntrico. Segundo Baniwa (2019, p. 59) “é importante entendermos que a instituição escolar, assim como a ideia de educação intercultural, é invenção do colonizador. São ferramentas, instrumentos, discursos e modos de pensar e fazer dos colonizadores para atingir determinados objetivos”. Contudo, a escola indígena realiza movimentos para compreender a sociedade que a envolve, de forma a construir diálogos paritários. Nesse sentido, o autor afirma que ainda não existe, de fato, escola indígena e aponta para uma “dialética intercultural” em que “as distintas culturas, os distintos saberes e as distintas cosmovisões presentes, envolvidas e acionadas pela escola estão em constante movimento circular, interativo e de conexões intermundos, sem a arrogância vertical e hegemônica da ciência ocidental colonizadora” (Baniwa, 2019, p. 62). Conquanto as conquistas, ainda há muita luta entre a flecha e a caneta!
Diante dos inúmeros desafios que colocam limites para a efetivação da escola indígena de qualidade, a luta incessante dos povos pelo atendimento dos preceitos constitucionais que reconheçam o direito à diferença e aos processos próprios de aprendizagem, bem como por professores com formação específica, pertencentes a cada povo ao qual a escola se destina.
Nesta perspectiva, a licenciatura intercultural indígena na Universidade Estadual de Alagoas, resultado da luta urdida a partir de necessidades concretas, já diplomou professores que hoje integram a rede pública estadual. São profissionais com formação específica para atuar nas instituições escolares de suas comunidades, representando um passo importante no processo de construção de uma escola pautada no fortalecimento étnico-cultural, na afirmação das línguas originárias e na memória de cada povo.
Para participar do curso os professores indígenas foram selecionados através de uma prova escrita e uma entrevista. Candidatos à vaga precisavam comprovar, além da identidade étnica, a atuação em escola indígena e poderiam se inscrever os que ainda não tinham formação superior, ou a possuía sem a especificidade de formação indígena.
A proposta curricular da licenciatura indígena dispõe etapas para a formação destinada a atividade docente para o ensino fundamental e ensino médio, contemplando uma matriz curricular comum e a especificidade conceitual e curricular para cada diferente terminalidade: Geografia, História, Letras/Português e Literatura, Matemática e Pedagogia. É uma proposta que oportuniza refletir sobre os "processos pedagógicos que compõem a práxis escolar e os projetos societários que a orienta." (CLIND, 2018, p. 37). Neste sentido, busca favorecer “a análise da prática pedagógica, a elaboração de diagnósticos de suas escolas e a busca de alternativas para a resolução dos problemas” (p. 39). O conjunto de detalhamentos que compõem o projeto político pedagógico abre caminho para o desenvolvimento de ações educativas de resistência em relação aos saberes ancestrais, bem a valorização da oralidade, visto que é premissa para os professores formadores que atuam na licenciatura o respeito aos saberes e conhecimentos próprios.4 Nesse sentido, os estudantes são desafiados a trazer para o centro das reflexões acadêmicas situações de suas escolas e da relação das mesmas com as comunidades, buscando junto aos sábios e às pessoas mais velhas, consideradas referências dos saberes e conhecimentos ancestrais, subsídios teórico-metodológicos para pensar a escola diferenciada.
A produção teórica dos alunos do curso evidencia a aplicação destes preceitos, como explicitado por Silva, em seu trabalho de conclusão de curso intitulado Memórias auto afirmativas revitalizadas e oralidade do povo Xucuru-Kariri. Afirma o autor que “o espaço de multissignificação sugere um conjunto de vozes tecidas à luz do conhecimento ancestral, das tradições indígenas e, ao mesmo tempo, revela a estreita relação entre poesia, história e memória, lugar e nação, identidade e alteridade” (Silva, 2015, p. 14), exemplificando que a resistência indígena na academia é também a afirmação de um saber próprio, que indaga a memória ancestral e revitaliza a oralidade, em consonância com as questões atuais. Apesar do silêncio secular, o grito do agora exige um novo roteiro, com protagonistas de sua própria história. São professores pesquisadores, com olhares próprios para a educação escolar indígena. Da mesma forma, são professores habilitados para implantar novas modalidades de ensino, implementar ensino médio e, quiçá, lutar por uma universidade indígena, mergulhando na busca das raízes mais profundas, que sustentam a sabedoria historicamente negada, usurpada e silenciada.
A presença de professores indígenas na universidade, também teorizando saberes e conhecimentos próprios, impõe uma reflexão profunda sobre interculturalidade, interaprendizagens e, quiçá, interepistemologias. Impõe considerar a interculturalidade como um diálogo de conhecimentos para valer, como anuncia Viveiros de Castro (2002, p. 486), ao defender a necessidade de um reconhecimento radical das teorias indígenas.
Trata-se de tentar dialogar para valer, tratar as outras culturas não como objetos da nossa teoria das relações sociais, mas como possíveis interlocutores de uma teoria mais ampla das relações sociais. [...] Então, o ‘equivalente’ do xamanismo ameríndio não é o neo-xamanismo californiano, ou mesmo o candomblé baiano. O equivalente funcional do xamanismo indígena é a ciência. É o cientista, é o laboratório de física de altas energias, é o acelerador de partículas. O chocalho do xamã é o acelerador de partículas de lá (Grifos do texto original).
Porém, na prática, se observa na academia pouca disposição para compreender estas equivalências, o que faz pensar que estamos longe de realizar uma interação equitativa, simétrica e respeitosa entre diferentes saberes e conhecimentos, que, a partir das diferenças, poderiam se complementar numa perspectiva recíproca, como sugere o termo intercultural. Contudo, pontuamos alguns movimentos, em que o próprio projeto político pedagógico da segunda turma do CLIND-AL mostra sensibilidade, ao reconhecer as interaprendizagens que o curso propicia:
A oferta de cursos de graduação para docentes indígenas representou a possibilidade de atendimento adequado à educação diferenciada, à profissionalização e, também, assegurou a continuidade do processo de formação dos atuais professores que compõem o magistério indígena. Esse curso apresentou-se como um espaço de veiculação de conhecimentos que indubitavelmente trouxe ganhos materiais e imateriais tanto para a Universidade Estadual de Alagoas-UNEAL, como para as escolas de ensino médio e fundamental, até então carentes de maiores informações sobre a diversidade cultural e ambiental das terras indígenas. (CLIND-AL, 2018, p. 17-18)
Conquanto as ações desenvolvidas na licenciatura intercultural coloquem em evidencia conhecimentos e saberes dos povos indígenas, o curso realizado em grande parte nas aldeias, prejudica uma convivência mais intensa com outros estudantes e professores. E a crítica a uma concepção reduzida de interculturalidade aparece nas falas indígenas, principalmente daqueles que frequentam a academia e sentem nela o reduzido espaço para suas histórias, culturas e conhecimentos. “Nós já somos interculturais”; “Nossas escolas são interculturais”, dizem os professores indígenas e mostram como isso ocorre na prática, referindo-se, por exemplo, à disposição de aprender conhecimentos produzidos por outras culturas e, ao se habilitarem para falar uma língua diferente da sua. Dizem que a interculturalidade que tentam praticar na academia é “uma via de mão única”, pois não há uma disposição institucional para aprender e valorizar a cultura indígena para além de aspectos folclóricos e ou exóticos, pois, efetivamente, o currículo acadêmico se mantém intocado.
“Mais do que intercultura, hoje precisamos pensar em interciência”, assevera Gersem Baniwa, ao defender que os povos indígenas possuem suas ciências, seus sistemas de conhecimento, seus processos próprios de aprendizagem. Este intelectual indígena propõe o polêmico debate da “interciência” e remete pensar em conhecimentos indígenas, em ciências indígenas, em intelectuais indígenas e nas possibilidades de uma relação simétrica, em que as aprendizagens interculturais realizadas pela sociedade não indígena sejam reconhecidas e, efetivamente, sejam inseridos nos currículos acadêmicos saberes e conhecimentos do mundo, produzido por diferentes povos.
A presença indígena desafia a universidade a pensar sobre interculturalidade e seus limites, questionando os conhecimentos que nela predominam, às vezes considerados universais. Será que há espaço para diálogo se mantivermos estas crenças? Nos trabalhos individuais, orientados por professores da universidade, os estudantes da licenciatura indígena almejam um diálogo intercultural e intercientífico. Afirmam conhecimentos próprios e, mesmo informados e, às vezes, forçosamente enquadrados pelos parâmetros teórico-metodológicos acadêmicos, aportam outras metodologias, outros modos de escrever e de produzir conhecimentos. Como são anunciados estes “outros modos” de escrever e de produzir conhecimentos? São escritas que contemplam vozes coletivas das comunidades de origem e conhecimentos que carregam sabedorias milenares para uma relação mais profunda e respeitosa com os seres da natureza, com a saúde, com a educação, com o bem-viver. São metodologias que se atém à escuta silenciosa das pessoas mais velhas e sábias de suas comunidades (respeitando hierarquias próprias), que consideram a memória oral e os modos cotidianos de convivência, como as rodas de conversa. Produzem uma escrita eivada pela oralidade, pela circularidade, pela repetição; textos impregnados pela linguagem corporal dos rituais, das danças e dos cantos entoados. Almeida (2009, p. 24), ao se debruçar sobre a experiência literária indígena no Brasil, diz que “a grande diferença entre a escrita ‘ocidental’ e a escrita dos índios é que, para estes, o corpo da escrita, o corpo nosso e o corpo da terra, se integram, multiplicadamente”. Em seus trabalhos citam as referências orais pelas lembranças das aprendizagens que trazem em seus corpos - corpos negados na academia e na sociedade e que somente a resistência, como necessidade de se mostrar e se afirmar na diferença, faz com que busquem e valorizem os modos próprios de vida e de educação, como um “caminho de volta para casa”.5
Movimento semelhante também foi observado em um estudo sobre a produção acadêmica de estudantes Kaingang na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (graduação e mestrado), a fim de verificar as possibilidades para outras ciências na academia (Fagundes, 2017). A autora constata que estes autores indígenas constroem o conhecimento afirmando metodologias próprias, como por exemplo, o uso de auto-investigação/etnoinvestigação (inserindo suas histórias de vida na pesquisa). Evidenciam, em suas escritas, finalidades políticas de apoio a suas comunidades, usam referências bibliográficas que valorizam autores indígenas e trazem a língua originária em resumos, epígrafes e alguns parágrafos. Afirma Fagundes, que as pesquisas por ela analisadas, buscam respostas para a escola Kaingang específica e diferenciada e para um fazer científico próprio.
No sentido de afirmar e compreender uma autoria indígena, analisamos, na sequência, alguns trabalhos de conclusão de curso realizados por licenciados indígenas do CLIND-AL, que buscam neste percurso universitário, construir caminhos para a escola diferenciada que atuam como professores. Ao tematizarem conhecimentos próprios em suas pesquisas, mostram um protagonismo que vai ao encontro dos objetivos da licenciatura, que é formar o docente a partir do tripé ensino-pesquisa-extensão no diálogo com a cultura de cada povo. A análise que realizamos visa compreender o movimento dos formandos indígenas numa perspectiva intercultural e interepistêmica, ou seja, como estes professores-estudantes-pesquisadores evidenciam seus conhecimentos na academia, realizando pesquisas que envolvem cultura e conhecimentos tradicionais indígenas, legislação escolar, educação e escola indígena e relações interculturais.
Um dos critérios para conclusão da licenciatura indígena foi definido com a opção por Trabalho de Conclusão de Curso, elaborado como relatório de pesquisa ou artigo acadêmico. O trabalho História da Educação superior indígena em Alagoas: uma construção coletiva em contextos diferenciados, o primeiro apresentado no quadro acima, foi escrito em forma de artigo. Analisa a legislação que trata da educação escolar indígena, apresentando um olhar crítico sobre o sistema estadual de educação. Faz um apanhado histórico sobre a educação superior indígena, "vinculando-o à interculturalidade presente no contexto de educação, dentro e fora das comunidades indígenas do estado" (Ferreira, 2015, p. 18). Discute o funcionamento do CLIND e a luta indígena para concretização de uma formação superior.
O artigo O índio no livro didático: uma imagem que não reflete o povo Koiupanká reflete a pesquisa etnográfica realizada em escolas não indígenas, que registrou concepções dos alunos visando compreender qual o papel da escola e da historiografia sobre o olhar construído em relação ao indígena. Também foi considerada a voz de um grupo de moradores do município de Inhapi, localizado no sertão alagoano, onde encontra-se a aldeia do povo Koiupanká. O referido trabalho, além de buscar compreender como são vistos pela sociedade envolvente, reflete sobre a autoimagem dos alunos Koiupanká que frequentam a escola indígena, promovendo um "debate sobre o lugar e a imagem do índio na sociedade contemporânea" (Amorim, 2015, p. 3). Apresenta discussões sobre "projeções do imaginário visível no livro didático" e de "lutas, ressignificação e resistência: a imagem do índio em sua própria descrição" (Amorim, 2015 p. 13), transformando em palavras a história de luta do seu povo em prol de uma relação intercultural, de afirmação e valorização dos saberes próprios diante da sociedade não indígena.
O terceiro trabalho analisado, Os povos indígenas e a educação: reflexões sobre a construção da educação escolar indígena diferenciada na legislação educacional brasileira é apresentado, com força de empoderamento, o significado dos conhecimentos indígenas para a apropriação da escola. Defende que "a educação escolar específica e diferenciada é base fundamental para o processo de reconquista da dignidade dos povos indígenas do sertão alagoano” (Santos, 2015, p. 4). Traça o histórico da legislação que ampara a educação escolar indígena no Brasil, reforçando o direito indígena a uma educação intercultural, de afirmação das identidades e de recuperação das memórias ancestrais, presentes nos relatos de sábios e de pessoas mais velhas, guardiãs destas memórias.
O artigo Projeto Horta - promovendo hábitos saudáveis e qualidade de vida a escola indígena problematiza, a partir da preocupação de professores indígenas da aldeia Roçado, povo Koiupanká, os alimentos industrializados do cardápio da Secretaria de Educação, que, segundo a autora, pode levar o aluno indígena a se acostumar com a comida do branco. No mesmo sentido, o artigo Merenda escolar: Uma análise nas escolas indígenas da etnia Xucuru Kariri - Palmeira dos Índios/AL se dispõe a compreender a qualidade e a influência que os alimentos que compõem a merenda escolar exercem sobre a cultura alimentar própria. Discute a legislação e a implantação de escolas nas aldeias do povo Xucuru-Kariri, localizadas no município de Palmeira dos Índios. Igualmente, olha para as crianças, não como alunas, mas considerando-as em sua vida social e comunitária, pois, segundo a autora, as crianças, nas sociedades indígenas, possuem liberdade e autonomia.
A partir de legislações e discussões teóricas sobre a infância, o artigo seguinte trata das canções próprias, ou seja, Toadas indígenas do pré-escolar ao ensino fundamental I - um relato de experiência, projeto desenvolvido na aldeia Wassu-Cocal, zona da mata alagoana. Anuncia que o principal objetivo do projeto analisado é a afirmação da cultura originária, ao focalizar processos próprios de aprendizagem e ao incluir lideranças comunitárias como atores escolares, responsáveis por transmitir saberes dos antigos. Afirma que "relatar as experiências vivenciadas durante a realização do projeto permitiu explanar ações e atitudes dentro das escolas indígenas que auxiliaram no processo de desenvolvimento pedagógico, sem perder a essência das raízes indígenas" (Santos, 2015, p. 61)
[i] Quadro elaborado pelas autoras. Fonte: Silva, et al. (2018)
A Editora da Universidade Estadual de Alagoas - EDUNEAL, publicou, no ano de 2018, o livro Letras indígena: Polind em Alagoas, cuja autoria dos dez capítulos que o compõe é de alunos da primeira turma da licenciatura indígena, compartilhada com seus orientadores. Complementado o estudo de TCCs acima apresentado, realizamos a leitura mais detalhada de dois artigos publicados no livro, ambos escolhidos por corroborar com a ideia da resistência indígena em espaços acadêmicos, ao afirmarem identidades próprias e, em suas autorias, se colocarem como “herdeiros de uma bagagem cultural milenar”.
No artigo Educação Escolar indígena e identidade docente, a autora, pertencente ao povo Xucuru-Kariri, afirma que os povos tradicionais “se encontram num paradoxo entre a civilização e a resistência e, caso se entregue à ‘civilização’, estarão fadados ao desaparecimento e inseridos na classe dos excluídos” (Tenório e Borba, 2018, p. 156). Argumenta o texto que somente a resistência, pautada em valores próprios, permitirá aos povos indígenas sobreviver. Nesse sentido, a mediação do professor indígena em sua escola é fundamental, pois “mantém uma relação de ponte entre culturas de sociedades distintas e a aprendizagem dos alunos, que são os principais atores da educação intercultural” (Tenório e Borba, 2018, p. 156). A identidade indígena da professora-autora aparece no relato da sua história de vida, a relação com seu povo e seus costumes, sua escola e a luta para estudar em meio a tantos desafios. Suas lembranças, registradas no texto, evocam as avós e as histórias que contavam: uma, a parteira que lhe trouxe ao mundo; a outra ceramista, fazia panelas de barro. O texto afirma a importância da identidade indígena do professor como nova liderança em sua comunidade, valorizando sua cultura no espaço escolar e mediando relações com o mundo exterior.
Outro capítulo do referido livro, decorrente da Licenciatura Indígena na UNEAL, tem como título Índios e não-índios: identidade e diferenças na escola indígena Xucuru Kariri, da Serra do Capela. Apresenta relatos de professores da Aldeia Mãe Indígena Serra do Capela sobre práticas pedagógicas direcionadas à aprendizagem de alunos indígenas e não indígenas e discute a importância de ouvir, falar, ler e escrever. Remete, especificamente, à realidade de uma escola indígena da região, que acolhe, além dos 58 estudantes indígenas, 42 não indígenas. A escola, cuja gestão é de professores formados na primeira turma do CLIND-AL, possui calendário próprio, no entanto, os livros didáticos fornecidos pelo Estado, são os mesmos das escolas não indígenas, elaborados na língua portuguesa, incluindo, majoritariamente, conhecimentos eurocêntricos. O artigo descreve o funcionamento da escola e o tratamento simétrico, porém diferenciado, oferecido a alunos indígenas e não indígenas: “por exemplo, se o professor está explicando sobre ervas medicinais para os índios, os não índios e o professor, também, têm uma aula sobre ervas, porém de forma diferenciada, com nomes não indígenas” (Silva e Silva, 2018, p. 211), para que ambos os grupos obtenham conhecimento similar sobre o tema tratado. Contudo, os estudantes indígenas adentram em conhecimentos que são somente seus, pois, segundo as lideranças locais, existem alguns assuntos que são “segredos indígenas” e precisam ser preservados diante da histórica destruição que o contato com os não indígenas já causou. As autoras compreendem que as ações escolares contemplam aprendizagens significativas, pois “os alunos estão imersos em situações concretas, inerentes à própria cultura indígena, o que os impulsiona a querer aprender cada vez mais” (Silva e Silva, 2018, p. 212).
Esta pequena mostração das produções científicas de professores indígenas que cursaram a licenciatura intercultural evidencia posturas autorais, que afirmam identidades indígenas, dialogam com a linguagem acadêmica e apontam caminhos interculturais. Mesmo pautados por parâmetros acadêmicos que relegam a oralidade em prol da escrita, que considera o conhecimento no singular, usam as pequenas brechas para afirmar identidades, para afirmar concepções próprias em relação a diferentes âmbitos da vida e da educação. Os nove trabalhos aqui descritos mostram que, ao trazerem seus conhecimentos, os estudantes indígenas da licenciatura intercultural lidam com lógicas de mundo que se conflituam, mas que igualmente compõem interfaces complementares no âmbito da educação e da educação escolar. Mostram que conhecimentos indígenas e acadêmicos aportam possibilidades interculturais e interepistêmicas e, embora pautadas por desencontros, contradições e conflitualidades, não são irredutíveis e constituem pontos de vista plurais. Talvez ofereçam caminhos para a universidade sair do modelo monocultural, assumindo, desde cá, a interculturalidade, como “via de mão dupla”.
Em vídeo, produzido por acadêmicos da licenciatura intercultural6 (CLIND-AL), Tawanã, liderança jovem do povo Kariri-Xokó, diz que “a luta de hoje é retomar o que o povo já tem: a língua, a história, os modos de vida”, afirmando a importância dos registros escritos realizados pelos indígenas, estudantes universitários. Segue sua fala dizendo que “hoje a resistência se dá também na busca da diplomação de advogados, enfermeiras, professoras. Estamos guerreando de outra forma para resistir e continuar sendo indígenas”.
Considerando a situação de Alagoas, em que civilizações indígenas foram dizimadas, silenciadas e apagadas pela violência colonial de 500 anos, as escolas indígenas funcionando nas aldeias hoje são aliadas na afirmação étnica, na valorização da cultura e da história destes povos. Para tanto, a formação de professores, em consonância com essas histórias e essas culturas é um movimento necessário e, segundo os próprios indígenas, é também um movimento de resistência. A licenciatura intercultural indígena, realizada na UNEAL, contribui para evidenciar conhecimentos próprios e empoderar professores indígenas, que se encorajaram em realizar trabalhos acadêmicos com temas de pesquisa vinculados a suas sociedades e a suas escolas.
Os movimentos que fazem como indígenas estudantes no ensino superior, afirmando identidades e conhecimentos próprios, são movimentos de luta e resistência, demarcando a universidade como um território que lhe é de direito. Inserem a aldeia na universidade ao evidenciarem em seus fazeres acadêmicos marcas próprias de sua cultura e, quiçá, ajudam a criar um outro lugar, entre dois mundos, em que os conhecimentos tecem encontros e desencontros, não mais silenciamento e apagamentos.
Embora o predomínio de modelos educacionais e escolares não indígena, observamos que na licenciatura intercultural os saberes e os conhecimentos indígenas começam a ser evidenciados pelos alunos-professores e não podem ser ignorados, pois estão enraizados nos corpos de quem os carrega, evidenciando uma história de resistência. Os universitários indígenas contaminam o pensamento acadêmico com seus saberes ancestrais, com seus conhecimentos originários e suas disposições interculturais: a academia precisa se mostrar sensível e aberta para compreender e valorizar estes movimentos, ainda muito tímidos, mas já assumidos como parte da luta dos povos indígenas brasileiros.7 Como diz a intelectual indígena Aline Ngrenhtabare Lopes kayapó: “a universidade é uma ferramenta, um instrumento de luta e resistência” (Kayapó e Schwingel, 2021, p. 21).
Mesmo orientados por estritos parâmetros teórico-metodológicos acadêmicos e inseridos em uma academia que insiste em afirmar um conhecimento único, fazem um grande esforço para se mostrar, para pronunciar sua voz, para dizer de si, de suas comunidades e de suas escolas. Os professores-pesquisadores, pertencentes aos povos indígenas de Alagoas, não se furtam em enfrentar os conflitos e dar visibilidade aos seus modos próprios de pensar e de estar no mundo, fazendo soar a voz silenciada e ou não escutada. Atuam pesquisando sobre suas sociedades, sobre a relação com as sociedades não indígenas, sobre suas escolas, pensada coletivamente, junto com sua comunidade. Valorizam as identidades indígenas e suas experiências, contribuindo com a continuidade e o fortalecimento de uma sociedade diferenciada, com conhecimentos e saberes próprios, apropriando-se de outras culturas como forma de resistência e reconhecimento de sua cidadania. Valorizam, igualmente, a universidade como uma instituição aliada, pois diante da invisibilidade, da negação dos direitos básicos para viver dignamente no país em que são os povos originários, o ensino superior é um espaço importante de valorização e reconhecimento, de estabelecimento de alianças que fortalecem as lutas e as reivindicações.
Santos, F. e Silva, F. S. (2017). Escola e comunidade indígena Karuazu - Pariconha/Alagoas: Territórios formadores de identidades culturais. Anais. 10 Encontro Internacional de Formação de Professores/11 Fórum Permanente Internacional de Inovação Educacional Aracaju, Sergipe. Universidade Tiradentes; v. 10, n. 1. p. 1-10.
Wanderley, V. S. et al (2017). A Constitucionalização da educação Escolar Indígena e sua efetividade em Alagoas. Recuperado de https://viviane2001.jusbrasil.com.br/artigos/386169670/a-constitucionalizacao-da-educacao-escolar-indigena-e-sua-efetividade-em-alagoas
Brasil. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Disponível em Disponível em www.planalto.gov.br/legislação Acesso em 18/jul./2016.
[1] Estudos mais detalhados analisam trajetórias institucionais e da luta dos povos, que possibilitam o ingresso, permanência e titulação de estudantes indígenas no ensino superior no Brasil, principalmente por meio de ações afirmativas, como: Doebber (2017), Bergamaschi, Doebber e Brito (2018), Sousa Lima (2018) e Aguilera Urquiza (2019).
[2] Rita Gomes do Nascimento (2017) analisa a formulação e implantação do Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Interculturais Indígenas (PROLIND) que, segundo a autora, evidencia o “protagonismo do movimento indígena na reivindicação do atendimento de suas demandas por formação superior” (p. 56). Pontua avanços e desafios do programa, que se constitui como “colaboração intercultural”, porém que ainda carece maior institucionalização junto às instituições de ensino superior e “passe a compor o quadro de seus cursos regulares, com corpo docente e técnico administrativo próprio, dispondo de melhor infraestrutura física e tecnológica que atenda às especificidades dos cursos e de seus estudantes (p. 69).
[3] A interculturalidade, como termo que designa cursos de formação específica de professores indígenas (licenciatura intercultural) e ou escolas indígenas, vem sendo questionada por ser uma “via de mão única”, somente indígena. A interculturalidade, como diálogo simétrico, exige deslocamentos recíprocos das culturas envolvidas, criando “vias de mãos duplas”.
[4] Para atuar na licenciatura intercultural os professores do quadro da UNEAL precisam comprovar seu envolvimento com aspectos da cultura indígena por meio de ações institucionais já realizadas em ensino, pesquisa ou extensão.
[5] Frase recorrente de indígenas estudantes na universidade, ao sentirem a necessidade de afirmar positivamente suas identidades. Diante de um processo histórico que negou a diferença, hoje usam as “brechas” da academia, especialmente espaços de pesquisa que oferecem possibilidades para investigar sobre os modos de vida próprios.
[7] Desde 2013 é realizado no Brasil o Encontro Nacional de Estudantes Indígenas (ENEI), evento protagonizado por lideranças e por indígenas estudantes universitários, que afirmam suas autorias. No ENEI, realizado em universidades parceiras escolhidas a cada ano, são convidados como palestrantes lideranças espirituais e políticas vinculados ao Movimento Indígena de diferentes povos e são apresentados trabalhos acadêmicos de autoria indígena que evocam saberes e conhecimentos ancestrais (Doebber, 2017).
[8] Financiamiento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Igualmente, recebeu apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa de Alagoas (FAPEAL).