Humor nas redes sociais: alguns casos

Sirio Possenti

siriop@terra.com.br

Trabajo recibido el 10 de julio de 2023 y aprobado el 19 de agosto de 2023.

Resumo

Este ensaio apresenta brevemente as noções de acontecimento histórico e de acontecimento discursivo e argumenta que estão interligados. Entre os diversos aspectos do humor, enfatiza a descrição das técnicas que são mobilizadas em um pequeno conjunto de “textos” diversos que circularam recentemente nas redes sociais, considerando inclusive a hipótese de que os potenciais leitores desconhecem tanto os contextos quanto os jogos de linguagem, quando ocorrem, considerando a esse respeito, uma observação de Freud (1905) sobre a necessidade de explicar mais detidamente chistes distantes do contexto.

Palavras-chave: humor, redes sociais, análise de textos.

Humor on social media: some cases

Abstract

This essay briefly presents the notions of historical event and discursive event and argues that they are interlinked. Among various aspects of humor, it emphasizes the description of the techniques that are mobilized in a small set of diverse “texts” that have recently circulated on social networks, even considering the hypothesis that potential readers are unaware of both the contexts and the double meanings, when they occur, considering in this regard, an observation made by Freud (1905) about the need to explain jokes that are far from the context in more detail.

Keywords: humor, social networks, text analysis.

Humor en las redes sociales: algunos casos

Resumen

Este ensayo presenta brevemente las nociones de evento histórico y evento discursivo, y argumenta que están interconectadas. Entre los diversos aspectos del humor, destaca la descripción de las técnicas que se movilizan en un pequeño conjunto de diversos “textos” que han circulado recientemente en las redes sociales, incluso considerando la hipótesis de que los potenciales lectores desconocen tanto los contextos como los juegos de lenguaje, cuando ocurren, considerando al respecto, una observación de Freud (1905) sobre la necesidad de explicar con más detalle los chistes que se alejan del contexto.

Palabras clave: humor, redes sociales, análisis de texto.

1.

Acontecimentos históricos fornecem as condições de produção de discursos diversos em diferentes campos. Basta ver a proliferação de textos de todos os tipos e em muitos campos que a mais recente pandemia de Covid-19 permitiu. Entre eles estão muitíssimos e variados textos humorísticos porque o humor é cada vez mais uma das formas de gerir tais acontecimentos, ou seja, de relacionar discursos e mundos.

A análise do discurso dita francesa privilegia a relação entre língua e história (ao invés de privilegiar as questões cognitivas, por exemplo). A noção de acontecimento ocupa nessa teoria um papel fundamental porque tem, por um lado, um significado histórico e, por outro, um significado discursivo. Dito de outra maneira, acontecimentos históricos e discursivos se condicionam mutuamente.

Não deveria ser necessário assinalar a relevância do(s) acontecimento(s) para a história, a não ser por uma razão. Em “Retornar à história” (Foucault 1972), que é uma defesa de que o estruturalismo, não “eliminou” a história. Foucault (1972) mostra que esta teoria permitiu caracterizar diversos tipos de acontecimento para além dos mais usuais. Para resumir: alguns acontecimentos são breves e bem visíveis (um tsunami, uma rebelião, uma epidemia), outros não são clara ou facilmente caracterizáveis e precisam ser construídos pelos historiadores (um processo de desindustrialização, uma mudança na taxa de natalidade ou de expectativa de vida) e há outros ainda menos visíveis, que os historiadores descobrem, como as técnicas agrícolas medievais que foram as mesmas por vários séculos.

Os acontecimentos discursivos obedecem a uma lógica similar: coberturas jornalísticas de uma Copa do Mundo ou de um terremoto, por exemplo, que acompanhamos dia a dia são de um tipo; discursos sobre meio ambiente e sustentabilidade, crescentes nos últimos decênios, são menos visíveis, menos localizáveis e discursos sobre a vida dos casais (ou sobre a limpeza e a higiene) em sociedades ocidentais que permaneceram iguais por séculos, só se tornam visíveis com muito trabalho dos pesquisadores.

Ora, os textos humorísticos se distribuem de forma análoga. Há piadas, charges e memes relativos a fatos do dia ou da semana; há piadas e comédias sobre fatos e costumes de um certo período (os anos 60 e os fatos ou costumes que se seguiram a eles); e há temas imemoriais que vão e voltam em muitas formas de humor. Por exemplo, a corrupção dos políticos, as relações de homens e mulheres (ver Aristófanes), etc.

Assim, o que se explora brevemente neste trabalho é a relação entre certas produções humorísticas recentes e as situações em que surgiram; ou seja, acontecimentos visíveis. Eventualmente, tais discursos relativos a acontecimentos “do dia” envolvem também questões de média ou de longa duração..

2.

Seguindo a Freud (1905), assumo que não é o conteúdo que faz um chiste, ou qualquer outro texto de caráter humorístico mas sua técnica. Assim, embora o pequeno corpus aqui analisado tenha emergido de fatos políticos e esportivos, e veicule discursos ideológicos, que serão brevemente comentados, a ênfase do trabalho recairá sobre a análise e descrição da “maquinaria” humorística sem deixar de lado as condições de produção, ou seja, os fatos. Esta decisão considera também uma questão prática: em tese, os leitores potenciais são argentinos que desconhecem tanto os fatos que geraram os exemplos analisados quanto, eventualmente, os jogos de linguagem em que se baseiam pois são de outra língua.

Por exemplo, um meme como “MESSÍ BOCÚ”, que circulou nas redes sociais logo após a Copa do Mundo de 2022, poderia ser analisando confrontando diversos discursos que trataram do papel desse jogador na conquista da Copa do Mundo de futebol pela seleção argentina. Ou seja, poderia haver uma busca por sentidos ocultos por polêmicas, etc., de certa forma condensados nessa fórmula, que os apaga, impondo uma certa unanimidade.

Mas o privilégio será sua descrição material que demanda apenas a comparação entre a expressão linguística que constitui o meme (“MESSÍ bocú”) com a fórmula francesa merci beaucoup (muito obrigado). Por um lado, há uma simplificação ortográfica, especialmente de “beaucoup”, grafada “bocú”, que, no entanto, também produz algum efeito humorístico (alguém pode achar que o autor do meme não sabe escrever beaucoup e ri dele). Mas o mais relevante é a associação (ou superposição) entre “merci” e “Messi”. Aqui ocorre uma mudança da sílaba tônica do nome do jogador, fazendo com que “Messi”e “merci”convivam. Em resumo, “Messi”condensa, em uma palavra “inexistente” (como ocorre com o conhecido caso “familionariamente”, analisado por Freud (1905)). O nome próprio “Messi” e a palavra “merci”, podendo-se dizer que o efeito de sentido é “merci, Messi” (obrigado, Messi).

3.

Nas redes sociais, circulam todos os tipos de humor. Abrindo o feed de notícias, espaço de mensagens aparentemente aleatórias, encontram-se charges, tiras, contadores de piadas de vários países (que mostram que os temas e as técnicas variam pouco), cópias de trabalhos produzidos em mídias tradicionais, autorais ou anônimos, etc. Por exemplo, há pseudo-manchetes como “ALTA DO PIB: O ÚNICO SETOR QUE CAIU FOI A VENDA DE BANDEIRAS DO BRASIL PARA COLOCAR NA JANELA” (do jornal humorístico sensacionalista), só compreensível com uma explicação do contexto histórico: a pseudo-manchete evoca a derrota de Jair Bolsonaro na eleição presidencial de 2022, especialmente o fato de que seus apoiadores se indentificavam pelo uso da bandeira do Brasil, levada nos carros ou postada nas casas. A derrota produziu um refluxo contínuo na exibição das bandeiras e, consequentemente, as vendas diminuíram, enquanto a economia, avaliada pelo PIB, melhorava. Exceto no item venda de bandeiras.

Nos dados considerados neste trabalho, o procedimento será praticamente o mesmo dos algoritmos que geram as notícias do feed. Ou seja, o corpus provém das redes sociais e foi selecionado considerando características técnicas diversas, linguísticas e imagéticas.

4.

O humor se refere frequentemente a eventos circunstanciais visíveis. É o caso de charges relativas a um acontecimento bem definido, como uma denúncia datada de trabalho escravo (ver abaixo). Mas também pode se referir a acontecimentos de longa duração como são os chistes sobre corrupção política, sobre infidelidade matrimonial etc. Nos casos analisados aqui, predomina a curta duração, o que se deve também ao ambiente digital, que impõe uma circulação fugaz das postagens.

A charge abaixo, de autoria de Aroeira, que representa o corpo de Bolsonaro (reconhecível pelo rosto) com o corpo em forma de cruz suástica, tem dupla referência histórica. Por um lado, retoma uma declaração feita por ele em um debate no parlamento quando era deputado: que só não estupraria determinada deputada porque ela não o merecia, por ser feia. Por outro lado, o desenho da suástica o representa como nazifascista, o que indica um posicionamento político do auto, compartilhado por parte significativa da população.

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Charge 1. Bolsonaro.

Na verdade, esse tipo de “texto” mereceria um debate à parte: em que sentido é efetivamente humorístico? Se a associação humor e riso fosse muito relevante, talvez se pudesse dizer que o aspecto humorístico é aqui secundário (pertenceria ao campo do humor por ser uma representação parodística grotesca?) e que o desenho, com as legendas, se assemelha mais a um texto político que participa de uma polêmica sobre os dois temas em questão: a violência sexual e o posicionamento nazifascista de Bolsonaro que atinge domínios que vão além do machismo. Observe-se o texto: estupraria mesmo, mas “só quem merece! A democracia, por exemplo...”. A declaração final destaca a posição antidemocrática e favorável à ditadura da personagem retratada.

A segunda charge não inclui nenhum elemento verbal. O evento que motiva a obra é uma declaração do jogador de futebol Neymar de apoio ao presidente Jair Bolsonaro em sua campanha à reeleição. Ambos aparecem na charge: Bolsonaro está em uma tribuna voltada para uma praça – como as de palácios (sedes de governo ou lugares cerimoniais). Veste uma roupa verde e amarela, as duas cores dominantes da bandeira do Brasil, que são as mais comumente utilizadas em uniformes esportivos e que se tornaram as cores que caracterizaram os manifestantes políticos à direita desde os protestos contra Dilma Rousseff em 2016. Está vestido como um “patriota” mas porta na cabeça uma coroa de louros, como os imperadores romanos.

Na praça, Neymar, vestindo o uniforme da seleção brasileira de futebol, caminha sobre ossadas, fazendo embaixadinhas com uma bola de futebol. As ossadas representam os milhares de mortos pela COVID-19, pelas quais muitos especialistas consideraram Bolsonaro responsável dada sua política negacionista e, especialmente, antivacina. O resumo deste “manifesto” político pode ser: Neymar, jogador da seleção brasileira, indiferente à desgraça que atinge milhares de pessoas, apoia politicamente Bolsonaro, candidato à reeleição, que age como um imperador romano responsável por muitas mortes (a remissão é provavelmente às lutas do gladiadores no Coliseu). A representação de Bolsonaro em um balcão, com uma coroa de louros, retoma memórias de imagens de aparições de governantes diante da população de Roma. Mas Bolsonaro aparece diante dos mortos, representados pelas ossadas. A imagem de Neymar retoma basicamente sua caracterização esportiva, o uniforme da seleção brasileira de futebol, mas também mostra sua indiferença total em relação aos mortos, sobre cujas ossadas ele anda, fazendo embaixadinhas.

As bandeiras de diversos países, ao fundo, remetem à Copa do Mundo de futebol, cuja realização coincidiu com o período mais tenso da campanha eleitoral.

Charge 2. Neymar e Bolsonaro.

A terceira charge mostra um diálogo entre dois homens vestidos com a camisa da seleção brasileira de futebol. Pode-se dizer que são torcedores e não cidadãos de direita ou apoiadores de Bolsonaro. O desenho circulou no Facebook.

A charge inclui um diálogo relativamente longo (oito falas) entre dois homens. O contexto histórico é o fracasso da seleção brasileira na Copa do Catar em 2022. Os enunciados remetem a episódios da própria Copa, mas têm também como pano de fundo discursos sobre o país, especificamente seu fracasso no campo educacional. Vou comentar os enunciados um a um.

“O Brasil foi eliminado no Estádio da Educação”: “Estádio da Cidade da Educação” é o nome de um dos estádios nos quais foram realizadas partidas de futebol na Copa do Mundo. Nele o Brasil jogou sua última partida, na qual foi eliminado pela Sérvia. Mas este enunciado evoca principalmente os discursos sobre o fracasso das políticas educacionais do Brasil. “Eliminado no estádio da educação” é uma paráfrase de “facassou no campo educacional”.

“Isso explica porque levou bomba”: “levar bomba” é um idiomatismo que significa “ser reprovado/a”. Emprega-se basicamente nos discursos escolares e assemelhados para indicar que alguém não foi bem sucedido em exames, sejam os escolares, sejam os de concursos públicos. Significa “fracassar”.

“Fora do campo, carne com ouro”: o enunciado se refere a um jantar caríssimo em um restaurante que reuniu jogadores da seleção e ex-jogadores de outras copas no qual a comida servida, preparada por um “assador” mundialmente conhecido (efeito das redes sociais), foi carne assada “temperada” com folículos de ouro. O evento foi interpretado por muitos jornalistas e leitores como revelador de uma indiferença dos atletas e ex-atletas, que estariam esbanjando dinheiro, enquanto parte da população brasileira passa fome. Além disso, pode também evocar um discurso já mais antigo no Brasil: o que explica o fracasso do país nas Copas recentes seria a distância entre os jogadores (que atuam na Europa e são muito ricos) e os torcedores, isto é, a população, que se interessa cada vez menos pela seleção.

“Dentro do campo, chumbo grosso”: a expressão “chumbo grosso” se refere a derrotas ou fracassos. “Levar chumbo” significa ser atingido, tipicamente, em situações de luta entre criminosos ou entre policiais e crimonosos. “Chumbo grosso” refere-se primeiramente a balas de armas mais pesadas, de grosso calibre. O sentido da expressão se aproxima de “levar bomba”, embora esta expressão praticamente não inclua mais sentidos bélicos, ao contrário de “levar chumbo (grosso)”. Significa, enfim, que a seleção foi derrotada mais ou menos vergonhosamente. A sequência das duas falas não deixa de sugerir uma relação causal entre “carne com ouro” (esnobismo, indiferença fora do campo) e “chumbo grosso” (derrota no campo).

“Os jogadores não ouviram uns aos outros” é um enunciado cuja função é provavelmente apenas a de preparar o enunciado seguinte. Mas também se refe a narrativas seguindo as quais jogadores teriam pedido a um companheiro, que não teria ouvido, que não avançasse na jogada propiciou o contra-ataque que resultou no gol da Sérvia.

“O problema deve ser otite”: “otite” significa inflamação do ouvido, o que explicaria literalmente que os jogadores não se ouviram. Mas o duplo uso do mesmo material - para empregar a expressão de Freud (1905)-, é aqui fundamental: é que “otite” pode também ser lida como “o Tite”. As duas sequências são indistinguíveis na fala. É só na escrita que o artigo definido “o” aparece separado de “Tite”, nome —apelido, na verdade— do técnico da seleção brasileira, que muita gente considerou o verdadeiro problema da seleção brasileira pela forma como a dirigou. Ele seria o real responsável pelo fracasso. Assim, o que o humorista espera, certamente, é que se leia também “o problema deve ser o Tite”.

“A derrota nos deixou despedaçados” pode ser uma expressão hiperbólica de sentimentos diante da derrota, mas parece mais, como em um dos enunciados acima, destinada a preparar a fala final: “agora é catar os cacos”. “Catar os cacos” significa literalmente recolher restos de coisas quebradas, mais comumente em uma casa (cacos de louça e de copos, por exemplo). Mas também significa que não é mais hora de lamentos, é hora de esquecer os fracassos e seguir em frente. É o contrário de lamentar-se. É hora de dar a volta por cima, como diz o verso de um samba famosos (“Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”).

Charge 3. Diálogo entre dois homens vestidos com a camisa da seleção brasileira de futebol.

Consideremos agora esta outra charge. Ela remete à descoberta de trabalho em condições análogas à escravidão (é o termo jurídico) em vinícolas estabelecidas no sul do país, principal região produtora de vinhos e espumantes no Brasil. A imagem mostra um senhor degustando um vinho e enumerando suas características. Mas, em vez de se referir ao sabor e aos taninos, menciona palavras associadas à escravidão (achibatado), ao trabalho de pessoas menos favorecidas (suor nordestino) e ao gosto análogo à escravidão. O senhor que degusta o vinho segura a taça com um gesto elegante e apresenta um corpo estereotipado: não é jovem, como a calvície denuncia. Ou seja: é um homem rico que tem prazer (que a expressão “hum!” tem esse sentido) às custas de trabalho degradante. Desta charge, como da primeira aqui analisada, pode-se dizer que não provoca riso, sendo uma espécie de manifesto ou editorial.

Charge 4. Senhor degustando um vinho e enumerando suas características.

Finalmente, comento dois textos humorísticos associados ao mesmo acontecimento: a polícia federal apreendeu um avião com 290 kilos de um concentrado de maconha. O dado crucial é que o avião pertencia ao tio de uma senadora radicalmente conservadora, especialmente no campo moral, que, no Brasil, inclui a “questão da droga”. A senadora, Damares Alves, tinha sido ministra do governo Bolsonaro. A contradição entre ser moralista e, ao mesmo tempo, traficante de drogas possibilitou a emergência de muitas manifestações, dentre as quais algumas de caráter cômico. Selecionei duas por sua complexidade linguística:

a) —Como se chama um avião de crente cheio de cocaína? —Pó de crer.

b) Papo de maconheiro: —Fumo, mas não trago. Quem traz é o tio da Damares.

A chave da piada a) está na sequência “pó de crer”. “Pó” é uma designação comum da cocaína, mas funciona também para se referir a drogas em geral. “Pode crer” é um idiomatismo usualmente empregado para confirmar a um interlocutor a ocorrência de um fato do qual ele duvida. É como se fosse uma abreviação de “pode crer que é verdade que tal fato aconteceu”. “Crente” é uma designação genérica de evangélicos e alude a certos comportamentos: não consumir bebidas alcoólicas, vestir-se “modestamente” (em especial as mulheres) etc. Durante bastante tempo, opunha-se a católico, por serem os católicos mais liberais em relação a estes traços de comportamento. A palavra conota rigidez moral. A separação de “pode” na expressão “pode crer”, resultando em “pó de crer” (as duas expressões soam idênticas na fala corrente). É um jogo sutil cujo efeito de sentido se assemelha, ou equivale, a “pó de crente”. “Pó de crente” seria a droga traficada por um religioso muito conservador, um crente.

A piada b), que simula um diálogo (na gíria, um papo), explora uma incrível coincidência entre duas formas verbais. “Trago” é a primeira pessoa do presente do indicativo do verbo “tragar” (inalar a fumaça de um cigarro ou charuto) mas também do verbo “trazer”. “Fumo, mas não trago” significaria, portanto, que o fumante não inala a fumaça, que ele a expele antes que chegue aos pulmões (Clinton teria dito que fumara maconha quando jovem, mas que “não tragava”, significando que não fumava de verdade, que evitava os efeitos da maconha). A afirmação “fumo, mas não trago”, portanto, é ambígua, significando também “não porto comigo a droga que consumo”. E a piada acrescenta que quem traz (e não quem traga...) é o tio da Damares, uma senadora e ex-ministra conservadora e moralista.

5.

Os poucos dados aqui analisados parecem mostrar que o humor, nas redes sociais, nem sempre é “engraçado”, nem sempre produz o efeito dos chistes. Pode ser até mesmo uma denúncia direta, talvez exagerada (um traço do humor?), quase um editorial; que, muitas vezes, não é possível identificar seu autor (aliás, ter um autor significa que não é um chiste, que é tipicamente anônimo); que, quando há elementos verbais, além de imagens ou desenhos, frequentemente ocorrem jogos de linguagem (como no últimos casos analisados, exatamente como nos chistes que se refere frequentemente a acontecimentos imediatos, mas pode, mesmo assim, implicar memórias de duração mais longa como a questão da educação em um dos exemplos que é transmitido muito informalmente: pode estar na página pessoal do autor, mas também circula livremente nas redes sociais quando eventualmente a autoria se perde. Em resumo, o humor nas redes sociais não difere essencialmente do humor veiculado por outros meios, exceto pela circulação; provavelmente atinge mais pessoas / leitores, mas o humor continua sendo o velho humor, explorando fundamentalmente as mesmas técnicas.

Bibliografia

» Freud, Sigmund. 1905. O chiste e sua relação com o inconsciente. São Paulo: Companhia das Letras.

» Foucault, Michel. 1972. “Retornar à história”. In Ditos e escritos II. Rio de Janeiro: Forense Universitária.