O podcast Medo e delírio em Brasília e a estética do caos como recurso do humor

Márcio Antonio Gatti

Universidade Federal de São Carlos, Brasil
maggatti@ufscar.br

Trabajo recibido el 8 de agosto de 2023 y aprobado el 19 de agosto de 2023.

Resumo1

Este artigo pretende analisar as manifestações humorísticas do podcast Medo e delírio em Brasília partindo dos pressupostos teóricos e metodológicos da Análise do Discurso francesa. O objetivo é observar se a estética caótica do podcast é um elemento da produção do humor. Os resultados das análises mostram que essa configuração estética gera efeitos insólitos e argumenta-se que são estes que promovem majoritariamente o humor no programa. Argumenta-se ainda que estética caótica, efeitos insólitos e humor podem ser associados à intertextualidade abundante que exige um exercício de reconhecimento do interlocutor ao mesmo tempo que revela o funcionamento interdiscursivo posicionando as manifestações linguísticas do programa no espectro político brasileiro.

Palavras-chave: podcast, humor, estética.

The podcast Medo e delírio em Brasília and the aesthetics of chaos as a humor resource

Abstract

This paper intends to analyze the humorous manifestations in the podcast Medo e delírio em Brasília, using the theoretical and methodological assumptions of French Discourse Analysis. The aim is to observe whether the chaotic podcast aesthetic is an element of humor production. The results of the analyzes show that this aesthetic configuration generates unusual effects, and it is argued that these effects are primarily responsible for promoting humor in the program. Additionally, it is argued that chaotic aesthetics, unusual effects and humor may be associated with the abundant intertextuality that necessitates an exercise in recognizing the interlocutor while revealing the interdiscursive functioning, thereby situating the language manifestations of the program within the Brazilian political spectrum.

Keywords: podcast, humor, aesthetic.

El podcast Medo e delírio em Brasília y la estética del caos como recurso del humor

Resumen

Este artículo pretende analizar las manifestaciones humorísticas del podcast Medo e delírio em Brasília utilizando los fundamentos teóricos y metodológicos del Análisis del Discurso Francés. El propósito es observar si la estética caótica del podcast es un elemento de producción de humor. Los resultados de los análisis muestran que esta configuración estética genera efectos insólitos y se argumenta que son estos los que principalmente promueven el humor en el programa. Además, se sostiene que la estética caótica, los efectos insólitos y el humor pueden estar asociados a la abundante intertextualidad que exige un ejercicio de reconocimiento del interlocutor revelando el funcionamiento interdiscursivo, posicionando las manifestaciones del lenguaje del programa en el espectro político brasileño.

Palabras clave: podcast, humor, estética.

1. Panorama inicial

Este artigo analisará um episódio do podcast Medo e delírio em Brasília, um programa midiático que narra de forma bem humorada os fatos políticos ocorridos no contexto brasileiro desde a eleição de Jair Bolsonaro para presidente do Brasil em 2018.

O objetivo principal é, por meio de pressupostos teóricos e metodológicos da Análise do Discurso que se baseia no primado do interdiscurso, analisar a estética pouco convencional do podcast. Para isso, importam tanto a construção textual baseada na intertextualidade quanto os prováveis efeitos de sentido, que serão analisados por meio da observação do funcionamento da memória interdiscursiva midiática (Moirand 2008) e do interdiscurso (Maingueneau 2005). A hipótese é que a intertextualidade colabora e institui efeitos insólitos que funcionam como elementos de produção do humor, sendo, de tal modo, a memória aspecto importante para os efeitos de sentido humorísticos dos textos. Pretende-se, assim, recuperar algumas das referências intertextuais explicando de que modo elas promovem o humor no texto ao mesmo tempo que revelam posicionamentos discursivos no contexto político brasileiro.

Avalia-se, ainda, esse recurso abundantemente explorado no podcast, isto é, as rupturas provocadas por trechos oriundos de outros discursos como um aspecto fundamental para o que estamos chamando de estética do caos, visto que esteticamente a construção da materialidade discursiva se dá de uma forma pouco linear, repleta de cortes, introduções de vinhetas e recortes de gravações oriundas de outros lugares como, por exemplo, frases ditas por personagens conhecidos da cena política e midiática do Brasil. Assim, estética caótica e intertextualidade funcionariam interligadas na produção dos efeitos humorísticos do programa.

2. O podcast Medo e Delírio em Brasília: Intertextualidade, memória e humor

O podcast Medo e delírio em Brasília surgiu como uma tentativa de explicar de modo bem humorado o governo Bolsonaro. É produzido pelo jornalista e músico Cristiano Botafogo que é também quem empresta a voz para a apresentação do programa. Pedro Daltro assina os roteiros dos episódios. Caracteriza-se, sobretudo, por uma estética caótica, visto que se estrutura, em resumo, por um roteiro repleto de rupturas que resulta numa produção com dezenas de referências que o ouvinte deve minimamente identificar para que consiga construir algum sentido e para que seja produzido algum efeito humorístico.

Do ponto de vista de sua organização caótica enquadra-se no tipo de funcionamento do humor hipermidiático, conforme postulado por Fraticeli (2023)2, sobretudo se pensarmos Medo e delírio em Brasília como uma nova forma do humor contemporâneo, neste aumento da diversidade humorística:

com o humor hipermidiático, incrementou-se a diversidade discursiva do risível. Em primeiro lugar, pela aparição de novo gêneros e estilos (...). Outro fator da diversidade é o que assinalávamos a respeito de que as redes habilitam a midiatização de qualquer diversidade risível da vida social (Fraticeli 2023, 43)3.

Acrescentemos que, embora a estética caótica não seja exclusividade do podcast (basta lembrar do Cassino do Chacrinha ou ainda de outros programas da TV brasileira da década seguinte4), este modo como se estrutura o programa deve muito à própria diversidade de conteúdo produzido nas várias redes sociais e outros espaços da Internet, à qual os autores do podcast recorrem para produzir o insólito, geralmente responsável pelo efeito humorístico.

Para este artigo, foi selecionado como material de análise o programa II – Dias 115 a 119 – Totalmente drogado – 26 a 30/04/23 (Podcast medo 2023). Ressalte-se que optamos por analisar o episódio mais recente à época do início da produção deste artigo. Para produzir uma análise mais consistente, no entanto, ouvimos diversos episódios do podcast a fim de mapear regularidades e tendências do humorístico no programa.

Neste episódio, de 43 minutos e 55 segundos, os temas de relevo são, em primeiro lugar a linha de defesa adotada por Bolsonaro sobre seu incentivo aos atos golpistas ocorridos em 08 de janeiro deste ano5, em segundo lugar, a solicitação de habeas corpus de Anderson Torres, ex-ministro da defesa de Bolsonaro, preso em decorrência dos já referidos atos de 08 de janeiro e, por último, a dificuldade do governo Lula em lidar com os militares no Gabinete de Segurança Institucional (GSI).

O podcast em tela se autocaracteriza como “um diário ácido desse governo verde-oliva, essa bad trip escrota em que a gente se meteu” (Medo... s.d.). E convida o ouvinte a “rir e passar raiva” (Medo... s.d.). O tom revelado nessa pequena caracterização e convite vai se desdobrando nos episódios e compondo um ethos6 (Maingueneau 2006, 2008) debochado e ao mesmo tempo revoltado.

Esse ethos debochado e revoltado se constrói por variados aspectos que se podem presenciar nos textos. Entre eles, destaca-se a intertextualidade, ou intertexto, para ficar na conceituação de Maingueneau (2005) que caracteriza a intertextualidade como as relações intertextuais tidas como legítimas para uma competência discursiva e o intertexto como “o conjunto de fragmentos que ele [discurso] cita efetivamente” (Maingueneau 2005, 81).

Sobre isso, vale ressaltar que, para o linguista francês, a relação do discurso com a intertextualidade se dá em virtude do campo discursivo7, que “define uma certa maneira de citar os discursos anteriores do mesmo campo. A maneira pela qual a física moderna se reporta a Galileu ou a Newton não é comprável à maneira pala qual um discurso católico se reporta à produção de São Paulo” (Maingueneau 2005, 81). Ainda, no mesmo sentido, no interior dos campos, constitui-se uma intertextualidade interna, isto é, conjuntos de textos que podem ser citados e rememorados, visto que são autorizados pelo sistema de restrições de um determinado discurso. Mas há também uma relação com discursos externos, de outros campos, à qual Maingueneau chama de intertextualidade externa.

Nesse sentido, o intertexto preferencial do podcast, frequentemente, deriva de uma intertextualidade externa – geralmente do campo político, mas é também composto por referências do campo humorístico, como memes, por exemplo, e ainda de outros textos oriundos da cultura pop. Possenti (2018) postula a hipótese do humor como um campo, retomando a noção formulada por Bourdieu (e posteriormente reformulada por Maingueneau), que explica a relação dos indivíduos com a sociedade com base nesses microcosmos nos quais os indivíduos se inserem e a cujas regras se submetem. Ressaltando que, assim como ocorre nos outros campos, no humorístico há uma série de traços que poderiam caracterizá-lo como um campo. Traçando uma analogia com a literatura, o autor enumera uma série de aspectos que justificaria essa classificação. Adotamos, neste artigo, a perspectiva de Possenti, que formula a hipótese do humor como um campo.

É preciso ressaltar que muitas referências intertextuais do podcast, no entanto, são quase impossíveis de recuperar. Por exemplo, na vinheta de abertura dos episódios mais recentes, há um xingamento que se repete: “Cristiano, seu lixo”, cuja referência intertextual é uma leitura que a deputada Sâmia Bonfim fez, em vídeo, de comentários odiosos dirigidos a ela. Uma referência recuperável somente porque os próprios autores a revelaram em entrevista8 (My News 2023).

Em relação a esse xingamento na abertura, há evidentemente uma estratégia de autoderrisão como um recurso para efeitos humorísticos. O riso zombeteiro foi fartamente explicado por estudiosos do humor (ver a propósito, Eagleton 2020; Propp 1992). Zombar de si é um recurso, em nossa breve análise, tal qual o explorado por Muniz (2020)9, no que diz respeito à autoderrisão em memes que circulam pelas redes sociais digitais. Segundo a autora, há nesse tipo de estratégia um modo de evidenciação do eu, e não exatamente de depreciação. No caso dos dados analisados por ela, suas conclusões são de que a autoderrisão funciona como uma espécie de partilha, em que a depreciação une semelhantes em uma espécie de comunhão em torno de algum momento ou aspecto desagradável da vida. No caso do xingamento em tela, não há aparentemente uma partilha de uma determinada condição, mas uma espécie de exploração e espetacularização do eu, como recurso do humor e como forma de evidenciar quem fala naquele podcast.

Continuando pela seara da intertextualidade, esse é um aspecto que contribui sensivelmente tanto para a produção e humor quanto para a estética caótica do podcast. A intertextualidade insere-se como ruptura do andamento da narrativa perpetrada pelo locutor, juntamente com inserções de outra natureza, como xingamentos, palavrões, imitações, multiplicidades de vozes etc. Inserimos abaixo, um excerto no qual se evidencia essa estética permeada de rupturas:

Deu errado! [frase cantada]

E Lula continua incapaz de peitar os generais, hein? [narrador]

“Ou seja, vocês percebem a loucura?” [Lula]

Bora para Vera Rosa, no dia 27, no Estadão:

“O General Marcos Antônio Amaro dos Santos será o novo ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional” [narrador]

Meu deus!

Puta que pariu!

Meu deus!

Puta que pariu!

Caralho!

Porra! [outras vozes acompanhadas de batida de funk] (Podcast medo 2023).

Nessa pequena amostra, é observável que há diversas vozes e outros artifícios que constituem uma estética com uma lógica pouco convencional. Por exemplo, o trecho selecionado inicia com uma vinheta (“Deu errado”) que indica um quadro relativamente fixo do programa. Logo uma sequência de diversas vozes e recursos sonoros vão se entrecruzando: locutor, Lula, locutor lendo trecho de reportagem, sequência de palavrões e expressões de baixo calão remixadas em batida de funk.

Recursos como esses abundam pelo podcast e produzem uma narração absolutamente entrecortada dos fatos selecionados como temas do programa. Tais recursos geram um efeito insólito, o que contribui para a produção do humor. Essas pequenas rupturas no fio narrativo são tão excessivas que a sua percepção pelo ouvinte constitui, a nosso ver, uma estratégia para a produção do riso, em certa medida análogo ao efeito do inesperado abordado por Skinner (2002), em seu apanhado sobre a teoria clássica do riso:

Castiglione enfatiza que “certos acontecimentos inusitados” são particularmente capazes de “provocar o riso”, especialmente se surpreendemos nossos ouvintes falando “o contrário do que eles esperam”. Vives elabora ainda mais essa ideia, argumentando que nossa alegria “surge de uma sensação nova de prazer” e que “coisas imprevistas e inesperadas têm mais efeitos sobre nós e nos conduzem mais rapidamente ao riso do que tudo mais” (Skinner 2002, 32).

Destaquemos dois trechos do excerto, no que tange aos elementos insólitos:

1) “Ou seja, vocês percebem a loucura”?

2) Meu deus! Puta que pariu! Meu deus! Puta que pariu! Caralho! Porra.

Nos dois trechos destacados, rupturas se impõem. No primeiro caso, que é a reprodução de uma fala de Lula, há uma interrupção do locutor do programa (que dizia: “E Lula continua incapaz de peitar os generais, hein?”), inserindo uma sorte de argumento: até mesmo Lula está achando o fato de ele não conseguir “peitar os generais” (isto é, impor-se, contrapor-se às vontades dos militares brasileiros) uma “loucura”. No segundo caso, novamente interrompe-se o locutor que desta vez lê um trecho de uma notícia do jornal O Estado de São Paulo. A ruptura na locução se dá, nesse trecho, com a fala de uma expressão de indignação: meu deus e de três expressões/palavras de baixo calão: puta que pariu, caralho, porra, todas elas articuladas sob uma batida de funk. Aqui, o inesperado toma corpo pela virulência dos xingamentos, pela indignação no tom de voz e pela batida de funk. Tudo isso reforça o ethos revoltado e debochado anunciado anteriormente neste artigo.

O expediente abundante da ruptura, nesta edição do programa (arriscamos dizer que em todas as demais), contribui, além do que já foi indicado, para a constituição do intertexto. Há, assim, do ponto de vista do co-enunciador, um necessário exercício cognitivo de memória, que vai se aliar aos outros tipos de memória (social e discursiva) conforme proposto por Moirand (2018)10 e estabelecer um posicionamento no espectro ideológico da política brasileira. Aspecto que desenvolveremos na próxima seção deste artigo.

O efeito insólito pode, portanto, ser observado (sobretudo se o ouvinte conseguir recuperar uma referência específica) em outros trechos. Recuperamos para análise um do primeiro bloco do episódio: enquanto se ouve um recorte de um áudio da Rádio Jovem Pan11, no qual se comenta a postagem de Bolsonaro no Facebook em apoio aos atos golpistas (ato específico pelo qual o ex-presidente teve de dar esclarecimentos à Polícia Federal), de repente, uma comentadora lança a hipótese de que talvez a postagem não tenha sido feita por Bolsonaro:

muitas vezes nem foi o Bolsonaro, né? A gente sabe que... a gente suspeita... Lembra que era o Carlos Bolsonaro que controlava a rede do Bolsonaro... (Podcast medo 2023).

Nesse instante, ouve-se um pequeno trecho de uma música, que logo se encerra. Trata-se da introdução da canção Sexy Yemanjá, de Pepeu Gomes. Essa música foi tema de abertura de uma famosa novela brasileira, Mulheres de Areia, e um de seus personagens, Tonho da Lua, é frequentemente associado ao filho do ex-presidente, Carlos Bolsonaro. Além da aparência física entre os dois (Carlos Bolsonaro e Tonho da Lua, interpretado pelo ator Marcos Frota), essa alusão é uma forma de depreciar o filho do ex-presidente, visto que Tonho da Lua era um personagem com deficiência intelectual ou mental. Trata-se, portanto, de uma espécie de humor agressivo.

O reconhecimento da intertextualidade necessária para a produção do humor depende inevitavelmente do exercício cognitivo individual do co-enunciador. Este deve, nos poucos segundos (mais precisamente nove) em que a abertura da canção permanece audível, reconhecer a música, relacioná-la à novela, ao personagem e ainda ao filho do ex-presidente. O trecho da canção funciona como um disparador de uma sociabilidade e o efeito insólito dessa introdução atravessando as falas dos comentadores da Jovem Pan promove o riso, de certo modo, inserindo o ouvinte em uma comunidade, em um grupo que compartilha tanto de uma memória afetiva e torno de um objeto cultural (a novela e seus personagens) quanto de um determinado posicionamento em torno dos acontecimentos políticos recentes. Ainda permite a partilha de uma depreciação de um personagem político, Carlos Bolsonaro, por meio de sua associação com um personagem “louco” da ficção brasileira, ainda que isso, por óbvio, deprecie também aqueles que têm alguma deficiência.

3. Humor, posicionamento político e prática discursiva

Retomaremos ainda, do mesmo bloco e especificamente no mesmo trecho do podcast em que se veicula o trecho da canção Sexy Iemanjá, e no qual se pode ouvir as justificativas de comentadores da Jovem Pan a respeito da postagem de Jair Bolsonaro, uma referência intertextual bastante peculiar. Trata-se apenas da expressão: o PT.

A peculiaridade, nesse caso, é oriunda de pelo menos três aspectos: 1) quem fala a expressão, 2) a relação dela com suas inúmeras retomadas por memes políticos do contexto midiático brasileiro, 3) quem é interrompido pelo aparecimento de o PT, no interior do episódio.

Trata-se de duas inserções da mesma expressão durante a fala de Fernando Holiday, vereador bolsonarista da cidade de São Paulo, que, em resumo, defende o ex-presidente eximindo-o de culpa em relação à invasão dos prédios dos três poderes da República, ao mesmo tempo que alerta para que o ex-presidente não dê motivos aos seus opositores para que seja associado ao golpismo. Em duas ocasiões, a fala de Fernando Holiday é interrompida pela expressão o PT (entre outras interrupções, como veremos abaixo):

O Bolsonaro, nesse momento, não pode dar razões para ser responsabilizado pelo que aconteceu em Brasília [Fernando Holiday]

Pra caralho [primeira interrupção – em tom de deboche e gritado]

Por que até aqui, por mais que o PT insista [Fernando Holiday]

O PT [segunda interrupção]

Não, o Bolsonaro tem que ser extraditado, tem que ser preso etc. [Fernando Holiday]

Tá certíssimo [terceira interrupção] (...)

Então até aqui, por mais que tenha uma sanha vingativa do PT que também precisa ser parada nesse momento [Fernando Holiday]

O PT [quarta interrupção] (Podcast medo 2023).

As interrupções funcionam nesse excerto, e durante a fala de Holiday como um todo, como contra-argumentos ao que o vereador vem expondo. A expressão em tela, o PT, é enunciada por Silas Malafaia, famoso pastor brasileiro, reconhecido por seu apoio a Bolsonaro e por suas posições ultraconservadoras. A expressão é dita com a entonação característica do pastor: uma voz estridente e em forma de grito, indicando uma virulência, uma certa raiva em relação ao Partido dos Trabalhadores. O efeito que releva é o da culpa desmesurada atribuída ao PT, como se o partido fosse culpado, na visão de seus oponentes por todas as mazelas brasileiras. É nesse sentido que a expressão dita por Malafaia e interrompendo Holiday funciona como e rememora o meme “Mas o PT, hein?” (ver #MuseudeMemes s.d.), cujo principal efeito de sentido é desqualificar o típico enunciador bolsonarista que, como último recurso em uma discussão, saca o trunfo das mangas “e o PT, hein?”, na tentativa de impor a referida culpa ao partido.

Tal como esse exemplo, boa parte do intertexto é oriundo de discursos que se posicionam favoráveis ao ex-presidente Jair Bolsonaro, o que no âmbito de um posicionamento ideológico no contexto brasileiro, significa um alinhamento à direita ou à extrema direita. Isso não quer dizer, no entanto, que o posicionamento que se identifica no podcast esteja alinhado com esses discursos. Ao contrário, a retomada desses discursos serve ao deboche e ao rebaixamento, para a contraposição.

Assim, defendemos que a estética caótica funciona como produto de uma interdiscursividade já que como argumenta Krieg-Planque, o discurso “é um objeto e um espaço de conflito. Na troca entre interlocutores, o discurso não emerge das tensões, ele as cria” (Krieg-Planque 2018, p. 57). Os elementos fundamentais e estruturantes da estética do podcast podem ser vistos como o modo que um discurso interpreta o outro nesse espaço discursivo. Constituindo-se como um exemplar do discurso humorístico, o programa se vale, como humor hostil (Freud 1977), da sátira, da mobilização de falas alheias, da remixagem dessas falas, etc. para rebaixar um discurso específico. No episódio em tela, o discurso preferencialmente oposto é o da extrema direita bolsonarista.

A estética do podcast, como interpretação, no interdiscurso, das práticas linguageiras e semióticas de um discurso materializado no exercício de um governo facilmente caracterizável como conturbado, obscuro e, por que não, caótico, é a estética da representação desse mesmo discurso como farsa, como burlesco e mentiroso. Desse modo, essa estética caótica do podcast é, ao mesmo tempo, o que revela um posicionamento que se vale do humor, e a resposta deste ao discurso oposto, que é caótico, insólito, conturbado, obscuro (sobre essas características do discurso bolsonarista durante a gestão da pandemia de COVID-19, pode-se conferir Ferreira; Gatti 2023). Tomada como uma prática discursiva (Maingueneau 2005), é a constituição de um posicionamento no interior de um espaço; ao mesmo tempo que a ressignificação do outro discurso de acordo com a semântica do discurso mesmo.

Um outro exemplo é o trecho de uma retomada de falas do ex-presidente Jair Bolsonaro, nas quais ele repete uma expressão (quase um mantra...): “quatro linhas da Constituição”. Trata-se de uma expressão recorrente nas falas do ex-presidente, que significaria “estar (ou não) na legalidade da Constituição”. Essa expressão é apresentada de diversas formas nesse trecho do episódio: de modo acelerado, com a voz distorcida, acompanhada ora pelo advérbio “dentro” ora pelo “fora” e se repete bastante exaustivamente por mais de uma dezena de vezes.

Essa organização da repetição das falas fecha, de certo modo, a argumentação efetuada no interior do primeiro bloco do episódio, que consiste em mostrar as contradições da defesa de Bolsonaro em relação a sua responsabilidade quanto aos atos golpistas ocorridos em 08 de janeiro de 2023, poucos dias após a posse de Lula como presidente. Bolsonaro, que compartilhou postagem no Facebook em apoio aos manifestantes golpistas, defende-se alegando que estava sob efeito de medicamentos e que não poderia ser responsabilizado por tais atos.

O que se segue no primeiro bloco é a explicitação das contradições dessa linha de defesa, visto que por inúmeras vezes, o ex-presidente insinuou estar apto a romper com a ordem democrática (na semântica bolsonarista, “sair das quatro linhas da Constituição”). A repetição da expressão mencionada funciona, assim, como um fechamento que ridiculariza Bolsonaro nas suas insinuações golpistas e na sua linha de defesa.

Para corroborar essa hipótese do caótico como elemento estruturante do podcast, recorremos aos próprios créditos do programa, mas de outros episódios porque, curiosamente, no episódio analisado não se veicularam os créditos. O que não é uma prática comum do podcast. Recorrendo assim ao episódio seguinte (O nosso Al Capone), há cerca de 120 áudios de fontes diversas utilizados naquela edição, que vão desde O Poderoso Chefão, passando por Michael Jackson e CNN Brasil. Isso quer dizer que há quase duas referências intertextuais explícitas por minuto de programa, visto que o episódio tem 71 minutos.

4. Considerações finais

A estética do caos, minimamente explorada neste artigo, constitui, na nossa compreensão, um elemento importante das relações interdiscursivas constituídas em um espaço discursivo (Maingueneau 2005), no qual podemos isolar discursos que se põem em conexão.

Ao passar por alguns trechos que recortamos do episódio, tentamos mostrar, com as análises, que se pode concluir que a própria estética do caos funciona como um dos elementos, bem como o reconhecimento de referências intertextuais, para a produção de humor. As referências, por sua vez, contribuem para que se possa reconhecer um posicionamento no espectro político brasileiro. Ainda, o intertexto explorado nas análises e a estética caótica geram efeitos insólitos ao episódio que ao abundar pela cena impõem determinadas condições de interpretação ao co-enunciador.

Isolado um espaço discursivo, pode-se concluir resumidamente que a estética caótica é um elemento também de interpretação, representação e ridicularização do outro discurso. Esteticamente é quase como um espelho do contexto político em que o podcast nasce. Desses espelhos que ao mesmo tempo que refletem desfiguram o refletido.

Bibliografia

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» #MuseudeMemes. E o PT, hein? E o PT hein? – #MUSEUdeMEMES.


1 Uma versão deste trabalho foi apresentada na III Jornadas internacionales de estudios sobre el humor y lo cómico, em Buenos Aires, Argentina, em junho de 2023.

2 Para o autor, estamos diante de uma nova era da produção humorística: em virtude da hipermidiatização da sociedade contemporânea, também o humorístico se configura de um modo diferente, com destaque à produção volumosa de humor na Internet e nas redes sociais. Grosso modo, esse humor hipermidiático é dotado de características singulares, como uma produção com baixa regulação institucional, colaborativa, amadora, entre outras.

3 Tradução nossa para o trecho “Con el Humor Hipermediático, se incrementó la diversidad discursiva de lo risible. En primer lugar, por la aparición de nuevos géneros y estilos (...) Otro factor de la diversidad es lo que señalábamos con respecto a que las redes habilitan la mediatización de cualquier discursividad risible de la vida social”.

4 O Cassino da Chacrinha foi um programa de auditório veiculado no Brasil durante a década de 1980, pela Rede Globo de Televisão e mesmo não sendo um programa humorístico, havia uma série de “gracejos” que tinham como fim provocar riso nos telespectadores. Apenas como exemplo, o apresentador jogava bacalhau para a plateia que ali se encontrava, enquanto um cantor se apresentava. Assim, vários acontecimentos ocorriam ao mesmo tempo, numa certa atmosfera caótica. Há diversos outros exemplos, notadamente na TV brasileira da década de 1990, como o “Domingo Legal” (veiculado no SBT), que contava com diversos quadros com viés humorístico, muitos deles que recorriam ao insólito e ao grotesco, mantendo de algum modo um tom caótico em certos momentos do programa.

5 Em resumo, centenas de manifestantes golpistas de extrema direita e apoiadores do candidato derrotado nas eleições de 2022 para o cargo de Presidente da República Federativa do Brasil, invadiram os mais icônicos prédios públicos: Palácio do Planalto, Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal, depredando-os e tentando tomar o poder pela força (ver a esse respeito Gabriel 2023).

6 O conceito de ethos discursivo é proposto por Maingueneau a partir do ethos teorizado na Retórica antiga que, basicamente, se constitui como a imagem que o enunciador faz de si em seu discurso. Na teorização do linguista francês, entretanto, essa imagem não se resume àquilo que o enunciador produz e mostra sobre si no ato enunciativo, mas revela um tom e uma corporalidade, no entrecruzamento de vários ethè: o dito (efetivamente explicitado pelo enunciador); o mostrado (oriundo de marcas outras na enunciação, nem sempre controladas) e o prévio (imagens anteriores ao enunciado). Todas essas imagens se entrecruzam e produzem um ethos efetivo e que funciona como uma espécie de fiador daquele determinado discurso.

7 Para uma melhor aproximação dos conceitos de universo, campo e espaço discursivos, ver Maingueneau 2005, texto em que o autor formula um refinamento do conceito de interdiscurso, identificando essas três dimensões como constituintes do interdiscurso.

8 Na referida entrevista, Cristiano Botafogo é indagado se o xingamento fora invenção sua ou de Pedro Daltro, mas o narrador de Medo e Delírio revela que se tratava de uma leitura efetuada por Sâmia Bonfim de tuítes odiosos dirigidos a ela. Assim, Sâmia lia o nome da pessoa (do hater) que havia escrito o tuíte e em seguida o teor do escrito. No caso: nome do hater: Cristiano; xingamento à deputada: seu lixo. A frase capturada pelo podcast, no entanto, é transformada e redireciona o xingamento e Cristiano passa a ser em um vocativo: “Cristiano, seu lixo!”.

9 Exploramos em texto recente (Gatti 2023) essa hipótese de Muniz, analisando dados oriundos da pandemia de COVID-19.

10 A autora propõe, a respeito da memória interdiscursiva midiática, que ela tem uma tripla ancoragem: discursiva (e, portanto, histórica), cognitiva e social. Esse entrecruzamento permite explicitar, a nosso ver, a complexidade dos dados e seus prováveis efeitos humorísticos, visto que não se limita a explicar o que há de uma memória que irrompe no enunciado explicitando posicionamentos, por exemplo, mas também o reconhecimento, por parte do co-enunciador, de um aspecto verbal, de um jogo de palavras, do reconhecimento de aspectos comuns a uma determinada comunidade etc. (ver também, a respeito da proposição de memória interdiscursiva midiática, Moirand 1999, 2006).

11 O conglomerado de mídia Jovem Pan é reconhecido por sua posição à direita, ou mesmo à extrema direita, no cenário político brasileiro.