A construção discursiva do ridículo político: O caso dos bolsonaristas acampados no Brasil pós-eleições 2022

Cellina Muniz

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil
cellina.muniz@ufrn.br

Trabajo recibido el 8 de agosto de 2023 y aprobado el 10 de septiembre de 2023.

Resumo

Em outubro de 2022, realizaram-se, em dois turnos, as eleições para presidente do Brasil. Em contexto de polarização política (Kakutani 2018, Klein 2021), os candidatos Jair Bolsonaro (PL) e Luís Inácio Lula da Silva (PT) disputaram o cargo em campanha que culminou com a vitória de Lula, representante da ala partidária e ideológica à esquerda, oposição ao governo de extrema-direita de Bolsonaro. Com a derrota, apoiadores de Bolsonaro, organizaram-se em atos que questionavam o resultado do pleito e exigiam anulação das eleições, acampando diante de quartéis das Forças Armadas. Surgem então textos humorísticos rebaixando esses atos e seus manifestantes, explorando aquilo que a filósofa Marcia Tiburi (2017) designa como ridículo político. São analisados três textos os quais, por meio de diferentes procedimentos humorísticos (Possenti 1998), ilustram como suas cenografias enunciativas (Maingueneau 2006) apelam para um riso de zombaria (Propp 1992), principal elemento dessa construção discursiva do ridículo.

Palavras-chave: polarização, humor, ridículo político, enunciação.

The discursive construction of political ridicule: The case of Bolsonaristas camped in Brazil after the 2022 elections

Abstract

In October 2022, the elections for president of Brazil were held in two rounds. In a context of political polarization (Kakutani 2018, Klein 2021), candidates Jair Bolsonaro (PL) and Luís Inácio Lula da Silva (PT) ran for office in a campaign that culminated in the victory of Lula, representative of the party and ideological wing on the left, opposition to Bolsonaro’s far-right government. With the defeat, supporters of Bolsonaro organized themselves in acts that questioned the result and demanded the annulment of the elections, camping in front of the barracks of the Military Forces. Then come humorous texts debasing these acts and their protesters, exploring what the philosopher Marcia Tiburi (2017) designates as political ridicule. Three texts are analyzed which, through different humorous procedures (Possenti 1998), illustrate how their enunciative scenographies (Maingueneau 2006) appeal to a mocking laugh (Propp 1992), the main element of this discursive construction of ridicule.

Keywords: polarization, humor, political ridicule, enunciation.

La construcción discursiva del ridículo político: El caso de los bolsonaristas acampados en Brasil tras las elecciones de 2022

Resumen

En octubre de 2022, las elecciones para presidente de Brasil se realizaron en dos vueltas. En un contexto de polarización política (Kakutani 2018, Klein 2021), los candidatos Jair Bolsonaro (PL) y Luís Inácio Lula da Silva (PT) se postularon en una campaña que culminó con la victoria de Lula, representante del partido y ala ideológica de izquierda, oposición al gobierno de extrema derecha de Bolsonaro. Con la derrota, los simpatizantes de Bolsonaro se organizaron en actos que cuestionaron el resultado y exigieron la anulación de las elecciones, acampando frente al cuartel de las Fuerzas Militares. Luego vienen textos humorísticos que degradan estos actos y sus manifestantes, explorando lo que la filósofa Marcia Tiburi (2017) designa como burla política. Se analizan tres textos que, a través de diferentes procedimientos humorísticos (Possenti 1998), ilustran cómo sus escenografías enunciativas (Maingueneau 2006) apelan a una risa burlona (Propp 1992), elemento principal de esta construcción discursiva del ridículo.

Palabras clave: polarización, humor, ridículo político, enunciación.

1. Introdução

O terceiro milênio, iniciado já sob o selo extremo do 11 de setembro de 2001, o ato terrorista de destruição das Torres Gêmeas nos Estados Unidos, caracteriza-se até o momento como uma época de oposições radicais, sobretudo no campo da política. Trata-se de um fenômeno designado de maneira geral como polarização:

Cuando hablamos de polarización, nos estamos refiriendo a varios fenómenos distintos. De forma muy resumida, existen, al menos, tres procesos políticos distintos a los que llamamos polarización: la polarización ideológica, la polarización afectiva y la polarización social y territorial (Miller 2022, 39-40).

Na esteira desse fenômeno, no Brasil, vimos um pequeno segmento da sociedade tentando repetir o modelo americano do governo extremista de Donald Trump e seus apoiadores, particularmente em relação à tentativa de se manter no poder diante da sua derrota nas urnas com a tentativa frustrada de Golpe pela tomada do Capitólio em janeiro de 2021. Na capital brasileira, logo após a posse de Luís Inácio Lula e Geraldo Alckmin como presidente e vice-presidente democraticamente eleitos em 2022, apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram e depredaram o Palácio do Governo, o Congresso Nacional e a sede do Supremo Tribunal Federal no dia 8 de janeiro de 2023.

Antes desse dia nada engraçado, logo após o resultado das eleições em fins de outubro de 2022, apoiadores de Bolsonaro, inconformados, começaram a se mobilizar, organizando-se em acampamentos diante de sedes das Forças Armadas por todo o país, exigindo anulação do pleito e intervenção militar. Foi a partir daí que uma gama de textos humorísticos passou a circular, ridicularizando tais atos e seus sujeitos.

Nesse cenário, vimos se sobrepor, assim, o conceito de ridículo político:

Dizemos ridículo no tocante a uma cena em que o personagem, sua forma de aparecer e sua ação compõem um cenário de contrassenso absurdo relativamente ao que seria razoável no contexto […] Podemos definir o “ridículo político” como associação do ridículo ao político na forma de uma confusão de duas cenas, aquela em que se deve rir e aquela em que se deve chorar ao mesmo tempo […] O ridículo é, portanto, algo que se lastima, mas algo que também causa perplexidade e estupefação, enquanto, ao mesmo tempo, convidaria, em condições ficcionais, a rir (Tiburi 2017, 74-77).

O ridículo político não se restringiu a esse momento final do Governo Bolsonaro. Durante seus quatro anos de vigência, tanto o “Capitão” que ocupou o cargo de presidente da República de 2019 a 2022 como seus ministros e apoiadores políticos viram-se enredados em constantes episódios vexatórios: das visões místicas relatadas pela então Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, aos desvios crassos de uso da língua padrão pelo então Ministro da Justiça, o ex-juiz Sergio Moro, várias foram as trapalhadas (Pedlowski 2019) 1 que despertaram aquele sentimento de, como caracteriza Tiburi (2017, p. 38), “vergonha alheia”, sinalizando um mal-estar de quem, acompanhando estarrecido o espetáculo de horrores, sente que seria cômico não fosse trágico.

Essa condição ridícula parece ter sido/ser uma tendência global, como aponta Empoli (2022, 18):

No mundo de Donald Trump, de Boris Johnson e de Jair Bolsonaro, cada novo dia nasce com uma gafe, uma polêmica, um escândalo. Mal se está comentando um evento, e esse já foi eclipsado por um outro, numa espiral infinita que catalisa a atenção e satura a cena midiática.

É no âmbito da representação discursiva da gafe que este artigo se situa. Esse ato e/ou palavra desastrada que, visando inicialmente à assunção de um posicionamento ideológico e político-partidário, termina por desencadear o cômico. São analisados três exemplos —um meme, uma charge e um vídeo— que, por meio de diferentes recursos (paródias, exageros, implícitos, ironia, derrisão) típicos em textos humorísticos (Propp 1992, Possenti 1998), ilustram algumas características do ridículo político.

2. Vivendo em um país polarizado

Como assinala Kakutani (2018), uma das muitas características desta contemporaneidade polarizada é o acirramento dos filtros, bolhas e tribos em que nos situamos. De acordo com a autora, analisando o contexto dos EUA, esse fenômeno remonta aos anos de 1980 quando

as pessoas encontraram um senso de comunidade em bairros, igrejas, clubes e outras organizações com ideias semelhantes às suas. Essa dinâmica seria ampliada na velocidade da luz pela internet —por sites de notícias que abastecem pontos de vista ideológicos particulares, por fóruns de interesses específicos e pelas redes sociais, que ajudaram as pessoas a se isolarem ainda mais em bolhas de interesses compartilhados— (Kakutani 2018, 83).

Com efeito, o advento da internet e das mídias digitais contribuiria com o recrudescimento desse paradoxal “isolamento” num mundo globalizado, sobretudo a explosão da mídia de direita nos anos de 1990 (Kakutani 2019).

No Brasil, não foi diferente. Uma série de fatores propiciou a divisão do país em frentes radicalmente opostas. O retorno da extrema-direita política no comando do país, ilustrado pela eleição de Jair Bolsonaro em 2018, só foi possível após um processo de fragmentação. Desde as manifestações de junho de 2013, passando pelas denúncias de corrupção na Petrobrás e pela operação Lava-Jato até culminar com a destituição da então presidente em 2016, logo após a sua eleição para um segundo mandato, o país foi ficando cada vez mais polarizado (Pinto 2017, 146).

Em todo esse processo, as mídias em geral e as redes sociais em particular tiveram papel fundamental, sobretudo no que diz respeito ao fenômeno da produção e ampla circulação de notícias falsas visando ao ataque dos oponentes, as chamadas fake news, que sem dúvida ajudaram a promover o acirramento das posições/oposições. Como afirmam Sargentini e Carvalho (2021, 77), foi o que se verificou tanto na eleição de Trump como na de Bolsonaro baseadas em “disparo de mensagens falsas em redes sociais, criação de sites de ocasião mimetizando o jornalismo tradicional, naturalização de um discurso marcado por preconceitos e retrocessos”.

Bolsonaro, cuja candidatura foi alicerçada no uso deliberado de mentiras veiculadas por mídias sociais (em especial WhatsApp e Youtube) e que recusou qualquer tipo de debate ao longo da campanha, transformou-se no emblema local de uma nova era, na qual o jornalismo profissional é marginalizado e o líder político se relaciona de forma imediata com uma multidão não mais de cidadãos, mas de “seguidores”, usando um discurso que não é desafiado por qualquer checagem factual, muito menos por discursos opostos —tal como Donald Trump, que é uma inspiração óbvia para a estratégia política que adotou (Miguel 2019, 45).

O “deslocamento em uma direção conservadora” (Pinto 2017) desse processo que possibilitou o impeachment de Dilma e a subida ao poder do vice Michel Temer, culminando em seguida no governo de Bolsonaro (2019-2022), acirrou a oposição política, partidária e ideológica no país. Mas mais do que isso: acentuou a oposição entre aqueles que se colocam a favor e aqueles que se posicionam contra uma sociedade democrática (Sargentini e Carvalho 2022).

Mas também, como assinala Miguel (2019), é importante destacar que se trata de uma “polarização assimétrica” haja vista que

[f]oi a direita que se radicalizou, rompeu com a conciliação que os governos petistas encarnavam, passou a recusar qualquer espaço de diálogo e adotou, em diferentes frentes, um discurso de combate sem tréguas —contra os direitos trabalhistas, contra o feminismo, contra o Estado social. Contra, enfim, todas as promessas igualitárias do pacto encarnado na Constituição de 1988 (Miguel 2019, 47).

Toda essa polarização teria seu ápice nas eleições de 2022: em uma diferença “apertada”, com 60.345.999 (50,90%) dos votos válidos, o candidato Lula (PT) venceu os 58.206.354 (49,10%) de Bolsonaro (PL), único presidente não-reeleito na história da República brasileira2.

Inconformados com esse resultado, apoiadores do então presidente Bolsonaro se mobilizaram em várias partes do país e montaram acampamento em frente a quartéis das Forças Militares para pedir anulação das eleições3. E é daí que surgem vários enunciados ridicularizando tais atos e seus manifestantes.

Como se sabe em uma análise de discurso de viés foucaultiano, todo e qualquer exercício de análise implica considerar os enunciados em sua singularidade histórica para o que há que se considerar as condições em que os enunciados emergem (Foucault 1995). Assim, esse cenário de polarização, bem como de escalada da extrema-direita e seu enfrentamento por grupos de oposição, se constituem como o conjunto das condições de possibilidade por meio das quais os textos humorísticos analisados a seguir surgem enquanto acontecimento discursivo4. Isto é, um enunciado que se efetiva como uma prática dotada de historicidade, dos quais cabe indagar: “como apareceu um determinado enunciado, e não outro em seu lugar?” (Foucault 1995, 31).

Além do mais, há que se considerar também as cenas de enunciação (Maingueneau 2006), ou seja, as formas pelas quais uma enunciação é encenada, implicando não só o tipo e gênero de discurso que atuam dos “bastidores” como também a “cenografia” que é mostrada diretamente para os interlocutores.

Nesse aspecto, os enunciados são marcados pelo contexto de polarização cujos posicionamentos são veiculados também via redes sociais, manifestando um cruzamento entre o campo político (e seus embates ideológicos) e o humor (e suas estratégias linguísticas e discursivas).

3. De como se constrói discursivamente o ridículo político: algumas análises

Como se sabe, o cômico é uma experiência que atravessa todas as épocas e culturas (Minois 2003, Berger 2017). A comicidade, encarada assim como traço humano, pode ser observada em escala progressiva, do gracejo mais inocente e inofensivo à inversão mais grotesca de todas as normas, de uma piada leve até a sátira mordaz (Berger 2017, 128).

Por essa razão, ligado radicalmente à construção da comicidade, o humor pode ser abordado segundo diferentes perspectivas com destaque para três possibilidades: uma teoria da superioridade, uma teoria das incongruidades e uma teoria psicanalítica (Eagleton 2020). Neste artigo, a ênfase recai sobre a primeira perspectiva e sobre o gesto aí implicado: o de ridicularização.

Figuras políticas sempre foram alvo do humor. Com efeito, o humor e a ridicularização no campo da política remontam à Antiguidade. Conforme assinala Lourenço (2022), nas comédias de Aristófanes, poeta grego do século V a. C., “a classe política é vítima dos mais mordazes e sardônicos remoques” (Lourenço 2020, 67).

Na contemporaneidade, um novo fenômeno se apresenta no mútuo atravessamento entre humor e política: o ridículo político, uma manifestação estética em que, astuciosamente, abusa-se de uma condição risível, estrategicamente assumida como uma espécie de triunfo (Tiburi 2017, 19). Mas, seguindo a longa tradição expressa já em Aristófanes, os textos humorísticos analisados a seguir ilustram uma construção discursiva do ridículo político —no caso, a ridicularização de bolsonaristas acampados— tanto para manifestar um riso de zombaria como para marcar um posicionamento no campo político.

Esse tipo de riso, isto é, o riso agressivo e zombeteiro, apresenta-se no mundo pelo menos desde a antiguidade grega, quando figuras como Platão e Eurípedes já se posicionavam, de modo crítico, a respeito da atitude de “rir de” (katagelân) (Minois 2003, 49).

Assim, mais do que rir de uma incongruência ou discrepância, esse tipo de riso que se evoca na representação cômica dos bolsonaristas acampados, como será visto, implica uma perspectiva de superioridade, pela “apreensão de alguma coisa deformada nos outros” (Eagleton 2020, 40).

Nessa direção, conforme assinala Propp (1992, 29), “tanto a vida física quanto a vida moral e intelectual do homem podem tornar-se de objeto de riso”. Assim, a condição de algumas pessoas de serem bolsonaristas acampados é o objeto de ridicularização e essa construção discursiva que visa ao riso de zombaria também marca o posicionamento político-partidário do sujeito que ri.

Os acampamentos de bolsonaristas, inconformados com o resultado das eleições em 31 de outubro de 2022, iniciaram-se logo após a confirmação da vitória do candidato Luís Inácio Lula da Silva (Partido dos Trabalhadores) e foram completamente dissipados após os ataques do dia 8 de janeiro de 2023.

Nesse ínterim, vários textos humorísticos foram produzidos e postos em circulação. O apelo ao riso se demonstra sobretudo pela construção de uma cenografia (Maingueneau 2006) que se ampara no contraste entre dois scripts ou esquemas de raciocínio (Raskin 1979), o que é típico em textos de humor5.

Nos três exemplos a seguir, o ridículo político se constrói sobre a figura do bolsonarista acampado, simbolizado pela camisa amarela da seleção brasileira (símbolo que se tornou marca dos apoiadores de Bolsonaro, mas já utilizada antes nas manifestações contra Dilma).

Vejamos os três exemplos. Trata-se de um meme, um quadrinho e um vídeo e em todos os três observam-se recursos típicos da discursividade humorística: paródia, exagero, ironia e duplo sentido, por exemplo (Propp 1997, Possenti 1998).

E, como será visto, todos esses procedimentos de linguagem são utilizados estrategicamente a fim de se construir um personagem ridículo, no caso, o bolsonarista.

Pessoas sentadas ao redor de uma mesa

Descrição gerada automaticamente

Figura 1. Meme. Fonte: @benficaordinarioficial. Acesso em 31 de novembro de 2022.

O primeiro exemplo é um meme cuja ação de ridicularização é feita a partir da paródia de uma postagem/montagem feita anteriormente pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do ex-presidente. A postagem do deputado, feita em suas redes sociais, dirigia crítica à jovem ativista Greta Thunberg por sua participação na Conferência do Clima da ONU em 2019. A postagem consistia na montagem de uma fotografia (ou seja, uma falsa mensagem) que mostrava a jovem diante de uma farta mesa de comidas sendo observada pela janela de um trem por crianças famintas6.

Pois durante a Copa do Mundo de 2022, enquanto os militantes bolsonaristas enfrentavam sol e chuva nos acampamentos, o referido deputado desfrutava dos jogos em Qatar, o que foi largamente registrado. A partir de um desses registros fotográficos, operou-se nova montagem que parodia a postagem anterior do deputado, dessa vez mostrando-o no lugar da ativista e, ao contrário de crianças famintas, um bolsonarista triste debaixo de chuva.

Tal meme, como dito antes, se baseia sobretudo no recurso da paródia, típico procedimento de humor. Segundo Propp (1992, 84),

a paródia consiste na imitação das características exteriores de um fenômeno qualquer de vida (das maneiras de uma pessoa, dos procedimentos artísticos etc.), de modo a ocultar ou negar o sentido interior daquilo que é submetido à parodização.

Nessa atitude de “imitar” um enunciado anterior, o meme faz uma subversão por “desqualificar o texto imitado” (Maingueneau 2013, 220), bem como as personagens do campo político aí implicadas (o deputado e o militante). Essa desqualificação se baseia tanto em representar o agente de uma montagem anterior em objeto/vítima da montagem atual, como também em ridicularizar o militante, ao mostrá-lo numa situação em que o filho do presidente não reeleito encena total indiferença pelo sofrimento desse militante acampado em prol do mesmo presidente não reeleito.

O segundo exemplo, do gênero quadrinhos, é composto de quatro pequenos quadros. Tal como no exemplo anterior, um contraste entre cenas (as dos três primeiros quadros em oposição ao último) será o elemento fundamental a ser explorado para se construir um efeito de humor.

Diagrama

Descrição gerada automaticamente

Figura 2. Charge. Fonte: @humorinteligente01. Acesso em 25 de março de 2023.

As situações encenadas são apresentadas do seguinte modo: os dois primeiros quadros representam dois sujeitos que são peça-chave do bolsonarismo (“Dudu”, isto é, Eduardo Bolsonaro e Silas Malafaia) em situações de prazer e alegria, o terceiro quadro representa o próprio Bolsonaro “desaparecido” (isto é, escondido e choramingando sob os lençóis, tal como uma criança infeliz, como sugere o desenho e a onomatopeia “buáááá” pronunciada pelo personagem), o quarto e último quadro mostra a figura do bolsonarista acampado (designado como “os patryotaz”) marchando sob forte chuva e dizendo “só mais 72 horas”. Esse enunciado proferido pelo personagem do militante remete à enunciação veiculada em grupos de whatsapp de bolsonaristas de que esse seria o prazo para que uma intervenção militar que anulasse o resultado das eleições7.

Além do contraste entre o que as cenas mostram, isto é, “o real de quem deveria se preocupar” versus “o real do bolsonarista acampado”, outro elemento que se destaca também é a maneira informal e/ou não padrão de alguns termos: “Dudu” versus “Eduardo Bolsonaro”, “Bozonaro” (que evoca um personagem de TV, o palhaço Bozo) versus “Bolsonaro” e “os patryotaz” versus “os patriotas” sugere o uso da ironia (que também se manifesta no “SÓ mais 72 horas”), em uma subversão da própria enunciação para indicar que o literal não coincide com o figurado (Maingueneau 2013, 221).

O terceiro exemplo é um vídeo de trinta segundos8, divulgado em um perfil de Instagram com a seguinte legenda original: AJUDA PLLMDeeeeusssssss (“ajuda pelo amor de deus”).

O vídeo consiste na montagem de dois vídeos intercalados, mostrando duas cenas que se alternam e contrastam fortemente: uma primeira mostra um homem com a camisa amarela, gritando desesperadamente em frente a um quartel militar; esse personagem bolsonarista grita um pedido de socorro, nas seguintes palavras: Socorro! Socorro! Os meus filhos, a minha família, a nação brasileira precisa de vocês! Socorro!. Enquanto isso, uma segunda cena se mostra: a de um homem fardado (o que sugere se tratar de um soldado ou cabo) sambando alegre e despreocupadamente, sob o olhar risonho de alguns colegas.

Figura 3a. Primeira cena com o militante bolsonarista gritando. Fonte: @humortizando. Acesso em 23 de março de 2023.

Figura 3b. Segunda cena com o soldado dançando. Fonte: @humortizando. Acesso em 23 de março de 2023.

Tal como nos exemplos anteriores, esse vídeo também explora a contradição entre cenas mostradas ao interlocutor, uma de tristeza e outra de alegria. Mais uma vez, a incongruência opera como estratégia humorística por meio de um “impacto” (Eagleton 2020, p. 61), no caso, o choque entre os personagens das cenografias: um bolsonarista acampado gritando, em seu estado de desespero pela derrota de seu candidato nas urnas, é mostrado comicamente através do contraste junto à indiferença e à alegria do outro personagem, um soldado quartel sambando alegremente no quartel, como a sugerir que aquele desespero não passa de exagero cômico e, consequentemente, de um ato ridículo.

Evidentemente, trata-se de uma montagem a partir de um vídeo anterior (o do soldado sambando num quartel) que por si só é cômico: a seriedade da farda e da instituição cai por terra com o movimento do corpo dançando. Mas o que interessa é que, ao intercalar esse vídeo original junto ao do bolsonarista gritando, vê-se a construção estratégica do humor pautado na ridicularização.

O fato é que todos os exemplos ilustram a criação de um efeito de cômico —isto é, a “antítese de preocupações sérias” (Berger 2017, 35) que desmerece e ridiculariza bolsonaristas de modo geral—.

4. Algumas conclusões

Os exemplos abordados constroem um efeito de sentido baseado em apontar, pela ridicularização, um “defeito oculto nas ações ou na natureza” (Propp 1992, 43) desse objeto apresentado, então, como ridículo. A posição e atitude política dos bolsonaristas acampados é mostrada como um defeito. Em outras palavras, é como se os textos invertessem a condição de seriedade dos acampados, transformando-os em cômicos. Uma inversão que é, sobretudo, derrisória.

Evidentemente, esse apelo ao riso de zombaria como recurso para desqualificar um adversário do campo político não se restringe a posicionamentos da esquerda ideológica ou contra Bolsonaro. As sátiras e paródias são apontadas por Wadle (apud Sargentini, Carvalho 2022, 81) como um elemento da cadeia de (des)informação própria do mundo polarizado. No entanto, os textos analisados não parecem pretender um estatuto de “verdadeiro” como as fake news. Afinal, são textos de humor e por isso não bona fide.

Mas o destaque está em como o ridículo político se constrói discursivamente sobre os bolsonaristas acampados e funciona como uma estratégia no contexto dos embates político-partidários contemporâneos. Esse personagem —o bolsonarista acampado— é colocado nesse lugar, mesmo que não pense estar sendo ridículo ou que assuma sua condição ridícula de modo triunfante (Tiburi 2017).

A derrisão que advém dessa ridicularização, diferentemente da autoderrisão do ridículo político apontado por Tiburi (2017), confirma a tese de um riso de superioridade em que “o humor surge da gratificante percepção da fragilidade, estupidez ou obscuridade de outros seres humanos” (Eagleton 2020, 39). Assim, a construção discursiva do ridículo para o caso dos bolsonaristas acampados reflete a atitude de rir de alguém pela opção político-partidária, transformada aí em sátira pelo objeto de zombaria e escárnio. É o que demonstram os exemplos analisados neste artigo.

Como desdobramento, então, reafirma-se o papel da sátira como ataque mais acirrado ainda em tempos de polarização política:

A sátira é o uso deliberado do cômico com a finalidade de atacar. Em outras palavras, na sátira a intenção agressiva se torna o motor fundamental da expressão cômica. Então, todos os elementos do cômico são, por assim dizer, fundidos na forma de uma arma (Berger 2017, 267).

Pelo rebaixamento da ridicularização com a construção intencional e agressiva do cômico sobre os atos antidemocráticos e seus manifestantes bolsonaristas, o humor se reafirma, mais uma vez, como em tantos outros momentos da História (Minois 2003), também como arena de lutas do campo político.

Bibliografia

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» Foucault, Michel. 1995. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

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» Miguel, Luis Felipe. 2019. “Jornalismo, polarização política e a querela das fake news. Estudos em Jornalismo e Mídia 16.2: 46-58.

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» Tiburi, Marcia. 2017. Ridículo político: Uma investigação sobre o risível, a manipulação da imagem e o esteticamente correto. Rio de Janeiro: Record.


1 Segundo a então ministra, Jesus Cristo lhe teria aparecido junto a um pé de goiabeira. Já o ex-ministro teria se referido à sua esposa como “conge” (em vez de cônjuge). Ver Pedlowski (2019).

3 É importante não esquecer que houve conivência (por omissão ou por apoio) de algumas instituições a essas organizações bolsonaristas, cujo ápice, como se sabe, foram os atos de 8 de janeiro. Ver https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2023/03/23/exercito-solicitou-seguranca-limpeza-e-organizacao-do-transito-no-acampamento-bolsonarista-em-brasilia-diz-ex-secretario-de-seguranca-a-cpi.ghtml. Acesso em 25 de março de 2023.

4 Como bem assinala Possenti (2010, p. 27-28), os textos humorísticos mantêm necessariamente algum tipo de relação com acontecimentos, sejam esses fatos “do dia”, sejam acontecimentos de longa data e duração, parecendo mesmo imemoriais.

5 Embora Raskin (1979) trate especificamente do “humor verbal”, os textos a serem analisados ilustram como há necessariamente dois raciocínios que se opõem nas cenas mostradas e que operam então o efeito de humor.

7 Ver Só mais 72 horas. Acesso em 25 de março de 2023.

8 Disponível também em soldado dançando e troça gritando 😂😂😂 - YouTube. Acesso em 23 de março de 2023.